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Aulas II e III: Ferdinand Tönnies Página

(1855-1936)

I – A era moderna: o conflito e a luta, o medo e a


necessidade dos vínculos sociais, a importância da ordem 2
social, a vontade e o intelecto, a revolução no
pensamento e as revoluções burguesas

II – A comunidade e a sociedade

1) A comunidade 5

2) O cosmo e a revolução copernicana 6

3) A sociedade 7

4) A metrópole 10

III – Sobre o sentido da tipologia e a análise sociológica


de Ferdinand Tönnies das formas sociais de vontade e 11
intelecto (valores)

IV – A compreensão sociológica dos laços sociais que


mantém unido as formas de sociabilidade humana 18

V – A comunidade e a sociedade: esquema comparativo 22

VI – Parágrafos e frases do libro Comunidade e Sociedade

1) “Relações entre as vontades humanas: comunidade e 24


sociedade na linguagem”

2) “As formas da vontade humana” 25

3) “Resultados e perspectivas” 26

VII – A questão social 29

VIII – A comunidade
- Marco Tarchi, Forma comunitária no Terceiro Milênio 33

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I – A era moderna: o novo; o medo, a necessidade dos vínculos e da
ordem social; a vontade e o intelecto, a revolução no pensamento,
as revoluções burguesas

- O novo: a necessidade do pensamento compreender o que é.

“O sol não apenas, como Heráclito diz, é novo cada dia, mas sempre novo,
continuamente.”
Aristóteles, Ética a Nicômaco

“Hegel insiste particularmente sobre o fato de que seu único


“pressuposto” é a “necessidade da filosofia” que surge “quando a potência
da unificação desaparece da vida dos homens e as oposições perderam a
sua relação viva, a sua ação recíproca e mantém a independência” (Hegel,
Primeiros escritos críticos). A tarefa da filosofia é portanto aquela de
corroer e dissolver a rigidez na qual a reflexão foi fixada e o intelecto
sufocou a vida, para integrá-la em uma totalidade racional.”
Valerio Verra, Introdução a Hegel

- o conflito e a luta, o medo e a necessidade dos vínculos sociais, a


importância da ordem social

“Por meio das cidades dispersas espalhava-se um rumor, que o último


dia de nossos povos estava chegando com uma frota, e com tanto medo
minha mãe dava à luz naquele tempo, que ela concebeu gêmeos: eu e o
Medo.”
Thomas Hobbes, Vita Carmine Expressa

“A existência contínua do medo e o contínuo perigo da morte violenta


tornam a vida do homem solitária, pobre, odiosa, brutal e breve”.

“O interesse e o medo são os princípios da sociedade.”


Thomas Hobbes, Leviatã

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- a vontade e o intelecto

“A vontade e o intelecto são uma só e mesma coisa.”


Baruch Spinoza, Ética

- a revolução no pensamento e as revoluções burguesas

“Ousemos tudo ver e tudo ouvir, para julgar corretamente as coisas.”


“Que a Europa saiba que já não quereis um desafortunado nem um
opressor em território francês; que este exemplo frutifique sobre a terra;
que nela propague o amor das virtudes e a felicidade. A felicidade é uma
ideia nova na Europa!”

Saint-Just, Discursos e relatórios (03/03/1794)

“Iluminismo é a saída do homem de sua menoridade da qual ele próprio


é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu
entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio
culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de
entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si
mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso
de teu próprio entendimento, tal é a palavra de ordem do iluminismo.”

Immanuel Kant, Respondendo à pergunta: o que o Iluminismo?

“O homem é vontade; e somente é livre desde que queira o que a sua


vontade é. No princípio da vontade livre está a essência de que a vontade
seja livre (...) O espírito já não sente temor perante está exterioridade,
nem duvida da possibilidade de poder reconciliar-se com ela; reconhece
que a natureza, o mundo, tem também em si uma razão (...) Despertou,
portanto, um interesse universal para estudar e conhecer o mundo
presente. O universal na natureza são as espécies, os gêneros, a força, a

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gravidade, reduzidas as suas manifestações, etc. A experiência se
converteu na ciência do mundo, pois, por um lado, a experiência é a
percepção, mas é também a descoberta da lei, do interior, da força, na
medida em que reduz toda existência ao simples.”

“Com isto o espírito alcançou a fase na qual o homem encontra o


verdadeiro conteúdo em si mesmo. É o período que se há designado com
o nome de Iluminismo. O princípio do Iluminismo é a soberania da razão,
a exclusão de toda autoridade.”

“A revolução francesa tem no pensamento seu começo e origem. O


pensamento, que considera como supremo as determinações universais
e encontra que o existe está em contradição com elas, levantou-se contra
o estado existente. A determinação suprema que o pensamento pode
encontrar é a da liberdade da vontade (...) O pensamento compreendeu,
portanto, que não há nada mais elevado que isto.”

“O novo espírito tornou-se ativo. A opressão impulsionou ao exame da


realidade. Observou-se que as somas extraídas pelo suor do povo não
eram empregadas para o bem do Estado, senão que eram desperdiçadas
de modo mais insensato. O sistema todo do Estado apareceu como uma
injustiça (...) Mas o pensamento, o conceito do direito, impôs-se de uma
só vez, e o velho tablado da injustiça não pode oferecer resistência. No
pensamento do direito foi erigido uma constituição, e sobre esta base
houve de tudo ser fundado. Desde que o sol está no firmamento e os
planetas giram ao seu redor, não se havia visto que o homem se apoiasse
sobre sua cabeça, isto é, sobre o pensamento e edificasse a realidade
conforme ao pensamento. Anaxágoras havia dito que o logos rege o
mundo; agora, pela primeira vez o homem conseguiu reconhecer que o
pensamento deve reger a realidade espiritual. Todos os seres pensantes
celebraram esta época. Uma emoção sublime reinava naquele tempo.”

Georg W. Fr. Hegel, Lições sobre a filosofia da história universal

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II – A comunidade e a sociedade

1) A comunidade

“Bendito o homem que confia no Senhor e o Senhor é a sua fé. Ele é como
a árvore plantada à beira da água, que estende as suas raízes em direção
ao rio. Não teme quando vem o calor, e suas folhas permanecem verdes;
no ano da sequidão não se entristece, nem para de dar fruto.”

Jeremias, Bíblia, 17:7-8

“A alma se situa dentro do mundo como qualquer outro elemento desta


harmonia; a fronteira que lhe dá seus contornos não se distingue
essencialmente do contorno mesmo das coisas; ela traça linhas nítidas e
claras, mas separadas por um modo relativo, de acordo com um sistema
homogêneo e equilibrado. Pois o homem não é um ponto solitário,
portador único da substancialidade, em meio de entidades reflexivas.
Suas relações com as demais figurações e as estruturas que daí resultam
são, por assim dizer, substância como ele próprio, ou mais
verdadeiramente plenas de substância, porque mais universais, “mais
filosóficas”, mais próximas e mais familiares à pátria arquetípica: o amor,
a família, a cidade.”
Georg Lukács, A teoria do romance

“Embora estejamos em pó convertidos, em ti, Senhor, fiamos nossa


esperança, que tornaremos a viver vestidos, com a carne e a pele que nos
cobria.”

Miguel de Unamuno, Um cemitério em Castilha

“Eu sou vosso Senhor e meu Senhor é o Czar. O Czar tem o direito de me
dar ordens e devo obedecer-lhe, mas não de dá-las a vós. Em minha
propriedade, sou eu o Czar, sou vosso deus na terra, e terei que ser

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responsável por vós perante Deus no Céu... Primeiramente, um cavalo
deve ser escovado dez vezes com a almofada de ferro, e somente então
podeis limpá-lo com a escova macia. Terei que escovar-vos com violência,
e quem sabe se chegarei jamais à escova macia. Deus limpa o ar com
trovões e relâmpagos, e, em minha aldeia, eu limparei com trovões e fogo,
sempre que assim julgue necessário.”

De um proprietário russo a seus servos.


Apud. Eric J. Hobsbawm, A era das
revoluções.

2) O cosmo e a revolução copernicana

“A dissolução do cosmo significa a destruição de uma ideia: do mundo de


estrutura finita, hierarquicamente ordenado, mundo qualitativamente
diferenciado desde o ponto de vista ontológico; esta ideia foi substituída
pelo mundo aberto, indefinido e, inclusive, infinito, que as mesmas leis
do universo unificam e governam; um mundo no qual todas as coisas
pertencem o mesmo nível do ser, ao contrário da concepção tradicional
que distinguia e opunha os dois mundos, o do Céu e o da Terra.”

“Penso que dissolução do cosmo, repito, foi a revolução mais profunda


realizada ou sofrida pelo espírito humano desde a invenção do kosmos
pelos gregos. É uma revolução tão profunda, de consequências tão
distantes, que, durante séculos, os homens – com raras exceções como
Pascal – não compreenderam o seu alcance e sentido; ainda hoje é
frequentemente subestimada e mal compreendida.”

Alexander Koyré, Estudos da história do pensamento científico

“A palavra “Ocidente” oculta um singular destino. Indica a terra do ocaso,


da terra do crepúsculo. Mas em que sentido a nossa civilização é uma
chama destinada a extinguir-se, como o sol que se põe no início da noite?
Em que sentido e porquê o nosso é um mundo senil, envelhecido,

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exausto? Perante à angústia da dor e do terrível nascer e morrer das
coisas, o Ocidente inventou múltiplos remédios. Primeiramente, a fé em
um Deus eterno, que sustenta o mundo e recompensa o sofrimento. E,
posteriormente, um aparato científico, que usa para vantagem própria a
transformação das coisas através da manipulação. Fé e ciência são os
dois territórios nos quais o Ocidente desenvolveu a sua força.
Atualmente, pedimos à ciência e à técnica o que outrora se pedia a um
deus: saúde, força, felicidade, salvação. A técnica é o último deus, o
último demiurgo, a última tentativa de dominar o mundo e domesticar o
horror da morte. A história do Ocidente é a história que repete um
idêntico e antigo gesto, a vontade ou a loucura com a qual Adão desejou
ser igual a Deus.”
Valerio Verra, O ocidente está em declínio?

3) A sociedade

“Mortos estão todos os deuses. Agora queremos que o super-homem


viva!”

Friedrich Nietzsche, Assim falou Zarathustra

(A ciência) “Prolongou a vida, mitigou a dor, extinguiu a fertilidade do


solo, deu novas possibilidades ao navegador, forneceu novas armas ao
guerreiro, atravessou grandes rios e estuários com pontes que foram
desconhecidas para nossos pais (...) iluminou a noite com o esplendor do
dia, ampliou o alcance da visão humana, multiplicou o poder dos
músculos humanos, acelerou o movimento, reduziu à distâncias,
facilitou as comunicações, a condução dos negócios e as expedições
comerciais, permitiu ao homem descer as profundezas do mar, a subir
para o ar, para penetrar com segurança nos recantos nocivos da terra,
para percorrer a terra em carros que se movem sem cavalos, a atravessar
o oceano em navios que funcionam 10 nós por hora contra o vento. Estes

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são apenas uma parte dos seus frutos, e de sus primeiros frutos, pois é
uma filosofia que nunca repousa, que nunca se detém, que nunca está
perfeita. A sua lei é o progresso.”

Thomas Babington Macaulay, Essay on Bacon (1837)

“Se Deus existe, então tudo existe segundo a sua vontade, e fora da
vontade dele nada posso. Se Deus não existe, então toda a vontade é
minha e sou obrigado a proclamar o livre arbítrio.”

Fidor Dostoieski, Os demônios

“O círculo metafísico em que vivem metafisicamente os gregos é menor


que o nosso; é por isso que nunca saberíamos encontrar o nosso lugar;
ou melhor, este círculo no qual a completude constitui a essência
transcendental de suas vidas, rompeu-se para nós; dentro de um mundo
fechado, não podemos respirar. Descobrimos que o espírito é criador; e é
por isso que, para nós, os arquétipos perderam definitivamente as suas
evidências objetivas, e nosso pensamento segue doravante o caminho
infinito da aproximação jamais inteiramente concluída. Descobrimos a
criação das formas e, desde então, o último acabamento sempre falta
para aquilo que abandonam as nossas mãos cansadas e sem ânimo.
Descobrimos em nós a única substância verdadeira e, desde então,
tivemos que admitir que entre o saber e o fazer, a alma e as estruturas,
o eu e o mundo, crescem intransponíveis abismos e que além destes
abismos, toda substancialidade flutua dentro da dispersão da
reflexividade. Por consequência, a nossa essência tornou-se para nós um
postulado e entre nós mesmos se abiu um abismo mais profundo e
ameaçador. Nosso mundo se tornou imensamente grande e, em cada um
dos seus recantos, mais rico em dons e em perigos que aquele dos gregos;
mas foi esta mesma riqueza que fez desaparecer o sentido positivo sobre
o qual repousava a vida: a totalidade.”
Georg Lukács, A teoria do romance

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“Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou
ameaçador, à medida que crescíamos: "Ele é muito jovem, em breve
poderá compreender". Ou: "Um dia ainda compreenderá". Sabia-se
exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos
jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de
forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como
narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e
netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que
saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos
dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um
anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio
oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua
experiência?”

Walter Benjamin, Experiência e pobreza

“A Gesellschaft (Sociedade) adquire importância tipológica quando a


consideramos como um tipo especial de relação humana, caracterizada
por um alto grau de individualismo, impessoalidade, contratualismo,
procedente da volição ou do puro interesse, ao invés dos complexos
estados afetivos, hábitos e tradições subjacentes na Gemeinschaft
(Comunidade). Tönnies nos diz que a sociedade europeia evoluiu desde
as uniões de Gemeinschaft para associações de Gemeinschaft, e
posteriormente para associações de Gesellschaft e, finalmente, a uniões
de Gesellschaft (...) As primeiras três fases do desenvolvimento refletem
uma individualidade crescente das relações humanas, onde predominam
cada vez mais a impessoalidade, a concorrência e o egoísmo.”

“A Gesellschaft, em suas duas formas, associação e união, reflete


reciprocamente a modernização da sociedade europeia: sempre é
importante ter em mente que a Gesellschaft designa o processo tanto
como a substância. Para Tönnies, ela sintetiza a história da Europa
moderna. Na Gesellschaft pura, simbolizada segundo ele pela empresa

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econômica moderna e a trama de relações legais e morais na qual se
desenvolve, a associação não segue o modelo do parentesco, nem da
amizade (...) A essência a Gesellschaft é a racionalidade e o cálculo.”

Robert Nisbet, A formação do pensamento sociológico

4) A metrópole

“O Sr. Benthan fabrica utensílios de madeira em um torno por diversão,


e fantasia que pode transformar os homens da mesma maneira. Mas não
tem grandes dotes para a poesia, e mal sabe extrair a moral de uma obra
de Shakespeare. Sua casa é aquecida e iluminada a vapor. Ele é um
destes que preferem as coisas artificiais em detrimento das naturais, e
pensa que a mente humana é onipotente. Ele sente grande desprezo pelas
possibilidades da vida ao ar livre, pelos verdes campos e pelas árvores, e
sempre reduz tudo aos termos da Utilidade.”

William Hazlitt, O espírito do século (1825)

“O jovem anda depressa e sozinho através da multidão que se dilui nas


ruas noturnas; tem os pés cansados de horas a andar; os olhos sedentos
da curva quente dos rostos, do pestanejar de uma resposta, do pôr de
uma cabeça, do erguer de um ombro, do modo como as mãos soltam e
agarram; formiga-lhe o sangue de anseios; o espírito é uma colmeia de
esperanças que zumbem e picam; dói nos músculos a fome pelo saber
das profissões, pelo trabalhar do cantoneiro com a pá e a picareta, pela
destreza do pescador com o anzol quando puxa na amurada a rede
escorregadia ao balanço da traineira, pelo rolar do braço do operário
quando suspende da ponte o rebite incandescente, pela mão lenta e
experiente do maquinista na válvula de pressão, pelo uso que faz o
camponês de todo o corpo quando, gritando aos muares, saca a charrua
do rego. O jovem anda sozinho à procura através da multidão com os
olhos sedentos, sedentos ouvidos prontos para escutar, sozinho, sem

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ninguém. As ruas estão vazias. As pessoas comprimiram-se no metro,
enfiaram-se em eléctricos e autocarros; correram em estações para
apanhar comboios suburbanos; sumiram-se gota a gota em quartos e
andares alugados, subiram de elevador a prédios de apartamentos.
O jovem anda sozinho, depressa mas não o bastante, longe mas não o
bastante (perdem-se os rostos de vista, dispersam-se as conversas em
esfarrapados resíduos, esvai-se nos becos o eco dos passos); tem de
apanhar o último metro, o eléctrico, o autocarro, galgar a prancha de
embarque de todos os barcos, dar o nome em todos os hotéis, trabalhar
nas cidades, responder aos anúncios, aprender os ofícios, aceitar os
empregos, viver em todas as casas de hóspedes, dormir em todas as
camas. Uma cama não basta, um emprego não basta, uma vida não
basta. À noite, com a cabeça num remoinho de anseios, anda sozinho
sem ninguém. Sem emprego, sem mulher, sem casa, sem cidade.

John Dos Passos, Paralelo 42

II – Sobre o sentido da tipologia e a análise sociológica comparativa


de Ferdinand Tönnies das formas sociais de vontade e intelecto
(valores)

No Dicionário de Filosofia de José Ferrater Mora, lemos que na


palavra tipologia devemos inicialmente prestar atenção no significado
etimológico: “tipo, typus, que em grego, significa golpe, e que todo golpe
deixa em algo uma marca, uma impressão, um selo, uma figura. Rudolf
Eucken indica que os termos tipo e típico procedem da medicina, no qual
o médico Coelius (século II dc) referindo-se a uma febre intermitente
designou-a como um tipo de enfermidade. Logo, no grego e no latim, tipo
significa um sinal proveniente de uma ação (força). As ciências naturais
usam a palavra tipo para dotar de sentido os elementos e os fenômenos
existentes na realidade física. O pensamento tipológico observa

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atentamente as coisas e os seres através da noções de classe, modelo e
essência, para descrever, classificar e explicar as variedades existentes de
coisas e seres na natureza”.

A palavra tipo também fui usada para designar um modelo que


permite dotar de sentido um determinado número de seres humanos que
se reconhecem como pertencentes ao mesmo grupo: nos agrupamentos
sociais (na família, na reunião das famílias no clã, na tribo, na casta, na
comunidade, na classe social, na sociedade) há um determinado tipo de
manifestação da vontade, que une e enlaça os membros nas relações
sociais fundamentais e necessária para produção e reprodução da vida
material, e do intelecto, os valores culturais que dotam de sentido
emocional e passional, lógico e racional toda forma de vida social.

Para Ferdinand Tönnies, em cada tipo de formação social há uma


específica combinação de vontade e intelecto (valores culturais). A
análise sociológica comparativa dos tipos de vontade e intelecto
(valores) presentes nas formações social da comunidade e da sociedade
visa estabelecer:

1) o que há de singularidade, especificidade, em cada um dos tipos


dicotômicos: qual a origem histórica, qual o sentido e o significado
subjetivo e objetivo das vontades e do intelecto (dos valores) existentes
nas formas de vida, quais as formas de condicionamento social.

2) qual é a correspondência lógica, a causalidade histórica e sociológica,


entre as respectivas formas e os conteúdos, as aparências e as essências
presentes em cada um dos tipos de formação social.

3) a dotação de sentido e significado da vontade e do intelecto (dos valores)


nas duas formas de vida social: as identidades (familiares, da casta ou
de grupo e classe), as formas de união e de associação, a ordem social e
o senso da história, os conflitos, as tensões e as contradições sociais.

Ferdinand Tönnies em Comunidade e Sociedade (1887) buscou


construir 1) uma análise tipológica e comparativa das formas de união e
de associação existentes no curso do processo civilizatório e 2) um

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diagnóstico da modernidade e da sociedade capitalista: analisar
cientificamente as dinâmicas e os processos sociais ambivalentes que
geraram a sociedade nacional e industrial (a posse privada e o contrato,
a divisão do trabalho e as classes sociais, o processo produtivo e o poder,
a atomização social e o individualismo, a riqueza e a pobreza, o
nacionalismo, a nacionalização das massas, a comunidade nacional).

Comunidade e sociedade são conceitos sociológicos puros (não são


encontrados como tal na realidade empírica, são construções necessárias
do pensamento que tornam possível pensar, refletir um determinado ser,
objeto, problema) que caracterizam específicos tipos de formas de vida e
existência em particulares épocas históricas. Para Tönnies, todas as
formas de vida e formações sociais “são artefatos da substância psíquica”
(Thomas Hobbes: vida e pensamento, 1896), que o ser humano é capaz
de criar na relação complexa entre a natureza externa e a sua natureza
interna (pulsões, paixões, necessidades, vontades e intelecto) e realidade
social. A “substância psíquica” é uma potência que possibilita ao ser
humano tornar-se artífice (homo faber), agir intencionalmente na criação
das formas e dos conteúdos das diversas relações sociais:

- o agir prazeroso e afetivo: a primeira forma de vontade humana


que deriva da “vontade orgânica”, de origem biológica, na qual a
“vontade vegetativa” e “animal” do corpo humano visa sobreviver e
reproduzir, mas também, obter prazer. No agir prazeroso e afetivo,
a “vontade orgânica” e “vontade vegetativa” foram ampliadas pelas
experiências e pelas memórias, trágicas e afetivas, formando uma
“vontade mental”: a linguagem e a comunicação que geram a base
de existência do ser humano e da família.

- o agir tradicional: a forma da vontade humana baseada na


“vontade orgânica” existente no grupo primário família: 1) o homem
e a mulher, 2) a mãe e os filhos, 2) o pai e filhos, 3) os irmãos e a
irmãs. A reunião das famílias forma o clã, a tribo e a comunidade,
gerando formas de ação tradicional nas comunidades de “sangue”,
de “lugar” (solo) e de “espírito” (a amizade e a concórdia, a confiança

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e a pertença, as emoções e as tradições comuns, a fé
compartilhada, a obediência e devoção aos mais sábios, velhos,
corajosos) nas quais se desenvolve a potência da “vontade
substancial”.

- o agir racional e político: a forma da vontade humana determinada


do pensamento, da reflexão do indivíduo e de um determinado ser
social (associação, grupo e classe social). O indivíduo usa o
intelecto para calcular, mensurar e prever como poderá obter o que
necessita ou deseja ser, ter, possuir na sociedade. Na “vontade
subjetiva” (reflexiva) o indivíduo e o grupo social avaliam o que há
na realidade (as coisas e os seres, as formas de ser e pensar, os
valores e as ideias, as normas e as leis) segundo os seus valores e
ideias, necessidades e desejos. O indivíduo e o grupo social antes
de agir calculam, utilizam uma racionalidade instrumental que visa
adequar os meios e os fins, ponderar os custos e os benefícios, para
obter o bem-estar e a felicidade pessoal e particular.

Para Ferdinand Tönnies, o ser humano é dotado de “substância


psíquica”, que possibilita o agir que cria sempre novas formas e tipos de
vida, de identidade, de relacionamento, de ordenação social,
manifestando, assim, a vontade e o interesse em obter, conquistar,
possuir aquilo que não há na natureza, que não é ofertado
imediatamente, mas que deve ser gerado pelo próprio ser humano: a
cultura e a formação social. Nas formações sociais antigas reinou a força
da “vontade substancial” (essencial) da religião que, no curso da era
moderna, da modernidade e dos processos de modernização econômicos
e políticos, foi superada pela força da ciência e da técnica, da economia de
mercado e da política. Na era moderna, na modernidade e nos processos
de modernização a força do Ocidente se manifesta na potência da política,
da economia que utilizam as descobertas, inovações e criações da ciência
e da técnica para realizar necessidades e interesses dos grupos e das
classes sociais.

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Para Tönnies, a “substância psíquica”, a vontade humana, pode ser
manifestada em diversa formas físicas e psíquicas que, por sua vez,
originam a vida social e as relações que determinam as identidades e os
valores, as hierarquias e as posições, as tarefas e funções contidas nas
ordenações existentes na totalidade social: a vida social é o produto de
um ser dotado de energia física e psíquica. A sociologia busca
compreender, interpretar e explicar o senso e o significado da vida
associativa: as formas do agir social, as formas de relação social, as
formas de convivência e união social, as dinâmicas e os processos sociais,
em outras palavras, as criações humanas provenientes do corpo e da
mente, da vontade e do intelecto.

As manifestações existentes na cultura, que transcendem portanto


os limites das condições naturais da vida do animal humano, são objetos
de estudo sociológico: as palavras e as ideias, os valores (as formas de
avaliação emotiva e cognitiva da realidade física e social), os princípios
morais e éticos, as normas e as leis, as organizações e as instituições
sociais. Interessa ao sociológico alemão compreender o senso e o
significado das formas de vida e dos vínculos sociais. A convivência
humana, que transcende os limites dos instintos e das pulsões naturais,
é produto de uma “segunda natureza”, isto é, de uma vontade de união,
de viver junto (com+viver), mediante determinadas ações e relações
desejadas e reconhecidas na economia, na política e na moral (ética). Em
toda forma de vida social há elementos voluntários (a manifestação da
vontade) e normativos (os limites do agir social, dos direitos e deveres,
das obrigações e das proibições). Para Ferdinand Tönnies, a comunidade
e a sociedade são duas formas de vida social:

- Comunidade: representa a época histórica da família, dos clãs, das


castas na qual vigora o senso metafísico e transcendental da vida baseado
na religião, que dá forma e conteúdo aos costumes cristalizados na
tradição, transmitidos de geração à geração: representa a era histórica
da unicidade de valor, a potência da fé estabelece o senso comum das

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ações particulares e coletivas, nas quais cada parte é presente e acrescida
na ligação com todas as outras partes e o com o todo (a ordem social na
terra e cosmo celestial). A comunidade determina o senso comum da vida:
a lealdade e a confiança, a obrigação e o dever que ordenam e legitimam
os vínculos orgânicos de união e vontade, as hierarquias de mando e
obediência, entre os seus membros.

- Sociedade: representa a época histórica do indivíduo e da pessoa, do


sujeito e do cidadão, dos grupos sociais secundários, das classes sociais
na qual o senso de vida é determinado pelas particulares experiências
econômicas, políticas e culturais que geram os valores e as ideologias das
classes sociais. A secularização, a racionalização, as revoluções
burguesas do século XVIII, a economia de mercado e a sociedade civil, a
fábrica e o Estado-nação produzem um novo senso de vida e de
existência: secular e político, racional e instrumental que potencializa os
movimentos e as modificações, as transformações e as revoluções
baseadas na força do intelecto, do pensamento, da razão. A sociedade
industrial cria a grande cidade (metrópole), o senso da vida ordenado pela
racionalização do processo produtivo efetuado pela economia-política
(posse privada, contrato) e pelas forças sociais contidas nas associações
e nas classes sociais, na fábrica e no Estado), da opinião pública e das
ideologias, da mecanização, da vontade subjetiva (reflexiva) do indivíduo
e dos grupos e classes sociais.

Características das formações sociais

Comunidade Sociedade
Organismo Mecanismo
Natural Artificial
Tradicional Abstrata, intelectual
Parte de um todo metafísico Todo composto por partes
econômicas, políticas e culturais

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Deveres, obrigações Liberdade e igualdade jurídica

Comunidade Sociedade
Valor unitário, comum: une e Valores diversos, diferentes: o
enlaça todos os membros conflito entre os valores, as
identidades particulares
Ação centrada no corpo Ação centrada na mente
Vida vegetativa Vida intelectual (política)
Crescimento orgânico Orientada para o progresso
Vínculos com o passado Projetada para o futuro
Senso de vida tradicional Senso de vida intelectual
Atitudes afetivas e sentimentais Atitude egoísta, amor-próprio
Amizade e fidelidade Ambição aquisitiva

Na formação social da comunidade, a vontade está contida nos


limites do pensamento religioso e tradicional, de modo que, a unidade
entre as partes e o senso do agir social são orgânicos, coletivos, naturais:
o senso da vontade comum é “essencial”, “substancial”, envolve e
articula a relação social e a racionalidade existentes no valor unitário da
consciência moral (religiosa, tradicional), nas emoções e nos afetos, no
companheirismo e na lealdade, na confiança e no dever, no senso de
pertencimento ao solo e ao povo.

O advento histórico da sociedade produz uma radical


transformação na vontade e no pensamento (intelecto): o pensamento, os
valores, a ideia, a ideologia estão contidos na vontade do indivíduo, do
grupo e da classe social, da nação. Na sociedade, o intelecto é a força na
qual a vontade se manifesta em ações e associações, organizações e
instituições: a vontade do indivíduo é subjetiva (reflexiva) e tem como
objetivo a realização de um fim desejado (uma necessidade, um
interesse particular). O indivíduo, bem como os grupos e as classes
sociais, usam o pensamento para calcular, refletir, escolher qual meio é o
mais rápido, eficaz e eficiente para realizar os interesses particulares e
necessidades lógicas.
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III – A compreensão sociológica dos laços sociais que mantém unido
as formas de sociabilidade humana.

Tönnies buscou em Comunidade e Sociedade compreender e


interpretar os laços que mantém a união e a continuidade de toda
formação social humana. Seu interesse era construir conceitos para
dotar de sentido e significado os diferentes tipos de formação social e,
sobretudo, as singulares formas de predisposição psicológica (vontade e
intelecto) nas ações e relações realizadas por seus membros. A análise da
singularidade de cada formação é construída mediante a busca de sua
especificidade voluntarista e da comparação entre as formações sociais.
Sua intenção era demonstrar o sentido das mudanças valorativas e
associativas ocorridas na era moderna e na modernidade pelas
revoluções econômicas e políticas burguesas:

Comunidade Sociedade

Economia Subsistência e de Mercado: a posse


posse guerreira e privada e a liberdade
feudal da terra: as individual; a divisão
relações de obrigação social do trabalho
e dever entre a mulher entre as classes
e o homem, os mais sociais; a compra e a
jovens e os mais venda de mercadorias;
velhos, os membros o dinheiro e o capital.
da comunidade e o
homem santo, os
soldados e o líder.

Política Comunal e Individualista e


corporativa; direito racional, lutas sociais
natural comunitário

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(tradição, costumes, e políticas: direito
hábitos) racional e positivo

Ética Teológica Racional e política

Organização social Status, costume. O Contrato. O direito


direito é baseado no racional e positivo
costume e na baseado na posse
tradição: direito privada, no mercado e
consuetudinário no comércio, na
vontade particular e
na potência do
Estado.

Ideias Sacro-comunal Seculares e racionais

A comunidade e a sociedade apresentam as seguintes


características fundamentais:

Comunidade

É a formação social na qual a “vontade substancial” (“essencial”)


representa a unidade da vida e do pensamento e é basicamente
emocional. Expressa os sentimentos primordiais de identificação com os
demais: a lealdade, o afeto, as emoções comuns contidas na tradição.
Tönnies descreve e interpreta os seguintes tipos de comunidade:

1) familiar: a relação orgânica, natural, recíproca entre o homem e a


mulher (a força de eros, do instinto sexual), a mãe e as filhas e os filhos
(a força das afetos, das recordações recíprocas, da gratidão), os irmãos e
as irmãs (a força do sentimento de fraternidade, do parentesco, da
memória, da recordação das experiências comuns do passado). Na

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família, as relações recíprocas formam vínculos emotivos e afetivos que
geram formas de “convivência doméstica próxima, durável e fechada”: os
hábitos de trabalho, o reconhecimento da autoridade, a reverência, a
dignidade da “idade”, da “força”, da “sabedoria”, do “espírito”.

2) sangue, lugar e espírito: a força da família (e das famílias reunidas no


clã, na tribo, nas castas) e da economia da casa em criar as relações
íntimas e espirituais duráveis entre os membros da família e das
gerações. A reunião das famílias que forma espaço da vila, do burgo,
desenvolve as relações recíprocas e os fortes vínculos de “parentesco,
vizinhança e amizade” presentes nas tarefas diárias e no destino da
comunidade:

- dividir o trabalho: cooperar no cultivo da terra, na domesticação


dos animais, no trabalho particular para a satisfação das
necessidades materiais.

- ordenar e administrar o espaço comum.

- crescer numericamente.

- vencer os adversários e inimigos: a proteção mútua, a


solidariedade, o senso de pertencimento.

- criar e cuidar do espaço sacro: lugar das oferendas e orações para


obter à graça, à proteção e os favores dos deuses.

- cultivar o sentimento comum de ânimo e de subjetividade (modo


particular de sentir e estar no mundo).

- rotinizar o senso da identidade coletiva e da vontade geral.

Os valores da comunidade:

- os complexos estados emotivos e afetivos presentes nos costumes, nos


hábitos e nas tradições forjadas no espaço da casa: a “força vital da casa”
não está contida apenas na proteção do corpo perante ameaças físicas,
mas na origem espiritual da vida: a explicação metafísica da origem e do

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fim, do nascer e do crescer, das experiências e recordações, dos
ensinamentos espirituais, dos vínculos e ligações duráveis.

- o valor do solo e do sangue: a importância fundamental do espaço local


nos quais a vida social foi e é desenvolvida entre as gerações (a
convenção, a associação, a cooperação, a correspondência, a
reciprocidade, a compreensão).

- a unicidade de valor: a força das certezas metafísicas (religiosas,


tradicionais); o senso compartilhado de comportamento e orientação; a
concórdia; os profundos vínculos de pertencimento, de confiança e
dedicação recíprocos; o reconhecimento comum do bem e do mal, do
amigo e do inimigo, do fiel e do infiel.

- a hierarquia de mando fundada na sabedoria, na idade e na força: a


centralidade das figuras do homem santo, do pai e avô, do líder militar
(os representantes do divino na terra). A forma de dominação tradicional
e carismática baseada no costume e na crença. O dever da obediência
inquestionável das figuras subalternas: a mulher, a criança, o escravo, o
plebeu e o servo.

Sociedade

É a formação que envolve a “vontade subjetiva” (reflexiva). A


“vontade subjetiva” é própria da ação social que se desenvolve na
“separação dos meios e dos fins” e se refere ao pensamento humano mais
racional e independente da emoção. A sociedade é a formação social na
qual os indivíduos não compartilham a mesma unicidade valorativa que
existia na comunidade: os indivíduos vivenciam relações sociais de
oposição e competição, bem como, a atomização social e a igualação
jurídica e política. Ocupam-se em maximizar as suas vontades,
procurando seus próprios interesses privados mesmo quando trabalham
em prol da coletividade ou do bem comum. No espaço de ação mais
significativo dessa formação social, o mercado, cada indivíduo é um ser

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particular e anônimo, submetido às leis e regras da economia de troca de
mercadorias e do direito abstrato-racional. É através do contrato que
tecem seus acordos e esperam alcançar seus desejos e interesses
particulares. O contrato é a forma de comportamento e relacionamento
mais significativa da sociedade e é o resultado da existência de “vontades
individuais que são divergentes e que se conectam através do sistema
jurídico e político.

Os valores da sociedade:

- a posse privada: deve ser compreendida como o fato jurídico e político


fundamental da sociedade, a forma de relação social (a troca de
mercadorias, a alienação dos bens, a compra e a venda), o princípio de
organização da vida material (econômica e política) e imaterial (valorativo
e cultural: a honra, a glória, o poder são determinados pela quantidade,
grandeza de valores materiais como a propriedade, a renda, os recursos).

- a autonomia do eu: a emancipação, a liberdade privada, o direito civil e


político.

- o alto grau de individualismo, egoísmo.

- o contrato: o caráter convencional (regras e acordos entre partes) e


contratual (jurídico, legal) de toda relação.

- a impessoalidade.

- o interesse particular e privado: a forma de vida baseada no eu


(indivíduo, pessoa, sujeito) e no senso de vida material e econômico.

- a maximização do eu nas mais diversas esferas sociais.

IV – A comunidade e a sociedade: esquema comparativo.

Comunidade Sociedade

Vontade substancial (essencial) Vontade subjetiva (reflexiva)

Natural, antiga, compacta. Artificial, recente, dispersa.

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Amor de Deus, fidelidade. Amor próprio, autonomia.

Espaço da economia da casa, da Espaço da cidade moderna, da


vila e da cidade antiga (o burgo). divisão do trabalho, da fábrica,
da sociedade civil e do Estado-
nação.

Tempo natural e religioso: sazonal, Tempo mecânico e convencional:


místico, sobrenatural, divino e econômico e político; a
demoníaco. racionalização do mundo
efetuada pela ciência e pela
técnica.

A centralidade do ethos religioso: o A centralidade da política: a


senso comum dos costumes, da relatividade dos juízos e dos
moralidade, dos símbolos; o senso valores, a subjetividade moral e
de vida transcendente política; o senso da vida
imanente.

A convivência orgânica dentro da A existência atomística do


família: a lealdade e a submissão. indivíduo e da pessoa: o egoísmo
e o interesse pessoal.

A concórdia sentimental, emotiva, A discórdia entre os valores, as


afetiva: a crença na tradição e nos ideias e os ideais dos grupos
costumes do passado. secundários: associações,
classes, sindicatos, partidos.

O direito feudal e consuetudinário. O direito racional e abstrato: da


força da economia e da política,
do contrato, das normas e das
leis.

O poder e a força do sacro e do O poder econômico e político: o


divino: o impacto do passado senso de vida desvinculado da
comunitário no presente e no tradição e voltado para a ação
senso do futuro: reconciliação com aditiva, acumulativa do presente
Deus, a redenção e a vida eterna. para o futuro.

A crença na fé e no dogma. A crença no progresso.

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V – Parágrafos e frases do libro Comunidade e Sociedade

1) “Relações entre as vontades humanas: comunidade e sociedade na


linguagem”

“As vontades humanas se encontram em relações múltiplas, e cada uma


dessas relações constitui uma ação recíproca que, enquanto realizada ou
dada de uma parte, é suportada ou recebida de outra. Essas ações se
apresentam de tal maneira que tendem à conservação ou à destruição da
outra vontade ou do outro ser – são afirmativas ou negativas. A presente
teoria da assumirá, como objetos de sua pesquisa, exclusivamente as
relações reciprocamente afirmativas. Cada uma dessas relações
representa uma unidade na pluralidade ou uma pluralidade na unidade.
Compõem-se de incentivos, benefícios, prestações que se transmite de
uma parte para outra, e que são consideradas como expressões da
vontade e das suas forças. O grupo formado por essa ação relação
positiva, concebido como ser ou objeto que age de uma maneira
homogênea no interior ou no exterior, pode ser chamado de associação.
A relação em si e, portanto, a associação, podem ser compreendidos ou
como vida real e orgânica – e esta é a essência da comunidade – ou como
formação ideal ou mecânica – e esta é o conceito de sociedade.

O emprego das palavras demonstrará claramente que elas têm uma base
no uso análogo da língua alemã. Contudo, até o presente, a terminologia
científica as utiliza indiferentemente e confunde-as arbitrariamente. Não
será por isso inútil algumas observações para demonstrar que se trata de
uma antítese. Toda convivência confidencial, íntima, exclusiva é
compreendida como a vida em comunidade (assim pensamos). A
sociedade, ao contrário, é o público, é o mundo. Em comunidade, o
homem se encontra com os seus desde o nascimento, unido a eles no
bem como no mal. Entra-se, na sociedade como em terra estrangeira.”

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“A comunidade é antiga, enquanto a sociedade é nova, como coisa e como
nome.”

“(...) a comunidade é a convivência durável e genuína, a sociedade é


somente uma convivência passageira e aparente. É, portanto, coerente
que a comunidade deva ser compreendida como um organismo vivo, e a
sociedade, ao contrário, como uma agregado mecânico e artificial.”

2) “As formas da vontade humana”

“O conceito de vontade humana, cuja determinação correta é essencial ao


inteiro conteúdo da presente reflexão, deve ser entendida em um sentido
duplo. Porque toda ação espiritual é definida como humana mediante à
representação do pensamento, deve-se distinguir a vontade enquanto
nela é contida o pensamento, e o pensamento enquanto nele é contida a
vontade. Uma e outra representam um todo coerente, no qual encontra a
sua unidade a multiplicidade dos sentimentos, instintos, desejos: mas
esta unidade deve ser entendida no primeiro conceito como real ou
natural, e no segundo conceito como ideal ou artificial. A vontade do
homem será dita no primeiro significado vontade substancial (essencial),
no segundo vontade subjetiva (reflexiva).”

Vontade substancial (essencial)

“A vontade substancial (essencial) é o equivalente psicológico do corpo


humano, isto é, o princípio da unidade da vida, enquanto concebida sob
aquela forma da realidade na qual pertence o próprio pensamento.”

“A vontade substancial (essencial) é fundada no passado e deve ser


explicada com base nele, como o futuro que dele é derivado.”

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“A vontade substancial (essencial) é imanente ao movimento. Para
compreender corretamente o seu conceito é preciso prescindir de toda
existência independentemente dos objetos externos, e entender a sua
percepção ou experiência somente na sua realidade subjetiva. Aqui há
uma realidade psíquica e uma causalidade psíquica, isto é, somente uma
coexistência e sucessão de sentimentos de existência, instinto e atividade
que podem ser concebidos no seu fundamento, na sua totalidade e nas
suas conexões, como resultados da originária disposição embrionária
deste ser individual.”

Vontade subjetiva (reflexiva)

“A vontade subjetiva (reflexiva) é uma formação do próprio pensamento,


a qual possui uma verdadeira e própria realidade somente em relação
ao seu autor – o sujeito do pensamento, mesmo que se ela possa ser
conhecida e reconhecida por outros.

“A vontade subjetiva (reflexiva) pode ser compreendida somente com


base no futuro, ao qual está referida.”

“As formas complexas da vontade subjetiva (reflexiva) – que contém em


si os elementos da vontade substância (essencial) – devem ser de
compreendidas como sistemas de pensamentos, e precisamente de
intenções, de fins e meios que todo homem porta na sua cabeça como
aparato para compreender e enfrentar a realidade.”

3) “Resultados e perspectivas”

“É agora clara a antítese entre um ordenamento da convivência que,


enquanto fundado sobre o consenso da vontade, repousa essencialmente
sobre a concórdia e é desenvolvido e dignificado pelo costume e pela

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religião, e um ordenamento de convivência que, enquanto fundado sobre
a vontade subjetiva (reflexiva) consensual e reunida, é regida pela
convenção, derivando a sua garantia da legislação política e a sua
explicação e legitimação ideal e consciente da opinião pública. Uma
antítese ulterior é aquela entre as duas formas de direito. A primeira
forma é constituída por um direito positivo comum e vinculante, como
sistema de normas coercitivas em referência às relações recíprocas entre
as vontades, o qual, estando radicado na vida familiar e atingindo o seu
conteúdo mais significativo dos fatos na posse fundiária, tem as próprias
formas determinadas essencialmente pelo costume. Este recebe a sua
consagração e a sua transfiguração da religião, quando a religião, como
vontade divina, e assim como vontade de homens sábios e dominantes
que interpretam a vontade divina, não ousa e não ensina a modificar e
corrigir tais formas. A segunda forma representa um direito positivo
análogo, o qual destina-se a manter distintas as vontades subjetivas
(reflexivas) através de todas as suas conexões e enredos, e tem os próprios
pressupostos naturais no ordenamento convencional do comércio e do
toda troca afim: esse torna-se válido e regularmente eficaz somente em
virtude da vontade subjetiva (reflexiva) soberana e da potência do
Estado.”

“Mas em determinadas condições – e em várias relações que são aqui


merecedoras de ser reveladas – o homem aparece em atividade e em
relações sociais como um indivíduo livre, e deve ser concebido como
pessoa. A substância do espírito comum é assim debilitada, e a ligação
que o une com os outros é atenuada até o ponto de ser insignificante. De
tal gênero é efetivamente, diferentemente de todo vínculos familiar e
corporativo, a relação entre não-consociados, onde não reina nenhuma
compreensão comum, e onde nenhum costume, nenhuma fé intervém
para ligar e pacificar. Aqui está em vigor o estado de guerra e de ilimitada
liberdade para todos de aniquilarem-se reciprocamente, de apoderarem-
se do arbítrio, de saquearem-se e subjugarem-se, ou – uma vez que isso

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seja reconhecido como uma vantagem maior – de estabelecerem contratos
e associações.”

“As formas exteriores da convivência, aquelas que são criadas pela


vontade substancial (essencial), são a casa, a vila e a cidade. Estas são
os tipos constantes da mesma vida real e histórica em geral (...) A cidade
os perde quase completamente somente quando se desenvolve na grande
cidade: as singulares pessoas ou famílias estão uma perante a outra, e o
lugar que elas têm em comum é acidental e eletivo.”

“Todavia, na grande cidade, e portanto na situação social em geral,


somente os estratos superiores, os ricos, os cultos são verdadeiramente
ativos e vitais: eles fornecem a medida pela qual os estratos inferiores
devem se conformar com a vontade seja de substitui-los, seja de
tornarem-se semelhantes a eles, para assim adquirirem uma potência
social. Tanto naqueles quanto nestas massas, a grande cidade – e
também a “nação” e o “mundo” – é constituída por pessoas livres, as quais
entram continuamente em contato entre elas no comércio, trocando e
colaborando entre si, sem que entre eles surja uma comunidade e uma
vontade comunitária a não ser esporadicamente ou como resíduo de
condições precedentes que estão ainda na sua base. Este complexo de
relações, de contratos e de relações contratuais externas serve somente
para encobrir estados de hostilidades e de interesses competitivos
internos e, em primeiro lugar, a antítese já mencionada entre os ricos,
isto é, a classe que detém o poder, e os pobres, a classe que serve.”

“A grande cidade é a forma de convivência típica da sociedade em geral.


Ela é essencialmente uma cidade comercial e, enquanto o comércio
domina nela o trabalho produtivo, uma cidade industrial. A sua riqueza
é a riqueza do capital, o qual é dinheiro que se multiplica com o seu uso,
sob a forma de capital comercial, usuário ou industrial, e é o meio para
apropriação dos produtos do trabalho ou para exploração da força do
trabalho. Ela é a cidade da ciência e da cultura, que sempre acompanham
os caminhos do comércio e da indústria.”

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VI – A questão social

Nas diversas obras sociológicas de Ferdinand Tönnies a questão


social ocupa um lugar central:

“Entendemos por “questão social” o conjunto de problemas que


derivam da cooperação e convivência de classes e estamentos
sociais distintos, que formam uma mesma sociedade, mas estão
separados por hábitos de vida e por sua ideologia e visão de mundo.
Em nossos dias, a questão social com sua pavorosa importância,
ocupa a atenção de todo intelectual.” (Tönnies, O desenvolvimento
da questão social, 1907)

O conflito, que está presente no corpo e na mente, na vontade e no


intelecto do ser humana, adquire diversas formas no curso do processo
civilizatório. Na vida social, o conflito está presente na economia, na
política e na vida espiritual, seja nas formação sociais antigas, seja na
comunidade e na sociedade. Contudo, é na sociedade industrial e
nacional, na sociedade capitalista, que o conflito adquire um elevado
nível de existência. Vejamos algumas reflexões de Tönnies acerca da
dimensão do conflito na sociedade industrial e nacional contidas no livro
O desenvolvimento da questão social:

“A evolução da fábrica condiciona a evolução de toda questão social.”

“A contradição e o conflito entre o capital e o trabalho, isto é, entre os


ingressos que são interesses ou benefícios, de uma parte, e os que são
salários de outra, constitui o conteúdo da questão social no sentido
moderno da palavra.”

“Os produtos da fábrica são para os artesões uma concorrência


crescente: ramos inteiros do artesanato desaparecem nos embates, com
o qual se convertem um em representação do trabalho e outro em
representação do capital”.

“Aqui há outras tantas questões sociais parciais que formam parte da


questão social. O novo Estado de tendências centralistas favorece as

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fábricas e as manufaturas porque proporcionam dinheiro ao país e
aumentam a população.”

“Por fim, em nossos dias, reiteradas pesquisas expõem aos olhos


assombrados do grande público os horrores do trabalho domiciliar, a
subalimentação, os péssimos alojamentos, a exploração das crianças e
das mulheres, etc. Para aqueles não versados na matéria foi revelado,
como um mundo novo, a existência de um inferno sobre a Terra.”

“(...) a máquina que o operário não pode adquirir é convertida na arma


mais poderosa da classe inimiga, a dos operários (...) A história industrial
dos tempos novos – desde 1500 até o presente – gira ao redor da máquina:
é uma luta contra as máquinas, a luta entre o ofício, o artesanato e o
negócio e a produção industrial capitalista.”

“O homem novo, o burguês, formava assim um homem típico: sua


liberdade e igualdade com a velha aristocracia – que estava morrendo –
eram afirmadas progressivamente. Uma revolução espiritual proporciona
ao Estado e a sociedade um conteúdo de consciência novo e, com ele, um
poder social suficiente para dirigir a sociedade e o Estado, prescindindo
da consciência religiosa e de sua expressão pseudocientífica: a
consciência teológica.

“(...) a nova época que se inicia (...) a evolução da questão social, cuja
força motora é precisamente a contradição e a luta de classes da nova
sociedade, do Estado e da consciência coletiva. Pela natureza das coisas,
a classe subalterna, na qual domina como maior consciência o
proletariado industrial – sobretudo nos grandes centros urbanos –
constitui a classe que expõe o problema, tem a consciência do seu
sofrimento e luta apaixonadamente para melhorar sua existência.”

As questões sociais existentes na modernidade e na sociedade


capitalista (sociedade industrial e nacional):

1) A potência da civilização da posse privada, do dinheiro e do capital:

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a) a conquista da burguesia industrial da hegemonia econômica, política
e espiritual.

b) o princípio fundamental da posse privada: é um fato jurídico e político,


determina a troca de mercadorias (compra e venda) como a relação social,
organiza a vida material (as relações socais) e imaterial (os valores, as
ideias, as emoções e os sentimentos, as paixões e a subjetividade).

c) a proletarização do artesanato e do grêmio, do comércio e das


profissões.

d) a exploração da força de trabalho na fábrica: o trabalho como uma


mercadoria, as péssimas condições de trabalho, o reduzido valor do
trabalho, a semelhança entre as hierarquias de poder do capitalista sobre
o trabalhador e do general e o soldado: o poder total do capitalista.

e) o poder do dinheiro e do capital em monetizar as coisas e os seres, as


ações e relações sociais, em destruir e construir, construir e destruir para
obter sempre novos ganhos e acumula capital e recursos e produzir novas
oportunidades de produção de valor.

f) a vida desprovida de valores comuns e de senso espiritual (ético,


político e econômico) elevado:

- a desqualificação dos espaços, dos seres, dos valores, das


organizações e instituições sociais comuns.

- a inexistência da solidariedade e do reconhecimento recíproco.

- a desorientação social.

- a atomização social.

- a massificação.

g) o egoísmo, o individualismo e a impessoalidade.

h) as desigualdades de renda, recursos e oportunidades.

i) as diversas injustiças sociais na divisão social da renda, dos recursos,


das oportunidades.

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2) As lutas de classes e as contradições da sociedade capitalista industrial

a) a grande riqueza produzida, apropriada e expropriada pela burguesia


industrial, e a pobreza da classe trabalhadora.

b) a construção do conceito de ser humano como pessoa e cidadão (ser


de direitos, ser livre da dominação de outrem) no plano jurídico e político
e sua inexistência efetiva na sociedade civil: a negação da efetiva
pessoalidade no trabalhador assalariado e transformação do trabalho na
personificação da função econômica e política força de trabalho.

c) as lutas sociais pelos direitos dos trabalhadores, melhora das


condições de trabalho, moradia, alimentação.

d) as lutas políticas pela conquista da hegemonia e do poder de


determinação do senso da ordem social e da história.

3) O trabalho comandado e a potência do capital

a) A alienação e a reificação

b) A virtuosidade da máquina e a desvalorização do trabalho manual.

c) O acúmulo de angústias, incertezas, inseguranças nas classes sociais


subalternas.

4) A cidade moderna

a) a riqueza obtida pela produção, distribuição, troca e consumo de


mercadorias.

b) a centralidade da fábrica e do comércio na nova urbanização.

c) as péssimas condições de vida dos trabalhadores.

d) a figura do andarilho, do pobre, do mendigo.

e) a fome e a miséria.
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5) O Estado-nação

a) a “nacionalização das massas”

b) a inclinação do Estado à favor do dinheiro e do capital.

c) o fortalecimento dos aparelhos do Estado.

d) o imperialismo.

VIII – Marco Tarchi, Forma comunitária no Terceiro Milênio


Tradução para fim acadêmico de passagens da Palestra de Marco Tarchi no Meeting
internazionale dei comunicatori pubblici “Public Camp”, 03 de Dezembro de 2010 na
Fiera del Levante di Bari.

A comunidade é uma espécie de fênix que nasce e desaparece em nosso


horizonte, bem como, é avaliada como sendo morta, inexistente, como sendo
uma espécie de experiência de vida organizada existente no passado. Contudo,
em outros momentos, o termo ressurge para descrever tanto a realidade
existente, quanto aquela que poderá existir no futuro. É um termo polissêmico,
que contém uma multiplicidade de significados e, por isso, de tempos em
tempos, é descartado ou posto em ação.

O primeiro problema que se põe aqui é como tratar o problema da forma


comunitária no terceiro milênio e qual é o significado que damos a está palavra.
Penso que há duas possibilidades de utilizá-la atualmente, que podem ser
usadas em realidades distintas:

1) uma leitura negativa da comunidade: realizada quando se contrapõe com a


ideia de sociedade. Comunidade e sociedade são palavras que definem dois
modelos de relações interpessoais, tendencialmente alternativas, entre as quais
corre um série de antagonismos, no qual todos os choques abertos, dinâmicos,
que deixam espaços para a criatividade, inventividade, ao diálogo com o outro
seria próprio ao modelo societário de relações, enquanto que, tudo aquilo que é
fechado, interior, ligado somente a tradição, ao habitual, a repetição de formas
de comportamento deveria ser compreendido como comunidade.

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Uma série de reflexões sobretudo sociológicas se referem o tipo de relações que
forma criadas ao longo dos séculos existentes na comunidade da fé, de pequenos
contextos, o que hoje chamaremos efetivamente de micro-comunidade ou
localismo.

Tönnies individuou na comunidade uma forma de relação porta-a-porta, de


vizinhança, familiar, como o ponto cardial de um sistema muito maior que
possibilitava o reconhecimento pleno de um nós coletivo, manifestado no
pequeno centro, nos quarteirões, na cidade, etc. Contudo, a construção social
do nós era realizada através de uma relação de distinção, de fechamento, de
hostilidade no confronto com o outro que não estava situado dentro desta
relação comunitária.

Este elemento negativo podemos encontrar com muito vigor quando se


critica muito fortemente aquela forma de organização da moderna sociedade
denominada multiétnica e multiculturalista. São diversos aqueles que criticam
o multiculturalismo dizendo que ele não funciona porque cria guetos
comunitários, uma expressão frequentemente utilizada atualmente. É claro que
quando se fala de gueto comunitário, a expressão comunidade é usada em
sentido negativo, porque é uma forma de fechamento no qual um grupo
manifesta o desejo de se separar de um contexto espacial e cultural habitado
por um outro grupo: é um termo usado para identificar a postura do imigrante
que prefere se isolar do que participar da sociedade de acolhimento, impedindo
a relação com o outro e a efetiva integração.

2) uma leitura positiva do termo comunidade pode ser encontrada na expressão


comunidade virtual: a criação das redes sociais possibilitou uma série de
realidades entre elas distintas, mas interconectadas, nas quais se recria
relações sociais fortes e espontâneas que nascem de baixo, desvinculadas de
relações estabelecidas pelo alto, tradicionais, mais ou menos autoritárias. Para
alguns, as redes sociais expressam a nova forma de relações sociais que serão
desenvolvidas no próximo futuro.

Atualmente, observamos uma proliferação extraordinária, qualitativa e


quantitativa, deste lugar de encontro, que não possui em termos de velocidade
e difusão do fenômeno nenhum precedente histórico. Logo, assistimos a uma
passagem de época de um instrumento qualitativo e quantitativo de informação
e relação: da televisão à rede social. Se é verdade que a rede social possibilita

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uma forma de conexão imediata, potencialmente expansível para todo o
universo social, reconduz esta grande esfera de difusão para entidades
particulares, intersubjetivamente limitadas em si, que não favorece
necessariamente a uma forma de abertura indiscriminada ao outro e, portanto,
ao chamado outrora grande espaço de liberdade e democracia glorificado por
alguns intelectuais.

Se olharmos atentamente, e se quisermos nos confrontar objetivamente


com este fenômeno das comunidades virtuais e desta forma de relação
intersubjetivo, podemos dizer que espaços que tendem a construir limites
fortemente autorreferenciais. Em muitos blogs, especialmente os políticos,
podemos observar um espaço de reconhecimento de afinidades recíprocas
existentes entre um nós alargado e, em diversos casos, um espaço de relações
antagônicas com outras coletividades.

Nos blogs essencialmente políticos, podemos observar uma tendência


fortíssima de fechamento nos confrontos com o externo, isto é, o elemento de
reconhecimento recíproco e o reforço da identidade coletiva não é acompanhada
pela disposição ao diálogo com outros sujeitos igualmente comunitários, que
existem no mesmo espaço virtual. Os blogs políticos são utilizados como um
instrumento fortemente capaz de potencializar a identidade coletiva que,
contudo, é manifestada através de antigas categorias políticas de confronto e de
conflito amigo e inimigo.

A rede social possibilita uma forma de relação comunitária de tipo novo,


quando a intercomunicação quando os grupos que se reconhecem em
identidade muito estreita e particular, mas pode ser também uma espécie de
espaço que estabelece a formação de limites que isolam os grupos do contato
com os outros.

Esta construção alternativa de relação social torna particularmente difícil


a existência da amizade, que tende a ser liquificada, conforme a ideia do
sociólogo Zygmunt Bauman, a liquefação de alguns conceitos que representam
a relação sentimental, afetiva, psicológica entre os vários sujeitos. No momento
em que o conceito de amizade dentro da rede social se torna fortemente móvel,
vinculada a uma consciência virtual na maioria dos casos, nos encontramos
perante alguma coisa essencialmente nova, diversa daquela corrente quente de
sentimentos que, segundo Tönnies, era a base da comunidade de pertença, de

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vizinhança. Atualmente, o virtual aproxima de modo diverso, mas deixa
complemente distante por outros modos, de modo que o teu amigo que se
representa a ti através de frases, imagens e de vídeos, não se manifesta
concretamente. O problema é ainda maior se recordamos que a rede social
possibilita que a representação de si seja fictícia ou muito diversa do que se é.

Uma experiência difusa que se pode constar é a mudança de


comportamento formal entre os docentes e dos dissentes, que há elementos
positivos e negativos, bem como, a desinibição, pois a virtualidade não
comportando a relação física, quase carnal de co-presença em uma determinada
cena social, tende a romper com algumas barreiras de formalidade e hábitos.

Atualmente, a comunidade como grupo social tem uma relação muito


intensa em seu interior, mas possui também fortes elementos de distinção e
antagonismo verso o externo, o que torna sempre difícil e árdua a ação política
de dirigi-lo, governá-lo. Na comunidade virtual podemos observar dois
problemas sociais fundamentais:

1) O tribalismo: representa uma comunidade definida pela mesma origem


natural, naturalística, que comporta o conceito de próprio em constante
contraposição com o outro. Pensemos a complexa e difícil reorganização
da identidade nacional no contexto da globalização.

2) O nomadismo: a comunidade atual é nômade. Contudo, o conceito de


comunidade antigo eram sedentárias e se incarna politicamente na ideia
de polis, da importância do demos, que antes de ser povo significa o lugar
no qual se consiste, existe, aquilo que se define como povo. Portanto, na
comunidade antiga há um elemento fundamental de territorialidade.

No terceiro milênio, o espaço virtual ilimitado da tecnologia informática é


um labirinto no qual se movimentam os grupos comunitários de caráter nômade,
que são caracterizados por seu senso de pertença: o próprio sujeito no âmbito
da rede pode definir-se como membro de um grupo que possui uma identidade
religiosa, futebolista, política, etc. Contudo, a possibilidade objetiva de ser
membro de qualquer grupo sempre possui a mesma lógica de particularidade
identitária e da distinção do outro.

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Na atualidade, penso que o conceito de comunidade possui um futuro
assegurado, um futuro no terceiro milênio:

1) Se a comunidade tem uma ampla possibilidade de existência na era da


virtualidade, há um outro fator de igual importância: a comunidade é
proliferada paradoxalmente na era em que se celebra, ao nível planetário,
o culto da individualismo muito forte (este alter-ego absoluto com relação
ao sentimento de comunidade): na era em que o sedentarismo, a
territorialização das populações e dos indivíduos é cada vez mais limitada
quantitativamente, sempre mais precária o trabalho profissional, o que
gera para muitos sujeitos a necessidade de deslocamento;

2) A era dos fluxos potencializa o desejo de comunidade por três motivos:

- os fluxos informativos não podem ser detido, de modo que, a


comunicação em tempo real e instantânea, gera o fim dos limites.

- os fluxos econômicos e financeiros impõe um novo modo de pensar as


trocas econômicas.

- os fluxos de pessoas: a questão imigratória que em poucas décadas


passou de centenas, para centenas de milhares e, nos últimos anos para
milhões e, potencialmente, para dezenas de milhões se o ritmo for
mantido.

Vivemos, portanto, em um mundo caleidoscópico, um mundo em forma


de mosaico, especialmente nos países avançados economicamente, que atraem
pessoas que desejam encontrar novas formas e possibilidades de vida. Este dado
da realidade, sem entrar em valores positivos ou negativos, aumenta o
pluralismo, a complexidade do tecido social coletivo, sempre mais composta por
elementos distintos.

A questão de assegurar uma ordenada convivência entre os considerados


autóctones e aquele que provém do externo passa necessariamente pela adoção
de modelos organizativos monocultural ou multicultural. A organização
monocultural, que não se usa devido ao peso que a palavra carrega socialmente,
afirma que a ordem social deve operar a redução do múltiplo ao uno: integrando,

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assimilando das diversas subjetividades que ingressaram em um diverso
território, dentro de um certo Estado, de um modo tal que se cancela
progressivamente o estigma da origem cultural, fazendo ingressar em um
circuito de expansão quase viral do modo de vida e de pensar majoritariamente
existente nos códigos da sociedade. Mas qual são estes códigos? São oriundos
do modelo ocidental, que se manifestam como universais: indivíduo, democracia
representativa, livre mercado, fim da história. O problema fundamental foi e é o
desejo de construção de uma democracia planetária modelada in primis pelos
EUA.

Se negamos a ideia de multiculturalidade, afirmada como inaceitável,


ingovernável e falida, o caminho elegido é a radicalização das culturas de
origem, daqueles que abandonam o território da nascença com a intensão de se
inserirem nos países de chegada. A resposta dada a estas manifestações seguem
o curso da prepotência ocidental que afirma a sua superioridade perante as
outras formas de cultura.

Voltando ao problema da comunidade, assistimos ao problema da


afirmação política que diz que o mundo é caleidoscópico, do ponto de vista da
cor da pele, do lugar de proveniência e de alguns valores culturais no âmbito da
individualidade, mas é monocultural no quadro de referência da vida organizada
e em muitos aspetos dos modelos de comportamento individual.

A alternativa para todas estas questões da sociedade multicultural e


multiétnica, que são o nosso futuro sem nenhuma dúvida, é a recuperação da
ideia de comunidade, embora, não sabemos qual será a forma de comunidade
hegemônica no futuro.

https://www.youtube.com/watch?v=H--lMmgRUyQ&t=372s

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