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Ivan Francisco Viana de Lima & Márcio Douglas de Carvalho e Silva

PATRIMÔNIO E HISTÓRIA
na Fazenda Buritizinho-Altos-PI
Ivan Francisco Viana de Lima1, Márcio Douglas de Carvalho e Silva2

Resumo
O presente artigo toma a casa de fazenda Buritizinho e seu acervo documental (ce-
râmica, vaso, cartas, mobília e a própria arquitetura da casa) para uma análise his-
tórica patrimonial. O que determinamos como patrimônio cultural em análise, tan-
to preserva a memória quanto constitui herança assegurada à sociedade atual. Uti-
lizamos como metodologia a pesquisa bibliográfica e de campo. O estudo demons-
trou que a casa de fazenda preserva um significativo acervo de informações sobre a
sociedade que a construiu e/ou deu significado.
Palavras-chave: Memória; Patrimônio; Sociedade.

Abstract
This article takes Buritizinho farmhouse and its documentary collection (pottery,
vase, letters, furniture and the architecture of the house itself) for a historical patri-
monial analysis. What we determine as cultural heritage under analysis, both pre-
serves the memory and constitutes an inheritance assured to the current society. We
12 use as methodology the bibliographical and field research. The study showed that
the farmhouse preserves a significant body of information about the society that
built it and / or gave meaning.
Keywords: Memory; Patrimony; Society.

Recebido em: 10.06.2018


Aprovado em: 21.06.2018
DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.1306253

1
Licenciado em História, Especialista em História e Cultura Afro-Brasileira e Africana - UESPI
2
Licenciado em História, Especialista em História e Cultura Afro-Brasileira e Africana – UESPI, Mestre
em Antropologia – UFPI.

ISSN 2447-7354
Revista Piauiense de História Social e do Trabalho. Ano IV, n. 06. Janeiro-Julho de 2018. Parnaíba-PI

Introdução A ideia de patrimônio vincula-se à de memó-


ria, ou seja, consistem em recordações, lem-
Por meio da memória, as ações dos branças de tempos passados que estão presen-
sujeitos no transcurso da construção de tes no que conseguiu sobreviver e conserva-se
nossa sociedade podem ser relembradas sobre a sociedade atual, seja uma casa, uma
e entendidas pelo o que foi preservado. dança, crenças que fizeram parte de realida-
Uma casa, uma rua, uma ponte que des já vividas e, apesar das modificações que
sobreviveu ao tempo e consegue man- sofreram, ainda podem ser identificadas pelo
ter-se viva na memória coletiva de um que resistiu ao tempo. O objeto a ser conser-
povo, serve como marco identitário, ou vado recria um momento singular na histó-
seja, contém em sua estrutura parte da ria, refletindo uma arte vivida, que define o
história e das lembranças de uma socie- modo que determinado grupo social pensava
dade, pois, além dos aspectos materiais e os valores por ele adotados. (LIMA, 2012.
são bens p. 31)

Oriundos de processos culturais de construção


de sociabilidades, de formas de sobrevivência, Prontamente, esse entendimento
de apropriação de recursos naturais e de rela- que geraria uma identidade entre socie-
cionamento com o meio ambiente, essas ma- dade e artefato, símbolo do patrimônio,
nifestações possuem uma dinâmica especifica de fato só seria possível com o conhe-
de transmissão, atualização e transformação cimento do contexto que perpassam os
que não pode ser submetida às formas usuais dois momentos, presente/passado, visto
de proteção do patrimônio cultural (IPHAN,
2012. p. 9).
que, o não entendimento de um, recai
sobre a incompreensão do outro, assim 13
Dessa forma, para entender a essên- essa solidariedade das épocas tem tanta força
cia do patrimônio é preciso fazermos que entre elas os vínculos de inteligibilidade
uma ligação entre o presente e o passa- são verdadeiramente de sentido duplo. A
do e procurar o que de fato herdamos incompreensão do presente nasce fatalmente
das sociedades em seu transcurso. Expe- da ignorância do passado. Mas talvez não
riência, técnicas e valores não são des- seja menos vão esgotar-se em compreender o
cartados, e sim conjugados e ajustados passado se nada se sabe do presente.
aos nossos dias. À vista disso, patrimô- (BLOCH, 2002, p. 65)
nio aqui é entendido como toda forma
de vida adotada e adaptada pelo homem
aos espaços modificados pelo tempo, e No que tange as casas de fazendas do
que mesmo com as várias sucessões e Piauí, a relação espaço-tempo passado,
passagem por diferentes gerações, não tem forte ligação com o presente, em
perderam sua essência, por estar encra- razão das cidades piauienses ainda esta-
vada nos hábitos e valores herdados. ram muito ligadas aos setores rurais de
Consequentemente, o patrimônio, arte- seus municípios, reflexo do percurso
fato preservado, estimula a memória a histórico cultural da formação social do
relembrar do passado e do contexto so- Estado.
cial em que o mesmo se desenvolveu, Logo, parte da nossa história pode
assim: ser contada pelas casas de fazenda,
construções remanescentes ao tempo
que o gado era a maior fonte de renda,
um passado com características típicas

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da sociedade piauiense, que nasceu jun- dura, simples ou luxuosa. Foram esses
to aos núcleos fazendários. Muitos dos personagens que construíram os pilares
nossos municípios tiveram suas origens que originou a sociedade piauiense.
em propriedades rurais como fazendas, A cidade de Altos- Piauí, município,
unidades onde se organizava a econo- onde se ergueu a Fazenda Buritizinho,
mia que girava em torno da pecuária, de início foi povoada por migrantes de
espaço que reunia na lida do dia-a-dia, outras regiões, fugindo da seca que cas-
vaqueiros, agregados, moradores, ren- tigava o Ceará “em 1800, com a chega-
deiros e trabalhadores escravizados. da do primeiro colonizador, João de
Foram essas pessoas que deram origem Paiva Oliveira, tem início a história do
à sociedade piauiense. Por isso, a im- nosso município.” (FERREIRA, 1995,
portância de reconhecer as casas de fa- p. 17).
zendas como parte da memória do pas- Nesse período, a posse da terra era
sado, como instrumento de análise de muito disputada, por sesmeiros e possei-
uma sociedade que tinha suas vivências ros, período em que no território pi-
dentro do contexto sertanejo de adapta- auiense a legalidade se dava através da
ção a realidade do espaço habitado. doação da carta de sesmaria, que “no
A fazenda Buritizinho fica situada a ano de 1816 fora concedida a Domingos
aproximadamente 3 Km do centro da de Paiva Dias, a sesmaria denominada
cidade de Altos-Piauí, as margens da Batalha, que está ligada aos primórdios
BR-343 que liga Altos a Teresina. A do nosso povoamento.” (FERREIRA,
fazenda é de propriedade de dona Lina, 1995, p. 17). Dessa forma, a base eco-
14 herança de seus pais. Fundada no ano
de 1848, em seus 176 anos de existência
nômica da região era agricultura, pecuá-
ria e extração vegetal. A criação de
sofre com a ação do tempo. Além da animais porcos, cabras e de aves, como
demolição de alguns cômodos, há inter- galinhas, serviam para o consumo pró-
venções na estrutura que conseguiu ser prio.
mantida. Apesar das modificações, a Os aspectos rurais são fatores ligados
fazenda conserva significativo acervo aos primeiros núcleos populacionais da
documental (cópia da lei que abolia a região, as fazendas. A cidade de Altos
escravidão no Brasil, emitida pelo impe- não fugiu à regra de formação das cida-
rador, inscrição em azulejo descrevendo des piauiense, pois, “aqui chegando,
ano de fundação e localização da fazen- João de Paiva Oliveira constituiu uma
da, além de móveis e da própria estrutu- fazenda, dando-lhe o nome de Fazenda
ra da fazenda que contém muitas infor- São José dos Altos” (DIAS, n/d). Hoje
mações da sociedade na qual a mesma o município de Altos, apesar de ter sua
se ergueu) que nos guia ao conhecimen- economia movida pelo comércio ainda
to de uma sociedade que se estruturou mantém forte ligação com os setores
nos espaços em que a pecuária era a rurais. Segundo Lima, (2012, p. 37),
maior fonte de renda. Os aspectos de ruralidade denotam a
Dessa forma, tanto a estrutura – ar- relação que o urbano tem com o campo.
quitetura e matéria prima utilizada – Parte significativa da população urbana
como móveis e documentos que com- ainda mantém vínculos muito fortes
põe o acervo da fazenda, evidenciam as com o campo. Dos quintais, retira-se
práticas adquiridas pela sociedade pecu- parte de sua subsistência: a laranja, a
arista. Quando falamos em sociedade manga, a mandioca ou criação de ani-
pecuarista nos referimos aos senhores, mais, como porcos e galinha, além de
escravos, agregados, vaqueiros; de vida cultivarem um canteiro com verduras.

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Isso termina denunciando a relação ru- consolidando, então, uma série de


ral/urbano. Trazem também da zona exemplares já definidos como brasilei-
rural matéria-prima para a produção de ros, próprios da firmação cultural da
artigos como jacás e vassouras, formas colônia miscigenada e afastada onde o
de sobrevivência vinculadas à relação índio e o negro logo puderam deixar a
que o homem da cidade tem com o sua marca no viver cotidiano. (LEMOS,
campo que se faz presente na comuni- 2004, p. 16)
dade altoense.
A ligação entre cidade e campo é
natural dos municípios piauienses, à A casa de fazenda reflete a formação
vista disso, conservamos um sistema de social piauiense que se deu através das
ideias, conhecimentos, técnicas e artefa- grandes possessões de terras, doadas
tos, de padrões de comportamento e pela coroa portuguesa, que concentrou
atitudes que caracterizou uma determi- nas mãos de alguns núcleos familiares o
nada sociedade. poder sobre as propriedades territoriais
Para construir este trabalho, en- do estado, pois “foi a partir da sesmaria
tramos e saímos da casa de morar do que se definiu a economia e o quadro
senhor à procura de constatarmos o que sócio-econômico da colônia,” (BRAN-
os documentos nos revelam de um pas- DÃO, 1995, p. 48) formando assim,
sado com ligação forte com o presente. uma elite pecuarista que tomaria de
O mundo rural em que se originou a conta da administração política econô-
sociedade piauiense foi palco de conhe- mica do território. Além disso, as pro-
cimentos e técnicas de sobrevivência.
Esses espaços castigados pelo clima
priedades rurais absorveram boa parte
da mão-de-obra disponível na região, 15
quente e pelas constantes secas acaba- dando origem a outro ambiente social
ram dificultando a sobrevivência nesse mais simples, relacionado com as práti-
território “o clima envolve e condiciona cas habituais dos espaços que condicio-
o comportamento das gentes” (LEMOS, navam a sobrevivência de vaqueiros,
2004, p. 9). As casas de fazendas ergui- rendeiros, agregados e trabalhadores
das com matéria prima da região como escravizados “assim esta sociedade era
carnaúba, para as coberturas das casas, composta por uma classe rica – a dos
o barro e a pedras para as paredes, refle- fazendeiros latifundiários, e uma classe
tem a adaptação ao clima e vegetação pobre – a dos vaqueiros e demais agre-
nativa, os modos de fazer e os modelos gados e sitiantes, correspondendo esta à
arquitetônicos das construções advêm grande maioria da população” (LIMA,
de uma composição que mescla técnicas 2006, p. 92). Apesar da classificação por
de adaptações das construções ao espa- camada social, para conhecer um pouco
ço e o modismo da época, símbolo do mais da sociedade pecuarista temos que
poder aquisitivo dos senhores que des- manter a relação entre ambas as classes.
frutam dos lucros produzidos em suas É no contexto sertanejo de vivências
propriedades. múltiplas que se constituíram os modos
Aos poucos, a arquitetura portuguesa de saber e viver, com danças e festas
foi se adaptando às condições locais e como reisados, dança de São Gonçalo,
sabiamente foi determinando partidos e a culinária com ingrediente cultivado
compatíveis aos materiais disponíveis e, pelo próprio sertanejo como os plantios
principalmente, ao clima tão diversifi- de mandioca para a produção da fari-
cado em nosso país de grandeza conti- nha, goma e puba, matéria prima dos
nental. No campo da arquitetura foi se bolos e beijus; do milho, o cuscuz, a

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canjica, a pamonha. Conhecimentos e da fazenda “se tornava o centro das


técnicas que caracterizam a identidade reuniões religiosas e sociais, durante
do piauiense, e revelam um ambiente eventos como batizados, casamentos,
em que a criatividade humana é a es- festas juninas e dos padroeiros” (FÉ
sência da formação dos valores. Conse- LIMA, 2006, p. 90), promovendo a so-
quentemente, as práticas diárias, de ciabilidade do calendário anual do ser-
produção dos alimentos eram transfor- tão nordestino.
madas em momentos de sociabilidade Uma vez que o gado piauiense fosse
do povo piauiense vejamos: criado solto, se alimentando da pasta-
gem natural da região, a pecuária pi-
A farinhada era outra forma de encontro auiense precisou de homens para admi-
social; realizava-se após a colheita da mandi- nistrá-la. O vaqueiro, hoje símbolo da
oca, entre maio e julho. A vizinhança toda formação social do Estado, montado em
era convidada para o processo de beneficia- seu cavalo, vestido em um gibão feito de
mento do produto, quando a mandioca era couro, para se proteger de galhos e espi-
transformada em farinha, tapioca, entre ou- nhos da mata onde corria atrás do gado
tros produtos. O dono do mandiocal constru- que se separavam da boiada, ou mesmo
ía ranchos de palha para abrigar os convida- na captura dos que iam ser abatidos.
dos. Homens, mulheres, velhos e moços, li- Além disso, a figura do vaqueiro na so-
vres e escravos, até mesmo as crianças, em ciedade oitocentista era, muitas vezes,
volta do amontoado de mandioca, descasca- de intermediar a administração da pro-
vam e lavavam as raízes, que depois eram priedade, ou seja, ficava sobre sua res-

16 raladas [...] (COSTA FILHO, 2006, p. 58). ponsabilidade a direção do domínio do


senhor. Esse encargo lhe rendia uma
parceria com o fazendeiro que, segundo
Por mais que utilizamos a casa de fa- (BRANDÃO, 1995, p. 46)
zenda e seus traços arquitetônicos (pa-
redes de pedra e cal, cobertas com tron- Competia ao proprietário da terra fornecer o
cos de carnaúbas, grandes cômodos re- gado, as instalações físicas da fazenda, os
vertidos de janelas e portas para que o instrumentos agrícolas e pastoris e até escra-
ar circule melhor), como base para uma vos. O vaqueiro participava com seu traba-
discussão sobre a herança patrimonial lho, cujo pagamento processava- se anual-
que a sociedade pecuarista nos legou, mente após os cinco primeiros anos de admi-
não estamos aqui nos referindo somente nistração, a razão da quarta parte dos bezer-
ao ambiente vivenciado pela elite pecu- ros nascidos.
arista.
A fazenda se constitui como um Além do trabalho livre, nas fazendas
complexo em que as práticas da socie- piauienses, também era utilizada a de
dade oitocentista coexistiam, ou seja, “a mão-de obra escrava, geralmente para
vida do sertão girava em torno das fa- fazer os serviços mais pesados, “nos
zendas, estas entendidas como um núcleos de produção pecuarista, compe-
complexo produtivo formado por um tia ao escravo a construção e manuten-
conjunto: casa de fazenda, casa do va- ção da infraestrutura como casas, agua-
queiro, o curral, o poço, a casa de avia- das, currais e roças” (BRANDÃO,
mento, o cemitério”. (LIMA, 2012, p. 1995, p. 47). Apesar da vida difícil e de
34). Em períodos festivos ou de safra, a ter participação na sociedade como pos-
comunidade se reunia em torno das se de outros homens, os escravos tive-
propriedades. Nesse período, a capela

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ram efetiva contribuição na construção mas fazendas recebiam as construções


do corpo social piauiense. de grandes casas para abrigar o proprie-
tário e sua família. Assim:
Preservação: o acervo docu-
mental como patrimônio cultural No século XIX, os proprietários passaram a
residir nas fazendas de sua propriedade ou
em cidades próximas a elas. Sua presença
A história é um discurso construído a
nas fazendas impingiu a necessidade de ade-
partir de vestígios. O objeto do discurso
quação da estrutura existente ou na constru-
ajuda a construir uma narrativa históri-
ção de novas edificações para abrigar o fa-
ca e a memória perpassada em socieda-
zendeiro e sua família. Isto provocou a mu-
des anteriores a nossa. Assim, preservar
dança na arquitetura rural do Piauí: no lu-
o documento é conservar nossa própria
gar das toscas casas de taipa e palha, come-
história.
çam a ser erguidas casas com maior apuro na
Fig. 01: Descrição do ano de fundação em cerâmica
técnica e na estética. (IPHAN apud SILVA
FILHO, 2007, p 42).

A fazenda fora erguida em uma regi-


ão pertencente a Vila de Campo Maior,
a algumas léguas das margens do rio
Poti, lugar que anos mais tarde recebe-
ria a capital da província e se tornaria o
centro administrativo do Estado.
O uso da mão-de-obra escrava no 17
Brasil, perdurou por mais de três sécu-
los, e não se limitou aos trabalhos nas
áreas de cultivo da cana de açúcar ou
nas plantações de café, o cativeiro foi
empregado também nas regiões interio-
ranas do Brasil, onde houvesse trabalho,
não se dispensava os serviços de um
escravo. Portanto, o Piauí não foi exce-
Fonte: Acervo pessoal Carlos Dias
ção à regra de se manter a produção
econômica movida pela força dos bra-
Em português arcaico e sobre ce- ços escravos. Nas fazendas piauienses,
râmica de modelo Francês, a inscrição os trabalhos executados pelos cativos ia
aponta para o ano de inauguração e desde o manejo das boiadas passando
localização da fazenda Buritizinho. Do- pelos serviços domésticos até a manu-
cumento encontrado e restaurado pelos tenção da estrutura da propriedade.
atuais proprietários da fazenda “a cerâ- Havia necessidade de montagem e
mica foi encontrada no fundo de um conservação da infra-estrutura das fa-
poço que ali existia e mandado para a zendas, o que ficava a cargo dos escra-
restauração em São Luís, no Maranhão, vos. A agricultura de subsistência, a
por Dona Lina, num trabalho de meti- construção de aguadas, cercas, currais e
culosa atenção e pesquisa dos artistas a fabricação de utensílios mais grossei-
daquela cidade” (DIAS n/d). A inscri- ros, além dos serviços domésticos,
ção indica 1848 como ano de fundação eram, sem dúvida, imprescindíveis, bá-
da propriedade, período em que algu- sicos na vida das fazendas, mas eram

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também trabalho pesado, pouco gratifi- Fig. 02: Piso da casa de fazenda Buritizinho
cante para o homem livre. (BRAN-
DÃO, 1999, p. 28)
Mesmo nos locais mais distantes dos
grandes centros produtores da monocul-
tura, coexistiam, homens escravizados,
livres e libertos, os primeiros estavam
sempre buscando conseguir sua eman-
cipação do sistema que lhe mantinha
sobre o regime de servidão. A principal
forma de resistir à submissão do cativei-
ro era fugir e buscar locais distantes dos
olhos dos senhores e seus comandados,
geralmente os quilombos1 eram os des- Fonte: Acervo pessoal Carlos Dias
tinos de muitos cativos que conseguiam
escapar das propriedades que lhes man- Fig. 03: Estrutura do telhado da Buritizinho
tinham submisso.
O sistema escravista só teve fim na
segunda metade do século XIX, por
decreto expedido pela princesa Isabel,
que dava como extinta a escravidão no
Brasil. Uma cópia desse documento se
18 encontra na sede da fazenda Buritizinho
(figura 02) enviada pelo Império brasi-
leiro para as propriedades que dispu-
nham de trabalho escravo, e declara a
extinção do cativeiro no Brasil, a exis-
tência dessa carta na fazenda aponta Fonte: Acervo pessoal Carlos Dias
para utilização de mão–de–obra cativa
na propriedade. A estrutura física da casa de fazenda
tem muitas informações da sociedade
que lhe originou, assim como as inter-
venções que vem recebendo para se
adaptar ao tempo presente. Piso de la-
drilho, teto de carnaúba com adaptação
de ripa de madeira cerrada fios com
instalação de energia elétrica, preservam
alguns traços do passado, mas readapta
a construção aos arranjos e avanços téc-
nicos contemporâneos.

1
Locais em que se concentravam os escravos que
A casa e seus cômodos: estru-
fugiam das fazendas, minas e casas de família, tura que conta um pouco
onde eram explorados e sofriam maus tratos. Os de nossa história
escravos, para não serem encontrados, escondiam-
se nas matas, nos lugares mais inacessíveis, como Para o piauiense a casa é um lugar
o alto das montanhas. em que estão presentes, são respeitadas,
ensinadas e transmitidas às novas gera-

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ções e, mesmos aos frequentadores (as- amenizar o calor, decorrente da região,


síduos ou esporádicos): hierarquias, como dava ao proprietário uma visão,
proteções e segurança (físicas, emocio- de dentro da casa, privilegiada de sua
nais, morais, sociais, religiosas, cultu- propriedade. Era também palco de en-
rais, financeiras, psicológicas, etc.), contros entres os feches políticos da re-
identidade, autonomia, privacidade, gião, ou seja, muitas decisões políticas
divisão de responsabilidades/ atribui- da região foram realizadas nas sedes das
ções/ tarefas por gênero e idade. (SIL- fazendas, geralmente locais de encon-
VA, 2014, p. 195). tros das elites que mantinham o poder
A casa tem suas atribuições grupais, político e econômico da localidade.
pois, agrega em seus espaços os lugares
onde atuam os agentes sociais. A rela- Fig. 05: Sala, com mesa de madeira
ção que a casa tem com a sociedade
pode ser entendida pelos espaços que
cada um ocupa nesse ambiente.

Fig. 04: Sede da Fazenda Buritizinho (s/d)

Fonte: Acervo pessoal Carlos Dias

A sala, onde se encontra a mesa para


refeição, é lugar de reunião familiar, 19
Fonte: Acervo pessoal Carlos Dias
pois, a hora das refeições é o momento
em que a família se relaciona e conversa
Diferente dos modelos de residências sobre o dia a dia na propriedade ou
do nosso vizinho, Maranhão que tinha mesmo sobre assuntos que envolvem a
como modelo residencial grandes so- família com a sociedade circunvizinha.
brados, os domicílios piauienses têm na Além da família do senhor, os empre-
verticalidade de suas casas as caracterís- gados também estão sempre por perto,
tica típicas da região sertaneja. A casa repondo a alimentação e acatando os
de fazenda tem em sua arquitetura tra- mandos de seus patrões ou senhores.
ços que simbolizam uma sociedade
Fig. 06: Cozinha da casa de fazenda Buritizinho
marcada pelo clima e sua forma de or-
ganização.
É comum encontrarmos nas estrutu-
ras das casas um alpendre, que serviam
como local de descanso e sociabilidade
dos proprietários “cômodos como quar-
tos alcovas e varandas possuíam arma-
dores de redes em madeiras ou ferro, e
tal artefato era perfeito para o descanso
nos dias de grande calor. (AFONSO,
Fonte: Acervo pessoal Carlos Dias
s/d, não paginado). Localizada num
ponto alto do terreno, revertida de por-
tas e janelas que serviam tanto para A área de serviço e a cozinha eram
espaços das mulheres e das crianças. Na

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cozinha havia o fogão feito de barro e mitiram seus hábitos, costumes e valo-
movido a lenha, para o preparo das re- res.
feições um forno também movido a le-
nha para os assados e bolos, mesa e ca- Referências
deiras que serviam para os empregados AFONSO, A. Arquitetura e cultura.
fazerem suas refeições. Era momento de s/d.(no prelo).
aprendizado, mas também de sociabili- BLOCH, Marc Leopold Benjamin.
dade, já que as mocinhas se faziam pre- Apologia da História ou oficio do his-
sente para ajudar a providenciar os ali-
toriador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
mentos e assim aprender as receitas das
2002.
“mais venhas” e os modos certos de
BRANDÃO, T. M. P. A elite colonial
prepará-las. Era dessa relação entre as
piauiense: Família e Poder. Teresina:
gerações que provem o que determina-
Fundação Cultural Monsenhor Chaves,
mos como patrimônio imaterial, ou se-
1995.
ja, o conhecimento que passa de gera-
ção a geração. _________________. O escravo na
formação social do Piauí: perspectiva
histórica do século XVIII; Apresentação
Considerações Finais de Armando Souto Maior. Teresina:
Identidade, talvez seja o grande elo Editora da Universidade Federal do
que nos leva ao conhecimento da reali- Piauí, 1999.
dade presente. Mais o que existe de tão COSTA FILHO, A. Escola do sertão:
comum entre os hábitos sociais, que ensino e sociedade no Piauí, 1850-
20 determina nossos modos de ser e pen-
sar? No que uma sociedade que se cons-
1889. Teresina: Fundação Cultural
Monsenhor Chaves. 2006.
tituiu nos primórdios da colonização do DIAS, Carlos. Fazenda Buritizinho.
espaço sertanejo, que se adaptou ao Disponível em https://goo.gl/1bah81.
meio, vivendo de forma simples sobre Acesso 26 jan. 2011.
os limites que a região lhes proporcio-
FERREIRA, Francisco. Cotidiano e
nava influencia em outra que não se
memória. Altos: edição do autor, 1995.
limita aos espaços, pois, tem como ca-
Instituto do Patrimônio Histórico e Ar-
racterística o acesso rápido a uma con-
juntura social globalizada? tístico Nacional (IPHAN). O registro
A discussão que propomos neste do patrimônio imaterial: dossiê final
trabalho é justamente a ambientação do das atividades da Comissão e do Gru-
que determinamos como patrimônio po de Trabalho Patrimônio Imaterial;
cultural aos espaços do ontem e do hoje, organização, Márcia G. de Sant`Anna.
ou seja, do passado que os formou ao 5 ed. Brasília, DF: IPHAN, 2012.
presente que herdou hábitos e costumes LEMOS, C. A. C. O que é patrimônio
e a transmissão dos mesmos de uma histórico. São Paulo: Brasiliense, 2004.
geração a outra. LIMA, I. F. V de. Uma foto(grafia) da
Assim, Ao longo do tempo, em farinhada em Altos - Piauí. 2012. 96 f.
decorrência do espaço que ocupa e da Trabalho de Conclusão de Curso (Li-
sociedade que atua, o homem readapta cenciatura Plena em História) – Univer-
suas acomodações, o que de fato pode sidade Estadual do Piauí, Campo Mai-
destruir o patrimônio ou somente mu- or, 2012.
dar o cenário preservando a história e a LIMA, Iracilde Maria de Moura Fé. A
memória das sociedades que nos trans- Família Moura Fé no Piauí In: ARAÚ-
JO, Maria Mafalda Baldoino de, João

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dagens históricas sobre o urbano. Tere-
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