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Introdução
P resente trabalho busca refletir sobre algumas características de
O mise en scène utilizadas na realização do filme documentário an-
tropológico e apresenta alguns resultados de três pesquisas realizadas
inicialmente junto ao grupo indígena Wasusu, a segunda com o grupo
afro-descendente Malê Debalê (Salvador, BA), e a terceira junto aos
Inuíte de Nuuk (Groelândia).
Observamos que, desde os primórdios da antropologia, certos pes-
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cineasta. Tal faceta concerne a capacidade que tem esse registro de,
ao apreender um determinado processo, apreender igualmente outros
elementos, digamos, secundários; o que pode levar a uma saturação
da imagem. Ou seja, esta última tem este poder de, ao mesmo tempo
em que apreende um determinado processo, desvenda outros simulta-
neamente, podendo estes se apresentar tanto no campo visual quanto
sonoro. Segundo Claudine de France, essa saturação “não é outra coisa
senão a expressão particular de uma lei cenográfica geral, que qualifi-
caremos de lei da saturação da imagem, segundo a qual mostrar uma
coisa é mostrar outra simultaneamente” (France, 1998, p. 43).
Práticas espetaculares, como alguns rituais, por exemplo, em que
estão presentes um grande número de agentes e um grande número
de atividades simultâneas, são reveladoras desse poder das imagens
em movimento. Jean Rouch observa que "Quando um ritual comporta
um grande número de ações simultâneas, certo número de gestos pode
parecer sem interesse, enquanto que outros parecem mais importantes;
ora, na análise, percebe-se que dentre esses gestos, é o mais inapa-
rente, o mais discreto, que é o mais importante"(Rouch, 1968, p. 463).
Um outro importante aspecto da etnocinematografia diz respeito aos
instrumentos de registro do som e das imagens utilizados. Atualmente,
com o progresso tecnológico atingido pelas câmeras videográficas, é
possível coletar uma grande quantidade de material sem a necessidade
de trocas de bobinas de material sensível, pois o suporte magnético
autoriza um número extremamente elevado de horas de gravação de
boa qualidade e sem interrupção. Permitem, ainda, que o pesquisador
possa estar sozinho no campo, uma vez que não exigem a presença
de outros especialistas para que suas potencialidades sejam explora-
das plenamente. Para tanto, é necessário apenas que o antropólogo-
cineasta tenha sido formado às técnicas de gravação da imagem e do
som.
No que concerne à estratégia de apreensão fílmica das atividades
estudadas, os princípios da antropologia fílmica nos ensinam que uma
das mais conseqüentes opções de mise en scène consiste em adotar
como fio condutor do registro a dominante2 dessas atividades. Ou seja,
2 A noção de “dominante” é assim definida por Claudine de France: “Ainda que,
tanto na imagem quanto na observação direta, as atividades humanas se desenvolvam
sempre simultaneamente no nível do corpo, da matéria e do rito, este triplo desenvol-
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raiz menor que as outras ela pára, não sabendo mais como proceder.
Hesitando, levanta os olhos em direção à mãe que, sem nada dizer,
aponta o dedo em direção do fogo para que Nahira deposite a raiz ao
lado das outras. É o que a menina faz. As raízes são dispostas uma
ao lado da outra, em camadas. Nas imagens, a hesitação e a indicação
gestual desvelam a situação de aprendizagem.
Sentada no chão e adotando a postura e os gestos das outras mu-
lheres, Nahira sopra as chamas para ativar o fogo.
Uma seqüência ulterior do mesmo filme mostra Ada retirando as raí-
zes do fogo e virando-as para que sejam uniformemente cozidas. En-
quanto as mandiocas cozinham, mãe e filha se deitam sobre um colchão
ao lado do fogão. Nahira coloca suas pernas entre as de sua mãe numa
postura muito comum entre um adulto e uma criança. Pouco tempo de-
pois, Ada retira as raízes do fogo com as mãos nuas. Nahira a imita,
mas, logo percebendo que as mandiocas estão muito quentes, faz um
gesto com a mão enquanto diz que está muito quente. A fim de verificar
se as raízes já estão cozidas, Ada apalpa uma a uma com as mãos e
depois as recoloca nas chamas. Após ter observado sua mãe, Nahira
efetua as mesmas operações. Assim, a menina apalpa uma raiz, pri-
meiramente com os dedos, depois, fechando-os, dá pequenos socos e,
finalmente, desfere piparotes com o polegar e o indicador na raiz antes
de recolocá-la no fogo.
Enquanto as mandiocas cozinham (pausa nas atividades dos agen-
tes), Nahira brinca lá fora com sua prima Nadir que carrega seu irmão-
zinho de cinco meses escanchado em seus quadris. A seqüência se-
guinte mostra Nahira brincando com Sandri. A menina segura o bebê
por um braço e tenta fazer com que ele fique em pé para andar. Tal
seqüência revela uma dupla aprendizagem: a da menina que exercita
uma técnica de maternagem, e a do bebê, que é convidado a ficar em
pé e andar (técnica que ele ainda não possui).
Depois da pausa, o filme apresenta o interior da casa: as mandiocas
estão ainda no fogo. Ada e Nahira estão sentadas no chão, a segunda
come um pedaço de mandioca cozida acompanhada de restos de carne
de um cervo caçado dois dias antes. Ada apalpa uma raiz e Nahira a
imita. Como o fogo está muito forte, Ada enfia as mandiocas na areia
quente e depois, com a ajuda de um bastão de madeira, recobre-as com
cinzas. Nahira, comendo um pedaço de mandioca, olha a mãe efetuar
Estratégias fílmicas do documentário... 125
essas operações e, em seguida, retira uma das raízes das cinzas e lhe
dá alguns golpes com os dedos. Com a ajuda de um bastão, tenta retirar
as raízes enfiadas na areia enquanto sua mãe come mandioca.
A seqüência seguinte mostra a mãe e a filha deitadas consumindo
mandioca. É fácil perceber, durante toda essa seqüência, que elas
agem em total cumplicidade. Finalmente, Nahira coloca um outro pe-
daço de carne no fogo a fim de amolecê-lo, enquanto sua mãe, com a
ajuda de um bastão, retira as mandiocas enterradas na areia. Voltando-
se para mim, Ada me oferece espontaneamente um pedaço de mandi-
oca, o que traduz minha boa inserção no seio desse grupo doméstico.
As regras de boa educação utilizadas pelos Wasusu dizem que durante
uma refeição a pessoa deve oferecer a uma outra (parente ou amigo)
uma parte de sua alimentação. Ada, que nos considera um amigo, res-
peita essa regra.
A sessão de aprendizagem se desenrolou no interior da casa tradi-
cional do Capitão Yawé, que possui apenas uma porta como abertura.
O fogão, lugar privilegiado das atividades, se localiza em frente a essa
abertura. Tivemos então de ocupar postos de observação situados no
eixo da abertura ou próximos à porta de tal maneira que pudéssemos
nos beneficiar da luz do dia. Mas, nesse caso, não podíamos nos ser-
vir do ângulo de vista oposto, já que, se assim fizéssemos, estaríamos
orientando a câmera em direção à porta e correndo os riscos ineren-
tes à contraluz. Dispondo apenas de um pequeno recuo, tivemos de
utilizar enquadramentos em planos médios que possibilitassem o subli-
nhamento da situação de aprendizagem. Por exemplo, delimitamos de
maneira coincidente a menina que observava sua mãe realizando uma
das operações que compunham a tarefa, antes de realizá-la ela mesmo.
Em seguida, nos servimos de planos médios, enquadrando alternada-
mente tanto a menina, ou seja, a aprendiz, quanto sua mãe, ou seja, a
mestre.
O filme coloca em evidência a aprendizagem de uma técnica de
cozimento da mandioca na qual a aprendiz é iniciada por sua mãe. Ti-
vemos, aqui, uma situação de filmagem quase ideal, já que, diferente-
mente dos outros filmes que realizamos junto aos Wasusu, esse é um
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dos raros nos quais o meio eficiente e o meio marginal4 não são satu-
rados por agentes estranhos ao processo.5
Conclusão
À guisa de conclusão, gostaria de deixar em evidência esta extraordi-
nária capacidade que têm as imagens em movimento de poderem res-
tituir com fidelidade os processos observados e, ao mesmo tempo, po-
derem ser mostradas e compreendidas, tanto pelas pessoas filmadas
quanto pelos espectadores. Para tanto, é necessário que certos prin-
cípios metodológicos tenham sido respeitados quando das filmagens.
Alguns destes princípios foram expostos ao longo do presente texto,
pois que aplicados aos três processos dos quais prestamos contas. Ao
fazê-lo, procuramos mostrar o potencial cognitivo da antropologia fílmica
desenvolvida por Claudine de France e sua equipe de cinema documen-
tário da Universidade Paris X - Nanterre, e, também, colocar em prática
aquela noção tão cara a Jean Rouch de “antropologia partilhada”. Com
efeito, foi ele quem, seguindo os passos de Flaherty, sistematizou o
envolvimento das pessoas observadas no processo de realização do
documentário antropológico. Os três casos acima estudados são deve-
dores desses marcos conceituais.
Referências bibliográficas
Filmografia