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Estratégias fílmicas do documentário

antropológico: três estudos de caso

José Francisco Serafim


Universidade Federal da Bahia
serafimjf@terra.com.br

Resumo: O presente trabalho propõe uma reflexão sobre algumas estra-


tégias de mise en scène utilizadas na realização do filme antropológico. O ci-
nema documentário será abordado, tanto do ponto de vista histórico quanto
teórico-metodológico, através de três experiências em antropologia fílmica,
sendo a primeira realizada junto ao grupo indígena Wasusu (família lingüística
Nambiquara, Mato Grosso-Brasil), a segunda com o grupo afro-descendente
Malê Debalê (Salvador, Bahia-Brasil) e a última em colaboração com alguns re-
presentantes Inuíte vivendo em Nuuk-Groenlândia. Através destes três exem-
plos fílmicos serão analisadas as variadas técnicas de filmagem e as estraté-
gias fílmicas adaptadas às diferentes temáticas e sujeitos observados instru-
mentalmente, ou seja, com a câmera, ao longo de uma pesquisa utilizando-se
o aporte metodológico da antropologia fílmica.
Palavras-chave: antropologia fílmica, documentário, inserção, descrição
etnocinematográfica.
Resumen: El presente trabajo propone una reflexión sobre las diversas
estrategias de puesta en escena empleadas en la realización del documental
antropológico. El cine documental se abordará, tanto desde el punto de vista
histórico como desde sus aspectos teórico-metodológicos, a través de tres ex-
periencias de antropología fílmica. La primera es la realizada junto a un grupo
indígena Wasusu (de la familia lingüística Nambiquara, Mato Grosso). La se-
gunda junto al grupo de ascendencia africana Malê Debalê (Salvador, Bahía),
y la última en colaboración con algunos representantes de los Inuite que viven
en Nuuk, Groenlandia. A través de estos tres ejemplos fílmicos serán analiza-
das las diferentes técnicas de filmación y las estrategias fílmicas, adaptadas a
las diversas temáticas y sujetos observados instrumentalmente: es decir, con
una cámara, a lo largo de una investigación y utilizando la metodológia de la
antropología fílmica.
Palabras clave: Antropología fílmica, documental, inserción, descripción
etnocinematográfica.
Abstract: The present article discusses the different strategies of mise-en-
scène used in anthropological documentary film. Documentary film will be exa-

Doc On-line, n.03, Dezembro 2007, www.doc.ubi.pt, pp. 114-136.


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mined from a historical and theoretical-methodological point of view, through


three experiences in fílmic anthropology. The first one portrays the aboriginal
group Wasusu (linguistic family Nambiquara, Mato Grosso); the second pre-
sents the group Malê Debalê (Salvador, Bahia), of African descent, and the
last one with some Inuit representatives living in Nuuk, Greenland. Through
these three fílm samples the various filming techniques filming will be analy-
zed, as well as the fílmic strategies adapted to the different themes and citizens
observed instrumentally through the camera, using the methodology of fílmic
anthropology.
Keywords: Filmic anthropology, documentary, insertion, ethnocinemato-
graphic description.
Résumé: Ce travail propose une réflexion sur les différentes stratégies de
mise-en-scène utilisées dans la réalisation du film documentaire anthropolo-
gique. Le cinéma documentaire sera abordé autant du point de vue histori-
que que du point de vue théorico-méthodologique, à travers trois expériences
d’anthropologie fílmique : la première réalisée auprès du groupe indigène Wa-
susu (famille linguistique Nambiquara, Mato Grosso), la second avec le groupe
d’ascendance africaine Malê Debalê (Salvador, Bahia) et la dernière en col-
laboration avec quelques représentantes Inuit vivant à Nuuk, Groenland. À
travers ces trois exemples fílmiques seront analysées les diverses techniques
de prise de vues et les stratégies fílmiques adaptées aux différentes thémati-
ques et sujets observés instrumentalement - c’est-à-dire avec la caméra -, au
cours d’une recherche utilisant la méthodologie de l’anthropologie fílmique.
Mots-clés: Anthropologie filmique, documentaire, insertion, description eth-
nocinématographique.

Introdução
P resente trabalho busca refletir sobre algumas características de
O mise en scène utilizadas na realização do filme documentário an-
tropológico e apresenta alguns resultados de três pesquisas realizadas
inicialmente junto ao grupo indígena Wasusu, a segunda com o grupo
afro-descendente Malê Debalê (Salvador, BA), e a terceira junto aos
Inuíte de Nuuk (Groelândia).
Observamos que, desde os primórdios da antropologia, certos pes-
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quisadores se serviram de instrumentos de registro imagéticos em seus


trabalhos de campo. Tal é o caso de Bronislaw Malinowski, que pode
ser considerado um pioneiro na utilização da fotografia. Com efeito, o
pai do funcionalismo fez uso constante da câmara fotográfica nas inves-
tigações que redundaram em suas principais obras, a tal ponto que a
publicação de seu primeiro trabalho, Os nativos de Mailu (1915-1988),
já contava com 34 fotos; Os Argonautas do pacífico ocidental (1922),
vai contar com 75; A vida Sexual dos selvagens (1929), com 92 e Os
jardins de coral e suas mágicas (1935) com 116 fotos).1 Em “Os ar-
gonautas...”, trabalho realizado junto aos Trobriandeses que o projetou
como aquele para quem a antropologia era o trabalho de campo por
excelência, fotografou os seus sujeitos e os seus adornos, registrou-os
desenvolvendo atividades econômicas, artísticas e da cultura material.
Essas imagens foram organizadas e “montadas” no interior do texto, o
que lhes deu uma função das mais importantes no conjunto da obra.
No que concerne o cinema, podemos citar as seqüências de filmes
realizados por Alfred C. Haddon no Estreito de Torres, em 1898. Essa
seqüências fazem parte do trabalho empreendido por Haddon e sua
equipe durante os sete meses em que permaneceram na região. O
traço distintivo desse trabalho está na utilização dos mais modernos
instrumentos de captação sonora e visual da época: a gravação sonora
em cilindro de cera, o registro fotográfico e o recém inventado (1895) ci-
nematógrafo para a apreensão de imagens em movimento. No entanto,
estes documentos visuais não ocupavam a parte mais importante na
coleta de dados, no tratamento destes e na divulgação dos resultados
alcançados no processo investigativo. Foi somente nos anos 1930 que
Gregory Bateson e Margaret Mead utilizaram de forma aprofundada e
sistematizada as câmeras fotográfica e cinematográfica com o objetivo
de compreender a dinâmica social e os diferentes traços culturais dos
grupos sociais com os quais trabalharam. Em Balinese Character, a
Photographic Analysis (1942), uma grande quantidade de fotografias é
dedicada, dentre outras coisas, aos aprendizados da infância em Bali.
1 Sobre as relações de Malinowski com a fotografia, ver o revelador artigo
de Etienne Samain, “Ver” e “dizer” na tradição etnográfica: Bronislaw Mali-
nowski e a fotografia, publicado na revista “Horizontes Antropológicos, ano 1,
n. 2, p. 23-60, jul./set. 1995, disponível no seguinte endereço eletrônico:
http://www.ufrgs.br/ppgas/ha/pdf/n2/HA-v1n2a04.pdf
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Bateson e Mead realizaram igualmente alguns filmes dos quais pode-


mos citar Karba’s First Years e Learning to Dance in Bali (1936-1939).
Neste sentido, Marcius Freire observa a importância desta experiência
sublinhando que: “... o fato de os autores de Balinese Character terem
voltado do campo com mais de 25.000 negativos fotográficos e quase
7.000 metros de filme cinematográfico e que este material tenha assu-
mido o papel que assumiu na publicação de seus resultados, confere a
essa experiência seu caráter inusitado. Pela primeira vez, a coleta de
dados de uma investigação antropológica de fôlego foi quase toda ela
realizada em imagens, ...”. (2003, p. 52).
Nesta mesma época, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss re-
alizou sua pesquisa de campo junto a alguns grupos indígenas do inte-
rior do Brasil utilizando também os instrumentos de registro visual (fo-
tografia e filme). Em uma de suas primeiras obras, La vie sociale et
familiale des Indies Nambikwara (1948), o autor insere um anexo foto-
gráfico mostrando diferentes momentos e situações da vida indígena no
Brasil. Em 1994 o autor publicou uma obra fotográfica – Saudades do
Brasil – sobre o período em que viveu no Brasil.
Nos anos 1970, a pesquisadora Claudine de France, da Formation
de Recherches Cinématographiques (FRC) da Universidade Paris X –
Nanterre, estabeleceu as bases de uma nova disciplina, a antropolo-
gia fílmica, cujo objeto é assim por ela definido: “o homem tal como
ele é apreendido pelo filme, na unidade e na diversidade das manei-
ras como coloca em cena suas ações, seus pensamentos e seu meio
ambiente” (France, 2000, p. 17). Alguns anos depois, Annie Comolli,
igualmente pesquisadora da FRC, realizou um estudo aprofundado so-
bre os diferentes aprendizados humanos através da imagem em mo-
vimento (1995, 2000). Nesse estudo, parte integrante da antropologia
fílmica, são apresentadas as possíveis formas de interação entre a mise
en scène do cineasta e as diversas maneiras através das quais os pro-
cessos de aprendizagem se manifestam ao observador.
Nosso trabalho e reflexão se apoiam sobre esse conjunto teórico e
metodológico: a antropologia fílmica.
O pesquisador desejoso de utilizar este instrumental em suas pes-
quisas deve, antes de tudo, refletir sobre as possibilidades técnicas de
que dispõe e, igualmente, sobre a questão ética que está sempre pre-
sente na relação que se estabelece entre os sujeitos que serão estu-
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dados e a estratégia fílmica que vai dar forma e trazer conclusões a


esse estudo. Neste sentido, sabemos que nem tudo pode ser descrito
através da imagem, por exemplo, é mais difícil apreender e devolver ao
espectador os sentimentos e os estados mentais das pessoas filmadas.
Estas questões se expressam mais adequadamente através da orali-
dade e/ou são sugeridas pelas imagens. Assim, serão privilegiadas,
nos exemplos a seguir, atividades humanas que pertencem ao domínio
do sensível visual, consequentemente, podem ser facilmente apreendi-
das pelos instrumentos de registro cinematográfico e videográfico.

I – Questão de método: inserção e registro


Dentre as diversas fases em que é dividido qualquer processo de in-
vestigação em antropologia fílmica, uma das mais importantes diz res-
peito ao processo de aproximação do cineasta às pessoas filmadas.
Essa fase, à qual Claudine de France chama de “inserção”, “consiste
em fazer-se aceitar pelas pessoas filmadas - com ou sem câmera - e
em convencê-las da importância de colaborar tanto na realização do
filme quanto no aprofundamento da pesquisa. Isto significa que a origi-
nalidade e o êxito da fase de inserção devem-se principalmente à qua-
lidade moral e psicológica dos vínculos que venham a se estabelecer
entre cineasta e pessoas filmadas (France, 1998, p. 316).
Dessa forma, optamos, em nossos três estudos, por dar aos ins-
trumentos de registro audiovisual um papel ativo nesse processo de
inserção. Quer dizer, após ter obtido o acordo do grupo com o qual
desejávamos trabalhar, a câmera esteve presente desde o início da
pesquisa. Exploramos, assim, as diferentes atividades que a nós se
apresentavam - muitas vezes sem que as conhecêssemos previamente
- utilizando uma câmera videográfica digital. Esse método de trabalho,
definido como “método exploratório” por Claudine de France, consiste
na “supressão da observação direta como etapa preliminar indispensá-
vel para a pesquisa; ou, o que dá no mesmo, a instauração do registro
fílmico precedendo qualquer observação aprofundada” (France, 1998,
p. 343).
Iniciadas as filmagens, uma das mais características facetas do re-
gistro fílmico deve sempre estar presente no espírito do antropólogo-
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cineasta. Tal faceta concerne a capacidade que tem esse registro de,
ao apreender um determinado processo, apreender igualmente outros
elementos, digamos, secundários; o que pode levar a uma saturação
da imagem. Ou seja, esta última tem este poder de, ao mesmo tempo
em que apreende um determinado processo, desvenda outros simulta-
neamente, podendo estes se apresentar tanto no campo visual quanto
sonoro. Segundo Claudine de France, essa saturação “não é outra coisa
senão a expressão particular de uma lei cenográfica geral, que qualifi-
caremos de lei da saturação da imagem, segundo a qual mostrar uma
coisa é mostrar outra simultaneamente” (France, 1998, p. 43).
Práticas espetaculares, como alguns rituais, por exemplo, em que
estão presentes um grande número de agentes e um grande número
de atividades simultâneas, são reveladoras desse poder das imagens
em movimento. Jean Rouch observa que "Quando um ritual comporta
um grande número de ações simultâneas, certo número de gestos pode
parecer sem interesse, enquanto que outros parecem mais importantes;
ora, na análise, percebe-se que dentre esses gestos, é o mais inapa-
rente, o mais discreto, que é o mais importante"(Rouch, 1968, p. 463).
Um outro importante aspecto da etnocinematografia diz respeito aos
instrumentos de registro do som e das imagens utilizados. Atualmente,
com o progresso tecnológico atingido pelas câmeras videográficas, é
possível coletar uma grande quantidade de material sem a necessidade
de trocas de bobinas de material sensível, pois o suporte magnético
autoriza um número extremamente elevado de horas de gravação de
boa qualidade e sem interrupção. Permitem, ainda, que o pesquisador
possa estar sozinho no campo, uma vez que não exigem a presença
de outros especialistas para que suas potencialidades sejam explora-
das plenamente. Para tanto, é necessário apenas que o antropólogo-
cineasta tenha sido formado às técnicas de gravação da imagem e do
som.
No que concerne à estratégia de apreensão fílmica das atividades
estudadas, os princípios da antropologia fílmica nos ensinam que uma
das mais conseqüentes opções de mise en scène consiste em adotar
como fio condutor do registro a dominante2 dessas atividades. Ou seja,
2 A noção de “dominante” é assim definida por Claudine de France: “Ainda que,
tanto na imagem quanto na observação direta, as atividades humanas se desenvolvam
sempre simultaneamente no nível do corpo, da matéria e do rito, este triplo desenvol-
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a mise en scène do cineasta decorre da auto-mise en scène das pes-


soas filmadas, pois que esta toma forma, é construída para levar a bom
termo a tarefa que o agente do processo se deu como objetivo; que
essa tarefa se caracterize como uma técnica ritual, corporal ou mate-
rial. Quando esta regra é obedecida, temos mais chances de ter um
produto final praticamente pré-editado que segue, preferencialmente, a
cronologia do processo observado. Esses atributos imprimem no arte-
fato fílmico a marca da inteligibilidade. Dito de outra forma, ao tomar
contato com os sons e imagens assim gerados, o espectador é capaz
de seguir sem dificuldades – e compreender sem sacrifícios - os mean-
dros da técnica observada.
É importante observar, também, que, para que isto ocorra, é funda-
mental que outros princípios tenham sido igualmente obedecidos. Den-
tre estes, podemos apontar aqueles que dizem respeito mais especi-
ficamente à antropologia fílmica e aqueles, de caráter mais geral, que
concernem à cinematografia documental tout court. Dentre os primei-
ros sublinhamos aquele que determina que, nos três tipos de técnicas
acima referidas (rituais, corporais e materiais), a ação do agente se
aplica a um objeto. Do ponto de vista do antropólogo-cineasta, “a noção
de objeto (que torna-se paciente no caso de um ser humano) concerne
tanto as matérias primas ou brutas de um processo de trabalho qual-
quer quanto o produto ou o resultado da ação desse agente a cada mo-
mento.(. . . ) Seguir atentivamente o destino desse objeto da ação que
ele – o agente – procura transformar, deslocar, perseguir ou solicitar se-
ria, para o cineasta, ir ao encontro da chave do processo observado e,
ao mesmo tempo, do principal fio condutor de sua descrição”. (France,
1998, pp. 36-37).
Isso significa que, para restituir tão fielmente quanto possível cada
uma dessas maneiras de os seres humanos se relacionarem uns com
os outros e com o mundo que o envolve, estratégias de mise en scène
específicas devem ser desenvolvidas, uma vez que, em cada uma de-
vimento se efetua, na maioria dos casos, em proveito de um desses três aspectos. Não
somente um desses aspectos domina os outros, mas também, se estabelecem entre
eles relações de subordinação hierarquizadas em que cada um, excetuado o aspecto
dominante, é ao mesmo tempo fim de um e meio de outro. O aspecto dominante do
processo é afinal aquele que exprime sua finalidade principal, e cujo programa co-
manda a auto-mise en scène do conjunto”. (1998, p.55).
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las o agente da ação estabelece relações diferentes, particulares com o


objeto protagonista da ação. É por essa razão que Claudine de France
propôs em Cinema e antropologia, em seus capítulos I, II e III (France,
1998, pp.59, 93 e 135), procedimentos metodológicos próprios que pro-
curam acomodar a mise en scène do cineasta à auto-mise en scène
das pessoas filmadas, pois que estas, como vimos, são diferentes para
cada técnica observada.
Dentre os princípios gerais relativos à cinematografia documental,
lembramos aqueles mais básicos que consistem na variação da distân-
cia focal, dos ângulos e dos enquadramentos ao longo das filmagens.
Também, a preocupação com a duração dos planos deve ser constante,
pois dela vai depender a inteligibilidade do documento final naquilo que
diz respeito ao desenrolar do processo. Já que nem sempre – na maior
parte dos casos – o tempo fílmico coincide com o tempo real deste úl-
timo, é importante que a construção temporal dos planos se faça sobre
certas bases para que o ritmo impresso pelo cineasta restitua o ritmo
das pessoas filmadas.
Assim, com a rápida exposição que fizemos acima de certos tra-
ços da antropologia fílmica, esperamos ter dado ao leitor alguns pontos
de orientação para que possa nos acompanhar na descrição dos três
processos por nós documentados.
Abordaremos agora esses três estudos de caso em que a antropolo-
gia fílmica foi explorada em três contextos sócio-culturais diferenciados.
O primeiro diz respeito à realização de uma pesquisa junto ao grupo
indígena Wasusu, onde buscamos observar e filmar os diferentes pro-
cessos relativos à vida cotidiana e aos aprendizados da criança neste
grupo indígena; o segundo aborda os bastidores de um grande espe-
táculo, o carnaval de Salvador, através de um dos seus protagonistas,
o bloco carnavalesco Malê Debalê; e o terceiro diz respeito a uma pes-
quisa de curta duração realizada em Nuuk, capital da Groenlândia, onde
tentamos apreender alguns aspectos da cultura Inuíte.
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II – Pesquisa fílmica em um grupo indígena: os


Wasusu
Em 1996, permanecemos durante oito meses em uma aldeia Wasusu,
grupo indígena pertencente à família lingüística Nambiquara e que ha-
bita uma reserva situada no oeste do Estado do Mato Grosso. Nosso
interesse consistia em apreender, através das imagens em movimento,
os diferentes aprendizados tradicionais. Filmamos, desta forma, tudo o
que se apresentava a nós - desde que tivesse obtido o acordo do grupo
– e que fosse suscetível de nos revelar como se dava a transmissão de
conhecimentos no seio da comunidade. Ao longo da pesquisa, pude-
mos observar que a maioria (ou melhor, a totalidade) dos aprendizados
seguia uma via informal, difusa, fugaz e freqüentemente submersa no
fluxo das outras atividades. Para a filmagem de aprendizados, Annie
Comolli propõe um procedimento padrão: “Quando ele deseja apresen-
tar uma aprendizagem, o cineasta é obrigado de mostrar no filme e de
sublinhar (através do ângulo de vista, do enquadramento, da duração da
apresentação, etc.) a forma de relação unindo o aprendiz ao iniciador,
do mesmo modo que os diversos tipos de aquisição e transmissão uti-
lizados, independentemente da tarefa ensinada. Ele deve igualmente,
caso não mostre, ao menos indicar ou evocar o conteúdo da aprendiza-
gem.” (Comolli, 1995, p. 199).
É preciso observar que durante a nossa pesquisa não tivemos a
oportunidade de visionar, in loco, nossos documentos fílmicos devido
a alguns problemas técnicos (por exemplo, a falta de um gerador no
local). Tentamos, apesar dessa dificuldade, aplicar o método dos esbo-
ços formulado por Claudine de France,3 mas nos faltava uma de suas
fases, ou seja, ver repetidas vezes as imagens coletadas antes de re-
alizar a próxima gravação. Por conseguinte, filmamos sem conhecer o
resultado dos registros realizados anteriormente. Contudo, essa limita-
ção nos levou ao encontro de um dos métodos de pesquisa propostos
por Claudine de France e ao qual já nos referimos: a exploração das
atividades através do registro fílmico. Assistindo e analisando as ima-
3 Para Claudine de France a “continuidade e repetição dos registros, associadas
a seu exame repetido, formam juntas o que denominamos ‘método dos esboços’.”
(1998, p. 352).
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gens posteriormente, pudemos compreender não somente as formas


utilizadas pelos Wasusu nos processos de transmissão e aquisição dos
saberes, mas também testemunhar a vida cotidiana na aldeia, na roça,
na floresta. Seria falso e presunçoso de nossa parte acreditar que a
vida Wasusu está presente na imagem em sua totalidade, mas assisti-
mos a momentos, fragmentos, que nos permitem aproximarmo-nos de
partes da cultura do grupo, sejam elas à dominante material, corporal
ou ritual. Obtivemos, como resultado final desta pesquisa, a edição de
sete filmes videográficos (Bains ; Kayatisu, le maïs ; Musique de flûtes ;
La pêche à la nivrée-Husinousu ; La pêche à la nivrée-Husinousu ; Le
singe et le pécari ; Walatisu, l’agouti ; La chicha de maïs), dois filmes
realizados em Super 8mm (Flûtes sacrées e Les bains de Sandri) e a
escrita e edição do texto Apprentissages de l’enfant et vie quotidienne
chez les Wasusu (Mato Grosso, Brésil). Une étude d’anthropologie fil-
mique (2004).
A título de exemplo, apresentaremos a seguir nossa estratégia de
mise en scène no registro de um processo de aprendizagem culinária
de uma menina de seis anos, Nahira, iniciada por sua mãe, Ada, no
preparo da mandioca. Esse aprendizado se desenrolou no interior da
casa do capitão.
Primeiramente, com a ajuda de uma panorâmica, mostramos Tajiba
e Nahira acompanhando Ada que portava um cesto cheio de mandioca.
O grupo avança em direção da casa do capitão. A casa está vazia e
o fogo apagado. Ada sai e vai buscar um pouco de lenha na casa de
sua irmã, Ana. Logo em seguida, Nahira apanha um dos troncos como
sua mãe havia feito alguns minutos antes (aprendizagem por exercício
imitativo). Depois se dirige para à casa levando o tronco de forma dife-
rente daquela utilizada por sua mãe. A menina coloca o tronco sobre
a cabeça e começa a caminhar saltitando. Tal comportamento revela
o caráter lúdico de que são investidos quase todos os processos de
aprendizagem das crianças Wasusu.
Uma vez no interior da casa, Nahira coloca a lenha no foto enquanto
sua mãe, ao lado, a observa (vigilância visual). Com um sinal da mão,
ela mostra à menina o cesto cheio de mandioca e Nahira começa então
a esvaziá-lo, retirando as raízes uma por uma. Em seguida a mãe ajuda
sua filha a arrumar o monte de mandioca. Nahira senta-se ao lado
da mãe e coloca as raízes diretamente no fogo. Quando pega uma
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raiz menor que as outras ela pára, não sabendo mais como proceder.
Hesitando, levanta os olhos em direção à mãe que, sem nada dizer,
aponta o dedo em direção do fogo para que Nahira deposite a raiz ao
lado das outras. É o que a menina faz. As raízes são dispostas uma
ao lado da outra, em camadas. Nas imagens, a hesitação e a indicação
gestual desvelam a situação de aprendizagem.
Sentada no chão e adotando a postura e os gestos das outras mu-
lheres, Nahira sopra as chamas para ativar o fogo.
Uma seqüência ulterior do mesmo filme mostra Ada retirando as raí-
zes do fogo e virando-as para que sejam uniformemente cozidas. En-
quanto as mandiocas cozinham, mãe e filha se deitam sobre um colchão
ao lado do fogão. Nahira coloca suas pernas entre as de sua mãe numa
postura muito comum entre um adulto e uma criança. Pouco tempo de-
pois, Ada retira as raízes do fogo com as mãos nuas. Nahira a imita,
mas, logo percebendo que as mandiocas estão muito quentes, faz um
gesto com a mão enquanto diz que está muito quente. A fim de verificar
se as raízes já estão cozidas, Ada apalpa uma a uma com as mãos e
depois as recoloca nas chamas. Após ter observado sua mãe, Nahira
efetua as mesmas operações. Assim, a menina apalpa uma raiz, pri-
meiramente com os dedos, depois, fechando-os, dá pequenos socos e,
finalmente, desfere piparotes com o polegar e o indicador na raiz antes
de recolocá-la no fogo.
Enquanto as mandiocas cozinham (pausa nas atividades dos agen-
tes), Nahira brinca lá fora com sua prima Nadir que carrega seu irmão-
zinho de cinco meses escanchado em seus quadris. A seqüência se-
guinte mostra Nahira brincando com Sandri. A menina segura o bebê
por um braço e tenta fazer com que ele fique em pé para andar. Tal
seqüência revela uma dupla aprendizagem: a da menina que exercita
uma técnica de maternagem, e a do bebê, que é convidado a ficar em
pé e andar (técnica que ele ainda não possui).
Depois da pausa, o filme apresenta o interior da casa: as mandiocas
estão ainda no fogo. Ada e Nahira estão sentadas no chão, a segunda
come um pedaço de mandioca cozida acompanhada de restos de carne
de um cervo caçado dois dias antes. Ada apalpa uma raiz e Nahira a
imita. Como o fogo está muito forte, Ada enfia as mandiocas na areia
quente e depois, com a ajuda de um bastão de madeira, recobre-as com
cinzas. Nahira, comendo um pedaço de mandioca, olha a mãe efetuar
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essas operações e, em seguida, retira uma das raízes das cinzas e lhe
dá alguns golpes com os dedos. Com a ajuda de um bastão, tenta retirar
as raízes enfiadas na areia enquanto sua mãe come mandioca.
A seqüência seguinte mostra a mãe e a filha deitadas consumindo
mandioca. É fácil perceber, durante toda essa seqüência, que elas
agem em total cumplicidade. Finalmente, Nahira coloca um outro pe-
daço de carne no fogo a fim de amolecê-lo, enquanto sua mãe, com a
ajuda de um bastão, retira as mandiocas enterradas na areia. Voltando-
se para mim, Ada me oferece espontaneamente um pedaço de mandi-
oca, o que traduz minha boa inserção no seio desse grupo doméstico.
As regras de boa educação utilizadas pelos Wasusu dizem que durante
uma refeição a pessoa deve oferecer a uma outra (parente ou amigo)
uma parte de sua alimentação. Ada, que nos considera um amigo, res-
peita essa regra.
A sessão de aprendizagem se desenrolou no interior da casa tradi-
cional do Capitão Yawé, que possui apenas uma porta como abertura.
O fogão, lugar privilegiado das atividades, se localiza em frente a essa
abertura. Tivemos então de ocupar postos de observação situados no
eixo da abertura ou próximos à porta de tal maneira que pudéssemos
nos beneficiar da luz do dia. Mas, nesse caso, não podíamos nos ser-
vir do ângulo de vista oposto, já que, se assim fizéssemos, estaríamos
orientando a câmera em direção à porta e correndo os riscos ineren-
tes à contraluz. Dispondo apenas de um pequeno recuo, tivemos de
utilizar enquadramentos em planos médios que possibilitassem o subli-
nhamento da situação de aprendizagem. Por exemplo, delimitamos de
maneira coincidente a menina que observava sua mãe realizando uma
das operações que compunham a tarefa, antes de realizá-la ela mesmo.
Em seguida, nos servimos de planos médios, enquadrando alternada-
mente tanto a menina, ou seja, a aprendiz, quanto sua mãe, ou seja, a
mestre.
O filme coloca em evidência a aprendizagem de uma técnica de
cozimento da mandioca na qual a aprendiz é iniciada por sua mãe. Ti-
vemos, aqui, uma situação de filmagem quase ideal, já que, diferente-
mente dos outros filmes que realizamos junto aos Wasusu, esse é um
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dos raros nos quais o meio eficiente e o meio marginal4 não são satu-
rados por agentes estranhos ao processo.5

III – Filmar o espetáculo: o Malê Debalê


O grupo afro-descendente Malê Debalê foi criado em 1979 por habitan-
tes do bairro de Itapuã (Salvador, BA)6 . O nome escolhido para o grupo,
“Malê”, é uma homenagem, aos negros islamizados trazidos como es-
cravos da África para o Brasil.7 Quanto a “Debalê”, esta foi uma palavra
inventada pelos membros do grupo. Podemos evidenciar já na formação
do nome do grupo, Malê (palavra de origem africana) e Debalê (palavra
inventada), as formas de sincretismo que ocorrerão nas configurações
da espetacularidade do grupo, ou seja, busca-se uma identidade nas
raízes africanas, mas estas serão revisitadas pelas influências da cul-
tura brasileira. Será então esta matriz identitária, a afro-descendência
e a localização no bairro de Itapuã, que congregará os membros do
grupo. Estes são, na sua maior parte, oriundos de locais desfavoreci-
dos do bairro de Itapuã e estão inseridos no mercado de trabalho como
pescadores, lavadeiras, quituteiras, empregados domésticos, entre ou-
tros, ou encontram-se desempregados.
Finda a fase de inserção, na qual obtivemos a autorização do grupo
para dar inicio à pesquisa, começamos o trabalho de campo. Filmamos
com uma câmera videográfica digital os principais acontecimentos do
grupo (ou melhor, aqueles que fomos autorizados a presenciar) durante
o período de dois anos: ensaios de algumas alas, reunião da diretoria,
4 Segundo Claudine de France, “o meio eficiente inclui todos os elementos do
ambiente direta ou indiretamente necessários ao exercício da atividade do agente do
processo observado. Logo, ele se estende tanto ao dispositivo externo estritamente de-
finido (instrumento material, objeto), quanto à parte do ambiente que serve de suporte
ao agente e ao dispositivo (suporte terrestre, aéreo, aquático, etc.). Ao meio eficiente
se opõe diretamente o meio marginal, que concerne exclusivamente a parte ou a os
elementos do ambiente cuja presença não é necessária ao exercício imediato da ativi-
dade do agente do processo observado nem à inteligibilidade da ação filmada” (1998,
p. 410).
5 Esses agentes só intervieram nos momentos de pausa.
6 Cf. Lucia Lobato, Malê Debalê: Um Espetáculo de Resistência Negra na Cultura

Baiana Contemporânea (2001).


7 Cf. Nei Lopes, Bantos, Malês e Identidade Negra (1988).
Estratégias fílmicas do documentário... 127

distribuição de alimentos para a comunidade carente da região, distri-


buição de fantasias, festas, shows, desfile do carnaval etc.
Percebemos rapidamente a grande dificuldade que teríamos em mos-
trar as diferentes alas do bloco de uma forma aprofundada, e, no final
desta primeira fase estávamos bastante descontentes com o resultado
obtido. Iniciamos então uma segunda fase, centralizando as filmagens
nas atividades de duas alas do grupo. Pudemos assim explorar visual-
mente diferentes questões que nos pareceram importantes enfatizar: os
diversos aprendizados envolvidos num ensaio de cada uma das alas, a
forma como se desenvolviam estes aprendizados, a relação entre gesto
e oralidade (palavra), a relação espacial entre os diversos agentes en-
volvidos no ensaio, a relação e imbricação existentes entre profano e
sagrado etc.
Privilegiamos, durante as filmagens, as atividades corporais, mate-
riais e rituais passíveis de serem apreendidas pela imagem em movi-
mento sem necessariamente a complementação do comentário oral. O
som ambiente e as vozes dos agentes estão presentes na imagem, mas
só esporadicamente nos servimos do depoimento ou da entrevista.
Uma das questões que nortearam este trabalho foi encontrar a es-
tratégia suscetível de dar conta, através da imagem em movimento, da
diversidade de atividades desta ala bem como da grande quantidade de
agentes envolvidos na preparação da festa. É importante observar que,
no momento do carnaval, o Malê é composto por 3 000 indivíduos di-
vididos em 13 alas, sendo que, durante os ensaios da ala de Givanildo
(a ala escolhida como fio condutor da pesquisa), participam aproxima-
damente 40 pessoas. Tentamos, assim, filmar esta ala sublinhando os
mesmos agentes a fim de que pudéssemos ter alguns elementos com-
parativos no que concerne às etapas dos aprendizados e que, assim,
o espectador pudesse identificá-los ao longo dos diferentes registros.
Durante a realização da pesquisa conseguimos captar um total de 35
horas de material bruto que foram decupados e editados, formando um
conjunto de três filmes que tentam mostrar as diferentes facetas dos
bastidores do carnaval vivenciadas pelo grupo Malê Debalê.
Durante os 18 meses de duração da pesquisa de campo filmamos
também os dois desfiles de carnaval, de 2002 e 2003. Pudemos, as-
sim, diversificar as tomadas, opções e estratégias de mise en scène em
cada um dos desfiles. Por exemplo, no caso do primeiro desfile, era
128 José Francisco Serafim

igualmente a primeira vez que participávamos do carnaval de Salvador,


razão pela qual nos sentíamos bastante inseguros, filmando com uma
câmera videográfica digital mini DV sem conhecer os meandros do pro-
cesso. Já durante o desfile de 2003, estávamos mais familiarizados com
a festa e pudemos, por exemplo, antecipar algumas tomadas, pois co-
nhecíamos as fases, o desenrolar e os desdobramentos das atividades
no espaço. Durante o carnaval de 2003, pudemos também acompa-
nhar a ala desde a preparação das fantasias em Sussuarana, a vinda
de ônibus até o centro e a espera na concentração até o momento do
desfile. Ou seja, foi buscando varias estratégias de mise en scène que
conseguimos apreender etapas fundamentais dos preparativos da festa
neste grupo e mostrar a imbricação entre o profano e o sagrado.
Um outro momento importante da pesquisa foi o retorno das ima-
gens (feedback ) à comunidade. Nessa ocasião, os membros da ala que
se tornou nosso fio condutor teceram comentários esclarecedores sobre
as atividades filmadas. Logo após o desfile de 2003, por exemplo, retor-
namos a Sussuarana a fim de mostrar o material bruto do desfile recém
terminado. O grupo ficou bastante satisfeito com o trabalho realizado
e, para mostrar seu contentamento, realizou uma roda onde todos dan-
çaram. Estas sessões também foram filmadas e nos foram úteis para
analisar a reação dos participantes na percepção e recepção que estes
têm de sua própria imagem, ou seja, nessa relação com a alteridade.
Como exemplo dos procedimentos utilizados nesta pesquisa, des-
creveremos a parte final do filme editado Male Debalê, realizado em
2003. O extrato em questão tem oito minutos de duração e mostra, ini-
cialmente, o último ensaio da ala de Givanildo filmado dois dias antes do
desfile de carnaval, e uma outra parte gravada no primeiro dia do desfile
de carnaval do bloco quando pudemos filmar os preparativos dos parti-
cipantes para o desfile (fantasia, adereços, maquilagem etc.), a viagem
de ônibus até o centro da cidade e, finalmente, o desfile dessa noite.
Na primeira seqüência deste extrato vemos alguns participantes da
ala efetuar o último ensaio antes do desfile do carnaval. O local es-
colhido foi a casa de Givanildo. Este inicia o ensaio acompanhado de
músicas já gravadas. Em seguida divide o grupo em diferentes turmas
e realiza os ensaios separadamente: os rapazes, as moças, os apren-
dizes e, enfim, todos juntos. Percebemos que a palavra não exerce
qualquer influência no momento do ensaio; os participantes observam
Estratégias fílmicas do documentário... 129

o mestre da ala e tentam imitar sua gestualidade. Esta primeira parte


é composta de dois planos-sequências que visam dar uma idéia das
formas de aprendizado presentes neste grupo, ou seja, sublinhar que
estas funcionam com base na observação e na imitação. Duas dificul-
dades nortearam esta filmagem: a primeira concerne a pouca luminosi-
dade no local. Apesar da boa sensibilidade da fita digital, tivemos mui-
tas dificuldades, ou melhor, nos vimos na impossibilidade de diversificar
a ocupação de vários postos de observação, pois, caso o fizéssemos
(e em alguns momentos optamos por esta variação) a imagem ficaria
muito escura. A única fonte de luminosidade era uma lâmpada de 100
watts, instalada ao lado esquerdo do local das filmagens. Desta forma,
a fim de ter uma imagem de qualidade razoável tivemos que restrin-
gir as tomadas nos colocando à proximidade deste foco de luz. Uma
outra dificuldade era a exigüidade do espaço utilizado para o ensaio,
que nos impossibilitava de nos locomovermos sem atrapalhar o traba-
lho dos participantes. Assim, a única alternativa de mise en scène mais
evidente que nos restou foi a variação dos ângulos e dos enquadramen-
tos. Lançamos mão, por exemplo, em alguns momentos, de planos em
plongée e contra-plongée, com o objetivo de diversificar a construção
das seqüências.
A segunda parte deste extrato mostra, inicialmente, o grupo se des-
locando até o ônibus que os levou ao centro da cidade a fim de participar
do desfile. Os planos dentro do ônibus foram realizados utilizando-se o
recurso night shot. Decidimos filmar e editar esta seqüência, apesar
da pouquíssima luminosidade ambiente, em virtude, sobretudo, de seu
aspecto sincrético. Givanildo, o mestre de ala, quando todos já estão
dentro do ônibus, agradece inicialmente às mães de família que confiam
nele e começa uma oração onde observamos elementos do sincretismo
religioso. Uma vez mais as dificuldades se assemelham às observadas
anteriormente, sendo que, aqui, a luminosidade era ainda mais fraca e
o espaço muito mais reduzido. Tivemos que realizar toda esta filmagem
de um único ponto de vista, variando somente a rotação da câmera em
seu próprio eixo (movimento panorâmico).
A seqüência seguinte mostra o grupo no centro da cidade, já na
concentração, se preparando para o desfile. São planos mais curtos
que têm por objetivo dar uma idéia do ambiente da concentração, sem
a preocupação de descrever as atividades de forma aprofundada. Ve-
130 José Francisco Serafim

mos, por exemplo, grupos de turistas que também participam do desfile


do Malê. Num certo momento, Givanildo, bastante embevecido, se di-
rige para a câmera e fala de sua satisfação em ver a beleza de sua
ala “que tem muito mais brilho que as outras”. Após este momento o
grupo se prepara para o desfile, que acontece no circuito do Campo
Grande (centro da cidade de Salvador). Vemos, inicialmente, o grupo
de baianas que abre o desfile da ala de Givanildo, atrás delas chegam
os outros participantes do bloco, Givanildo, mestre da ala, encabeçando
o grupo. A imagem mostra o grande prazer, evidente para eles, em es-
tar lá naquele momento. Trata-se aqui de uma apresentação com forte
dose de profilmia,8 pois uma das características e objetivo de um desfile
público é o de ser realizado para ser visto e apreciado. A presença da
câmera, de alguma maneira, antecipava e exacerbava esse momento
de auto-mostração.
Finalizamos esta passagem com um plano enquadrando o carro da
rainha e, através da utilização de um zoom ótico, o aproximamos dos
outros membros da ala. Utilizamos, nestas seqüências, alguns recur-
sos de montagem com o objetivo de mostrar as modificações espaço-
temporais do processo observado. Por exemplo, entre as seqüências
acontecendo em momentos diferentes, como o ensaio e a ida até o
ônibus, utilizamos o fade; já nos planos pertencentes a uma mesma
unidade temporal nos servimos do efeito de fusão. Buscamos enfatizar
através das imagens em movimento as situações que podem ser mais
facilmente compreendidas visualmente, mas em alguns momentos a pa-
lavra se faz presente. Vemos, por exemplo, na passagem acima des-
crita, estes dois momentos em que a oralidade cumpriu funções opos-
tas. O primeiro acontece quando da oração dentro do ônibus. Aqui é
possível perceber a liderança exercida por Givanildo, a relação que este
estabelece com os pais dos participantes e o sincretismo manifesto nas
orações. Observamos, igualmente, que essa manifestação acontece-
8 Profilmia: “Maneira mais ou menos consciente com que as pessoas filmadas se
colocam em cena, elas próprias e o seu meio, para o cineasta ou em razão da presença
da câmera. Ficção inerente a qualquer filme documentário que adquire formas mais ou
menos agudas e identificáveis. Noção cunhada por Etienne Souriau (1953) mas que,
estendida ao filme documentário, diz respeito não somente os elementos do ambiente
intencionalmente escolhidos e arranjados pelo realizador com vistas ao filme, mas
também a qualquer forma espontânea de comportamento ou de auto-mise en scène
suscitada, nas pessoas filmadas, pela presença da câmera” (France, 1998, p. 412).
Estratégias fílmicas do documentário... 131

ria independentemente da presença da câmera. Já no segundo caso,


quando Givanildo fala diretamente para a câmera, a palavra assume
uma característica marcadamente profilmica.
Por fim, gostaríamos de sublinhar mais algumas importantes carac-
terísticas metodológicas envolvidas neste trabalho. Em primeiro lugar a
própria duração da pesquisa, ou seja, quase dois anos, durante os quais
freqüentamos com bastante assiduidade as atividades do Malê Debalê,
e o caráter exploratório das gravações subjacente a essa assiduidade,
pois fomos descobrindo os pormenores das atividades ao mesmo tempo
em que os estávamos filmando. As opções mais adequadas de mise en
scène nos foram aparecendo ao longo da pesquisa fílmica de par com
as mudanças nos nossos objetivos - num primeiro momento bem mais
abrangentes -, que foram se reduzindo até percebermos que podería-
mos, através de uma das alas, dar uma idéia do carnaval vivido pelo
grupo como um todo. Ou seja, tomamos uma ala como fio condutor de
nossa mostração. Claro que, neste caso, é preciso contextualizar a ala
dentro do conjunto. Para tanto, filmamos também diferentes atividades
envolvendo o grupo na sua totalidade. Finalmente, é importante res-
saltar que modificações estão ocorrendo neste grupo com uma grande
velocidade e, certamente, algumas de suas atividades não serão mais
as mesmas que pudemos apreender ao longo da pesquisa. Assim, o
filme, tentando mostrar de uma forma aprofundada alguns aspectos do
bloco, vem a ser, também, um testemunho de um dado momento do
carnaval soteropolitano e passa a ser um instrumento de análise não
somente para pesquisadores interessados na relação entre cinema e
espetáculo, mas também para os próprios membros do Malê, que terão
na totalidade destes documentos alguns elementos do carnaval viven-
ciado pelo grupo nestes dois últimos anos. Na fase final desta pesquisa
pudemos realizar a edição de três documentos videográficos: Ensaios I
(Malê Debalê) e Ensaios II (Malê Debalê) e Malê Debalê.

IV - Filmar a cultura: os Inuíte de Nuuk, Gro-


enlândia
Em fevereiro de 2004 permanecemos aproximadamente 20 dias em
Nuuk, capital da Groenlândia, onde se realizou um evento internacio-
132 José Francisco Serafim

nal Window to the World Exchange Program (WWEP) envolvendo não


somente as comunidades locais, mas igualmente participantes de ou-
tros 15 países. Durante esse período aconteceram trocas constantes
entre os membros de cada país participante. Nossa função consistia
em apreender de forma sistemática toda a dinâmica e o desenrolar do
evento através das imagens em movimento. Ou seja, gravávamos com
uma câmera digital a maior parte das atividades e nos interessaram, so-
bremaneira, aquelas voltadas para a cultura local, aquela do povo Inuíte.
Assim pudemos apreender, sem observação prévia, duas atividades
que estão ainda hoje vinculadas à cultura tradicional daquele povo: a
primeira diz respeito à “dança de máscara”, uma das únicas “coreogra-
fias” ainda presentes na cultura Inuíte. Isso nos levou a ter na imagem
uma das últimas coreógrafas e professora de “Mask danse” de Nuuk,
Else Danielsen. Nesta seqüência, Else ensina os princípios básicos da
Mask danse a uma jovem dançarina finlandesa. Acompanhamos, inici-
almente, a preparação do corpo, ou seja, a maquiagem, pois é preciso
que o rosto esteja completamente maquiado para que a dança possa
ser realizada. Nestas tomadas iniciais observamos, através de planos
que mostram as duas agentes na imagem, que a aprendiz não tem o
domínio da técnica e está constantemente observando a iniciadora; as
duas estão sentadas no solo, em face de um espelho. Logo após esta
primeira fase inicia-se a dança propriamente dita. Else realiza primei-
ramente a coreografia sendo observada pela aprendiz. Vários planos
enfatizam esta situação de aprendizado. Posteriormente, a aprendiz
tenta imitar os movimentos coreográficos da iniciadora, sendo constan-
temente corrigida oralmente por esta. Observamos aqui um dado impor-
tante e praticamente ausente nos dois casos anteriores: a importância
da oralidade no momento da aprendizagem. Os comentários, críticas,
correções e demonstrações de satisfação por parte da iniciadora são
realizados oralmente em inglês (língua comum às duas agentes). Trata-
se, aqui, da apresentação de um processo de aprendizagem que tem
um caráter diferente daqueles que vimos anteriormente (Wasusu e Malê
Debalê). No caso agora em análise, esse processo não está imbricado
na vida social e cultural do grupo que o realiza, tendo muito mais um
caráter didático sistematizado que se assemelha a um aprendizado for-
mal. Como Else Danilsen nos informou, a Mask Danse, apesar de ainda
estar presente na cultura do povo Inuíte, não tem despertado mais um
Estratégias fílmicas do documentário... 133

grande interesse na população, e ela mesma tem poucos alunos que


buscam o aprendizado dessa atividade coreográfica e ritual.
Um outro processo filmado concerne ao tratamento dispensado à
foca, uma das principais fontes de alimentação tradicional desse grupo
social. Duas mulheres Inuíte tratam a foca cortando-a ao meio, retirando
a pele e cortando alguns pedaços de carne crua que serão degustados
por alguns dos presentes. As mulheres utilizam para esta operação o
instrumento tradicional ulu. Apesar da foca ainda ser um animal pre-
sente na culinária Inuíte, seu consumo tem diminuído em decorrência
da concorrência com os produtos alimentares ocidentais que chegam à
Groenlândia diariamente da Dinamarca. Para algumas crianças e ado-
lescentes Inuíte presentes durante a filmagem desta preparação culi-
nária, esta era a primeira vez que presenciavam tal operação. Alguns
planos do filme exemplificam esta “situação de aprendizado” através do
olhar e do interesse que estes jovens parecem ter pela atividade; esta-
mos em presença de uma situação de aprendizado que ocorre somente
através do controle visual.
No processo de registro de aspectos da cultura Inuíte, encontramo-
nos em face de uma outra problemática (grupo social, língua, cultura
etc.) que necessitou estratégias adequadas para alcançarmos nossos
objetivos. A inserção, neste caso, acontecia ao mesmo tempo em que
filmávamos as atividades. Nesse sentido, optamos por fazer com que
o tempo da gravação correspondesse ao tempo total da atividade, e
esta era realizada uma única vez. O resultado, ou seja, o produto fi-
nal, traduz, antes de tudo, uma postura de “exploração da realidade”
tal como definida por Claudine de France no método já exposto acima,
através do qual descobrimos a atividade ao mesmo tempo em que a fil-
mamos. Este trabalho de documentação audiovisual foi um dos produ-
tos do evento utilizado para mostrar e divulgar as diferentes atividades
que aconteceram em Nuuk neste período. Desta forma, o filme pode ser
visto por todos os participantes estrangeiros ou locais (Inuíte) que po-
derão, assim, ter uma idéia da riqueza das trocas que ocorreram entre
os diferentes países presentes e, sobretudo, estando vinculado ao con-
texto de uma cultura em constante modificação, mas que preserva ainda
aspectos identitários importantes como exemplifica o grupo Inuíte. Foi
editado um filme sobre esta experiência: Kalaanilat –Terra das pessoas.
134 José Francisco Serafim

Conclusão
À guisa de conclusão, gostaria de deixar em evidência esta extraordi-
nária capacidade que têm as imagens em movimento de poderem res-
tituir com fidelidade os processos observados e, ao mesmo tempo, po-
derem ser mostradas e compreendidas, tanto pelas pessoas filmadas
quanto pelos espectadores. Para tanto, é necessário que certos prin-
cípios metodológicos tenham sido respeitados quando das filmagens.
Alguns destes princípios foram expostos ao longo do presente texto,
pois que aplicados aos três processos dos quais prestamos contas. Ao
fazê-lo, procuramos mostrar o potencial cognitivo da antropologia fílmica
desenvolvida por Claudine de France e sua equipe de cinema documen-
tário da Universidade Paris X - Nanterre, e, também, colocar em prática
aquela noção tão cara a Jean Rouch de “antropologia partilhada”. Com
efeito, foi ele quem, seguindo os passos de Flaherty, sistematizou o
envolvimento das pessoas observadas no processo de realização do
documentário antropológico. Os três casos acima estudados são deve-
dores desses marcos conceituais.

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- Malê Debalê, vídeo, 50 min., 2003
- Ensaios II (Malê Debalê), video, 65 min., 2003
- Ensaios I (Malê Debalê), video, 77 min., 2002
- Bains, video, 10 min., 2000
- Flûtes sacrées, Super 8 mm, 19 min., 2000
- Les bains de Sandri, Super 8 mm, 17 min., 2000
- Kayatisu, le maïs, video, 40 min., 2000
136 José Francisco Serafim

- Musique de flûtes, video, 40 min., 2000


- La pêche à la nivrée-Husinousu, video, 29 min. 2000
- Le singe et le pécari, video, 43 min., 2000
- Walatisu, l’agouti, video, 21 min., 2000
- La chicha de maïs, video, 25 min., 2000

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