Você está na página 1de 13

O Pensamento Filosófico das Culturas Originárias da América Latina (II)

Católica EAD

©2018 Copyright ©Católica EAD. Ensino a distância (EAD) com a qualidade da Universidade
Católica de Brasília

Apresentação

Imagem relacionada

Fonte: http://bit.ly/2INrzve.

Após termos visto o pensamento originário dos Náhuas, Maias e Tojolabais, vamos agora
entrar em contato com o modo de pensar dos Quíchuas, Mapuches e Guaranis, também povos
originários de Nossa América. O pensamento do povo quíchua apresenta-nos os princípios
fundamentais: relacionalidade, correspondência, complementaridade. Reciprocidade e
ciclocidade. Eles nos fazem conhecer a natureza e o sentido da existência humana e do
universo afirmado que não existem entes separados, mas todos os seres são relações. Os
Mapuches, entretanto, concebem a vida individual, comunitária e política em constante
transformação e devir; do ponto de vista filosófico, eles têm um hábito (que vem desde os
primórdios de sua cultura) o qual é muito sugestivo, pois para eles a verdade se constitui como
confronto e diálogo com outras culturas. Por fim, os guaranis, que vivem também no Brasil,
usam uma economia de intercâmbio ou reciprocidade a qual não busca interesses para si, mas
para o outro. Tem como fundamento, não o lucro da economia ocidental, mas o dom gratuito.
Além disso, esses povos nunca se governaram por um Estado, organizaram-se de outra forma
comunitária; por isso, elas estão sendo desestruturadas pela imposição dos Estados do Brasil,
Argentina e Paraguai.

Bons estudos!

Católica EAD

©2018 Copyright ©Católica EAD. Ensino a distância (EAD) com a qualidade da Universidade
Católica de Brasília

Conteúdo

A Filosofia Quíchua

Os quíchuas ou quéchuas são um dos vários povos que pertencem ao Império dos Incas ou
Império do Sol. Em sucessivas conquistas, eles ocuparam a Colômbia, Equador, Peru, Bolívia,
Chile e Argentina. A língua quíchua ou runa simi era a língua oficial de todo o vasto Império. E
quando falamos do pensamento incaico, Josef Estermann se refere
... a uma síntese de influências culturais e sapienciais de muitas culturas milenares, herdadas
pelos senhores do Império do Sol que falavam quíchua. Em vista de que as culturas andinas
originárias usavam uma escritura alfabética e hieroglífica até agora não decifrada, as fontes
desse pensamento incaico são de índole arqueológica, paleontológica, indumentário, ou então
de tradição oral e de testemunhas de cronistas espanhóis, mestiços e indígenas aculturados
(que já falam o espanhol).

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 36).

Prefere-se, em geral, falar "pensamento quíchua'' em lugar de "pensamento incaico".


Enquanto não se consegue traduzir seus livros escritos em hieróglifos, pesquisa-se sua filosofia
na tradição oral, na subconsciência coletiva, no universo simbólico religioso e ritual e nos
relatos dos próprios quíchuas atuais que criaram grupos para tornar pública sua sabedoria
milenar. A cultura deles tem muitos traços sapienciais, filosóficos que podemos encontrar "na
sua língua runa simi ...e na cultura quíchua, enquanto conjunto de costumes, ritos, princípios,
éticas e modos de viver" (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 37).

O termo Pacha revela a racionalidade específica e original do pensamento quíchua. Esse termo
tem muitos sentidos. Filosoficamente pacha significa a ordenação do universo em conceitos de
espaço e tempo. Seu sentido está próximo da palavra grega phisis que podemos traduzir por
realidade que inclui tudo o que existe: tanto os entes naturais como os humanos e os divinos.
Assim a palavra pacha pode ser traduzida como o ser (tudo o que existe no universo). Contém
no seu significado espaço-temporalidade: tudo que existe de alguma forma (entes materiais e
espirituais, naturais ou divinos) está no espaço e no tempo. Dessa forma, pode-se talvez
traduzir a racionalidade fundamental quíchua pelo termo relacionalidade (tudo é relação) que
vamos explicitar a seguir.

Segundo Estermann podemos sintetizar essa Pachafilosofia em cinco princípios básicos:


relacionalidade, correspondência, complementaridade, reciprocidade e ciclicocidade.

O Princípio de Relacionalidade

A Filosofia ocidental concebe como fundamento ontológico da realidade um universo de


substâncias individuais e autossuficientes. O pensamento quíchua, ao contrário, coloca a
relacionalidade como o primeiro princípio de tudo o que existe. Isso significa que não há
"entes" separados e autônomos. Cada ente depende e se relaciona com os demais; todos os
entes estão diretamente relacionados com todos os outros. A relação, para a Filosofia
ocidental, é um acidente da substância, para os pensadores andinos, entretanto, a relação é a
verdadeira "substância não substancial", pois todos os entes são constituídos de relações com
os demais. Não pode haver nenhum ente carente de relações, incluindo as relações imanentes
e transcendentes. Dessa forma, no mundo andino não pode haver entes absolutos, pois todos
estão relacionados entre si.

A relacionalidade também se aplica ao mundo do conhecimento. Na filosofia Ocidental, o


conhecimento se processa no confronto de sujeito e objeto, como duas realidades separadas.
Para os andinos, ao invés, não há um sujeito e objeto como duas substâncias autossuficientes.
A relacionalidade se manifesta em todos os níveis da existência. E essa concepção de mundo
em que todos os entes não passam de um feixe de relações com os demais entes é muito rica
e nos convoca a repensar nossa concepção dura das coisas.

O Princípio de Correspondência

Como diz Estermann, "o princípio básico de relacionalidade se manifesta a nível cósmico como
correspondência entre o micro e o macrocosmo". Os planetas, os fenômenos climáticos e
divinos da ordem cósmica têm relações correlativas com os humanos e suas relações com a
economia, sociedade e cultura. Assim, aqui não há lugar para o princípio de causalidade
mecânica entre seres separados, pois as relações entre o macro e o micro são simbólicas e não
mecânicas, pois "o ser humano representa, mediante atos simbólicos, o que se passa no
grande, assegurando-se desta maneira da continuidade do universo e da perduração da ordem
cósmica" (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 39).

O Princípio de Complementaridade

Esse princípio da complementaridade é, para os andinos, a condição de possibilidade de cada


ente ou acontecimento ser completo e capaz de existir. As oposições não estancam o
pensamento, mas, pelo contrário, são a condição necessária de seu dinamismo e existência.
Assim, noite e dia, bem e mal, céu e terra, todas as oposições coexistem inseparáveis como
uma necessidade no pensamento quíchua. O que é então o verdadeiro ente para eles? O
genuíno ente é relação, é união de oposições, é o equilíbrio entre os dois polos opostos, é
complementaridade.

A complementaridade a nível cósmico se dá como o ordenamento dos pólos entre um lado


esquerdo e um direito, o que por sua vez se concebe em termos de sexualidade: o lado
esquerdo corresponde ao feminino, o direito ao masculino. Trata-se de categorias
cosmológicas (ou pachassóficas), e não antropológicas ou biológicas.

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p.39).

Se tudo para esse povo está sexuado, então todas as coisas e eventos também estão sujeitas
ao princípio de complementaridade. É um pensamento semelhante ao das oposições do
pensamento originário grego em que os dois termos opostos são polos de uma única
realidade.

O Princípio de Reciprocidade

Quando os princípios de correspondência e complementaridade se dão a nível pragmático e


ético, estamos aplicando o princípio de reciprocidade. A cada ato corresponde - como
contribuição de complementaridade - um ato recíproco. Essa reciprocidade rege todas as
relações do homem: consigo mesmo, com os outros entes humanos e não humanos, inclusive
com o divino.

Entretanto a ética tem dimensões cósmicas, isto é, não se limita aos entes humanos, mas é
própria de todos os entes do universo, inclusive o divino. Trata-se de um dever cósmico que
reflete uma ordem universal, de que o ser humano é parte.

Assim, observa Estermann:


O princípio de reciprocidade diz que diferentes atos se condicionam mutuamente (interação)
de tal maneira que o esforço ou a inversão em uma ação por um agente será recompensado
por um esforço e uma ação da mesma magnitude pelo receptor. No fundo, se trata de uma
justiça (metaética) do intercâmbio de bens, sentimentos, pessoas e até de valores religiosos.

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 40).

Essa justiça cósmica se dá entre todos os entes do universo e está operando em toda parte,
pois a ordem das coisas é base do princípio de reciprocidade e é fundamento do equilíbrio e da
harmonia de todas as relações.

O Princípio de Ciclicocidade

Os andinos, enquanto são agricultores, têm a experiência do tempo e do espaço como algo
que se repete. Eles veem o tempo e o espaço em movimento circular e não linear, como os
cristãos e judeus os concebem. Os quíchuas percebem o tempo como o bater do coração e o ir
e vir das marés.

As categorias básicas do tempo para eles não são o passado e o futuro, nem atrasado e
adiantado, mas o antes e depois. O tempo não é visto de modo quantitativo, mas qualitativo.
Fala-se de ''tempo denso'' e ''tempo fraco''. Estermann afirma que " em algo a temporalidade
andina se assemelha com a concepção grega de Kairos. ... Cada tempo (época, momento,
lapso) possui um propósito específico." (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 40). Há
tempos favoráveis para cada coisa (semeadura, poda, colheita, e assim por diante) e o homem
não pode mudar esse propósito. Não se pode pressionar o tempo. Os supostos ganhos de
tempo, apreciados por nossa cultura, para esse povo é, de fato, perda de tempo.

O que devemos e podemos fazer para salvar esse pensamento que está sobrevivendo a duras
penas depois da cruel conquista espanhola até hoje? Trata-se de uma opção filosófica que
questiona frontalmente nossa sociedade de consumo e individualista, sobretudo a redução de
todos os entes humanos a objetos descartáveis e a destruição da natureza em que habitamos.
É possível construir outro mundo – diferente do nosso atual onde reinará justiça, respeito pelo
outro e pela natureza – dentro dos pressupostos de nossa cultura europeia capitalista? Muitos
pensam que será vã nossa luta por um mundo mais justo se não desconstruirmos os grandes
pressupostos que sustentam nossa cultura. E, no trabalho de reconstrução, o pensamento dos
povos originários tem muito a nos dizer.

Mas como fazer para que eles sejam preservados e falem ao homem desumanizado de hoje?
Você sabe como?

A Filosofia Mapuche

O pensamento mapuche (mapuche rakiduam) é um saber muito diferente do saber ocidental


que procura impor seus conhecimentos e cultura aos povos originários da América, pois tem
como princípio dialogar com os saberes de outras culturas para elaborar seus conhecimentos e
valores. Portanto, trata-se de um pensar que se questiona e se reformula constantemente, a
fim de dar conta de seu complexo sistema de valores, significações e práticas culturais. Para os
mapuches, pensamento e vida andam juntos, embora estejam sempre lutando por seus
direitos e autonomia. Nesse sentido, Astraín afirma:

O pensar mapuche é um exemplo paradigmático de luta pelo reconhecimento, na qual os


próprios conhecimentos (kimun) são a base de uma prática de vida cultural (mogen), que se
afirma e resiste culturalmente, não só questionando a subordinação política, mas também a
hegemonia de conhecimentos e de visões de mundo estrangeiras (winka) que pretendem
impor-se em seus territórios.

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 41).

Diálogo Cultural

E essa mentalidade de dialogar com outras culturas, sem se deixar dominar por elas - e, ao
mesmo tempo, lutar por seus direitos - vem desde os primórdios de sua civilização até hoje.
Dessa forma é um pensar que vai se questionado e se reconstituindo ao longo de sua história
feita de encontros e desencontros com outras culturas. Isso explica porque até hoje, mesmo
estando subjugados politicamente pelos invasores espanhóis, continuam independentes no
que diz respeito a sua cultura e pensamento. Nesse sentido também é preciso perceber que a
originalidade do pensamento mapuche está nesse confronto de ideias que permite uma
reconstrução constante de seus próprios conhecimentos primitivos. Dessa forma, o que vamos
estudar aqui não é o pensamento puro dos primórdios, mas é esse mesmo pensamento
reconstituído e constantemente reinterpretado ao longo de sua experiência histórica.

De outro lado, esses conhecimentos, elaborados por eles ao longo de sua história, são
guardados com zelo por seus intelectuais (homens e mulheres com saberes, sábios e
pensadores, mensageiros e personalidades religiosas). Os intelectuais, contudo, afirmam que
nem todos os conhecimentos podem ser dados indiscriminadamente para os mapuches. Há
tipos de saberes que são reservados para os iniciados dos mistérios.

A visão mapuche do mundo da vida foi desconhecida durante séculos pelos pesquisadores
estrangeiros, pois utilizavam métodos das ciências ocidentais e positivistas que tornavam
impossível captar o que era próprio desse pensamento. Só é possível ter acesso a sua visão de
mundo se a pesquisa for realizada a partir de suas práticas, formas cognitivas e suas
constantes ressignificações históricas. É imprescindível escutar com atenção e respeito os
próprios mapuches narrando suas experiências, interpretações e análises deles próprios. Há
uma nova geração de pensadores desse povo que estão organizados para recuperarem e
guardarem o pensamento e as práticas de sua milenar cultura. Só assim se pode compreender
e conhecer as formas de saber e convivência da cultura desse povo inserido nas sociedades
chilenas e argentina. Passemos a ver algumas noções básicas do pensamento desse povo
originário, como Astraín propõe.

A Visão do Ser Humano e do Cosmos

Para os mapuches, o ser humano está em constante transformação, em contínuo vir-a-ser na


lida de fazer-se pessoa. O che (ente humano) está em constante construção de seu ser. O ente
humano tem corpo e espírito; este sobrevive depois da morte e mantém encontros com os
antepassados e deuses. "As qualidades mais valorizadas são que as pessoas possuam fortaleza
{newenche), sabedoria (Kimche), bem-estar (kumeche) e retidão (norche), ideais para ser
mapuche e também para a projeção da cultura." (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p.
43).

A noção de mundo deles é muito interessante, pois está entrelaçada

... com a ideia de ser humano, tendo como eixo principal o termo mapu, que significa a terra
habitada pelos che. Como o diz Curivil: "Ser mapuche é ser do mapu, da terra e desta terra. É
mais que ser originário do lugar, é ter nascido do mapu, e ser, ao mesmo tempo, parte do
Mapu". Não cabe neste contexto separar o lugar físico do conceito mais amplo dos vínculos
das famílias (lof) e de sua inscrição territorial; trata-se decisivamente de uma noção
polissêmica na qual mapu se refere não só aos quatro pontos cardeais, mas também aos níveis
ontológicos superpostos.

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 43).

Cada um desses níveis se refere a modos de vida de seres e formas religiosas relacionadas com
formas de sabedoria dos ancestrais, que fundam os laços religiosos. Vemos que o cosmos não
é compreendido enquanto é natureza, como fazem a ciência e a filosofia no Ocidente; ao
contrário é um conceito aberto, relacionado não só com seu habitante homem, mas com todos
os entes míticos e religiosos do mundo além-natural.

O Devir da Comunidade e Seus Princípios Éticos e Políticos

A comunidade, os antepassados, a linhagem e a família têm importância e sentido centrais


para esse povo originário. Para haver desenvolvimento da comunidade, seus líderes atualizam
a memória dos antepassados.

Depois da anexação dos territórios pelos governos argentino e chileno, se tornou difícil para
eles a coordenação política da comunidade, pois os organismos desses países tornaram
impossível a autoridade comunitária tradicional. Mas, apesar disso, os mapuches continuam
afirmando sua identidade cultural e reclamando permanentemente suas terras anexadas,
havendo permanentes mobilizações por parte deles nas últimas décadas.

Os princípios da moralidade mapuche estão ligados ao modo de como chegar a ser che
(pessoa) que está enraizada na terra. Esse povo exalta - de modo relevante - a dignidade
humana. Dos ancestrais vem um dito que revela isso: "eu também sou gente!". O ideal do
homem bom valoriza o saber, a força e a retidão e acentua a importância da vida comunitária
tendo um respeito profundo aos outros e à terra. Existem os conselhos morais para valorização
dos outros. Seus princípios ético-políticos pressupõem a igualdade, a reciprocidade, a
redistribuição e a horizontalidade, o que impedia uma verticalidade hierárquica no campo
político. Isso nunca foi entendido nem pelos investigadores positivistas nem pelos povos
brancos dominadores da Argentina e Chile.

Esse pensamento é muito diferente do modo de pensar e ver da cultura e filosofia ocidentais
eurocêntricas. Trata-se de um modo de conceber a vida individual, social e política de maneira
muito dinâmica e valorada. No que concerne especificamente ao conhecimento filosófico, toda
verdade é estabelecida em debate não só entre eles, mas também em diálogo com outras
culturas. Nesse particular, antecipam a filosofia intercultural de Fornet-Betancourt. Isso tudo
interpela e questiona, com veemência, a filosofia monológica, que se fecha dentro de seus
parâmetros. Além de tudo, é uma filosofia em que tanto o indivíduo quanto a comunidade
está sempre se fazendo; está sempre em devir.

A Filosofia Guarani

Os diversos povos e diferentes etnias guaranis estão espalhados, atualmente, em várias


regiões do Brasil, Paraguai, Bolívia e Argentina. No Paraguai, depois de muita luta a língua
guarani se tornou uma das duas línguas oficiais do país. De todos os países, talvez o Brasil seja
o que menos aceita e respeita seus índios e a especificidade de suas culturas.

No Paraguai, no século passado, houve muitos estudos históricos etnológicos da cultura e


pensamento guaranis, mas essas pesquisas, a despeito de serem sérias, utilizavam métodos
inadequados para captar o que há de próprio nessa civilização. O problema é que se busca
comparar uma cultura originária com a cultura tecnocientífica ocidental a partir dos
parâmetros da ciência e civilização modernas. Dessa forma, por mais que se queira valorizar o
pensamento e as práticas indígenas, estes povos serão sempre considerados como um povo
primitivo cujo pensamento é apenas um pré-pensamento em relação à ciência e filosofia
modernas e suas práticas éticas são vistas como muito inferiores às éticas formuladas na
Filosofia ocidental.

Assim, os guaranis são considerados povos que ainda não acederam e nem tem capacidade de
aceder à plenitude da ciência e civilização; por isso são inferiores aos brancos ocidentais
europeus. Seu pensamento e práticas são importantes apenas por serem folclóricas, curiosas e
exóticas. Assim, podemos dizer como Melià (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 47-48)
que o eventual pensamento guarani foi buscado por historiadores e literatos, que não
conseguiram ver a riqueza específica do pensamento indígena, porque esse estudo foi
realizado com métodos estranhos e inadequados a essa cultura.

A Cultura e Pensamento Guaranis Contada Por Eles Mesmos

Percebeu-se então que - a história dos guaranis, a fim de ser significativa e dar conta do
específico de sua cultura - devia ser contada por eles mesmos.

A etno-história – e vamos diretamente à etno-história guarani – não é simplesmente uma


história que trata do índio Guarani. Não é o guarani na história; nem tão pouco o guarani da
história, mas a história do guarani, enquanto é ele mesmo quem sabe seus tempos, sente-os,
seleciona-os e os relata. Há sociedades guaranis no Paraguai, como também as há no Brasil,
Argentina e Bolívia cujas culturas se reproduzem historicamente em suas ações. Que quer
dizer isso? O que é que reproduzem especificamente ao longo dos anos e séculos? Dito de uma
maneira sintética – e não sem riscos de me equivocar – o que reproduzem é a vontade de um
modo de ser que se expressa em um sistema simbólico, especificamente veiculado por uma
língua que é o guarani, que mantém uma economia de reciprocidade e que se configura como
uma sociedade sem Estado; agora, apesar do Estado.

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 48).


O fato de os guaranis não terem Estado, faz com que eles sejam, muitas vezes, tratados
injustamente como etnias anárquicas e que combatem o Estado. Na verdade, esse povo se
mostra assim como comunidade não colonial, podendo assim continuar, à medida do possível,
sua tradição milenar, apesar do Estado ao qual ele é submetido. Já se compreendeu que não
se pode conhecer essa cultura com métodos exógenos, mas deve-se pesquisar a partir da
cultura do próprio povo guarani. Falta ainda, contudo, deixar que o próprio índio conte e
interprete sua história, seu pensamento e práticas éticas, culturais e rituais. Meliá questiona
sobre isso:

Podemos esperar conhecer um pensamento guarani tal como se diz e se desenvolve no


interior do próprio povo guarani, com palavras e linguagem deles? Seria possível que fossem
os guaranis aqueles que nos farão conhecer seu pensamento filosófico anterior a suas relações
coloniais e seus contatos mestiços?

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 48).

A partir dessas questões, tentemos, seguindo o roteiro de Melià, rascunhar uma filosofia moral
dos comportamentos, atitudes e princípios de ação dos guaranis, analisando estas noções que
seguem: teko (modo de ser ou cultura), ñe'ê (palavra), Tupã (Deus), jopói (dádiva recíproca),
tepy (vingança e preço das coisas). Esses termos sugerem, ademais, conceitos e formas de
filosofia da comunicação, da participação, de exercício de linguagem.

Podemos dizer que houve uma revolução sem precedentes, em relação ao conhecimento e
cultura guaranis quando, Curt Unkel Nimuendajú (1883-1945) em sua obra que narra sua
experiência de convivência com os guaranis do Brasil. Os mitos da criação e destruição do
mundo como fundamentos da religião dos Apapokúva-Guaraní, publicada em alemão, não
fala dele, mas deixa os próprios guaranis falarem. Foi uma obra pioneira, pois não estuda a
cultura guarani de um ponto de vista europeu, mas a partir da perspectiva do próprio nativo
ameríndio.

Das experiências e dos comentários do autor do livro, destacam-se três temas, segundo Melià:

1º O guarani é sua religião e sua religião é a palavra. 2º A busca da 'terra-sem-mal', um termo


bem mais escatológico que articula um dualismo espiritual do ser humano (alma –palavra
celeste; alma-animal terrestre) a uma lógica da sublimação da corporeidade, e que gira em
torno do tema de uma aniquilação cósmica da qual é possível escapar pelo acesso aqui e agora
ao paraíso – uma escatologia que afirma a finitude humana, mas ao mesmo tempo persiste a
superação imediata dessa condição pela ascese ou pelo excesso.", segundo a compreensão de
E. B. Viveiros de Castro (1987, p. XXXVI) – e 3º A questão do pensamento guarani
aparentemente inclinado à melancolia e ao desespero, embora esse desespero guarani e
concepção trágica do mundo em que vivemos é mistura de esperança e desânimo, paixão e
ação: "no meio de sua miséria, os homens são deuses"

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 49).

Pensamento dos Cantos do Ayvu-rapitá


A seguir vamos ler trechos da compilação Ayvu-rapitá (1959), traduzidos para o espanhol por
León Cadogan (apud DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p.50) e para o português pela
equipe da Universidade Católica de Brasília Virtual. Trata-se de textos míticos que falam da
palavra, do fundamento das palavras primordiais e originárias:

Quando a terra não era

No meio das trevas originárias,

Não havia conhecimento das coisas,

fez florescer em si os fundamentos da palavra;

transformou-se o Primeiro Pai Ñamandú

em própria sabedoria divina.

Para os guaranis a palavra é tudo. Assim, "fazer florescer em si a palavra" significa fazer com
que algo se faça. Ñamandú reflete para saber com quem ele vai repartir a palavra e o canto:

O verdadeiro pai Ñamandú, o primeiro,

de uma parte de seu próprio ser celestial,

da sabedoria contida em seu ser celestial

com seu saber que vai se abrindo como uma flor,

fez que se engendrassem chamas e tênue neblina.

Havendo se incorporado e erguido como homem,

da sabedoria contida em seu ser celeste,

com seu saber que se abre qual flor

conheceu para si mesmo a fundamental palavra futura.

da sabedoria contida em seu ser celestial,

em virtude de seu saber que se abre em flor,

nosso Pai fez com que se abrisse a palavra fundamental

e que se tornasse, como ele, divinamente coisa celestial.

Quando não existia a terra,

em meio à obscuridade antiga,

quando nada se conhecia,

fez com que se abrisse como flor a palavra fundamental,


que, com Ele, se tornara divinamente celestial;

Isso fez Ñamandu, o pai verdadeiro, o primeiro (CADOGAN, 1959, p. 19-21).

Para eles a palavra é fundamental, é o que há de mais precioso para o homem. E o ser humano
participa da palavra criadora por dom do pai divino. Esse modo de conceber a palavra nos faz
lembrar o Logos grego e o Verbum cristão que também muito valorizam a palavra. Melià
apresenta esta ideia de um modo criativo quando diz:

O homem, ao nascer, será uma palavra que se põe de pé e se ergue até sua estatura
plenamente humana. A educação consiste em desenvolver a palavra na história, enquanto
escutada e proferida.

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 50).

Na cultura guarani a palavra proferida é tudo; os guaranis são discípulos da palavra viva,
escutam a palavra do outro, escutam o outro que profere a palavra. Ainda se pode encontrar
cantos e expressões similares às que vimos acima, nas diversas etnias guaranis no ritmo das
quais cantam e dançam.

Há também os poetas, profetas e sábios da selva que trazem gratuitamente o dom das
palavras profundas e coerentes que questionam a realidade e buscam a sabedoria.

Outros temas filosóficos se articulam com a filosofia da palavra. Clastres (1974) desenvolveu
um discurso de filosofia política que se constitui na teoria de "uma sociedade contra o Estado".
A metafísica tupi-guarani segundo Viveiros de Castro (1987, p. xxxiii), ensina que "é possível
superar a condição humana de modo radical, pois a distância entre os deuses e os homens é,
ao mesmo tempo, infinita e nula". As palavras não podem morrer, pois o divino está imanente
ao homem.

A partir de dados etnográficos e outros documentos históricos, Melià tentou compreender a


filosofia guarani do dom, vingança e outras formas de economia, que se une coma noção de
amor, entendido como reciprocidade:

A economia de reciprocidade não é um sistema de intercâmbio; não se baseia no interesse


para si, mas sim no interesse pelo outro; isto é, seu fundamento é o gesto, totalmente
ignorado pela natureza, do dom. A justificação de tal gesto – para a economia ocidental de
câmbio livre é igualmente um paradoxo e uma irracionalidade, posto que o que ela pretende é
respeitar as leis da natureza – é precisamente o fazer aparecer algo que pode ser chamado
alteridade. O respeito do outro, o reconhecimento do outro, tem isso de singular e admirável:
que faz descobrir não só o outro em si mesmo, mas esse novo que, entre o outro e ele mesmo,
nasce como humanidade. E porque não está dentro das coisas dadas e recebidas, menos ainda
nas coisas intercambiadas, é esse valor que constitui toda a diferença entre a economia de
intercâmbio e a economia de reciprocidade.

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p.51).


A economia de reciprocidade não acontece na natureza, pois só pode dar-se no patamar
humano, quando existe liberdade e dom gratuito; não há interesse egoísta nessa relação, é um
ato que não espera contrapartida como na economia de intercâmbio.

As diversas etnias guaranis vivem sem Estado. Isso não significa que são um povo anárquico ou
que lutam contra o Estado, como alguns pesquisadores interpretaram. Eles possuem sua
maneira própria de gerir suas comunidades. A verdade é que os países em que eles vivem,
desde a conquista europeia, impuseram para os indígenas a dominação do Estado. Isso fez e
continua fazendo a desestruturação de todas as suas comunidades. E assim, eles se sentem no
dever e possuem todo o direito de reclamar contra as interferências indevidas que destroem
elementos poder milenares de sua cultura. Importante também é sua economia de
reciprocidade que é uma economia de intercâmbio, fundada não na busca de interesses para
si, mas para os outros; está fundada no dom gratuito que a economia do Ocidente não
conhece e exorciza.

Vimos que há vários pensadores debruçados sobre a cultura e pensamento guarani. Mas esses
estudos estão ainda no começo. Penso que é necessário, antes de tudo, escutar mais os
próprios indígenas que falam sobre sua cultura, seus valores e seu pensamento, a fim de que
eles mesmos elaborem sua ética, estética, política e outros elementos filosóficos; no mínimo,
que deem todos os elementos para a elaboração de uma filosofia a partir dos pontos chaves
de sua cultura.

Finalizando...

Vimos que os Guaranis se destacam, sobretudo, por dois temas diferentes de nossa cultura, a
saber, gerenciamento comunitário de seu povo sem haver Estado e a economia baseada não
no lucro, mas no dom gratuito, manifestando, assim, um respeito impar pelo outro.
Igualmente os Mapuches apontam para dois elementos notáveis, a saber, o grande dinamismo
da vida individual, social e política: tudo é constante devir; e, do ponto de vista filosófico, eles
concebem, desde os primórdios de sua cultura, a construção da verdade como confronto e
diálogo com outras culturas. Os quíchuas, por fim, se destacam pela ideia central de seu
pensamento ao afirmar que - ao contrário do pensamento ocidental que diz que todas as
coisas são substâncias separadas – todos os entes são apenas relações, explicadas pelos
princípios de relacionalidade, correspondência. Complementaridade, reciprocidade e
ciclicocidade.

Católica EAD

©2018 Copyright ©Católica EAD. Ensino a distância (EAD) com a qualidade da Universidade
Católica de Brasília

Saiba Mais

Para ampliar seu conhecimento a respeito dos temas tratados nesta aula, veja abaixo a(s)
sugestão(ões) do professor:
Os povos indígenas têm cada vez menos terras e florestas para poder sobreviver
tranquilamente e menor espaço cultural para preservar suas culturas. Sua sobrevivência e sua
cultura estão em perigo. Leia o texto Povos indígenas da floresta.

Católica EAD

©2018 Copyright ©Católica EAD. Ensino a distância (EAD) com a qualidade da Universidade
Católica de Brasília

Referências

AIRES , Matias. Reflexões sobre a vaidade dos homens. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

CADOGAN, l. Ayvu rapyta: textos míticos de los Mbyá-guaraní de Guairá. Assunção:


CEADUC/CEPAG, 1959.

CLASTRES, P. La societé contre l' État. Recherches de antropologie politique. Paris: Minuit,
1974.

COSTA , Newton da. Lógica indutiva e probabilidade. São Paulo: Hucitec/EDUSP, 1993.

______. O conhecimento científico. São Paulo: Discurso Editorial, 1999.

DUSSEL, E. Metafísica del sujeto y liberación. In: Temas de Filosofía Contemporánea. Actas del


II Congreso  de Filosofía. Buenos Ayres: Sudamericana, 1971.

_____. Hacia una filosofía política crítica. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2001.

_____.  Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2002.

_____. 20 teses de política. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

DUSSEL, E., MENDIETA, E. & BOHÓRQUEZ, C. (Eds.) El pensamiento filosófico latinoamericano,


del Caribe y "latino" [1300-2000]. Historia, Corrientes, Temas y Filósofos.  México: Siglo XXI
Editores, 2009. Centro de Cooperación Regional para la Educación de Adultos en América
Latina.

FLUSSER , Vilém. A história do diabo. São Paulo: Annablume, 2005.

______. Língua e realidade. São Paulo: Annablume, 2007.

GONZAGA , Tomás Antônio. Tratado de direito natural. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

HEIDEGGER, M. Que é isto, a Filosofia? Tradução de José Henrique Santos. Belo Horizonte:


Imprensa da Universidade de Minas Gerais, 1962.

HOUNTONDJI, P. Sur la philosophie africaine. Critique de l'ethnophilosophie. Paris: Maspero,


1977.

JAIME , Jorge. História da filosofia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999.


LÉVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1990.

_____. Transcendência e Inteligibilidade. Lisboa: Edições 70, 1991.

MERQUIOR , José Guilherme. O argumento liberal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

______. Tarefas da crítica liberal. Publicado originalmente no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,


em 7 e 14 mar., 1981. Disponível em:  http://www.rv.cnt.br. Acesso em: 19 jul. 2007.

NOBRE , Marcos; REGO, José Márcio. Conversas com filósofos brasileiros. São Paulo: Editora
34, 2001.

PAIM , Antônio. História das idéias filosóficas no Brasil. Londrina: Editora Eduel, 1997.

______. O iluminismo no Brasil. In: História do pensamento filosófico português. Lisboa:


Editorial Caminho, 2001.

______. Problemática do culturalismo. Porto Alegre: Ed. PUC/RS, 1995.

REALE , Miguel. Cinco temas do culturalismo. São Paulo: Saraiva, 2000.

______. Teoria tridimensional do direito. São Paulo: Saraiva, 2003.

SALAZAR BONDY, A. Existe una filosofía de nuestra América? México: Siglo XXI editores, 1968.

SANTOS , Mário Ferreira dos. Filosofia Concreta. v. 1. São Paulo: Matese, 1959.

SPIVAK, G. Subaltern studies: Desconstructing historiography and Value. In: SPIVAK, G. In
Others Words: Essays in Cultural Politics. Nova York: Methuen, 1987.

TEMPEL, P. La philosophie bantue. Paris: Présence Africaine, 1949.

VAZ , Henrique Cláudio de Lima Vaz. Escritos de Filosofia VI: Ontologia e história. São Paulo:
Loyola, 2001.

______. Escritos de Filosofia VII: raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2002.

VIEIRA , Antônio. Obras Completas. Prefaciado e revisto pelo Padre Gonçalo Alves. Porto:
Livraria Chardron, 1907-1909.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. Nimuendajú y os guarani. In: NIMUENDAJU, C. U.  As lendas


da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos apapocuva-guarani. São
Paulo: Hucitec, 1987.

Você também pode gostar