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Latina
Apresentação
Fonte: http://bit.ly/2J7kvsL.
Nesta aula e na próxima, vamos entrar em contato com o pensamento de seis culturas diferentes.
Agora vamos estudar três dessas culturas: a Nauhatl, a Maia e a Tojolabal. Na introdução, vamos
discutir sobre a possibilidade de entender esses pensamentos originários como filosofia. Em
relação ao pensamento dos Náuhatl, os pontos destacados são a existência de sábios que
questionavam acerca do destino do homem na terra e no mais além, interrogavam também o
mistério da divindade e a possibilidade de dizer palavras verdadeiras. No que concerne aos Maias,
os pensamentos dos livros Popol-vuh e do Chilam Balam insistem na importância da experiência
sensível do corpo, dos desejos, da vontade, do coração e sentimentos, sem negar a importância do
pensamento. O pensamento Tojolabal possui conceitos provocadores para nós como: a
intersubjetividade em que todos os entes tanto os humanos como os demais seres do universo são
sujeitos e assim se torna impossível a relação sujeito x objeto. A "nosoutrificação" que é o processo
pelo qual, no final, todos os indivíduos humanos tomam consciência e se identificam como partes
da comunidade nosoutros; o antissolipsismo que é consequência direta do fato de todos os entes
fazerem parte da comunidade nosoutros - são conceitos totalmente novos e provocativos para nós.
Bons estudos!
Conteúdo
Há Filosofia na América Latina antes de 1500?
Podemos começar com a polêmica questão: Há filosofia na América Latina antes da conquista e
colonização europeia? Trata-se de um tema muito complexo e polêmico, pois, como já vimos no
capítulo anterior, há uma opinião generalizada defendendo categoricamente que, no sentido estrito,
só o Pensamento Grego é filosofia; e, se falamos de "filosofia" do Oriente, da África e da América
Latina, isso só é possível se for num sentido amplo do termo. Segundo essa opinião, só é filosofia,
de fato, o estilo grego de filosofar. Os estilos de pensar das outras grandes culturas, contudo, são -
segundo essa posição - pensamentos de grande valor; contudo, a despeito de se poder serem
chamados de Sabedoria, nunca seriam Filosofia.
Esses autores pressupõem que existe uma sequência linear: filosofia grega, medieval latina e
moderna europeia. Mas, como diz Dussel (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 17),
não é bem isso o que aconteceu historicamente, pois a Filosofia grega foi desenvolvida pelo Império
cristão Bizantino. Em seguida essa tradição foi herdada pelos árabes muçulmanos que, para esse
fim, criaram uma língua estritamente filosófica. E foi a tradução dos textos aristotélicos e de seus
comentários árabes (Avicena e Averróis) - tradução essa realizada, em grande parte, em Córdoba,
por especialistas árabes - que possibilitaram, de modo decisivo, o auge da Filosofia Latina Medieval
no século XIII.
E todas essas filosofias - ancoradas no pensamento filosófico grego – mostram que não existe essa
pretendida sequência linear da filosofia grega, pois aparecem aí diferentes estilos de filosofar: o
filósofo bizantino cristão – deixando fora questões teológicas - distinguia-se mais por sua cultura
abrangente e geral do que pelo desenvolvimento das grandes questões da metafísica medieval latina
e, por sua vez, os filósofos árabes, uns mais e outros menos, faziam filosofia - tendo como
parâmetro - as questões da religião islâmica. E, por último, também os pensadores medievais latinos
cristãos tinham um estilo próprio de fazer Filosofia: esta se torna serva da Teologia e predomina
nela o interesse por questões metafísicas e especulativas. Assim sendo, parece que - já dentro da
história do desenvolvimento do pensamento grego - podem-se vislumbrar vários estilos de filosofar.
As culturas primitivas, a partir de um conjunto de problemas existenciais e socioeconômicos,
levantam um núcleo de questões problemáticas que podem ser enumeradas da forma como sugere
Dussel:
O que são e como se comportam as coisas reais em sua totalidade, desde os fenômenos
astronômicos até a simples queda de uma pedra ou a produção artificial do fogo? Em que consiste
o mistério de sua própria subjetividade, o eu, a interioridade humana? Como pode pensar-se o fato
da espontaneidade humana, a liberdade, o mundo ético e social? E, afinal, como se pode
interpretar o fundamento último de todo o real, do universo? – o que levanta a pergunta sobre a
questão ontológica: "Por que o ser e não mais bem o nada?"
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 15).
Os mitos, que surgem em todas as culturas, diz Dussel (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ,
2009, p. 16), se constituem como uma resposta a essas questões. É o primeiro tipo racional de
interpretar a realidade existencial e o mundo dos indivíduos e da sociedade. É importante destacar
que os mitos não são irracionais, mas têm uma forma típica de racionalidade: são narrativas
simbólicas e apresentam significados universais. Esses mitos são guardados, primeiro, na
modalidade de memória oral e, depois, cerca de mil anos antes de Cristo - na Mesopotâmia, no
Egito, na América Central e em outras culturas – são preservados na modalidade escrita. Esses
mitos, interpretados pelos sábios, se tornam explicações racionais simbólicas para responder a todos
os principais problemas e questões daquelas culturas.
Nos choques culturais, esses mitos são depurados: alguns perduram, mesmo depois do aparecimento
das categorias filosóficas ou científicas e outros perdem sua força argumentativa e, por essa razão,
eles são desacreditados, como aconteceu com os mitos dos astecas que pretendiam justificar a
necessidade de sacrificar pessoas humanas para aplacar os deuses.
Mas, embora os mitos sejam tão racionais quanto a filosofia e as ciências (são discursos diferentes
porque servem a finalidades diversas), ao longo do tempo, começa-se a substituição da linguagem
mítica - de natureza simbólica e carregada de múltiplos sentidos - por um discurso unívoco,
metodicamente estruturado por categorias filosóficas que podem definir seu conteúdo sem recorrer
ao símbolo e determinar com rigor um significado preciso. Esse fenômeno se deu em todas as
grandes culturas.
Assim, a passagem do mito para a filosofia, ao mesmo tempo, significa ganho por produzir um
saber mais preciso e perda por eliminar sua sugestão de múltiplos sentidos. Mas, de qualquer forma,
parece ser o pensamento unívoco, como diz Dussel:
... um avanço da civilização importante à medida que abre novos caminhos pela possibilidade de
efetuar atos de abstração, de análise, de separação de conteúdos semânticos da coisa ou do
fenômeno observado, do discurso, e torna possível uma descrição precisa da realidade empírica, a
fim de permitir ao observador um manejo mais eficaz em vista da reprodução e desenvolvimento da
vida humana em comunidade.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 16).
Essa passagem do discurso mítico simbólico para um discurso com categorias intelectuais unívocas
aconteceu em todas as grandes culturas como, por exemplo, no Egito, com a filosofia de Menfis; na
China, a partir do livro das Mutações I ching na Índia, com os Upanishads; na Pérsia e no
Mediterrâneo oriental, a filosofia se deu entre os fenícios e os gregos; na América Central, entre os
maias e astecas; nos Andes entre os aymarás e os quéchuas que se organizaram no Império Inca.
Examinemos, agora, o pensamento originário das matrizes culturais da América Latina: a Filosofia
náhuatl, a Filosofia maya, a Filosofia tojolabal, a Filosofia quéchua, a Filosofia mapuche e a
Filosofia guarani. Será que estamos realmente diante de um pensamento que pode ser chamar
filosófico? Você, depois de estudar o que vai se apresentado agora, deverá posicionar-se a respeito.
A Filosofia Náhuatl
É importante saber que o pensamento desse povo asteca apoia-se em fontes fidedignas e disponíveis
para todos os pesquisadores: as fontes antigas são: inscrições, representações iconográficas, códices
e outros manuscritos, anteriores à invasão europeia de 1500. Nesses documentos, encontram-se
testemunhadas sua visão de mundo e a sabedoria dos povos que falam náhuatl na região central do
México. Nesses documentos fala-se da existência de sábios entre eles - tlamatinime (os que sabem
algo)– os quais levantaram um grande número de questões sobre a divindade, a origem, o ser e o
destino do homem e do mundo, temas esses que são fundamentais também na Filosofia grega.
Estudemos agora breve e sequencialmente estes itens da filosofia náhuatl: a antiga visão do mundo;
a sabedoria atribuída a Quetzalcóatl; ulteriores desenvolvimentos de saberes e questionamentos de
um tipo de filosofia durante os séculos XIII a XVI; e o pensamento particular
de Nezahualcóyotl (1402-1472). Seguiremos o roteiro indicado pelo especialista do tema Miguel
León-Portilla (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 21-26).
A Filosofia Maia
A Filosofia maia se encontra em dois livros antigos: o popol-vuh e o Chilam Balam. Comecemos
pelo estudo do Popol-vuh.
O Pensamento do Popol-vuh
O Popol-vuh, como bem explica Miguel Herniández Díaz (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ,
2009, p. 21-26), é livro da comunidade e o Popol na é a casa ou escola da comunidade para instruir
crianças e adultos; nesse lugar se discutia temas sobre a vida, o trabalho e a cultura: era a casa em
que se buscava a solução dos problemas dos indivíduos e da sociedade. Os anciãos compartilhavam
a sabedoria relacionada aos saberes sociais, políticos e culturais, sobre as concepções de economia,
matemática e calendários. Desenvolviam conhecimentos sobre a vida e os ensinava a toda a
sociedade.
Os questionamentos da filosofia maia versam sobre a criação dos mundos: acima da terra, o terreno,
o inferior à terra e o mundo dos anões que moram no Nadir. Para os maias o princípio de todas as
coisas está na divindade.
O Popol-vuh testemunha, de modo privilegiado, o pensamento maia, apresentando tanto as questões
relativas à fonte da sensibilidade do coração, a razão que explica o sentido das coisas e a existência
da divindade no "Coração do Céu".
O papel de demiurgo que fabrica as coisas do mundo é reservado a duas
personagens: Tepeu e Gucumatz, tendo a seu serviço outros demiurgos inferiores; são "os
fabricantes do mundo e dos homens maias". Esses dois demiurgos são chamados "os grandes sábios
entre os grandes pensadores".
Esses dois pensadores entravam de acordo e juntos pensavam e meditavam sobre o que iriam fazer;
contudo, não fabricavam as coisas com as mãos, mas sim com palavras. Pronunciavam as palavras e
as coisas correspondentes passavam a existir. Assim produziram a vida, a terra, a luz, o amanhecer e
o anoitecer. Esses obreiros agiam obedecendo ao ente divino:
Faça-se assim! Que se encha o vazio! Que esta água se retire e desocupe o espaço, que surja a
terra e que se torne firme! Assim disseram. Que fique claro, que amanheça no céu e na terra! Não
haverá glória nem grandeza em nossa criação e formação até que não exista a criatura humana, o
homem formado.
Sem demora a terra foi criada por eles. Assim foi, em verdade, como se fez a criação da
terra. Terra! Disseram e, no mesmo instante, ela foi feita.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 28).
De lodo e terra fizeram o homem, contudo viram que não estava bem e o desfizeram, pois estava
mole, sem movimento e sem força: não tinha alma. Então, numa outra tentativa, utilizaram a
madeira para fazer o homem com forças, mas também o destruíram com um dilúvio, pois não tinha
sensibilidade para louvar o Coração do Céu. Finalmente – para fazer o ser humano - utilizaram o
interior do milho, que deu inteligência, sensibilidade e fortaleza; no entanto, para diminuir a vista
do homem e evitar que pudessem ver o Coração do céu, produziram nevoeiro.
A Filosofia Tojolabal
O povo tojolabal é um entre os diferentes povos maias. Eles habitam no Sudeste do México. Esse
povo vive nessas terras há muitos séculos antes da conquista europeia. A cultura deles contrasta
fortemente com a dos europeus que invadiram a América com crueldade, no século XVI,
dizimando-os ou tornando-os seus escravos, além de eliminar sua cultura e impor–lhes a europeia.
Os espanhóis tinham uma cultura hierárquica e autoritária; os tojolabais, ao contrário, se
organizavam horizontalmente, pois para eles Nosoutros é sua categoria fundamental: isso significa
que eles não têm nem reis nem chefes, tampouco caudilhos, caciques ou mandões. O poder é
exercido pelo Nosoutros (comunidade); por isso não se encontra nas mãos de uma minoria, mas é
exercido pela comunidade Nosoutros em que todos são responsáveis pelas decisões que se fazem
necessárias.
Segundo Lenkersdorf (DUSSEL, MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 33-35), pode-se apontar
cinco palavras que são o "fundamento ontológico da filosofia tojolabal", a saber: a
intersubjetividade, a "nosotrificação" (o processo pelo qual, no final, todos se identificam como
participando do nosoutros), o antissolipsismo, o saber escutar e o fato de que tudo vive e nós somos
apenas um tipo dos inúmeros entes viventes.
A Noção de "Nosoutros"
Comecemos pela importância do nosoutros no pensamento e vida do tojolabal. Veja a grande
diferença da língua portuguesa em relação à tojolabal. Vamos comparar a estrutura dessas duas
línguas. Quando no uso linguístico destes indígenas se diz: Um de nosoutros infringimos a lei, o
nosso idioma se exprime assim: um de nós infringiu a lei. O tojolabal acentua o nosotutros, porque
para ele as infrações não são individuais, mas toda a sociedade é corresponsável pela infração de
um de seus membros. O que predomina é o grupo e não seus indivíduos. Observa Lendersdorf que
"nas enciclopédias europeias nem aparece o termo nosoutros, pois nas sociedades dominantes não é
uma Categoria." (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p.33)
Como para eles tudo tem vida, esse termo tojolabal – nosoutros - compreende não só a sociedade
humana, mas todos os entes do cosmo. Os humanos, assim, são apenas uma das diferentes espécies
de entes entre uma quantidade inumerável de outros seres vivos que se deve respeitar e aprender a
conviver com eles sem nunca tratá-los como objetos. Assim, nossa relação com a natureza não é de
dominação, mas sim respeito e convivência, pois, na verdade, a natureza é nossa Mãe, que nos dá a
vida e nos mantém com vida. E as coisas que nos cercam não são objetos, mas sujeitos. Lendersdorf
nos dá outro exemplo que esclarece melhor a questão do nosoutros:
Em espanhol se diz: eu te dije [eu te disse, em português]. A expressão correspondente em tojolabal
é: eu dije, tu escuchaste [eu te disse e tu escutaste]. Na estrutura portuguesa como na espanhola
passa-se da ação do sujeito eu para o objeto te. O autor, certamente, é o eu. A estrutura
correspondente em tojolabal, ao contrário, é de dois sujeitos com seus verbos correspondentes e
sem objeto (acusativo). Em termos gerais podemos afirmar que em tojolabal, em lugar de objetos,
há diferentes classes de sujeitos que se complementam; os sujeitos não subordinam os objetos,
como ocorre em português e em espanhol. Por isso, em tojolabal se dá uma subjetividade
intersubjetiva (sujeito-sujeito) em lugar da relação sujeito-objeto.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 34).
A Importância de Escutar o Outro
Devemos observar mais outra particularidade na expressão tojolabal eu disse, tu escutaste. Nela,
além de não haver relação entre sujeito-objeto, os dois sujeitos se complementam. Ambos são
autores, e um precisa do outro para acontecer a comunicação recíproca. Por isso, é importante
perceber que não há objetos nessa frase; em seu lugar aparece a complementaridade dos sujeitos.
É preciso salientar um terceiro aspecto dessa frase tojolabal, com implicações importantes para a
Filosofia: a intersubjetividade. Nas proposições dos idiomas europeus, há o sujeito que age e o
objeto que sofre a ação. Em tojolabal ao contrário,
... os dois sujeitos, que se complementam, mostram que sempre ambos são ativos e passivos um em
relação ao outro. Aquele que fala escuta aquele que ouve e aquele que ouve escuta ao que fala. Se
não se der essa dupla ação com duplo sentido, ainda que se diga mil palavras, só se dizem
"abobrinhas"". O escutar é um elemento fundamental da comunicação e, certamente, da língua.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 34).
O autor observa ainda que – como no Ocidente só se ensina línguas escritas e não se estuda as que
se ouve (as faladas), temos graves problemas para escutar. Em geral todos nós somos péssimos
ouvintes A razão é que não se ensina a escutar. Nesse contexto é importante saber que os tojolobais
têm dois termos diferentes para indicar ruma língua/palavra falada (kumal) e escutada
(abal). Lekensdorf diz que os tojolabais se chamam a si mesmos "os que sabem escutar
bem". Aquele que escuta presta atenção no outro para aprender dele. "Assim se forma
um nosoutros entre os dois, aquele que fala e aquele que escuta ... Ao escutar o outro, o respeitamos
como o igual de quem podemos aprender o que nos diz" (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ,
2009, p. 34).
E aqui aparece uma inferência sumamente importante:
Aquele a quem escutamos não pode ser nosso inimigo. Por isso, pode-se compreender por que os
tojolabais não têm a palavra que corresponda à inimigo, porque sabem escutar. A convivência de
quinhentos anos com os ocidentais, contudo, lhes ensinou quem são os inimigos.
Para os tojolabais tudo vive e, por isso, o milharal fica triste quando não o visitamos
diariamente. [...] As casas também vivem. Por isso as casas não só são o reflexo do
gosto de quem a mandou construir, mas, por sua vez, formam seus habitantes. [...] Dito
de outro modo, a partir da perspectiva tojolabal e com base em que todos os seres
vivem, as casas não são montes de pedras mortas, mas sim formadoras de nossos
corpos, as quais, por outra parte, nosoutros temos edificado. Em que espécie de casa
viveis? interpelam-nos sempre os tojolabais.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 34-35).
Assim, a categoria Nosoutros nivela, com equidade e justiça, todas as relações sociais, não
distinguindo os de cima e os de baixo; e elimina o desejo individualista de ser o primeiro ou o
melhor. A educação é o processo de nosoutrificação em que todos aprendem a repartir seus
conhecimentos e sua sabedoria.
Ao ser examinado na escola, os alunos se reúnem para avaliarem todos juntos, porque a solução de
qualquer problema se alcança com o consenso e intervenção de todo mundo, o que pressupõe que
todos entendem o problema.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 35).
Do mesmo modo, o poder político se distribui entre todos e rotativamente, em lugar de outorgá-lo a
uma autoridade presidencial ou a um partido. É interessante esse modo de conceber o poder
político, porque, assim, a responsabilidade está nas mãos de todos e não de um indivíduo ou grupo.
Assim, esse pensamento é antissolipsista:
Por isso, eles rechaçam o solipsismo, o egoísmo, a competência, seja de um partido, de uma
autoridade, de uma só semente ou de um só cultivo e também de um só deus. Por isso uma mulher
jovem disse: "Veja, agora querem ensinar-nos que todo o mundo foi feito por um só, quem pode
crer nesses contos?", e o disse depois de 500 anos de evangelização e presença da civilização
ocidental.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 35).
Nós, os brancos da cultura ocidental filosófico-cristã somos insensíveis a esses gritos abafados
desse povo originário da América Latina. Torna-se urgente aprender a escutar o outro, sobretudo o
oprimido.
Em conclusão, estamos diante de um pensamento bem diverso do de nossa cultura europeia. Os
conceitos fundamentais - intersubjetividade em que todos os entes tanto os humanos como os
demais seres do universo são sujeitos e assim se torna impossível a relação sujeito x objeto; a
"nosoutrificação" que é o processo pelo qual, no final, todos os humanos tomam consciência e se
identificam como partes da comunidade nosoutros; o antissolipsismo que é consequência direta do
fato de todos os entes fazerem parte da comunidade nosoutros - são conceitos totalmente novos para
nós.
O saber escutar que preserva a alteridade do outro e mostra o que Lévinas também defende: o outro
sempre é um mestre para quem escuta; e o fato de que tudo vive e nós somos apenas um tipo de
entes viventes - são teses que chocam os homens da cultura europeia e é uma das razões principais
de os povos originários não serem apreciados pelos conquistadores e até hoje pelo poder
hegemônico de nossa América Latina.
Certamente essa cultura tojolabal, ela nos interpela e nos propõe a transformar em profundidade não
só nossas relações com os seres humanas, mas também com todos os demais entes de nosso
universo. Com os tojolabais temos muito a aprender, sobretudo a escutar o outro, pois, se realmente
escutamos os outros, isso implica ter desenvolvido uma profunda atitude ética de respeito a sua
alteridade, de acolhimento do outro como nosso mestre, no dizer de Lévinas.
Finalizando...
Acabamos de estudar o pensamento das culturas originárias dos Náuhatl, Maias e Tojolabais. São
marcantes os seguintes pontos: os Náuhatas, mediante os questionamentos de Quetzalcóatl e de
Nezahualcóyatl, nos Cantares mexicanos, se perguntam sobre o sentido da existência humana nesse
mundo e se existe para nós vida no além. Também se questionam sobre o mistério do divino e qual
o sentido dele para nós, e ainda como é possível ao homem dizer a verdade. Os Maias, por sua vez,
nos falam a partir de seus dois livros Popol-vuh e Chilam Balam sobre sua concepção de que a
natureza não pode ser objetivada, pois ela também é subjetiva, falamos de um pensamento que só
recebe sentido a partir da experiência sensível do corpo, dos desejos, dos sentimentos, do coração
e vontade.
Os Tojolabais, enfim, nos acordam sobre a importância de escutar os outros, a intersubjetividade
que não se restringe aos humanos, mas se estende a todos os entes naturais e divinos, tornado,
dessa forma, a relação sujeito x objeto impossível, porque só há relações entre sujeitos os quais
nunca podem ser considerados objetos. Importância capital tem para eles a noção de nosoutros,
que pressupõe que nenhum indivíduo existe separadamente da comunidade de qual faz parte. Não
aceitam também qualquer forma de solipsismo, pois tudo o que o indivíduo pensa ou faz é obra
também de toda comunidade.
Apresentação
Fonte: http://bit.ly/2INrzve.
Após termos visto o pensamento originário dos Náhuas, Maias e Tojolabais, vamos agora entrar
em contato com o modo de pensar dos Quíchuas, Mapuches e Guaranis, também povos originários
de Nossa América. O pensamento do povo quíchua apresenta-nos os princípios fundamentais:
relacionalidade, correspondência, complementaridade. Reciprocidade e ciclocidade. Eles nos
fazem conhecer a natureza e o sentido da existência humana e do universo afirmado que não
existem entes separados, mas todos os seres são relações. Os Mapuches, entretanto, concebem a
vida individual, comunitária e política em constante transformação e devir; do ponto de vista
filosófico, eles têm um hábito (que vem desde os primórdios de sua cultura) o qual é muito
sugestivo, pois para eles a verdade se constitui como confronto e diálogo com outras culturas. Por
fim, os guaranis, que vivem também no Brasil, usam uma economia de intercâmbio ou
reciprocidade a qual não busca interesses para si, mas para o outro. Tem como fundamento, não o
lucro da economia ocidental, mas o dom gratuito. Além disso, esses povos nunca se governaram
por um Estado, organizaram-se de outra forma comunitária; por isso, elas estão sendo
desestruturadas pela imposição dos Estados do Brasil, Argentina e Paraguai.
Bons estudos!
Conteúdo
A Filosofia Quíchua
Os quíchuas ou quéchuas são um dos vários povos que pertencem ao Império dos Incas ou Império
do Sol. Em sucessivas conquistas, eles ocuparam a Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile e
Argentina. A língua quíchua ou runa simi era a língua oficial de todo o vasto Império. E quando
falamos do pensamento incaico, Josef Estermann se refere
... a uma síntese de influências culturais e sapienciais de muitas culturas milenares, herdadas pelos
senhores do Império do Sol que falavam quíchua. Em vista de que as culturas andinas originárias
usavam uma escritura alfabética e hieroglífica até agora não decifrada, as fontes desse
pensamento incaico são de índole arqueológica, paleontológica, indumentário, ou então de
tradição oral e de testemunhas de cronistas espanhóis, mestiços e indígenas aculturados (que já
falam o espanhol).
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 36).
Prefere-se, em geral, falar "pensamento quíchua'' em lugar de "pensamento incaico". Enquanto não
se consegue traduzir seus livros escritos em hieróglifos, pesquisa-se sua filosofia na tradição oral,
na subconsciência coletiva, no universo simbólico religioso e ritual e nos relatos dos próprios
quíchuas atuais que criaram grupos para tornar pública sua sabedoria milenar. A cultura deles tem
muitos traços sapienciais, filosóficos que podemos encontrar "na sua língua runa simi ...e na cultura
quíchua, enquanto conjunto de costumes, ritos, princípios, éticas e modos de viver" (DUSSEL;
MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 37).
O termo Pacha revela a racionalidade específica e original do pensamento quíchua. Esse termo tem
muitos sentidos. Filosoficamente pacha significa a ordenação do universo em conceitos de espaço e
tempo. Seu sentido está próximo da palavra grega phisis que podemos traduzir por realidade que
inclui tudo o que existe: tanto os entes naturais como os humanos e os divinos. Assim a
palavra pacha pode ser traduzida como o ser (tudo o que existe no universo). Contém no seu
significado espaço-temporalidade: tudo que existe de alguma forma (entes materiais e espirituais,
naturais ou divinos) está no espaço e no tempo. Dessa forma, pode-se talvez traduzir a racionalidade
fundamental quíchua pelo termo relacionalidade (tudo é relação) que vamos explicitar a seguir.
Segundo Estermann podemos sintetizar essa Pachafilosofia em cinco princípios básicos:
relacionalidade, correspondência, complementaridade, reciprocidade e ciclicocidade.
O Princípio de Relacionalidade
A Filosofia ocidental concebe como fundamento ontológico da realidade um universo de
substâncias individuais e autossuficientes. O pensamento quíchua, ao contrário, coloca a
relacionalidade como o primeiro princípio de tudo o que existe. Isso significa que não há "entes"
separados e autônomos. Cada ente depende e se relaciona com os demais; todos os entes estão
diretamente relacionados com todos os outros. A relação, para a Filosofia ocidental, é um acidente
da substância, para os pensadores andinos, entretanto, a relação é a verdadeira "substância não
substancial", pois todos os entes são constituídos de relações com os demais. Não pode haver
nenhum ente carente de relações, incluindo as relações imanentes e transcendentes. Dessa forma, no
mundo andino não pode haver entes absolutos, pois todos estão relacionados entre si.
A relacionalidade também se aplica ao mundo do conhecimento. Na filosofia Ocidental, o
conhecimento se processa no confronto de sujeito e objeto, como duas realidades separadas. Para os
andinos, ao invés, não há um sujeito e objeto como duas substâncias autossuficientes. A
relacionalidade se manifesta em todos os níveis da existência. E essa concepção de mundo em que
todos os entes não passam de um feixe de relações com os demais entes é muito rica e nos convoca
a repensar nossa concepção dura das coisas.
O Princípio de Correspondência
Como diz Estermann, "o princípio básico de relacionalidade se manifesta a nível cósmico como
correspondência entre o micro e o macrocosmo". Os planetas, os fenômenos climáticos e divinos da
ordem cósmica têm relações correlativas com os humanos e suas relações com a economia,
sociedade e cultura. Assim, aqui não há lugar para o princípio de causalidade mecânica entre seres
separados, pois as relações entre o macro e o micro são simbólicas e não mecânicas, pois "o ser
humano representa, mediante atos simbólicos, o que se passa no grande, assegurando-se desta
maneira da continuidade do universo e da perduração da ordem cósmica" (DUSSEL; MENDIETA;
BOHÓRQUEZ, 2009, p. 39).
O Princípio de Complementaridade
Esse princípio da complementaridade é, para os andinos, a condição de possibilidade de cada ente
ou acontecimento ser completo e capaz de existir. As oposições não estancam o pensamento, mas,
pelo contrário, são a condição necessária de seu dinamismo e existência. Assim, noite e dia, bem e
mal, céu e terra, todas as oposições coexistem inseparáveis como uma necessidade no pensamento
quíchua. O que é então o verdadeiro ente para eles? O genuíno ente é relação, é união de oposições,
é o equilíbrio entre os dois polos opostos, é complementaridade.
A complementaridade a nível cósmico se dá como o ordenamento dos pólos entre um lado esquerdo
e um direito, o que por sua vez se concebe em termos de sexualidade: o lado esquerdo corresponde
ao feminino, o direito ao masculino. Trata-se de categorias cosmológicas (ou pachassóficas), e não
antropológicas ou biológicas.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p.39).
Se tudo para esse povo está sexuado, então todas as coisas e eventos também estão sujeitas ao
princípio de complementaridade. É um pensamento semelhante ao das oposições do pensamento
originário grego em que os dois termos opostos são polos de uma única realidade.
O Princípio de Reciprocidade
Quando os princípios de correspondência e complementaridade se dão a nível pragmático e ético,
estamos aplicando o princípio de reciprocidade. A cada ato corresponde - como contribuição de
complementaridade - um ato recíproco. Essa reciprocidade rege todas as relações do homem:
consigo mesmo, com os outros entes humanos e não humanos, inclusive com o divino.
Entretanto a ética tem dimensões cósmicas, isto é, não se limita aos entes humanos, mas é própria
de todos os entes do universo, inclusive o divino. Trata-se de um dever cósmico que reflete uma
ordem universal, de que o ser humano é parte.
Assim, observa Estermann:
O princípio de reciprocidade diz que diferentes atos se condicionam mutuamente (interação) de tal
maneira que o esforço ou a inversão em uma ação por um agente será recompensado por um
esforço e uma ação da mesma magnitude pelo receptor. No fundo, se trata de uma justiça
(metaética) do intercâmbio de bens, sentimentos, pessoas e até de valores religiosos.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 40).
Essa justiça cósmica se dá entre todos os entes do universo e está operando em toda parte, pois a
ordem das coisas é base do princípio de reciprocidade e é fundamento do equilíbrio e da harmonia
de todas as relações.
O Princípio de Ciclicocidade
Os andinos, enquanto são agricultores, têm a experiência do tempo e do espaço como algo que se
repete. Eles veem o tempo e o espaço em movimento circular e não linear, como os cristãos e
judeus os concebem. Os quíchuas percebem o tempo como o bater do coração e o ir e vir das marés.
As categorias básicas do tempo para eles não são o passado e o futuro, nem atrasado e adiantado,
mas o antes e depois. O tempo não é visto de modo quantitativo, mas qualitativo. Fala-se de ''tempo
denso'' e ''tempo fraco''. Estermann afirma que " em algo a temporalidade andina se assemelha com
a concepção grega de Kairos. ... Cada tempo (época, momento, lapso) possui um propósito
específico." (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 40). Há tempos favoráveis para cada
coisa (semeadura, poda, colheita, e assim por diante) e o homem não pode mudar esse propósito.
Não se pode pressionar o tempo. Os supostos ganhos de tempo, apreciados por nossa cultura, para
esse povo é, de fato, perda de tempo.
O que devemos e podemos fazer para salvar esse pensamento que está sobrevivendo a duras penas
depois da cruel conquista espanhola até hoje? Trata-se de uma opção filosófica que questiona
frontalmente nossa sociedade de consumo e individualista, sobretudo a redução de todos os entes
humanos a objetos descartáveis e a destruição da natureza em que habitamos. É possível construir
outro mundo – diferente do nosso atual onde reinará justiça, respeito pelo outro e pela natureza –
dentro dos pressupostos de nossa cultura europeia capitalista? Muitos pensam que será vã nossa luta
por um mundo mais justo se não desconstruirmos os grandes pressupostos que sustentam nossa
cultura. E, no trabalho de reconstrução, o pensamento dos povos originários tem muito a nos dizer.
Mas como fazer para que eles sejam preservados e falem ao homem desumanizado de hoje? Você
sabe como?
A Filosofia Mapuche
O pensamento mapuche (mapuche rakiduam) é um saber muito diferente do saber ocidental que
procura impor seus conhecimentos e cultura aos povos originários da América, pois tem como
princípio dialogar com os saberes de outras culturas para elaborar seus conhecimentos e valores.
Portanto, trata-se de um pensar que se questiona e se reformula constantemente, a fim de dar conta
de seu complexo sistema de valores, significações e práticas culturais. Para os mapuches,
pensamento e vida andam juntos, embora estejam sempre lutando por seus direitos e autonomia.
Nesse sentido, Astraín afirma:
O pensar mapuche é um exemplo paradigmático de luta pelo reconhecimento, na qual os próprios
conhecimentos (kimun) são a base de uma prática de vida cultural (mogen), que se afirma e resiste
culturalmente, não só questionando a subordinação política, mas também a hegemonia de
conhecimentos e de visões de mundo estrangeiras (winka) que pretendem impor-se em seus
territórios.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 41).
Diálogo Cultural
E essa mentalidade de dialogar com outras culturas, sem se deixar dominar por elas - e, ao mesmo
tempo, lutar por seus direitos - vem desde os primórdios de sua civilização até hoje. Dessa forma é
um pensar que vai se questionado e se reconstituindo ao longo de sua história feita de encontros e
desencontros com outras culturas. Isso explica porque até hoje, mesmo estando subjugados
politicamente pelos invasores espanhóis, continuam independentes no que diz respeito a sua cultura
e pensamento. Nesse sentido também é preciso perceber que a originalidade do pensamento
mapuche está nesse confronto de ideias que permite uma reconstrução constante de seus próprios
conhecimentos primitivos. Dessa forma, o que vamos estudar aqui não é o pensamento puro dos
primórdios, mas é esse mesmo pensamento reconstituído e constantemente reinterpretado ao longo
de sua experiência histórica.
De outro lado, esses conhecimentos, elaborados por eles ao longo de sua história, são guardados
com zelo por seus intelectuais (homens e mulheres com saberes, sábios e pensadores, mensageiros e
personalidades religiosas). Os intelectuais, contudo, afirmam que nem todos os conhecimentos
podem ser dados indiscriminadamente para os mapuches. Há tipos de saberes que são reservados
para os iniciados dos mistérios.
A visão mapuche do mundo da vida foi desconhecida durante séculos pelos pesquisadores
estrangeiros, pois utilizavam métodos das ciências ocidentais e positivistas que tornavam
impossível captar o que era próprio desse pensamento. Só é possível ter acesso a sua visão de
mundo se a pesquisa for realizada a partir de suas práticas, formas cognitivas e suas constantes
ressignificações históricas. É imprescindível escutar com atenção e respeito os próprios mapuches
narrando suas experiências, interpretações e análises deles próprios. Há uma nova geração de
pensadores desse povo que estão organizados para recuperarem e guardarem o pensamento e as
práticas de sua milenar cultura. Só assim se pode compreender e conhecer as formas de saber e
convivência da cultura desse povo inserido nas sociedades chilenas e argentina. Passemos a ver
algumas noções básicas do pensamento desse povo originário, como Astraín propõe.
A Filosofia Guarani
Os diversos povos e diferentes etnias guaranis estão espalhados, atualmente, em várias regiões do
Brasil, Paraguai, Bolívia e Argentina. No Paraguai, depois de muita luta a língua guarani se tornou
uma das duas línguas oficiais do país. De todos os países, talvez o Brasil seja o que menos aceita e
respeita seus índios e a especificidade de suas culturas.
No Paraguai, no século passado, houve muitos estudos históricos etnológicos da cultura e
pensamento guaranis, mas essas pesquisas, a despeito de serem sérias, utilizavam métodos
inadequados para captar o que há de próprio nessa civilização. O problema é que se busca comparar
uma cultura originária com a cultura tecnocientífica ocidental a partir dos parâmetros da ciência e
civilização modernas. Dessa forma, por mais que se queira valorizar o pensamento e as práticas
indígenas, estes povos serão sempre considerados como um povo primitivo cujo pensamento é
apenas um pré-pensamento em relação à ciência e filosofia modernas e suas práticas éticas são
vistas como muito inferiores às éticas formuladas na Filosofia ocidental.
Assim, os guaranis são considerados povos que ainda não acederam e nem tem capacidade de
aceder à plenitude da ciência e civilização; por isso são inferiores aos brancos ocidentais europeus.
Seu pensamento e práticas são importantes apenas por serem folclóricas, curiosas e exóticas. Assim,
podemos dizer como Melià (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 47-48) que o
eventual pensamento guarani foi buscado por historiadores e literatos, que não conseguiram ver a
riqueza específica do pensamento indígena, porque esse estudo foi realizado com métodos estranhos
e inadequados a essa cultura.
Vimos que os Guaranis se destacam, sobretudo, por dois temas diferentes de nossa cultura, a saber,
gerenciamento comunitário de seu povo sem haver Estado e a economia baseada não no lucro, mas
no dom gratuito, manifestando, assim, um respeito impar pelo outro. Igualmente os Mapuches
apontam para dois elementos notáveis, a saber, o grande dinamismo da vida individual, social e
política: tudo é constante devir; e, do ponto de vista filosófico, eles concebem, desde os primórdios
de sua cultura, a construção da verdade como confronto e diálogo com outras culturas. Os
quíchuas, por fim, se destacam pela ideia central de seu pensamento ao afirmar que - ao contrário
do pensamento ocidental que diz que todas as coisas são substâncias separadas – todos os entes
são apenas relações, explicadas pelos princípios de relacionalidade, correspondência.
Complementaridade, reciprocidade e ciclicocidade.
Apresentação
Fonte: http://bit.ly/2UU301b.
Enrique Dussel nos coloca frente a frente a dois filósofos, Ginés Sepúlveda e Bartolomeu de Las
Casas, no debate que aconteceu em Valladolid em 1550, convocado pelo Imperador da Espanha,
Carlos V (1500- 1580). O Imperador - para implantar a dominação hispânica sobre os ameríndios
- já tinha o aval político (e religioso) do Papa pela bula Inter Caetera de 1493; a fim de
'tranquilizar' sua consciência, no entanto, faltava-lhe a justificação filosófica. Nesse entrevero,
Sepúlveda justifica e Las Casas condena a práxis de dominação espanhola. Nesse debate estava em
questão, sobretudo, o estatuto ontológico dos ameríndios.
Bons estudos!
Conteúdo
Sepúlveda justifica a violenta conquista dos ameríndios pelos espanhóis
Examinemos, sucessivamente, os argumentos de cada um desses protagonistas, seguindo o
intrigante roteiro criado por Enrique Dusssel em seu artigo: "O primeiro debate filosófico da
Modernidade". (DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 56-66). As citações em
espanhol ou latim foram traduzidas para o português pelo autor da aula.
Sepúlveda argumenta em favor da dominação hispânica sobre os índios por que:
Será sempre justo e conforme o direito natural que tais povos [bárbaros] se submetam ao império
de príncipes e nações mais cultas e humanas, para que, por suas virtudes e prudência de suas leis,
deponham a barbárie e se convertam à vida mais humana e ao culto da virtude.
(Apud DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p.57).
Observa bem Dussel,
... essa é uma releitura do texto de Aristóteles, do filósofo defensor da escravidão grega do
Mediterrâneo oriental, agora situada num horizonte do Oceano Atlântico, isto é, com significado
mundial.
E se não aceitarem tal império, pode-se impor-lhe por meio das armas, e tal guerra
será justa segundo o direito natural ... Em suma, é justo, conveniente e conforme a lei
natural que os varões íntegros, inteligentes, virtuosos e humanos dominem sobre todos
os que não têm essas qualidades.
(DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 57-58).
Isso mostra que, na sombra de Aristóteles - que considerava "humanos" apenas os gregos, só eles
eram civilizados e cultos em contraste com os demais que eram bárbaros, ignorantes e sem cultura
e, por esse motivo, podiam ser escravizados pelos gregos, pois esses demais povos eram escravos
por natureza – Sepúlveda considera os europeus como os homens probos, inteligentes, virtuosos e
humanos; por conseguinte, por natureza e justiça, eles têm o direito de dominar os ameríndios, pois
estes são bárbaros, isto é, não são humanos. Dessa forma esse argumento declara justas as guerras
contra esses povos se não quiserem a eles submeter-se; justificou Sepúlveda, assim, todas as
barbaridades dos europeus que irão perpetuar-se até hoje como genocídios, trabalhos forçados,
escravidão, posse sexual das mulheres na frente de seus maridos e tantas outras perversidades. É
esse o castigo que se deve infringir aos bárbaros a fim de se tornem civilizados e humanos. Para ele,
as grandes culturas dos incas e dos astecas não eram uma amostra de civilização. Mas, como
observa Dussel, debaixo desse argumento sempre aparece a "falácia desenvolvimentista". Examine
como Sepúlveda desenvolve o seguinte argumento:
Porém veja quanto se enganam e discordo eu de semelhante opinião, vendo ao contrário, nessas
instituições [astecas ou incas] uma prova da barbárie rude e inata servidão desses homens ... Têm
[certamente] um modo institucional de republica, contudo, ninguém possui coisa alguma como
própria, nem um casa, nem um campo de que possa dispor nem deixar testamento a seus herdeiros.
... sujeitos à vontade e capricho [de seus senhores] que não tem sua liberdade ... Tudo isto é sinal
certíssimo do ânimo servil e submisso desses bárbaros.
(apud DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 58).
Sepúlveda reconhece, no texto acima, que os incas e astecas tinham organização institucional, mas
recrimina como desumanos porque eles viviam em casas comunitárias e porque não havia o direito
de Herança, tão injusto em nossas sociedades. Ele acrescenta cinicamente (no dizer de Dussel) que
os europeus outorgam aos indígenas: "a virtude, a humanidade e a verdadeira religião [que] são
mais valiosos que o ouro e a prata" (DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 58) que os
europeus extraíam brutamente das minas americanas, com suor e sangue dos índios. Assim ficam
justificadas as conquistas europeias como uma missão civilizadora, fica também tornada justa a
servidão desses povos e exploração do ouro e prata; a Europa podia, desse modo, impor sua religião
de maneira dogmática e, quando não a aceitassem, tinha o justo direito de impô-la pelas armas;
todas as formas de dominação e crueldade se tornam justificadas a partir dos argumentos de
Sepúlveda e era exatamente isso o que queriam os gananciosos colonizadores da América.
Sobre o domínio colonial do rei da Espanha, no livro 1, título 1, ley 1, de la Recopilación de las
Leyes de los Reynos de las Índias (1681) se lê um agradecimento a Deus do Imperador Carlos V,
por receber dele o domínio de tantas terras no além-mar: "Deus Nosso Senhor por sua infinita
misericórdia e bondade nos obsequiou sem merecimentos nossa tão grande parte no Senhorio deste
mundo." (Apud DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 58-59). Esse domínio,
receberam os soberanos da Espanha do Papa na já aludida bula Inter caetera de 1493.
Sepúlveda tem ainda um último argumento para justificar as guerras contra os ameríndios - e esse
argumento, à primeira vista, parece válido - em relação aos sacrifícios humanos que alguns povos
indígenas realizavam: "A segunda causa é desterrar as torpezas nefandas ... e o salvar de grandes
injúrias a muitos inocentes mortais a quem esses bárbaros imolam todos os anos" (Apud DUSSEL,
MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 59).
Estavam, assim, justificadas por Sepúlveda as guerras e todas as crueldades dos europeus contra os
da América, sobretudo com a missão nobre de resgatar as vítimas dos sacrifícios rituais indígenas.
Logo mais, vamos ver a resposta surpreendente de Las Cassas a este argumento de Sepúlveda.