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Pensamento Filosófico das culturas Originárias da América

Latina

Apresentação 

Fonte: http://bit.ly/2J7kvsL.
Nesta aula e na próxima, vamos entrar em contato com o pensamento de seis culturas diferentes.
Agora vamos estudar três dessas culturas: a Nauhatl, a Maia e a Tojolabal. Na introdução, vamos
discutir sobre a possibilidade de entender esses pensamentos originários como filosofia. Em
relação ao pensamento dos Náuhatl, os pontos destacados são a existência de sábios que
questionavam acerca do destino do homem na terra e no mais além, interrogavam também o
mistério da divindade e a possibilidade de dizer palavras verdadeiras. No que concerne aos Maias,
os pensamentos dos livros Popol-vuh e do Chilam Balam insistem na importância da experiência
sensível do corpo, dos desejos, da vontade, do coração e sentimentos, sem negar a importância do
pensamento. O pensamento Tojolabal possui conceitos provocadores para nós como: a
intersubjetividade em que todos os entes tanto os humanos como os demais seres do universo são
sujeitos e assim se torna impossível a relação sujeito x objeto. A "nosoutrificação" que é o processo
pelo qual, no final, todos os indivíduos humanos tomam consciência e se identificam como partes
da comunidade nosoutros; o antissolipsismo que é consequência direta do fato de todos os entes
fazerem parte da comunidade nosoutros - são conceitos totalmente novos e provocativos para nós.
Bons estudos!
Conteúdo 
Há Filosofia na América Latina antes de 1500?
Podemos começar com a polêmica questão: Há filosofia na América Latina antes da conquista e
colonização europeia? Trata-se de um tema muito complexo e polêmico, pois, como já vimos no
capítulo anterior, há uma opinião generalizada defendendo categoricamente que, no sentido estrito,
só o Pensamento Grego é filosofia; e, se falamos de "filosofia" do Oriente, da África e da América
Latina, isso só é possível se for num sentido amplo do termo. Segundo essa opinião, só é filosofia,
de fato, o estilo grego de filosofar. Os estilos de pensar das outras grandes culturas, contudo, são -
segundo essa posição - pensamentos de grande valor; contudo, a despeito de se poder serem
chamados de Sabedoria, nunca seriam Filosofia.
Esses autores pressupõem que existe uma sequência linear: filosofia grega, medieval latina e
moderna europeia. Mas, como diz Dussel (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 17),
não é bem isso o que aconteceu historicamente, pois a Filosofia grega foi desenvolvida pelo Império
cristão Bizantino. Em seguida essa tradição foi herdada pelos árabes muçulmanos que, para esse
fim, criaram uma língua estritamente filosófica. E foi a tradução dos textos aristotélicos e de seus
comentários árabes (Avicena e Averróis) - tradução essa realizada, em grande parte, em Córdoba,
por especialistas árabes - que possibilitaram, de modo decisivo, o auge da Filosofia Latina Medieval
no século XIII.
E todas essas filosofias - ancoradas no pensamento filosófico grego – mostram que não existe essa
pretendida sequência linear da filosofia grega, pois aparecem aí diferentes estilos de filosofar: o
filósofo bizantino cristão – deixando fora questões teológicas - distinguia-se mais por sua cultura
abrangente e geral do que pelo desenvolvimento das grandes questões da metafísica medieval latina
e, por sua vez, os filósofos árabes, uns mais e outros menos, faziam filosofia - tendo como
parâmetro - as questões da religião islâmica. E, por último, também os pensadores medievais latinos
cristãos tinham um estilo próprio de fazer Filosofia: esta se torna serva da Teologia e predomina
nela o interesse por questões metafísicas e especulativas. Assim sendo, parece que - já dentro da
história do desenvolvimento do pensamento grego - podem-se vislumbrar vários estilos de filosofar.
As culturas primitivas, a partir de um conjunto de problemas existenciais e socioeconômicos,
levantam um núcleo de questões problemáticas que podem ser enumeradas da forma como sugere
Dussel:
O que são e como se comportam as coisas reais em sua totalidade, desde os fenômenos
astronômicos até a simples queda de uma pedra ou a produção artificial do fogo? Em que consiste
o mistério de sua própria subjetividade, o eu, a interioridade humana? Como pode pensar-se o fato
da espontaneidade humana, a liberdade, o mundo ético e social? E, afinal, como se pode
interpretar o fundamento último de todo o real, do universo? – o que levanta a pergunta sobre a
questão ontológica: "Por que o ser e não mais bem o nada?"
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 15).
Os mitos, que surgem em todas as culturas, diz Dussel (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ,
2009, p. 16), se constituem como uma resposta a essas questões. É o primeiro tipo racional de
interpretar a realidade existencial e o mundo dos indivíduos e da sociedade. É importante destacar
que os mitos não são irracionais, mas têm uma forma típica de racionalidade: são narrativas
simbólicas e apresentam significados universais. Esses mitos são guardados, primeiro, na
modalidade de memória oral e, depois, cerca de mil anos antes de Cristo - na Mesopotâmia, no
Egito, na América Central e em outras culturas – são preservados na modalidade escrita. Esses
mitos, interpretados pelos sábios, se tornam explicações racionais simbólicas para responder a todos
os principais problemas e questões daquelas culturas.
Nos choques culturais, esses mitos são depurados: alguns perduram, mesmo depois do aparecimento
das categorias filosóficas ou científicas e outros perdem sua força argumentativa e, por essa razão,
eles são desacreditados, como aconteceu com os mitos dos astecas que pretendiam justificar a
necessidade de sacrificar pessoas humanas para aplacar os deuses.
Mas, embora os mitos sejam tão racionais quanto a filosofia e as ciências (são discursos diferentes
porque servem a finalidades diversas), ao longo do tempo, começa-se a substituição da linguagem
mítica - de natureza simbólica e carregada de múltiplos sentidos - por um discurso unívoco,
metodicamente estruturado por categorias filosóficas que podem definir seu conteúdo sem recorrer
ao símbolo e determinar com rigor um significado preciso. Esse fenômeno se deu em todas as
grandes culturas.
Assim, a passagem do mito para a filosofia, ao mesmo tempo, significa ganho por produzir um
saber mais preciso e perda por eliminar sua sugestão de múltiplos sentidos. Mas, de qualquer forma,
parece ser o pensamento unívoco, como diz Dussel:
... um avanço da civilização importante à medida que abre novos caminhos pela possibilidade de
efetuar atos de abstração, de análise, de separação de conteúdos semânticos da coisa ou do
fenômeno observado, do discurso, e torna possível uma descrição precisa da realidade empírica, a
fim de permitir ao observador um manejo mais eficaz em vista da reprodução e desenvolvimento da
vida humana em comunidade.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 16).
Essa passagem do discurso mítico simbólico para um discurso com categorias intelectuais unívocas
aconteceu em todas as grandes culturas como, por exemplo, no Egito, com a filosofia de Menfis; na
China, a partir do livro das Mutações  I ching na Índia, com os Upanishads; na Pérsia e no
Mediterrâneo oriental, a filosofia se deu entre os fenícios e os gregos; na América Central, entre os
maias e astecas; nos Andes entre os aymarás e os quéchuas que se organizaram no Império Inca.
Examinemos, agora, o pensamento originário das matrizes culturais da América Latina: a Filosofia
náhuatl, a Filosofia maya, a Filosofia tojolabal, a Filosofia quéchua, a Filosofia mapuche e a
Filosofia guarani. Será que estamos realmente diante de um pensamento que pode ser chamar
filosófico? Você, depois de estudar o que vai se apresentado agora, deverá posicionar-se a respeito.

A Filosofia Náhuatl
É importante saber que o pensamento desse povo asteca apoia-se em fontes fidedignas e disponíveis
para todos os pesquisadores: as fontes antigas são: inscrições, representações iconográficas, códices
e outros manuscritos, anteriores à invasão europeia de 1500. Nesses documentos, encontram-se
testemunhadas sua visão de mundo e a sabedoria dos povos que falam náhuatl na região central do
México. Nesses documentos fala-se da existência de sábios entre eles - tlamatinime (os que sabem
algo)– os quais levantaram um grande número de questões sobre a divindade, a origem, o ser e o
destino do homem e do mundo, temas esses que são fundamentais também na Filosofia grega.
Estudemos agora breve e sequencialmente estes itens da filosofia náhuatl: a antiga visão do mundo;
a sabedoria atribuída a Quetzalcóatl; ulteriores desenvolvimentos de saberes e questionamentos de
um tipo de filosofia durante os séculos XIII a XVI; e o pensamento particular
de Nezahualcóyotl (1402-1472). Seguiremos o roteiro indicado pelo especialista do tema Miguel
León-Portilla (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 21-26).

A Antiga Visão do Mundo


O mundo é concebido como uma ilha grande, dividida horizontalmente em quatro quadrantes ou
direções, cada um contendo uma infinidade de símbolos; além deles só há águas imensas. Assim, o
Oriente, simbolizado pela cor branca, é a região da luz, fertilidade e vida; o norte, quadrante negro,
é o lugar dos mortos; no oeste, o país de cor roxa, está a casa do sol; o sul, de cor azul, é o solo dos
sementeiras. O Códice Ferjerváry-Mayer contém a imagem plástica da superfície do mundo com
marcos das direções cósmicas.
Verticalmente, o universo tem uma série de divisões superpostas acima da superfície da terra; nesse
patamar, estão os céus que, juntando-se às grandes águas que rodeiam o mundo, formam a abóbada
azul com caminhos por onde transitam o sol, a lua, as estrelas, os planetas, os cometas e a estrela da
manhã. Vêm, em seguida, os céus de várias cores; e, por fim, o mais distante e metafísico é o céu
dos deuses. Embaixo da terra, encontram-se vários pisos inferiores por onde caminham os que
morrem para chegar, no final dessas camadas, à região dos mortos.
Os deuses criaram quatro versões do universo: na primeira, os homens eram criaturas estúpidas e,
por isso, s deuses enviaram grandes cataclismos para destruí-los. Neste universo atual, onde os
deuses criam e destroem, nascem os homens que devem fazer sacrifícios, inclusive de sangue, para
merecer favores e agradar aos deuses que os criaram e para manter o equilíbrio cósmico e postergar
o grande terremoto que daria fim ao nosso mundo.

Contemplação Atribuída a Quetzalcóatl


Quetzalcóatl, no século XIII, medita sobre essa visão do mundo e propõe uma nova concepção do
deus supremo e de uma terra de cor negra e roxa, mais além da destruição dos mundos. Numa de
suas meditações, ele se aproximou do mistério divino: "buscava um deus para si". Concebeu a
divindade como um ser, ao mesmo tempo, uno e dual, o qual deu origem a tudo o que existe. O
princípio supremo é o deus da Dualidade, dono da vizinhança e proximidade, que age em toda
parte, e, dito metaforicamente, com um rosto ao mesmo tempo masculino e feminino.
Ele insistia que o mais importante para o homem é chegar à contemplação de Deus Dual e, mais
alto ainda, alcançar a sabedoria, a fim de compreender o verdadeiro sentido da existência humana e
do mundo. No Oriente habitava a sabedoria e, avançando por essa região de luz, era possível
superar o mundo transitório, ameaçado de destruição e morte. O homem na terra deve imitar a
sabedoria do Deus Dual ou repetir em miniatura sua ação que concebe e engendra tudo.
Quetzalcóatl se torna um mito e inspira os povos toltecas e, muito tempo depois, os mexicas. Estes
criam uma moral rígida que todos deviam seguir para evitar o rompimento da ordem do universo.
Essa moral, em nível mais elevado, era objeto de elucubrações na escola dos sábios.
Assim, mais que crer que o destino, depois da morte, depende das ações dos seres humanos na terra,
pensava-se, como critério imanente, que quem pratica com esmero seus princípios morais,
enunciados nas antigas palavras, viveriam em paz na terra. Os que não atendessem a esses
princípios, ao contrário, deformariam seu próprio rosto e coração.
Questionamentos e o Discorrer Filosófico
Os mexicas e outros senhorios abandonaram a tradição atribuída a Quetzalcóalt e começaram a
fazer outros questionamentos sobre a divindade, a morte e o mais além. Os vários sábios
exprimiram-se em poemas e cantos. E se as cantigas e os poemas foram concebidos para serem
entoados e acompanhados de música, isso significa que queriam levar à esfera pública essas
questões e enigmas não resolvidos. No manuscrito Cantares Mexicanos (DUSSEL; MENDIETA;
BOHÓRQUEZ, 2009, pp. 23-25) se questiona o sentido da ação humana:
O que era o que acaso encontravas?
Onde andava teu coração?
Por isso, entregas teu coração a cada coisa,
Sem rumo, tu o levas: estás destruindo teu coração.
Sobre a terra, por acaso, podes ir atrás de algo?
O autor do canto pergunta o que o coração pode encontrar de verdadeiramente valioso. Rosto ou
coração significa para ele "o mais íntimo do ser humano". O homem sem rumo, perdendo seu
coração, perde seu próprio ser. Na última linha do canto ele se pergunta sobre a possibilidade de o
homem encontrar, sobre essa terra, algo que satisfaça nosso coração.
Em outros cantos da mesma coleção, coloca-se a questão da finalidade da ação humana:
Para onde iremos?
Só para nascer viemos.
Pois o além é nossa casa:
Onde se encontra a casa dos desencarnados.
Sofro: nunca chego à minha alegria, felicidade.
Vim aqui só para fazer obras em vão?
Não é esta a região onde se fazem as coisas?
Certamente nada verdeja aqui:
Abre suas flores a infelicidade.
À persuasão de que aqui tudo perece, acrescenta-se a dúvida do que pode acontecer no além:
Levam-se as flores à região dos mortos?
Estaremos lá mortos ou vivemos ainda?
Onde está o lugar da luz, pois se oculta
Aquele que dá vida.
O autor, não satisfeito com as respostas do senso comum, duvida e vê problemas não resolvidos.
Não satisfeito com as doutrinas religiosas, o sábio náhuatl pergunta:
Para onde irei?
Para onde irei?
O caminho do Deus da dualidade.
Por acaso está tua casa no sítio dos desencarnados?
No interior do céu?
Ou somente aqui na terra
É o sítio dos desencarnados?
Juntam-se, agora, outros questionamentos mais radicais:
Acaso são de verdade os homens?
Portanto já não é verdade nosso canto.
Quem está por ventura em pé?
Quem vai sair-se-á bem?
Como nos adverte Portilla, "etimologicamente verdade entre os náhuas ou náhuatl era em sua forma
abstrata (neltilizili), a qualidade de estar firme, bem cimentado, ou enraizado: o fundado". Assim se
compreenderá a pergunta do texto citado "acaso são de verdade os homens? O texto deve ser
entendido assim: acaso possuem (os homens) a qualidade de ser algo firme, bem enraizado?"
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 24). Estamos diante de verdadeiros
questionamentos que podem ser chamados filosóficos.

Os Pensamentos de Nezahualcóyotl (1402-1472)


Existem outros sábios que têm um modo de pensar que pode ser chamado de filosófico, como é o
caso de Nezahualcóyotl. Ainda criança viu seu pai, rei de Tezcoco, sendo assassinado. Ele é
conhecido como um homem muito perseguido e cheio de infortúnios, até que, aliado com os
mexicas, conseguiu a independência de Texcoco. Seu reinado foi uma época de grande esplendor.
Entre suas principais ideias, há o tema da fugacidade de tudo o que existe. Tudo nesta vida é
passageiro, aparece e desaparece como se exprime neste canto:
Será que se vive enraizado na terra?
Não para sempre na terra;
Só um pouco aqui.
Mesmo se for jade, se quebra,
Mesmo se for ouro, se desgasta,
Mesmo se for plumagem, de quetzal se desgarra.
Não para sempre na terra:
Só um pouco aqui.
Se o ouro e o jade se quebram, os fracos corações, por mais nobres que forem como flores secas se
desvanecem:
Só dura um instante a reunião,
por breve tempo há glória...
Ninguém de teus amigos tem raiz.
Só um pouco aqui nos damos em empréstimo;
Tuas flores formosas
Só são secas flores.
Nezahualcóyotl aprofunda a questão para saber se há algum lugar onde a morte não exista:
Para onde iremos
é onde a morte não existe?
Mas então viverei chorando?
Que teu coração siga o caminho reto;
Aqui nada viverá para sempre.
Também os príncipes a morrer vieram,
Há incineração de gente.
Que teu coração siga o caminho reto.
Aqui nada viverá para sempre.
Descobre o sábio que a única solução é conectar o quotidiano com o que está acima de nós, com a
região do divino. Eis o que descobre seu coração:
Por fim o compreende meu coração:
Escuto um canto,
Contemplo uma flor,
Queira Deus, não murchem!
Agora o coração haverá de encontrar flores e cantos com vida e raiz:
Não acabaram minhas flores,
Não cessaram meus cantos.
Eu, cantor, as elevo,
São partilhadas e espalhadas.
Mesmo quando as flores
se murcharem e amarelarem,
serão levadas para lá,para o interior da casa
da ave de plumagem de ouro.
O rosto e o coração do homem, na terra, estão perto do Supremo Doador da vida, embora Ele, para
o homem, permaneça invisível:
Só lá no interior do céu
tu inventas tua palavra,
Doador de Vida!
O que determinarás?
Terás enjôo aqui?
Ocultarás teu esplendor e tua glória em Tlaltícpac?
O que determinarás?
Ninguém pode ser amigo
do Doador da vida.
Para onde, pois, iremos?
Torne-nos retos, pois todos
teremos que ir ao lugar do mistério...
Em conclusão, parece que devemos concordar com Portilla ao afirmar que tanto esses textos como
muitos outros dos manuscritos existentes evidenciam que, no México originário,
houve sábios que questionavam acerca do destino do homem na terra e no mais além, o mistério da
divindade e a possibilidade de dizer palavras verdadeiras. Em seu pensamento aflorou assim uma
forma de pensamento filosófico, ao menos no nível dos pré-socráticos (não menos que o de um
Heráclito ou de um Parmênides).
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 26).
Portilha e eu pensamos assim, mas você como interpreta esse pensamento dos náhuas? Você vê nele
também um novo estilo de Filosofia? Ou pensa você de outro modo? Faça um pequeno texto
justificando seu posicionamento.

A Filosofia Maia
A Filosofia maia se encontra em dois livros antigos: o popol-vuh e o Chilam Balam. Comecemos
pelo estudo do Popol-vuh.

O Pensamento do Popol-vuh
O Popol-vuh, como bem explica Miguel Herniández Díaz (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ,
2009, p. 21-26), é livro da comunidade e o Popol na é a casa ou escola da comunidade para instruir
crianças e adultos; nesse lugar se discutia temas sobre a vida, o trabalho e a cultura: era a casa em
que se buscava a solução dos problemas dos indivíduos e da sociedade. Os anciãos compartilhavam
a sabedoria relacionada aos saberes sociais, políticos e culturais, sobre as concepções de economia,
matemática e calendários. Desenvolviam conhecimentos sobre a vida e os ensinava a toda a
sociedade.
Os questionamentos da filosofia maia versam sobre a criação dos mundos: acima da terra, o terreno,
o inferior à terra e o mundo dos anões que moram no Nadir. Para os maias o princípio de todas as
coisas está na divindade.
O Popol-vuh testemunha, de modo privilegiado, o pensamento maia, apresentando tanto as questões
relativas à fonte da sensibilidade do coração, a razão que explica o sentido das coisas e a existência
da divindade no "Coração do Céu".
O papel de demiurgo que fabrica as coisas do mundo é reservado a duas
personagens: Tepeu e Gucumatz, tendo a seu serviço outros demiurgos inferiores; são "os
fabricantes do mundo e dos homens maias". Esses dois demiurgos são chamados "os grandes sábios
entre os grandes pensadores".
Esses dois pensadores entravam de acordo e juntos pensavam e meditavam sobre o que iriam fazer;
contudo, não fabricavam as coisas com as mãos, mas sim com palavras. Pronunciavam as palavras e
as coisas correspondentes passavam a existir. Assim produziram a vida, a terra, a luz, o amanhecer e
o anoitecer. Esses obreiros agiam obedecendo ao ente divino:
Faça-se assim! Que se encha o vazio! Que esta água se retire e desocupe o espaço, que surja a
terra e que se torne firme! Assim disseram. Que fique claro, que amanheça no céu e na terra! Não
haverá glória nem grandeza em nossa criação e formação até que não exista a criatura humana, o
homem formado.
Sem demora a terra foi criada por eles. Assim foi, em verdade, como se fez a criação da
terra. Terra! Disseram e, no mesmo instante, ela foi feita.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 28).
De lodo e terra fizeram o homem, contudo viram que não estava bem e o desfizeram, pois estava
mole, sem movimento e sem força: não tinha alma. Então, numa outra tentativa, utilizaram a
madeira para fazer o homem com forças, mas também o destruíram com um dilúvio, pois não tinha
sensibilidade para louvar o Coração do Céu. Finalmente – para fazer o ser humano - utilizaram o
interior do milho, que deu inteligência, sensibilidade e fortaleza; no entanto, para diminuir a vista
do homem e evitar que pudessem ver o Coração do céu, produziram nevoeiro.

O Pensamento do Chilam Balam


Depois do Popol-vuh, devemos comentar a outra obra o Chilam Balam, que tem um sentido, ao
mesmo tempo, histórico e profético. Chilam é o título que se oferecia à classe dos sábios, que
interpretavam os livros e a vontade dos deuses.
O maia considera que primeiro se deve existir para poder enfrentar o mundo. Ele se considera como
parte do mundo, por nele habitar. Reflete fazendo interrogações: Quem sou eu? De onde venho?
Para onde vou? Qual é a causa de minha existência? Por que nosso corpo é anterior ao pensamento
do mundo? Que estou fazendo nesse sítio sagrado? A matéria, ao realizar uma ação transcendente (a
ação física na busca do bem), está no primeiro plano. É o corpo que realiza toda atividade
importante e mental com a qual reflete sobre suas atividades psicossomáticas que se localizam no
entendimento a fim de poder entender sua própria conduta e a dos outros, inclusive nossos
comportamentos comuns e compartilhados. Aliás, a maneira de ser desse povo é viver sempre em
comunidade, em comum acordo, compartilhando as necessidades.
O maia é um ente que desenvolve o conhecimento de sua pré-existência, da existência e das coisas
do mundo. Ele elabora seu pensamento por meio de sua corporeidade e utiliza cada parte de seu
corpo para orientar-se no mundo. Parte de sua existência material e de si mesmo para dar sentido às
coisas. Sem corpo, faltaria a essência da existência para compreender o sentido das coisas do
mundo. A existência é o que possibilita o conhecimento sobre as coisas do mundo. O universo maia
só funciona a partir dos elementos corporais. Um corpo para pensar e a natureza de onde extrai os
conhecimentos lhe dão a categoria da vida. Assim ele pode dialogar com seus parceiros, pois retoma
seu corpo que realiza o movimento físico com os demais existentes. Por fim, o corpo realiza sua
ação de pensar e compreender seu próprio ser e a existência das coisas.
Se não existisse corpo, quem poderia pensar? O pensamento é causado pela existência, pois que é
originado pelos órgãos do corpo, e por meio da mente, propicia a razão. Como afirma Hernández
Diaz:
Se o maia infere primeiro a existência e em seguida o pensamento, é por sua natureza de ser
nativo; por antonomásia diz e compreende o mundo com o afã de preservar as diferenças do sentir
e da razão para expor melhor seu rosto ou personalidade baseada na categoria Moral.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p.30)
O pensamento parte do sujeito humano, mas todas as coisas da natureza têm coração (o que lhes dá
existência e valor das categorias entre as coisas do mundo), e que têm - como ele - o caráter de
sujeito, embora se situem em outro estado de vida, compartilham da sensibilidade da vida, da
alegria e tristeza, quando estão em pleno vigor. "A presença da natureza em seu pensamento tem a
categoria de sujeito por extrair seu próprio ser." (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009,
p.30) As coisas feitas por ele, contudo, perdem sua qualidade de sujeito e são apenas objetos. Essas
coisas feitas por um mortal passam automaticamente à existência material como objetos, os quais
estão sem o "on" (coração), sem alma, como o bastão de um ancião.
As coisas da natureza, porém, por serem sujeitos, têm coração o qual lhes outorga sensibilidade,
pensamento sobre si mesmas e sobre as coisas do mundo. Assim, o pensamento maia foi posto por
um jech-o stuk (Ser Absoluto) para compreender as coisas do mundo. O pensamento prospera a
partir dele, pois desenvolve os conhecimentos a partir de sua consistência. Por exemplo, o teto da
casa (trotzil) se diz em maia sjol na (sua cabeça da casa), graças a ele tem cabeça; brinda a imagem
de sua cabeça para pensar a casa.
Ainda com esses atributos de existir e de ostentar-se ao mundo a fim de acumular seus
conhecimentos, ele verá as coisas que lhe causam sensibilidade de vida, e desenvolverá o sentir para
identificá-los como meios de compreensão. O pensar das coisas é atingir o fim daquilo que são. Tais
são os diversos modos de reflexão sobre o mundo em que vive o povo maia. A maneira de sentir
consiste em existir para perceber as coisas em seu entendimento e determiná-las por sua vontade.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 30)
Por isso, o maia deve estar presente para poder sentir e imaginar o que são as paixões e inclusive
para conceber coisas puramente mentais.
Essas são maneiras diferentes de apreciar, desejar, repelir aversão, assegurar, negar e duvidar:
pois são modos diferentes de compreender as coisas. Em sentido complexo, essa é uma
representação mental que se apóia nos sentidos. Podemos fazer as perguntas mais profundas sobre
o mundo: Como pensas em teu ser? De onde tiras o saber sobre a vida? Como se dá a instrução
para gerar a sabedoria?
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ 2009, p.30)
Mas, além disso, o pensamento maia sempre recorre a dois elementos fundamentais: o rosto e o
coração. Por isso, continua o autor dizendo:
Assim mesmo, o maia para poder compreender melhor uma situação e a solução em seu círculo
social e em sua relação com o Ser absoluto, tem que expressar suas ideias através de yutsilal
xcholobil (a metáfora). Por exemplo, o rosto do indivíduo é a personalidade moral plasmada em
sua vocação; e essa é a própria personalidade que atua e comove o mundo. Essa é uma expressão
ética.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ 2009, p. 30).
Essa expressão ética - em que todo seu ser (emoções, desejos, sentimentos, rosto, corpo, vontade,
coração e pensamento) participa – torna quase impossível ao maia não dizer a verdade, não dizer
como ele percebe a realidade. A consciência moral e a expressão corporal tornam difícil enganar e
mentir, pois
... o coração intervém na expressão profunda e na agudeza de sua fala. Manifesta com
profundidade esse algo que diz com empenho. Com o gesto de seu rosto enfatiza a verdade do que
expressa. Assim o rosto e o coração se ligam intimamente na formação maia. Quando se exibe a
personalidade originária, o ser da vida digna, terá que relacionar-se com o coração para mostrar
o verdadeiro rosto. Quer dizer, ambos os aspectos se conjugam para mostrar a personalidade
moral em seu ser com quem se relaciona nos diálogos e no labor que desempenha para viver com
sentido.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ 2009, p. 30-31)
A metáfora do falar mostra que nem tudo fica submetido ao entendimento. O maia vive uma
integração profunda com a natureza e consigo mesmo. Inteligência, vontade, desejos, emoções,
coração rosto são uma só coisa no processo de dizer a palavra verdadeira. Nesse sentido, a filosofia,
desse povo originário está no lado oposto do dualismo da filosofia de Platão. O corpo, os
sentimentos, rosto, o coração, as emoções são tão importantes quanto o pensamento, a reflexão e o
espírito.
Enfim, estamos diante de uma concepção do ser humano e do universo totalmente diferente da
concepção do homem, natureza e pensamento do europeu que os dominaram. As coisas da natureza
também são sujeitos como os humanos, embora em outro estádio. Mas, sendo assim, o homem não
pode objetivá-las; deve respeitá-las e preservá-las à medida do possível. Só pode tornar objetos
coisas que o homem mesmo faz.
E o que dizer do modo como o pensamento se dá na cultura maia? Ele nasce a partir da existência e
experiência sensível do corpo, do desejo, vontade, coração e sentimentos; é o oposto do modo de
ver do pensamento platônico, pois para este pensar provém de uma razão e alma que excluem toda
forma de experiência sensível e o coração para a elaboração da verdade absoluta. Penso que o
filósofo tem muito a aprender com o povo maia. Ela deixa muito a pensar.

A Filosofia Tojolabal
O povo tojolabal é um entre os diferentes povos maias. Eles habitam no Sudeste do México. Esse
povo vive nessas terras há muitos séculos antes da conquista europeia. A cultura deles contrasta
fortemente com a dos europeus que invadiram a América com crueldade, no século XVI,
dizimando-os ou tornando-os seus escravos, além de eliminar sua cultura e impor–lhes a europeia.
Os espanhóis tinham uma cultura hierárquica e autoritária; os tojolabais, ao contrário, se
organizavam horizontalmente, pois para eles Nosoutros é sua categoria fundamental: isso significa
que eles não têm nem reis nem chefes, tampouco caudilhos, caciques ou mandões. O poder é
exercido pelo Nosoutros (comunidade); por isso não se encontra nas mãos de uma minoria, mas é
exercido pela comunidade Nosoutros em que todos são responsáveis pelas decisões que se fazem
necessárias.
Segundo Lenkersdorf (DUSSEL, MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 33-35), pode-se apontar
cinco palavras que são o "fundamento ontológico da filosofia tojolabal", a saber: a
intersubjetividade, a "nosotrificação" (o processo pelo qual, no final, todos se identificam como
participando do nosoutros), o antissolipsismo, o saber escutar e o fato de que tudo vive e nós somos
apenas um tipo dos inúmeros entes viventes.

A Noção de "Nosoutros"
Comecemos pela importância do nosoutros no pensamento e vida do tojolabal. Veja a grande
diferença da língua portuguesa em relação à tojolabal. Vamos comparar a estrutura dessas duas
línguas. Quando no uso linguístico destes indígenas se diz: Um de nosoutros infringimos a lei, o
nosso idioma se exprime assim: um de nós infringiu a lei. O tojolabal acentua o nosotutros, porque
para ele as infrações não são individuais, mas toda a sociedade é corresponsável pela infração de
um de seus membros. O que predomina é o grupo e não seus indivíduos. Observa Lendersdorf que
"nas enciclopédias europeias nem aparece o termo nosoutros, pois nas sociedades dominantes não é
uma Categoria." (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p.33)
Como para eles tudo tem vida, esse termo tojolabal – nosoutros - compreende não só a sociedade
humana, mas todos os entes do cosmo. Os humanos, assim, são apenas uma das diferentes espécies
de entes entre uma quantidade inumerável de outros seres vivos que se deve respeitar e aprender a
conviver com eles sem nunca tratá-los como objetos. Assim, nossa relação com a natureza não é de
dominação, mas sim respeito e convivência, pois, na verdade, a natureza é nossa Mãe, que nos dá a
vida e nos mantém com vida. E as coisas que nos cercam não são objetos, mas sujeitos. Lendersdorf
nos dá outro exemplo que esclarece melhor a questão do nosoutros:
Em espanhol se diz: eu te dije [eu te disse, em português]. A expressão correspondente em tojolabal
é: eu dije, tu escuchaste [eu te disse e tu escutaste]. Na estrutura portuguesa como na espanhola
passa-se da ação do sujeito eu para o objeto te. O autor, certamente, é o eu. A estrutura
correspondente em tojolabal, ao contrário, é de dois sujeitos com seus verbos correspondentes e
sem objeto (acusativo). Em termos gerais podemos afirmar que em tojolabal, em lugar de objetos,
há diferentes classes de sujeitos que se complementam; os sujeitos não subordinam os objetos,
como ocorre em português e em espanhol. Por isso, em tojolabal se dá uma subjetividade
intersubjetiva (sujeito-sujeito) em lugar da relação sujeito-objeto.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 34).
A Importância de Escutar o Outro
Devemos observar mais outra particularidade na expressão tojolabal eu disse, tu escutaste. Nela,
além de não haver relação entre sujeito-objeto, os dois sujeitos se complementam. Ambos são
autores, e um precisa do outro para acontecer a comunicação recíproca. Por isso, é importante
perceber que não há objetos nessa frase; em seu lugar aparece a complementaridade dos sujeitos.
É preciso salientar um terceiro aspecto dessa frase tojolabal, com implicações importantes para a
Filosofia: a intersubjetividade. Nas proposições dos idiomas europeus, há o sujeito que age e o
objeto que sofre a ação. Em tojolabal ao contrário,
... os dois sujeitos, que se complementam, mostram que sempre ambos são ativos e passivos um em
relação ao outro. Aquele que fala escuta aquele que ouve e aquele que ouve escuta ao que fala. Se
não se der essa dupla ação com duplo sentido, ainda que se diga mil palavras, só se dizem
"abobrinhas"". O escutar é um elemento fundamental da comunicação e, certamente, da língua.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 34).
O autor observa ainda que – como no Ocidente só se ensina línguas escritas e não se estuda as que
se ouve (as faladas), temos graves problemas para escutar. Em geral todos nós somos péssimos
ouvintes A razão é que não se ensina a escutar. Nesse contexto é importante saber que os tojolobais
têm dois termos diferentes para indicar ruma língua/palavra falada (kumal) e escutada
(abal). Lekensdorf diz que os tojolabais se chamam a si mesmos "os que sabem escutar
bem". Aquele que escuta presta atenção no outro para aprender dele. "Assim se forma
um nosoutros entre os dois, aquele que fala e aquele que escuta ... Ao escutar o outro, o respeitamos
como o igual de quem podemos aprender o que nos diz" (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ,
2009, p. 34).
E aqui aparece uma inferência sumamente importante:
Aquele a quem escutamos não pode ser nosso inimigo. Por isso, pode-se compreender por que os
tojolabais não têm a palavra que corresponda à inimigo, porque sabem escutar. A convivência de
quinhentos anos com os ocidentais, contudo, lhes ensinou quem são os inimigos.
Para os tojolabais tudo vive e, por isso, o milharal fica triste quando não o visitamos
diariamente. [...] As casas também vivem. Por isso as casas não só são o reflexo do
gosto de quem a mandou construir, mas, por sua vez, formam seus habitantes. [...] Dito
de outro modo, a partir da perspectiva tojolabal e com base em que todos os seres
vivem, as casas não são montes de pedras mortas, mas sim formadoras de nossos
corpos, as quais, por outra parte, nosoutros temos edificado. Em que espécie de casa
viveis? interpelam-nos sempre os tojolabais.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 34-35).
Assim, a categoria Nosoutros nivela, com equidade e justiça, todas as relações sociais, não
distinguindo os de cima e os de baixo; e elimina o desejo individualista de ser o primeiro ou o
melhor. A educação é o processo de nosoutrificação em que todos aprendem a repartir seus
conhecimentos e sua sabedoria.
Ao ser examinado na escola, os alunos se reúnem para avaliarem todos juntos, porque a solução de
qualquer problema se alcança com o consenso e intervenção de todo mundo, o que pressupõe que
todos entendem o problema.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 35).
Do mesmo modo, o poder político se distribui entre todos e rotativamente, em lugar de outorgá-lo a
uma autoridade presidencial ou a um partido. É interessante esse modo de conceber o poder
político, porque, assim, a responsabilidade está nas mãos de todos e não de um indivíduo ou grupo.
Assim, esse pensamento é antissolipsista:
Por isso, eles rechaçam o solipsismo, o egoísmo, a competência, seja de um partido, de uma
autoridade, de uma só semente ou de um só cultivo e também de um só deus. Por isso uma mulher
jovem disse: "Veja, agora querem ensinar-nos que todo o mundo foi feito por um só, quem pode
crer nesses contos?", e o disse depois de 500 anos de evangelização e presença da civilização
ocidental.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 35).
Nós, os brancos da cultura ocidental filosófico-cristã somos insensíveis a esses gritos abafados
desse povo originário da América Latina. Torna-se urgente aprender a escutar o outro, sobretudo o
oprimido.
Em conclusão, estamos diante de um pensamento bem diverso do de nossa cultura europeia. Os
conceitos fundamentais - intersubjetividade em que todos os entes tanto os humanos como os
demais seres do universo são sujeitos e assim se torna impossível a relação sujeito x objeto; a
"nosoutrificação" que é o processo pelo qual, no final, todos os humanos tomam consciência e se
identificam como partes da comunidade nosoutros; o antissolipsismo que é consequência direta do
fato de todos os entes fazerem parte da comunidade nosoutros - são conceitos totalmente novos para
nós.
O saber escutar que preserva a alteridade do outro e mostra o que Lévinas também defende: o outro
sempre é um mestre para quem escuta; e o fato de que tudo vive e nós somos apenas um tipo de
entes viventes - são teses que chocam os homens da cultura europeia e é uma das razões principais
de os povos originários não serem apreciados pelos conquistadores e até hoje pelo poder
hegemônico de nossa América Latina.
Certamente essa cultura tojolabal, ela nos interpela e nos propõe a transformar em profundidade não
só nossas relações com os seres humanas, mas também com todos os demais entes de nosso
universo. Com os tojolabais temos muito a aprender, sobretudo a escutar o outro, pois, se realmente
escutamos os outros, isso implica ter desenvolvido uma profunda atitude ética de respeito a sua
alteridade, de acolhimento do outro como nosso mestre, no dizer de Lévinas.
Finalizando... 

Acabamos de estudar o pensamento das culturas originárias dos Náuhatl, Maias e Tojolabais. São
marcantes os seguintes pontos: os Náuhatas, mediante os questionamentos de Quetzalcóatl e de
Nezahualcóyatl, nos Cantares mexicanos, se perguntam sobre o sentido da existência humana nesse
mundo e se existe para nós vida no além. Também se questionam sobre o mistério do divino e qual
o sentido dele para nós, e ainda como é possível ao homem dizer a verdade. Os Maias, por sua vez,
nos falam a partir de seus dois livros Popol-vuh e Chilam Balam sobre sua concepção de que a
natureza não pode ser objetivada, pois ela também é subjetiva, falamos de um pensamento que só
recebe sentido a partir da experiência sensível do corpo, dos desejos, dos sentimentos, do coração
e vontade.
Os Tojolabais, enfim, nos acordam sobre a importância de escutar os outros, a intersubjetividade
que não se restringe aos humanos, mas se estende a todos os entes naturais e divinos, tornado,
dessa forma, a relação sujeito x objeto impossível, porque só há relações entre sujeitos os quais
nunca podem ser considerados objetos. Importância capital tem para eles a noção de nosoutros,
que pressupõe que nenhum indivíduo existe separadamente da comunidade de qual faz parte. Não
aceitam também qualquer forma de solipsismo, pois tudo o que o indivíduo pensa ou faz é obra
também de toda comunidade.
Apresentação 

Fonte: http://bit.ly/2INrzve.
Após termos visto o pensamento originário dos Náhuas, Maias e Tojolabais, vamos agora entrar
em contato com o modo de pensar dos Quíchuas, Mapuches e Guaranis, também povos originários
de Nossa América. O pensamento do povo quíchua apresenta-nos os princípios fundamentais:
relacionalidade, correspondência, complementaridade. Reciprocidade e ciclocidade. Eles nos
fazem conhecer a natureza e o sentido da existência humana e do universo afirmado que não
existem entes separados, mas todos os seres são relações. Os Mapuches, entretanto, concebem a
vida individual, comunitária e política em constante transformação e devir; do ponto de vista
filosófico, eles têm um hábito (que vem desde os primórdios de sua cultura) o qual é muito
sugestivo, pois para eles a verdade se constitui como confronto e diálogo com outras culturas. Por
fim, os guaranis, que vivem também no Brasil, usam uma economia de intercâmbio ou
reciprocidade a qual não busca interesses para si, mas para o outro. Tem como fundamento, não o
lucro da economia ocidental, mas o dom gratuito. Além disso, esses povos nunca se governaram
por um Estado, organizaram-se de outra forma comunitária; por isso, elas estão sendo
desestruturadas pela imposição dos Estados do Brasil, Argentina e Paraguai.
Bons estudos!

Conteúdo 
A Filosofia Quíchua
Os quíchuas ou quéchuas são um dos vários povos que pertencem ao Império dos Incas ou Império
do Sol. Em sucessivas conquistas, eles ocuparam a Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile e
Argentina. A língua quíchua ou runa simi era a língua oficial de todo o vasto Império. E quando
falamos do pensamento incaico, Josef Estermann se refere
... a uma síntese de influências culturais e sapienciais de muitas culturas milenares, herdadas pelos
senhores do Império do Sol que falavam quíchua. Em vista de que as culturas andinas originárias
usavam uma escritura alfabética e hieroglífica até agora não decifrada, as fontes desse
pensamento incaico são de índole arqueológica, paleontológica, indumentário, ou então de
tradição oral e de testemunhas de cronistas espanhóis, mestiços e indígenas aculturados (que já
falam o espanhol).
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 36).
Prefere-se, em geral, falar "pensamento quíchua'' em lugar de "pensamento incaico". Enquanto não
se consegue traduzir seus livros escritos em hieróglifos, pesquisa-se sua filosofia na tradição oral,
na subconsciência coletiva, no universo simbólico religioso e ritual e nos relatos dos próprios
quíchuas atuais que criaram grupos para tornar pública sua sabedoria milenar. A cultura deles tem
muitos traços sapienciais, filosóficos que podemos encontrar "na sua língua runa simi ...e na cultura
quíchua, enquanto conjunto de costumes, ritos, princípios, éticas e modos de viver" (DUSSEL;
MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 37).
O termo Pacha revela a racionalidade específica e original do pensamento quíchua. Esse termo tem
muitos sentidos. Filosoficamente pacha significa a ordenação do universo em conceitos de espaço e
tempo. Seu sentido está próximo da palavra grega phisis que podemos traduzir por realidade que
inclui tudo o que existe: tanto os entes naturais como os humanos e os divinos. Assim a
palavra pacha pode ser traduzida como o ser (tudo o que existe no universo). Contém no seu
significado espaço-temporalidade: tudo que existe de alguma forma (entes materiais e espirituais,
naturais ou divinos) está no espaço e no tempo. Dessa forma, pode-se talvez traduzir a racionalidade
fundamental quíchua pelo termo relacionalidade (tudo é relação) que vamos explicitar a seguir.
Segundo Estermann podemos sintetizar essa Pachafilosofia em cinco princípios básicos:
relacionalidade, correspondência, complementaridade, reciprocidade e ciclicocidade.

O Princípio de Relacionalidade
A Filosofia ocidental concebe como fundamento ontológico da realidade um universo de
substâncias individuais e autossuficientes. O pensamento quíchua, ao contrário, coloca a
relacionalidade como o primeiro princípio de tudo o que existe. Isso significa que não há "entes"
separados e autônomos. Cada ente depende e se relaciona com os demais; todos os entes estão
diretamente relacionados com todos os outros. A relação, para a Filosofia ocidental, é um acidente
da substância, para os pensadores andinos, entretanto, a relação é a verdadeira "substância não
substancial", pois todos os entes são constituídos de relações com os demais. Não pode haver
nenhum ente carente de relações, incluindo as relações imanentes e transcendentes. Dessa forma, no
mundo andino não pode haver entes absolutos, pois todos estão relacionados entre si.
A relacionalidade também se aplica ao mundo do conhecimento. Na filosofia Ocidental, o
conhecimento se processa no confronto de sujeito e objeto, como duas realidades separadas. Para os
andinos, ao invés, não há um sujeito e objeto como duas substâncias autossuficientes. A
relacionalidade se manifesta em todos os níveis da existência. E essa concepção de mundo em que
todos os entes não passam de um feixe de relações com os demais entes é muito rica e nos convoca
a repensar nossa concepção dura das coisas.
O Princípio de Correspondência
Como diz Estermann, "o princípio básico de relacionalidade se manifesta a nível cósmico como
correspondência entre o micro e o macrocosmo". Os planetas, os fenômenos climáticos e divinos da
ordem cósmica têm relações correlativas com os humanos e suas relações com a economia,
sociedade e cultura. Assim, aqui não há lugar para o princípio de causalidade mecânica entre seres
separados, pois as relações entre o macro e o micro são simbólicas e não mecânicas, pois "o ser
humano representa, mediante atos simbólicos, o que se passa no grande, assegurando-se desta
maneira da continuidade do universo e da perduração da ordem cósmica" (DUSSEL; MENDIETA;
BOHÓRQUEZ, 2009, p. 39).

O Princípio de Complementaridade
Esse princípio da complementaridade é, para os andinos, a condição de possibilidade de cada ente
ou acontecimento ser completo e capaz de existir. As oposições não estancam o pensamento, mas,
pelo contrário, são a condição necessária de seu dinamismo e existência. Assim, noite e dia, bem e
mal, céu e terra, todas as oposições coexistem inseparáveis como uma necessidade no pensamento
quíchua. O que é então o verdadeiro ente para eles? O genuíno ente é relação, é união de oposições,
é o equilíbrio entre os dois polos opostos, é complementaridade.
A complementaridade a nível cósmico se dá como o ordenamento dos pólos entre um lado esquerdo
e um direito, o que por sua vez se concebe em termos de sexualidade: o lado esquerdo corresponde
ao feminino, o direito ao masculino. Trata-se de categorias cosmológicas (ou pachassóficas), e não
antropológicas ou biológicas.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p.39).
Se tudo para esse povo está sexuado, então todas as coisas e eventos também estão sujeitas ao
princípio de complementaridade. É um pensamento semelhante ao das oposições do pensamento
originário grego em que os dois termos opostos são polos de uma única realidade.

O Princípio de Reciprocidade
Quando os princípios de correspondência e complementaridade se dão a nível pragmático e ético,
estamos aplicando o princípio de reciprocidade. A cada ato corresponde - como contribuição de
complementaridade - um ato recíproco. Essa reciprocidade rege todas as relações do homem:
consigo mesmo, com os outros entes humanos e não humanos, inclusive com o divino.
Entretanto a ética tem dimensões cósmicas, isto é, não se limita aos entes humanos, mas é própria
de todos os entes do universo, inclusive o divino. Trata-se de um dever cósmico que reflete uma
ordem universal, de que o ser humano é parte.
Assim, observa Estermann:
O princípio de reciprocidade diz que diferentes atos se condicionam mutuamente (interação) de tal
maneira que o esforço ou a inversão em uma ação por um agente será recompensado por um
esforço e uma ação da mesma magnitude pelo receptor. No fundo, se trata de uma justiça
(metaética) do intercâmbio de bens, sentimentos, pessoas e até de valores religiosos.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 40).
Essa justiça cósmica se dá entre todos os entes do universo e está operando em toda parte, pois a
ordem das coisas é base do princípio de reciprocidade e é fundamento do equilíbrio e da harmonia
de todas as relações.
O Princípio de Ciclicocidade
Os andinos, enquanto são agricultores, têm a experiência do tempo e do espaço como algo que se
repete. Eles veem o tempo e o espaço em movimento circular e não linear, como os cristãos e
judeus os concebem. Os quíchuas percebem o tempo como o bater do coração e o ir e vir das marés.
As categorias básicas do tempo para eles não são o passado e o futuro, nem atrasado e adiantado,
mas o antes e depois. O tempo não é visto de modo quantitativo, mas qualitativo. Fala-se de ''tempo
denso'' e ''tempo fraco''. Estermann afirma que " em algo a temporalidade andina se assemelha com
a concepção grega de Kairos. ... Cada tempo (época, momento, lapso) possui um propósito
específico." (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 40). Há tempos favoráveis para cada
coisa (semeadura, poda, colheita, e assim por diante) e o homem não pode mudar esse propósito.
Não se pode pressionar o tempo. Os supostos ganhos de tempo, apreciados por nossa cultura, para
esse povo é, de fato, perda de tempo.
O que devemos e podemos fazer para salvar esse pensamento que está sobrevivendo a duras penas
depois da cruel conquista espanhola até hoje? Trata-se de uma opção filosófica que questiona
frontalmente nossa sociedade de consumo e individualista, sobretudo a redução de todos os entes
humanos a objetos descartáveis e a destruição da natureza em que habitamos. É possível construir
outro mundo – diferente do nosso atual onde reinará justiça, respeito pelo outro e pela natureza –
dentro dos pressupostos de nossa cultura europeia capitalista? Muitos pensam que será vã nossa luta
por um mundo mais justo se não desconstruirmos os grandes pressupostos que sustentam nossa
cultura. E, no trabalho de reconstrução, o pensamento dos povos originários tem muito a nos dizer.
Mas como fazer para que eles sejam preservados e falem ao homem desumanizado de hoje? Você
sabe como?

A Filosofia Mapuche
O pensamento mapuche (mapuche rakiduam) é um saber muito diferente do saber ocidental que
procura impor seus conhecimentos e cultura aos povos originários da América, pois tem como
princípio dialogar com os saberes de outras culturas para elaborar seus conhecimentos e valores.
Portanto, trata-se de um pensar que se questiona e se reformula constantemente, a fim de dar conta
de seu complexo sistema de valores, significações e práticas culturais. Para os mapuches,
pensamento e vida andam juntos, embora estejam sempre lutando por seus direitos e autonomia.
Nesse sentido, Astraín afirma:
O pensar mapuche é um exemplo paradigmático de luta pelo reconhecimento, na qual os próprios
conhecimentos (kimun) são a base de uma prática de vida cultural (mogen), que se afirma e resiste
culturalmente, não só questionando a subordinação política, mas também a hegemonia de
conhecimentos e de visões de mundo estrangeiras (winka) que pretendem impor-se em seus
territórios.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 41).
Diálogo Cultural
E essa mentalidade de dialogar com outras culturas, sem se deixar dominar por elas - e, ao mesmo
tempo, lutar por seus direitos - vem desde os primórdios de sua civilização até hoje. Dessa forma é
um pensar que vai se questionado e se reconstituindo ao longo de sua história feita de encontros e
desencontros com outras culturas. Isso explica porque até hoje, mesmo estando subjugados
politicamente pelos invasores espanhóis, continuam independentes no que diz respeito a sua cultura
e pensamento. Nesse sentido também é preciso perceber que a originalidade do pensamento
mapuche está nesse confronto de ideias que permite uma reconstrução constante de seus próprios
conhecimentos primitivos. Dessa forma, o que vamos estudar aqui não é o pensamento puro dos
primórdios, mas é esse mesmo pensamento reconstituído e constantemente reinterpretado ao longo
de sua experiência histórica.
De outro lado, esses conhecimentos, elaborados por eles ao longo de sua história, são guardados
com zelo por seus intelectuais (homens e mulheres com saberes, sábios e pensadores, mensageiros e
personalidades religiosas). Os intelectuais, contudo, afirmam que nem todos os conhecimentos
podem ser dados indiscriminadamente para os mapuches. Há tipos de saberes que são reservados
para os iniciados dos mistérios.
A visão mapuche do mundo da vida foi desconhecida durante séculos pelos pesquisadores
estrangeiros, pois utilizavam métodos das ciências ocidentais e positivistas que tornavam
impossível captar o que era próprio desse pensamento. Só é possível ter acesso a sua visão de
mundo se a pesquisa for realizada a partir de suas práticas, formas cognitivas e suas constantes
ressignificações históricas. É imprescindível escutar com atenção e respeito os próprios mapuches
narrando suas experiências, interpretações e análises deles próprios. Há uma nova geração de
pensadores desse povo que estão organizados para recuperarem e guardarem o pensamento e as
práticas de sua milenar cultura. Só assim se pode compreender e conhecer as formas de saber e
convivência da cultura desse povo inserido nas sociedades chilenas e argentina. Passemos a ver
algumas noções básicas do pensamento desse povo originário, como Astraín propõe.

A Visão do Ser Humano e do Cosmos


Para os mapuches, o ser humano está em constante transformação, em contínuo vir-a-ser na lida de
fazer-se pessoa. O che (ente humano) está em constante construção de seu ser. O ente humano tem
corpo e espírito; este sobrevive depois da morte e mantém encontros com os antepassados e deuses.
"As qualidades mais valorizadas são que as pessoas possuam fortaleza {newenche), sabedoria
(Kimche), bem-estar (kumeche) e retidão (norche), ideais para ser mapuche e também para a
projeção da cultura." (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 43).
A noção de mundo deles é muito interessante, pois está entrelaçada
... com a ideia de ser humano, tendo como eixo principal o termo mapu, que significa a terra
habitada pelos che. Como o diz Curivil: "Ser mapuche é ser do mapu, da terra e desta terra. É
mais que ser originário do lugar, é ter nascido do mapu, e ser, ao mesmo tempo, parte do Mapu".
Não cabe neste contexto separar o lugar físico do conceito mais amplo dos vínculos das famílias
(lof) e de sua inscrição territorial; trata-se decisivamente de uma noção polissêmica na qual mapu
se refere não só aos quatro pontos cardeais, mas também aos níveis ontológicos superpostos.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 43).
Cada um desses níveis se refere a modos de vida de seres e formas religiosas relacionadas com
formas de sabedoria dos ancestrais, que fundam os laços religiosos. Vemos que o cosmos não é
compreendido enquanto é natureza, como fazem a ciência e a filosofia no Ocidente; ao contrário é
um conceito aberto, relacionado não só com seu habitante homem, mas com todos os entes míticos
e religiosos do mundo além-natural.
O Devir da Comunidade e Seus Princípios Éticos e Políticos
A comunidade, os antepassados, a linhagem e a família têm importância e sentido centrais para esse
povo originário. Para haver desenvolvimento da comunidade, seus líderes atualizam a memória dos
antepassados.
Depois da anexação dos territórios pelos governos argentino e chileno, se tornou difícil para eles a
coordenação política da comunidade, pois os organismos desses países tornaram impossível a
autoridade comunitária tradicional. Mas, apesar disso, os mapuches continuam afirmando sua
identidade cultural e reclamando permanentemente suas terras anexadas, havendo permanentes
mobilizações por parte deles nas últimas décadas.
Os princípios da moralidade mapuche estão ligados ao modo de como chegar a ser che (pessoa) que
está enraizada na terra. Esse povo exalta - de modo relevante - a dignidade humana. Dos ancestrais
vem um dito que revela isso: "eu também sou gente!". O ideal do homem bom valoriza o saber, a
força e a retidão e acentua a importância da vida comunitária tendo um respeito profundo aos outros
e à terra. Existem os conselhos morais para valorização dos outros. Seus princípios ético-políticos
pressupõem a igualdade, a reciprocidade, a redistribuição e a horizontalidade, o que impedia uma
verticalidade hierárquica no campo político. Isso nunca foi entendido nem pelos investigadores
positivistas nem pelos povos brancos dominadores da Argentina e Chile.
Esse pensamento é muito diferente do modo de pensar e ver da cultura e filosofia ocidentais
eurocêntricas. Trata-se de um modo de conceber a vida individual, social e política de maneira
muito dinâmica e valorada. No que concerne especificamente ao conhecimento filosófico, toda
verdade é estabelecida em debate não só entre eles, mas também em diálogo com outras culturas.
Nesse particular, antecipam a filosofia intercultural de Fornet-Betancourt. Isso tudo interpela e
questiona, com veemência, a filosofia monológica, que se fecha dentro de seus parâmetros. Além de
tudo, é uma filosofia em que tanto o indivíduo quanto a comunidade está sempre se fazendo; está
sempre em devir.

A Filosofia Guarani
Os diversos povos e diferentes etnias guaranis estão espalhados, atualmente, em várias regiões do
Brasil, Paraguai, Bolívia e Argentina. No Paraguai, depois de muita luta a língua guarani se tornou
uma das duas línguas oficiais do país. De todos os países, talvez o Brasil seja o que menos aceita e
respeita seus índios e a especificidade de suas culturas.
No Paraguai, no século passado, houve muitos estudos históricos etnológicos da cultura e
pensamento guaranis, mas essas pesquisas, a despeito de serem sérias, utilizavam métodos
inadequados para captar o que há de próprio nessa civilização. O problema é que se busca comparar
uma cultura originária com a cultura tecnocientífica ocidental a partir dos parâmetros da ciência e
civilização modernas. Dessa forma, por mais que se queira valorizar o pensamento e as práticas
indígenas, estes povos serão sempre considerados como um povo primitivo cujo pensamento é
apenas um pré-pensamento em relação à ciência e filosofia modernas e suas práticas éticas são
vistas como muito inferiores às éticas formuladas na Filosofia ocidental.
Assim, os guaranis são considerados povos que ainda não acederam e nem tem capacidade de
aceder à plenitude da ciência e civilização; por isso são inferiores aos brancos ocidentais europeus.
Seu pensamento e práticas são importantes apenas por serem folclóricas, curiosas e exóticas. Assim,
podemos dizer como Melià (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 47-48) que o
eventual pensamento guarani foi buscado por historiadores e literatos, que não conseguiram ver a
riqueza específica do pensamento indígena, porque esse estudo foi realizado com métodos estranhos
e inadequados a essa cultura.

A Cultura e Pensamento Guaranis Contada Por Eles Mesmos


Percebeu-se então que - a história dos guaranis, a fim de ser significativa e dar conta do específico
de sua cultura - devia ser contada por eles mesmos.
A etno-história – e vamos diretamente à etno-história guarani – não é simplesmente uma história
que trata do índio Guarani. Não é o guarani na história; nem tão pouco o guarani da história, mas
a história do guarani, enquanto é ele mesmo quem sabe seus tempos, sente-os, seleciona-os e os
relata. Há sociedades guaranis no Paraguai, como também as há no Brasil, Argentina e Bolívia
cujas culturas se reproduzem historicamente em suas ações. Que quer dizer isso? O que é que
reproduzem especificamente ao longo dos anos e séculos? Dito de uma maneira sintética – e não
sem riscos de me equivocar – o que reproduzem é a vontade de um modo de ser que se expressa em
um sistema simbólico, especificamente veiculado por uma língua que é o guarani, que mantém uma
economia de reciprocidade e que se configura como uma sociedade sem Estado; agora, apesar do
Estado.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 48).
O fato de os guaranis não terem Estado, faz com que eles sejam, muitas vezes, tratados injustamente
como etnias anárquicas e que combatem o Estado. Na verdade, esse povo se mostra assim como
comunidade não colonial, podendo assim continuar, à medida do possível, sua tradição milenar,
apesar do Estado ao qual ele é submetido. Já se compreendeu que não se pode conhecer essa cultura
com métodos exógenos, mas deve-se pesquisar a partir da cultura do próprio povo guarani. Falta
ainda, contudo, deixar que o próprio índio conte e interprete sua história, seu pensamento e práticas
éticas, culturais e rituais. Meliá questiona sobre isso:
Podemos esperar conhecer um pensamento guarani tal como se diz e se desenvolve no interior do
próprio povo guarani, com palavras e linguagem deles? Seria possível que fossem os guaranis
aqueles que nos farão conhecer seu pensamento filosófico anterior a suas relações coloniais e seus
contatos mestiços?
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 48).
A partir dessas questões, tentemos, seguindo o roteiro de Melià, rascunhar uma filosofia moral dos
comportamentos, atitudes e princípios de ação dos guaranis, analisando estas noções que seguem:
teko (modo de ser ou cultura), ñe'ê (palavra), Tupã (Deus), jopói (dádiva recíproca), tepy (vingança
e preço das coisas). Esses termos sugerem, ademais, conceitos e formas de filosofia da
comunicação, da participação, de exercício de linguagem.
Podemos dizer que houve uma revolução sem precedentes, em relação ao conhecimento e cultura
guaranis quando, Curt Unkel Nimuendajú (1883-1945) em sua obra que narra sua experiência de
convivência com os guaranis do Brasil. Os mitos da criação e destruição do mundo como
fundamentos da religião dos Apapokúva-Guaraní, publicada em alemão, não fala dele, mas deixa os
próprios guaranis falarem. Foi uma obra pioneira, pois não estuda a cultura guarani de um ponto de
vista europeu, mas a partir da perspectiva do próprio nativo ameríndio.
Das experiências e dos comentários do autor do livro, destacam-se três temas, segundo Melià:
1º O guarani é sua religião e sua religião é a palavra. 2º A busca da 'terra-sem-mal', um termo bem
mais escatológico que articula um dualismo espiritual do ser humano (alma –palavra celeste;
alma-animal terrestre) a uma lógica da sublimação da corporeidade, e que gira em torno do tema
de uma aniquilação cósmica da qual é possível escapar pelo acesso aqui e agora ao paraíso – uma
escatologia que afirma a finitude humana, mas ao mesmo tempo persiste a superação imediata
dessa condição pela ascese ou pelo excesso.", segundo a compreensão de E. B. Viveiros de Castro
(1987, p. XXXVI) – e 3º A questão do pensamento guarani aparentemente inclinado à melancolia e
ao desespero, embora esse desespero guarani e concepção trágica do mundo em que vivemos é
mistura de esperança e desânimo, paixão e ação: "no meio de sua miséria, os homens são deuses"
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 49).
Pensamento dos Cantos do Ayvu-rapitá
A seguir vamos ler trechos da compilação Ayvu-rapitá (1959), traduzidos para o espanhol por León
Cadogan (apud DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p.50) e para o português pela equipe
da Universidade Católica de Brasília Virtual. Trata-se de textos míticos que falam da palavra, do
fundamento das palavras primordiais e originárias:
Quando a terra não era
No meio das trevas originárias,
Não havia conhecimento das coisas,
fez florescer em si os fundamentos da palavra;
transformou-se o Primeiro Pai Ñamandú
em própria sabedoria divina.
Para os guaranis a palavra é tudo. Assim, "fazer florescer em si a palavra" significa fazer com que
algo se faça. Ñamandú reflete para saber com quem ele vai repartir a palavra e o canto:
O verdadeiro pai Ñamandú, o primeiro,
de uma parte de seu próprio ser celestial,
da sabedoria contida em seu ser celestial
com seu saber que vai se abrindo como uma flor,
fez que se engendrassem chamas e tênue neblina.
Havendo se incorporado e erguido como homem,
da sabedoria contida em seu ser celeste,
com seu saber que se abre qual flor
conheceu para si mesmo a fundamental palavra futura.
da sabedoria contida em seu ser celestial,
em virtude de seu saber que se abre em flor,
nosso Pai fez com que se abrisse a palavra fundamental
e que se tornasse, como ele, divinamente coisa celestial.
Quando não existia a terra,
em meio à obscuridade antiga,
quando nada se conhecia,
fez com que se abrisse como flor a palavra fundamental,
que, com Ele, se tornara divinamente celestial;
Isso fez Ñamandu, o pai verdadeiro, o primeiro (CADOGAN, 1959, p. 19-21).
Para eles a palavra é fundamental, é o que há de mais precioso para o homem. E o ser humano
participa da palavra criadora por dom do pai divino. Esse modo de conceber a palavra nos faz
lembrar o Logos grego e o Verbum cristão que também muito valorizam a palavra. Melià apresenta
esta ideia de um modo criativo quando diz:
O homem, ao nascer, será uma palavra que se põe de pé e se ergue até sua estatura plenamente
humana. A educação consiste em desenvolver a palavra na história, enquanto escutada e proferida.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 50).
Na cultura guarani a palavra proferida é tudo; os guaranis são discípulos da palavra viva, escutam a
palavra do outro, escutam o outro que profere a palavra. Ainda se pode encontrar cantos e
expressões similares às que vimos acima, nas diversas etnias guaranis no ritmo das quais cantam e
dançam.
Há também os poetas, profetas e sábios da selva que trazem gratuitamente o dom das palavras
profundas e coerentes que questionam a realidade e buscam a sabedoria.
Outros temas filosóficos se articulam com a filosofia da palavra. Clastres (1974) desenvolveu um
discurso de filosofia política que se constitui na teoria de "uma sociedade contra o Estado". A
metafísica tupi-guarani segundo Viveiros de Castro (1987, p. xxxiii), ensina que "é possível superar
a condição humana de modo radical, pois a distância entre os deuses e os homens é, ao mesmo
tempo, infinita e nula". As palavras não podem morrer, pois o divino está imanente ao homem.
A partir de dados etnográficos e outros documentos históricos, Melià tentou compreender a filosofia
guarani do dom, vingança e outras formas de economia, que se une coma noção de amor, entendido
como reciprocidade:
A economia de reciprocidade não é um sistema de intercâmbio; não se baseia no interesse para si,
mas sim no interesse pelo outro; isto é, seu fundamento é o gesto, totalmente ignorado pela
natureza, do dom. A justificação de tal gesto – para a economia ocidental de câmbio livre é
igualmente um paradoxo e uma irracionalidade, posto que o que ela pretende é respeitar as leis da
natureza – é precisamente o fazer aparecer algo que pode ser chamado alteridade. O respeito do
outro, o reconhecimento do outro, tem isso de singular e admirável: que faz descobrir não só o
outro em si mesmo, mas esse novo que, entre o outro e ele mesmo, nasce como humanidade. E
porque não está dentro das coisas dadas e recebidas, menos ainda nas coisas intercambiadas, é
esse valor que constitui toda a diferença entre a economia de intercâmbio e a economia de
reciprocidade.
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p.51).
A economia de reciprocidade não acontece na natureza, pois só pode dar-se no patamar humano,
quando existe liberdade e dom gratuito; não há interesse egoísta nessa relação, é um ato que não
espera contrapartida como na economia de intercâmbio.
As diversas etnias guaranis vivem sem Estado. Isso não significa que são um povo anárquico ou que
lutam contra o Estado, como alguns pesquisadores interpretaram. Eles possuem sua maneira própria
de gerir suas comunidades. A verdade é que os países em que eles vivem, desde a conquista
europeia, impuseram para os indígenas a dominação do Estado. Isso fez e continua fazendo a
desestruturação de todas as suas comunidades. E assim, eles se sentem no dever e possuem todo o
direito de reclamar contra as interferências indevidas que destroem elementos poder milenares de
sua cultura. Importante também é sua economia de reciprocidade que é uma economia de
intercâmbio, fundada não na busca de interesses para si, mas para os outros; está fundada no dom
gratuito que a economia do Ocidente não conhece e exorciza.
Vimos que há vários pensadores debruçados sobre a cultura e pensamento guarani. Mas esses
estudos estão ainda no começo. Penso que é necessário, antes de tudo, escutar mais os próprios
indígenas que falam sobre sua cultura, seus valores e seu pensamento, a fim de que eles mesmos
elaborem sua ética, estética, política e outros elementos filosóficos; no mínimo, que deem todos os
elementos para a elaboração de uma filosofia a partir dos pontos chaves de sua cultura.
Finalizando... 

Vimos que os Guaranis se destacam, sobretudo, por dois temas diferentes de nossa cultura, a saber,
gerenciamento comunitário de seu povo sem haver Estado e a economia baseada não no lucro, mas
no dom gratuito, manifestando, assim, um respeito impar pelo outro. Igualmente os Mapuches
apontam para dois elementos notáveis, a saber, o grande dinamismo da vida individual, social e
política: tudo é constante devir; e, do ponto de vista filosófico, eles concebem, desde os primórdios
de sua cultura, a construção da verdade como confronto e diálogo com outras culturas. Os
quíchuas, por fim, se destacam pela ideia central de seu pensamento ao afirmar que - ao contrário
do pensamento ocidental que diz que todas as coisas são substâncias separadas – todos os entes
são apenas relações, explicadas pelos princípios de relacionalidade, correspondência.
Complementaridade, reciprocidade e ciclicocidade.

Os Fundamentos Filosóficos da Dominação Colonial da Ameríndia

Apresentação 

Fonte: http://bit.ly/2UU301b.
Enrique Dussel nos coloca frente a frente a dois filósofos, Ginés Sepúlveda e Bartolomeu de Las
Casas, no debate que aconteceu em Valladolid em 1550, convocado pelo Imperador da Espanha,
Carlos V (1500- 1580). O Imperador - para implantar a dominação hispânica sobre os ameríndios
- já tinha o aval político (e religioso) do Papa pela bula Inter Caetera de 1493; a fim de
'tranquilizar' sua consciência, no entanto, faltava-lhe a justificação filosófica. Nesse entrevero,
Sepúlveda justifica e Las Casas condena a práxis de dominação espanhola. Nesse debate estava em
questão, sobretudo, o estatuto ontológico dos ameríndios.
Bons estudos!
Conteúdo 
Sepúlveda justifica a violenta conquista dos ameríndios pelos espanhóis
Examinemos, sucessivamente, os argumentos de cada um desses protagonistas, seguindo o
intrigante roteiro criado por Enrique Dusssel em seu artigo: "O primeiro debate filosófico da
Modernidade". (DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 56-66). As citações em
espanhol ou latim foram traduzidas para o português pelo autor da aula.
Sepúlveda argumenta em favor da dominação hispânica sobre os índios por que:
Será sempre justo e conforme o direito natural que tais povos [bárbaros] se submetam ao império
de príncipes e nações mais cultas e humanas, para que, por suas virtudes e prudência de suas leis,
deponham a barbárie e se convertam à vida mais humana e ao culto da virtude.
(Apud DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p.57).
Observa bem Dussel,
... essa é uma releitura do  texto  de  Aristóteles,  do  filósofo defensor da escravidão grega do
Mediterrâneo oriental, agora situada num horizonte do Oceano Atlântico, isto é, com significado
mundial.
E se não aceitarem tal império, pode-se impor-lhe por meio das armas, e tal guerra
será justa segundo o direito natural ... Em suma, é justo, conveniente e conforme a lei
natural que os varões íntegros, inteligentes, virtuosos e humanos dominem sobre todos
os que não têm essas qualidades.
(DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 57-58).
Isso mostra que, na sombra de Aristóteles - que considerava "humanos" apenas os gregos, só eles
eram civilizados e cultos em contraste com os demais que eram bárbaros, ignorantes e sem cultura
e, por esse motivo, podiam ser escravizados pelos gregos, pois esses demais povos eram escravos
por natureza – Sepúlveda considera os europeus como os homens probos, inteligentes, virtuosos e
humanos; por conseguinte, por natureza e justiça, eles têm o direito de dominar os ameríndios, pois
estes são bárbaros, isto é, não são humanos. Dessa forma esse argumento declara justas as guerras
contra esses povos se não quiserem a eles submeter-se; justificou Sepúlveda, assim, todas as
barbaridades dos europeus que irão perpetuar-se até hoje como genocídios, trabalhos forçados,
escravidão, posse sexual das mulheres na frente de seus maridos e tantas outras perversidades. É
esse o castigo que se deve infringir aos bárbaros a fim de se tornem civilizados e humanos. Para ele,
as grandes culturas dos incas e dos astecas não eram uma amostra de civilização.  Mas, como
observa Dussel, debaixo desse argumento sempre aparece a "falácia desenvolvimentista". Examine
como Sepúlveda desenvolve o seguinte argumento:
Porém veja quanto se enganam e discordo eu de semelhante opinião, vendo ao contrário, nessas
instituições [astecas ou incas] uma prova da barbárie rude e inata servidão desses homens ... Têm
[certamente] um modo institucional de republica, contudo, ninguém possui coisa alguma como
própria, nem um casa, nem um campo de que possa dispor nem deixar testamento a seus herdeiros.
... sujeitos à vontade e capricho [de seus senhores] que não tem sua liberdade ... Tudo isto é sinal
certíssimo do ânimo servil e submisso desses bárbaros.
(apud DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 58).
Sepúlveda reconhece, no texto acima, que os incas e astecas tinham organização institucional, mas
recrimina como desumanos porque eles viviam em casas comunitárias e porque não havia o direito
de Herança, tão injusto em nossas sociedades. Ele acrescenta cinicamente (no dizer de Dussel) que
os europeus outorgam aos indígenas: "a virtude, a humanidade e a verdadeira religião [que] são
mais valiosos que o ouro e a prata" (DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 58) que os
europeus extraíam brutamente das minas americanas, com suor e sangue dos índios. Assim ficam
justificadas as conquistas europeias como uma missão civilizadora, fica também tornada justa a
servidão desses povos e exploração do ouro e prata; a Europa podia, desse modo, impor sua religião
de maneira dogmática e, quando não a aceitassem, tinha o justo direito de impô-la pelas armas;
todas as formas de dominação e crueldade se tornam justificadas a partir dos argumentos de
Sepúlveda e era exatamente isso o que queriam os gananciosos colonizadores da América.
Sobre o domínio colonial do rei da Espanha, no livro 1, título 1, ley 1, de la Recopilación de las
Leyes de los Reynos de las Índias (1681) se lê um agradecimento a Deus do Imperador Carlos V,
por receber dele o domínio de tantas terras no além-mar: "Deus Nosso Senhor por sua infinita
misericórdia e bondade nos obsequiou sem merecimentos nossa tão grande parte no Senhorio deste
mundo." (Apud DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 58-59). Esse domínio,
receberam os soberanos da Espanha do Papa na já aludida bula Inter caetera de 1493.
Sepúlveda tem ainda um último argumento para justificar as guerras contra os ameríndios - e esse
argumento, à primeira vista, parece válido - em relação aos sacrifícios humanos que alguns povos
indígenas realizavam: "A segunda causa é desterrar as torpezas nefandas ... e o salvar de grandes
injúrias a muitos inocentes mortais a quem esses bárbaros imolam todos os anos" (Apud DUSSEL,
MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 59).
Estavam, assim, justificadas por Sepúlveda as guerras e todas as crueldades dos europeus contra os
da América, sobretudo com a missão nobre de resgatar as vítimas dos sacrifícios rituais indígenas.
Logo mais, vamos ver a resposta surpreendente de Las Cassas a este argumento de Sepúlveda.

A resposta filosófica de Las Casas


Bartolomeu de Las Casas (1484-1566), no dizer de Dussel, com argumentos estritamente
filosóficos,
... refuta a) a  pretensão da superioridade da cultura ocidental, da qual se deduz a barbárie das
culturas indígenas; b) com uma posição filosófica sumamente criativa utiliza uma clara diferença
entre outorgar ao outro (o índio) a pretensão universal de sua verdade, sem deixar de afirmar a
possibilidade de uma pretensão universal de validade para o cristão honesto em sua pregação em
favor do Evangelho; c) demonstra a falsidade da última causa possível para fundamentar a
violência das conquistas no que diz respeito a salvar as vítimas dos sacrifícios humanos, por ser
contrário ao direito natural e, desde todo ponto de vista, injusto. Tudo é provado
argumentativamente em volumosas obras escritas no meio de contínuas lutas políticas, a partir de
uma práxis valente envolta de fracassos que não dobram sua vontade de servir aos injustamente
tratados recém descobertos habitantes do Novo Mundo: o outro da modernidade nascente"
(DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 60).
Como pároco numa encomienda (aí os índios trabalhavam compulsoriamente em troca de catequese
que muitas vezes não queriam) em 1514 ele lê o texto do Bem Sira 34, 22-22, na celebração
litúrgica pedida pelo governador: "Oferecer em sacrifício aquilo que foi roubado dos pobres é
imolar o filho em presença de seu pai. O pão é a vida do pobre, quem o rouba é um assassino; privá-
lo de seu salário é derramar seu sangue" (Apud DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009,
60-61). Las Casas começou a ver quão tirânico e injusto era o tratamento dado aos nativos da
Ameríndia. Seu livro da Historia de las Índias formula muitos argumentos contra as práxis bárbaras
dos conquistadores:
Foi publicado que não eram povos de sã razão capazes de se governar, carentes de boa ordem
humana e de ordenadas repúblicas ... Para a demonstração da verdade que é bem outra, este livro
traz e compila [inúmeros exemplos]. Quanto à política, não só se mostraram serem povos muito
prudentes e de vivos e notórios conhecimentos, tendo suas repúblicas ... prudentemente
governadas, bem providas e com justiça, prósperas ...
(apud DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 61).
Afirma Las Casas que estes povos nativos, ao contrário do que se havia espalhado, foram criados
por Deus como os mais simples e sem maldades, muito obedientes e fiéis a seus senhores naturais.
Ele prova dessa maneira que, em muitos pontos eles eram superiores aos europeus que se
autodenominam cristãos, mas que não o são em suas ações. Eles oprimem os índios com a mais
dura e horrível servidão, "em que jamais nem homens nem bestas puderam ser postos"
(apud DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 61).
Em 1537, um século antes de O Discurso do Método de Descartes, vai, com sua obra Do único
modo de atrair todos os povos à verdadeira religião, pregar, de modo pacífico e respeitoso, para os
povos indígenas que receberam o nome de Vera Paz em Venezuela. Sobre essa obra de 1537, o
mesmo Dussel diz com admiração:
... É uma impressionante obra intelectual. Com lógica precisa e incrível conhecimento do texto
semita, da tradição grega e latina dos padres da Igreja e da Filosofia latina medieval, com um
imperturbável sentido das distinções, vai esgotando os argumentos com profusa quantidade de
citações, que ainda hoje em dia causaria inveja a um prolífico e cuidadoso escritor. Tinha então
Bartolomeu 53 anos, uma população de conquistadores contra ele e um mundo indígena maia que
desconhecia em concreto, porém que respeitava como um igual a ele. É um manifesto de filosofia
intercultural, de pacifismo político e crítica certeira contra a guerra justa na da modernidade
(desde a conquista da América Latina – que antecipa a América do Norte, a África e Ásia – e as
guerras coloniais, até a guerra do Golfo ou do Afeganistão ou Iraque em nossos dias)
(DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 62).
Sem dúvida, apesar de ser odiado pelos colonizadores, a pureza e a clareza de seu pensamento
impediram que fosse incriminado pela Inquisição. O argumento central dessa obra de Las Casas é
formulado de modo estritamente filosófico da seguinte maneira:
O entendimento conhece voluntariamente quando aquilo que conhece não se manifesta a ele
imediatamente como verdadeiro, sendo então necessário um prévio raciocínio a fim de que possa
aceitar que se trata nesse caso de uma coisa verdadeira ... procedendo de uma coisa conhecida a
outra desconhecida por meio do discurso da razão
(apud DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 62).
O único modo de atrair os membros de uma cultura estranha para uma doutrina que eles não
conhecem é tentar persuadir "por meio de razões no que diz respeito ao entendimento e
com suavidade atrativa no que toca à vontade" (DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p.
303-304). Las Casas conta com a livre vontade do ouvinte a fim de que, sem coações, possa aceitar
as razões de modo racional. Las Casas aceita o outro como outro. Em 1550 enfrenta Ginés de
Sepúlveda, no primeiro debate filosófico público da modernidade. A questão debatida então, e que
vale até hoje, é: Que direito tem a Europa de dominar colonialmente as Índias? Mas nem a Europa
nem os Estados Unidos nunca mais tiveram a coragem de levantar a questão da legitimidade da
dominação sobre os povos periféricos. Na verdade, o direito da dominação colonial se imporá como
algo natural. A modernidade primitiva tinha consciência da injustiça cometida e refutou sua
legitimidade, o que, contudo, não fez o pensamento da Modernidade madura.
Examinemos brevemente ainda dois argumentos de Las Casas contra a dominação colonial
europeia, que mostram que o argumento de que se pode fazer guerra justa contra os índios por
adorarem ídolos é falso, raciocinando dessa forma:
Dado que eles [os índios] se comprazem em manter ... que, ao adorar seus ídolos, adoram o
verdadeiro Deus ... e, apesar da suposição de que eles têm uma consciência errônea, até que não se
pregue para eles o verdadeiro Deus, com melhores e mais críveis argumentos, sobretudo com os
exemplos de sua conduta cristã, eles estão, sem dúvida, obrigados a defender o culto a seus deuses
e a sua religião e a sair com suas forças armadas contra todo aquele que tente privá-los de tal
culto... estão assim obrigados a lutar contra estes, matá-los, capturá-los e exercer todos os direitos
que são corolário de uma guerra justa, de acordo com  o direito dos povos.
(apud DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 63).
Esse argumento diz que - embora tenham consciência errônea - se dá aos índios a pretensão de
verdade universal, por que ainda não receberam "argumentos críveis e convincentes". Sendo assim,
eles têm todo o direito e dever de afirmar e defender suas convicções; e, se necessário, até por
guerra justa.  Las Casas inverte, assim, o argumento dos europeus, pois sua idolatria não justifica
uma guerra justa contra eles; pelo contrário, os ameríndios – por terem deuses verdadeiros,
enquanto não for provado o contrário - têm motivos de fazer uma guerra justa contra os europeus
modernos que os impedem de adorar seus deuses.
Mas, incrivelmente, ele vai desmontar também o outro argumento dos europeus que diz que a
guerra deles contra os nativos descobertos é justa, porque eles têm o dever de salvar as vítimas dos
sacrifícios, argumentando da seguinte maneira:
[Os] homens, por direito natural, estão obrigados a adorar a Deus com os melhores meios a seu
alcance e oferecer-lhe em sacrifício as melhores coisas ... Pois bem, corresponde à lei humana e à
legislação positiva determinar quais coisas devem ser oferecidas a Deus; este último já se confia à
comunidade inteira ... A própria natureza dita e ensina ... que, na falta de uma lei positiva que
ordene o contrário, devem imolar inclusive vítimas humanas a Deus, verdadeiro ou falso,
considerado como verdadeiro, de modo que, ao oferecer-lhe a coisa mais preciosa, se mostrem
especialmente agradecidos por tantos benefícios recebidos
(apud DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 63).
É quase incrível que um homem do século XVI chegasse a argumentos tão fortes e eficazes contra
verdades aceitas por todos. De novo, ao outorgar aos outros a pretensão de verdade, o falso
considerado pelos índios como verdadeiro, até que não for provado para eles o contrário, eles têm o
dever de oferecer aos deuses deles o que têm de melhor, inclusive, vítimas humanas.  Inverteu o
argumento dos invasores europeus. Esse argumento é tão original que confessa depois: "... tive e
provei muitas conclusões que antes de mim o homem nunca ousou tocar ou escrever, e uma delas
foi... oferecer homens a Deus, falso ou verdadeiro (tendo o falso por verdadeiro) em sacrifício."
(Apud DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 63).
Quando os encomenderos do Peru queriam pagar um tributo ao Rei da Espanha a fim de poderem
contar com os serviços dos índios para sempre, Las Casas escreveu De regia potestate (Sobre o
poder do Rei) em que afirma:
Nenhum rei ou governante, por mui supremo que seja, pode ordenar ou mandar nada concernente
à república, em prejuízo ou detrimento do povo (populi) ou dos súditos, sem haver tido o consenso
(consensu) deles, em forma lícita e devida. De outra maneira não valeria (valet) por direito ...
Ninguém pode legitimamente (legitime) ... inferir prejuízo à liberdade de seus povos (libertati
populorum suorum); se alguém decidir contra a comum utilidade do povo, sem contar com o
consenso deste (consensu populi), as ditas decisões seriam nulas. A liberdade (libertas) é o mais
precioso e estimável dom que um povo livre pode ter
(apud DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 64).
Las Casas – como Marsílio de Pádua já defendia no final da Ide Média - tem consciência clara de
que todo poder vem do povo, agora no primeiro século da modernidade primitiva.  No tratado das
doze dúvidas, ele explica:
Todos os infiéis de qualquer seita ou religião que forem ... quanto ao direito natural ou divino, que
chamam direitos dos povos, justamente têm e possuem senhoria sobre suas coisas ... E também com
a mesma justiça possuem seus principados, reinos, estados, dignidades, jurisdições e senhorios. O
regente ou governador não pode ser outro senão aquele que foi eleito pela sociedade e comunidade
inteira no início.
(apud DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 64).
Quando se afirma que os reis ou o papa, por causa da obrigação da "pregação do Evangelho" se
outorgavam o "direito sobre as coisas (iure in re)" – sobre os índios – Las Casas diz que esse direito
só operava in potentia (potencialmente), enquanto não houvesse um consenso por parte dos índios.
Só se houvesse esse consenso explícito da parte dos ameríndios, esse direito passaria de potência
para ato, isto é, passaria a ser válido e aplicável.  Eis sua notável parte final, onde se refere aos
reinos usurpados ao rei Tito, um rei indígena inca:
O rei, nosso senhor, está, pois, obrigado, sob pena de não salvar-se, a restituir aqueles reinos ao
rei Tito [assim chamado um inca ainda em vida], sucessor ou herdeiro de  Huayna Cápac e dos
demais incas, e pôr nisso todas as suas forças e poder.
(Apud DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 64).
Segundo o parecer de Dussel, essa obra é a mais bem argumentada do ponto de vista racional de
toda modernidade primitiva, refutando todas as pretensões dos europeus de dominação colonial
sobre os povos indígenas na América.
Finalizando... 

Se os argumentos racionais e bem formulados de Ginès Sepúlveda foram fundamentais para a


justificação e implantação da terrível dominação colonial nos países periféricos não só da América
latina, mas depois também da Ásia e África, os argumentos de Las Casas – ao menos tão bem
elaborados quanto os de Sepúlveda - ao contrário, não tiveram quase nenhum efeito contra o
sistema estabeleci do. Na verdade, teve alguma influência sobre o Imperador, mas muito pouco
sobre os outros missionários e, praticamente, nada contra os colonizadores. Mas, se os argumentos
e a luta de Las Casas tiveram poucos efeitos positivos em relação aos ameríndios, serviram de base
para os Países Baixos se libertarem da Espanha no início do século XVII; foram lidos na revolução
da América do Norte e nas independências dos países latinos. Dussel, conclui sobre o autor com
esta sentença: "Derrotado politicamente, sua filosofia se irradia até o presente." (DUSSEL,
MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 64). Sem dúvida, esse esclarecido e intransigente defensor
da causa dos índios vilipendiados pelos espanhóis, continua sendo uma referência para todos os
que creditam e lutam pela dignidade e igualdade de direito de todos os humanos, especificamente
os indígenas latino-americanos.

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