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Juventude bolsonarista 07/05/2019 21)05

EDIÇÃO 148 | JANEIRO_2019

figuras brasileiras

JUVENTUDE BOLSONARISTA
A extrema direita sai do armário no Brasil
CONSUELO DIEGUEZ

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“Se o meu pessoal estivesse no comando da segurança de Bolsonaro em Juiz de Fora, duvido que teria acontecido
aquilo”, disse a empresária Leticia Catel, sobre o atentado ao candidato FOTO_JR DURAN_2018

“P
ista quente!” O alerta, dado por uma voz feminina,
indicava que a partir daquele momento ninguém poderia
entrar na área de tiro, sob o risco de ser alvejado. A dona
da voz, Leticia Catelani – ou Leticia Catel, como se apresenta nas
redes sociais –, posicionada em uma das cabines do Interarmas, um
clube de tiro em São Paulo, fez três disparos com sua Glock calibre 45,
uma pistola leve e compacta, como anuncia o fabricante. Os tiros
foram precisos. Os projéteis perfuraram dois pontos próximos do
coração e outro na altura do estômago do alvo de papelão.

“Matou”, disse o advogado Victor Metta, que acompanhava a


exibição com o investidor Otávio Fakhoury. Satisfeita com a própria
destreza, Catel abriu um sorriso. Colocou a pistola de volta no coldre,
preso à sua coxa direita, alinhou o terninho preto bem cortado, ajeitou
os cabelos louros e aguardou pelos disparos dos companheiros. “Alvo
neutralizado”, afirmou, rindo, ao constatar o bom desempenho dos

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dois, naquela manhã fria de meados de outubro.

Miúda e de feições angelicais, Leticia Catel gosta de armas de fogo.


Tem 30 anos, é uma empresária bem-sucedida, proprietária de uma
companhia de médio porte, a Grunn, que importa equipamentos para
máquinas industriais. Abriu a empresa aos 18 anos, com ajuda do pai,
Mario Catelani, um ex-torneiro mecânico de Santo André que é dono
de uma indústria de equipamentos mecânicos em Jundiaí. Em seu
currículo, ela diz que é “especialista em mercados internacionais e
negociações comerciais”. Depois de se formar em comércio exterior
na Universidade Paulista (Unip), fez um MBA em gestão empresarial
na Fundação Getulio Vargas e uma pós-graduação no Instituto Mises
Brasil. Fala inglês fluentemente, vira-se no alemão e no espanhol, e
diz que arranha um pouco de mandarim. Nos últimos meses, chamou
atenção na internet por causa de sua intensa atividade nas redes
sociais em prol da campanha de Jair Bolsonaro.

Até as manifestações de junho de 2013, Catel não tinha interesse


nenhum pela militância política. Foi no calor dos protestos, quando
esquerda e direita saíram às ruas ao mesmo tempo, que a fagulha foi
acesa – e ela seguiu para a direita. Ajudou a estruturar em São Paulo
o então insignificante Partido Social Liberal, o PSL, e nele atuou como
secretária-geral até pouco tempo atrás. “Bolsonaro era o único
candidato que defendia abertamente os valores da família, mas
também criticava a corrupção e a ineficiência da esquerda”, disse.
Catel deixou o cargo no PSL desgastada, depois de se desentender
com Major Olimpio, senador eleito pelo partido, e com o presidente
da sigla, o advogado Gustavo Bebianno, escolhido secretário-geral da
Presidência. Ambos reclamaram da forma como ela trabalhava, sem
dar satisfação às lideranças partidárias.

Quando Catel ainda atuava como secretária-geral, o grupo liderado

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por ela inscreveu em apenas três semanas 199 candidatos às eleições


pela legenda de Bolsonaro. “Dávamos lugar para quem tinha ficha
limpa e dizíamos: ‘Agora se matem para fazer mais votos.’ E foi esse
sucesso.” Além de eleger o Major Olimpio, o PSL paulista fez dez
deputados federais e quinze deputados estaduais, dois deles os mais
bem votados da história do país. O carioca Eduardo Bolsonaro, filho
do presidente, reelegeu-se deputado federal por São Paulo com 1,8
milhão de votos – um recorde. A advogada Janaína Paschoal, uma
das autoras da peça jurídica que embasou o impeachment de Dilma
Rousseff, conquistou a vaga de deputada estadual com 2 milhões de
votos – outro recorde.

A empresária conheceu Metta, de 37 anos, e Fakhoury, 45, naquelas


manifestações de junho. Eles ficaram amigos. Afora o gosto pelo tiro
esportivo, o que os uniu foi uma série de antipatias: ao comunismo,
aos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, ao
Partido dos Trabalhadores e a tudo que está associado à esquerda.
Também se aproximaram por um par de afinidades: o apego às ideias
conservadoras na política e nos costumes, e a crença na superioridade
do liberalismo econômico.

A admiração do trio de amigos por Jair Bolsonaro sintetiza esse rol de


paixões. Catel, Metta e Fakhoury compõem o retrato de uma geração
que se orgulha de ser de direita e cultua a organização tradicional da
família, a hierarquia, a ordem e a religiosidade – valores que,
acreditam, foram desprezados pela esquerda, capitaneada no Brasil
pelo PT. “Nos anos 60, a sociedade tinha um viés conservador, e por
isso a contracultura, que lutava contra esse conservadorismo, era de
esquerda”, disse Metta. “Nos anos 90, a esquerda chegou ao poder e
virou hegemônica. Não dá para ser cultura e contracultura ao mesmo
tempo. Agora, a contracultura é a direita. Nós somos o anti-
establishment.” A tese teve o apoio de Catel, que prosseguiu: “A

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direita é que foi para as ruas para pôr abaixo o sistema podre que
estava aí. Fomos nós que protestamos contra a corrupção e a
desordem.”

O sentimento de vitória tinha a ver, naquele momento, com o


resultado do primeiro turno das eleições. Bolsonaro, com 46% dos
votos válidos, aparecia com grandes chances de derrotar o candidato
do PT, Fernando Haddad, no segundo turno. Para os três amigos, era
como se Bolsonaro já tivesse ganhado a eleição e tudo indicasse o
advento de uma nova ordem, em que a direita seria a protagonista,
não só no Brasil, mas em todo o planeta. “Estamos diante de um
movimento mundial de resgate dos valores da direita”, entusiasmou-
se Fakhoury. “É só ver o que está acontecendo nos Estados Unidos
com Trump, e em vários países europeus, como Polônia e a Hungria.
Os partidos de direita estão ganhando espaço”, acrescentou Catel,
sem se incomodar com o fato de que, tanto o primeiro-ministro
húngaro, Viktor Orbán, quanto o polonês, Mateus Morawieck, ambos
de extrema direita e eleitos pelo voto popular, têm corroído por
dentro o sistema democrático com medidas que colocam em risco as
liberdades civis e a independência dos poderes.

O
clube de tiro Interarmas está instalado no bairro Santa Cecília,
num galpão sem janelas, pintado de amarelo claro, nos fundos
da loja de mesmo nome, um comércio de armas. Para entrar, o
cliente tem que se identificar pelo interfone. Dentro da loja, a primeira
coisa que se avistava era uma foto de cerca de 1 metro de Jair
Bolsonaro, com o slogan de sua campanha: “Brasil acima de tudo,
Deus acima de todos.” Sobre o balcão de vidro, havia pilhas de
adesivos com o rosto e o número do candidato presidencial. Nas
paredes, fotos de militares e recortes de publicações sobre eles. Uma

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imagem chamava a atenção: um homem aponta uma arma para a


cabeça de uma criança e, caídas no chão, perto dele, estão duas
pessoas mortas. O homem foi identificado erroneamente como sendo
Che Guevara, pois a foto é da guerrilha de El Salvador.

Tanto a loja quanto o clube de tiro pertencem a Mauricio Rattichieri,


de 61 anos, gaúcho de Bagé, descendente de italianos, cuja família se
mudou para São Paulo quando ele era adolescente. Corpulento, com
uma longa barba castanha avermelhada e os cabelos com profundas
entradas, ele lembra um redneck, como é chamado nos Estados Unidos
o estereótipo do homem branco do interior do país que cultiva
valores tradicionalistas – foi um dos tipos sociais que ajudaram a
eleger Donald Trump.

Rattichieri aprendeu a atirar ainda criança, na fazenda de Emilio


Garrastazu Médici, o general-presidente do período mais sinistro da
ditadura militar – as duas famílias eram amigas em Bagé. Desde
então, nunca mais abandonou o esporte e não se conforma com fato
de a lei brasileira restringir a posse e o porte de armas ao cidadão
comum. “Aqui no Brasil só quem não precisa de autorização para
carregar arma é bandido”, afirmou, ignorando que a posse e o porte
de armas são restringidos em vários países, entre eles Reino Unido e
Japão. Catel, ao seu lado, concordou: “O cidadão de bem não tem
como se defender.” E Fakhoury completou: “Onde tem desigualdade
de força, não há espaço para debate. A única maneira de equalizar é
com arma de fogo, senão o mais fraco será sempre neutralizado.” Os
três reproduzem o pensamento de Bolsonaro como se atuassem num
jogral.

Em frente à foto que imaginavam ser de Che Guevara, Rattichieri


emitiu seu parecer sobre o maior símbolo da esquerda revolucionária
latino-americana: era um assassino frio. “Quem matou viado foi Che

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Guevara, e esse pessoal de esquerda ostenta as camisetas e bonés com


a foto dele sem qualquer remorso”, afirmou. (A intolerância a
homossexuais após a revolução na ilha permanece um assunto
controverso, apesar dos testemunhos de pessoas perseguidas, como o
livro autobiográfico Antes que Anoiteça, do escritor gay cubano
Reinaldo Arenas.) Catel acrescentou: “Depois dizem que é a direita
que é homofóbica.” Metta colocou mais um tijolo no puxadinho
retórico: “O Bolsonaro, que nunca matou ninguém, é quem leva a
fama de violento e homofóbico.” E Fakhoury arrematou: “Se a direita
usa camiseta com foto de Bolsonaro, já é logo achincalhada.”

Parte dos temores de alguns em relação a Bolsonaro se deve à


maneira elogiosa com que ele trata a ditadura militar que vigorou no
Brasil por duas décadas. Metta acredita que os regimes militares na
América Latina entre os anos 60 e 70 foram uma resposta às ações
terroristas da esquerda, e não enxerga ameaça nenhuma na postura
do novo presidente. “Esses caras do PT se apegam ao mito da
ditadura a fim de criar na população o temor de que Bolsonaro fará
um governo antidemocrático.” Para ele, se Bolsonaro quisesse
promover um golpe militar, não teria se submetido à eleição. O que
tem levado as pessoas a pedirem intervenção de militares, concluiu,
não é a falta de apreço pela democracia, mas a perda da fé nas
instituições. “Mas aqui, no Brasil, as instituições ainda podem ser
salvas.” Catel, por sua vez, argumentou que Bolsonaro se alinha “com
países democráticos, como os Estados Unidos, e não com as
ditaduras, como fez o PT”. E Fakhoury questionou se o Brasil, quando
o PT estava no poder, foi realmente um país democrático. “Se os caras
compram trezentos deputados, estão desmoralizando a democracia”,
disse. O jogral sempre funciona.

Lembrei a todos do mal-estar causado por Bolsonaro durante a


votação do impeachment em 2016, quando ele dedicou seu voto à

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memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, “o pavor de


Dilma Rousseff”, como disse na ocasião. Era uma saudação aberta a
um dos chefes da tortura no período ditatorial, feita por um
parlamentar eleito, dentro do Congresso, numa hora grave para a
democracia brasileira. “O Ustra foi inocentado”, Metta apressou-se a
dizer. “O que fazem com ele é crime de difamação.” (Na verdade,
Ustra foi o primeiro militar a ser reconhecido pela Justiça como
torturador, em 2008. Em 2012, foi condenado a pagar uma
indenização à família do jornalista Luiz Merlino, morto em 1971, ação
que prescreveu no ano passado. Práticas de tortura foram
comprovadas durante a ditadura, principalmente no QG de Ustra, o
DOI-Codi, em São Paulo.)

Os jovens bolsonaristas não acreditam nisso. “Com certeza alguém


levou uns tapas, mas ter sofrido estupro, acho difícil”, comentou
Metta. Embora se dizendo “totalmente contrária à tortura”, Catel
concordou com a opinião do advogado de que há exagero nos
“relatos da esquerda”. E recorreu a um argumento semelhante ao que
Ustra utiliza em seu livro A Verdade Sufocada, advogando em causa
própria. “Pode ser que tenha ocorrido um ou outro caso, até porque a
esquerda estava sendo agressiva. Mas não há como lidar com
bandido com flores”, disse ela. Para a empresária, Bolsonaro só
evocou o nome do coronel durante a votação do impeachment porque
outros parlamentares exaltaram, na mesma ocasião, “os terroristas”
Carlos Lamarca e Carlos Marighella. “Bolsonaro estava fazendo um
contraponto e as pessoas ficam chocadas? Como é isso? Uma
sociedade que não tem direita?”, questionou Metta, sempre o mais
incisivo. Para os três amigos, se houve algum excesso no passado, a
situação hoje é muito pior. “Foram 400 mortos em vinte anos de
regime militar, incluindo os mortos do nosso lado. Agora são 70 mil
mortes por ano no Brasil. Isso sim é violência”, pontificou Catel.
“Contra fatos não há argumentos.” Ela comparava o número de

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vítimas políticas da ditadura – 224 mortos e 210 desaparecidos,


segundo a Comissão Nacional da Verdade – com o índice de mortes
violentas no país em 2017 – 63 880, de acordo com o Anuário
Brasileiro de Segurança Pública 2018.

Antes de o trio deixar a loja de armas, Metta pegou adesivos com as


fotos de Bolsonaro e os colou na camisa. Entregou outros aos
companheiros para que fizessem o mesmo. Depois, ele me disse,
jocoso: “Hoje você vai ter uma experiência completa de direita.”

O investidor Otávio Fakhoury e o advogado Victor Metta compõem o retrato de uma geração que se
orgulha de ser de direita e cultua a família, a hierarquia, a ordem e a religiosidade. FOTO_JR
DURAN_2018

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P
or volta de uma da tarde, Catel, Metta e Fakhoury chegaram
para o almoço em um restaurante no bairro do Itaim Bibi.
Dirigiram-se a uma mesa no canto do salão, com os lugares
praticamente ocupados por quase vinte pessoas. O almoço tinha sido
organizado pela cirurgiã plástica Ana Helena Patrus, dona da Clínica
Santé – frequentada por gente famosa como Anitta, mas que já passou
por maus momentos, como em 1994, quando uma mulher morreu
durante uma cirurgia. No restaurante estavam jovens de grupos de
direita do Nordeste: o Endireita Fortaleza, o Direita Pernambuco, o
Direita Paraibana e o Movimento Liberta Brasil, do Rio Grande do
Norte. O almoço tinha dois objetivos. Primeiro, agradecer aos jovens
nordestinos por sua atuação na campanha de Bolsonaro na região, o
que nem sempre é devidamente reconhecido por seus
correligionários. Foi, por exemplo, o empresário cearense Alex Melo
que idealizou, há dois anos, as recepções ao candidato presidencial
nos aeroportos, que se espalharam pelas capitais do Norte e Nordeste,
e depois por todo o país. No almoço, o grupo também iria combinar
as ações no Nordeste na manifestação nacional em favor de
Bolsonaro, em 21 de outubro, uma semana antes do segundo turno.

O encontro com os jovens dos movimentos nordestinos tinha sido


articulado dias antes no escritório de Fakhoury, num prédio do Itaim.
“Este escritório agora é nosso quartel-general”, afirmou ele, que é o
mais inflamado do grupo. Descendente de libaneses católicos, contou
que sua família deixou o Líbano para escapar da perseguição
muçulmana. Embora seja neto de imigrantes, disse entender a reação
em alguns países contra os refugiados. “O problema é a agressão
cultural. Se imigro para outro país, eu tenho que me encaixar naquela
cultura. Mas o padrão hoje não é somar, é impor”, argumentou. “Se
uma cultura aceita estuprar a mulher do outro, a nossa moral não
permite. Chame de crime, de pecado, como quiser. Não é xenofobia.
Temos que proteger o nosso quintal. Temos que fazer checagem na
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fronteira e pegar a documentação do cara. Tem que haver triagem.”


Catel, que o ouvia com atenção, concordou com a necessidade de
restrições à imigração. “Os muçulmanos tratam a mulher como
escória. Eu não quero uma invasão muçulmana no Brasil.”

Fakhoury prosseguiu, formulando uma teoria de direita sobre os


gêneros sexuais. “A mulher de direita quer ser respeitada, quer
escolher o homem que pode tocá-la”, afirmou. O homem de direita,
por sua vez, estaria pronto para defender suas mulheres de ataques.
Ele tentou dar exemplos: na Europa, “os muçulmanos entram nos
bairros, atacam as europeias, e o europeu fica de fru-fru. Aqui não. Se
alguém entrar e atacar vocês, eu vou defender”. Citei que, no Brasil,
os índices de feminicídio são muito elevados. “O que temos aqui é o
homicídio generalizado”, contestou.

A sala de reuniões no escritório de Fakhoury estava lotada de


apoiadores de Bolsonaro, entre eles Filipe Martins, de 31 anos, da
Executiva Nacional do PSL, na qual ocupa o cargo de secretário de
Assuntos Internacionais. Professor de cursos preparatórios para
concursos do Itamaraty, Martins é articulado e sua fala tem um tom
equilibrado. Formado em relações internacionais na Universidade de
Brasília, é figura respeitada não apenas pela ala jovem do partido,
como pelos políticos mais rodados. Foi ele quem chamou a atenção
para a necessidade de, na reta final da campanha, o grupo fechar uma
estratégia de suporte à direita do Nordeste, de cujas lideranças se
aproximou ao dar palestras em várias capitais da região.

Na reunião daquela manhã, Martins criticou a cúpula do partido por


ter abandonado a militância do Nordeste. “Fizeram um trabalho
heroico e foram deixados de lado”, disse. Enumerou as qualidades da
turma: “Eles têm uma enorme capilaridade, colocaram diretórios em
todas as cidades, e dispõem, faz muito tempo, de uma militância

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organizada e proativa para fiscalizar a votação. Tudo isso com


pouquíssimos recursos.” Suas observações eram diligentemente
anotadas por Catel, que todos reconhecem como a pessoa mais
organizada do grupo.

Passaram, então, a discutir formas de fortalecer as carreatas a fim de


neutralizar o favoritismo de Fernando Haddad no Nordeste. Tiveram
a ideia de convidar parlamentares eleitos pelo PSL no Sudeste, como
a jornalista Joice Hasselmann, para participar dos eventos. Fakhoury,
que se prontificou a bancar os custos da viagem dos nordestinos a São
Paulo, sugeriu que convidassem os “Bolsokids”, como se refere aos
três filhos de Bolsonaro. Outro integrante do grupo opinou que
muitos políticos dos partidos derrotados iriam migrar para Bolsonaro
e seria bom contatá-los. “Todo mundo vai querer ficar ao lado do cara
que está ganhando”, disse um deles.

A questão da fraude nas eleições, um dos mantras de Bolsonaro e


seus seguidores durante a campanha, dominou a conversa. Fakhoury
era o mais preocupado. Martins tentou tranquilizá-lo: “Isso não tem
plausibilidade. A diferença de votos pró-Bolsonaro é tão grande que
não há fraude que o faça perder a eleição”, disse. O grupo ouviu
atento, pois Martins é visto como um bom analista de pesquisas e
tendências políticas. Ele acertou, por exemplo, o resultado eleitoral
em 48 dos cinquenta estados norte-americanos nas eleições de 2016,
que deram a vitória a Donald Trump. Seus críticos, entretanto, dizem
que os acertos são aleatórios, pois ele sempre aposta nos candidatos
da direita. Exagerando na torcida por Marine Le Pen, da extrema
direita francesa, cravou que ela venceria a eleição presidencial de
2017, mas quem ganhou foi Emmanuel Macron, de centro. Sua torcida
enviesada lhe valeu o apelido de Muralha – o mesmo do ex-goleiro do
Flamengo Alan Santana, famoso por ser sempre vazado quando a
bola vinha pelo lado esquerdo.

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O grupo passou a discutir formas de garantir maior visibilidade a


Bolsonaro nas redes sociais. Catel propôs vídeos com celebridades
que apoiavam o candidato. Fakhoury foi além: “Acho legal arrumar
um sistema para disparar no WhatsApp e pelo SMS no Nordeste. O
PT faz isso”, disse. “Podíamos disparar mentiras, tipo ‘Haddad é o
pai do kit gay’. Mas não precisa. Vamos é falar a verdade: Haddad foi
escorraçado da Prefeitura de São Paulo. Existem empresas que fazem
esse trabalho. Coloca uma maquininha e começa disparar SMS no
Nordeste.” Catel ponderou que isso sairia caro e que o partido não
teria dinheiro para bancar a estratégia. Fakhoury se dirigiu a Martins.
“O que você acha, Filipe?”, perguntou. “Acho que dá sim”,
respondeu Martins, sem muita convicção, alertando, porém, que
Bolsonaro havia dito que não queria que se impulsionassem as redes
artificialmente. Ficaram de voltar a discutir o assunto. Em 18 de
outubro do ano passado, uma reportagem da Folha de S.Paulo revelou
que empresas estavam bancando, sem declarar, disparos de
mensagem em massa pelo WhatsApp contra o PT usando a base de
usuários do candidato ou bases adquiridas por agências de maneira
ilegal. A doação de campanha feita por empresas é vedada pela
legislação eleitoral.

D
urante o almoço com os jovens bolsonaristas do Nordeste,
Mateus Henrique, do Direita Pernambuco, um jovem franzino
de 22 anos e fala rápida, mostrou, às gargalhadas, as fotos das
camisetas que tinham sido confeccionadas para serem vendidas em
seu estado. Traziam estampadas frases de Cid Gomes, senador eleito
pelo PDT do Ceará que, durante um ato em Fortaleza em apoio à
candidatura de Haddad, acabou criticando o PT e discutindo com
militantes. “Lula tá preso, babaca” e “Vão perder feio” – lia-se nas
camisetas.

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A conversa no restaurante estava descontraída. Um dos bolsonaristas


fez elogios à elegância e à juventude de Catel, de Michele Assis, líder
da Direita Paraibana, de 33 anos, e Carla Ly Vale, 35, membro do
Movimento Liberta Brasil do Rio Grande do Norte. Catel abriu um
sorriso e brincou: “A direita faz bem pra pele. Todo mundo com cara
de novinho.” Martins, sentado próximo dela, acrescentou: “Faz bem
para a beleza, para a inteligência, para os neurônios.”

Assis, uma paraibana magra e pequena, de cabelos louros escorridos


e vestido estampado, aproveitou a conversa para criticar as
feministas. “O que elas fazem é ridicularizar a mulher”, disse, em tom
de indignação. “Meu Deus do céu. Não se depilar, não se maquiar,
ficar mostrando os seios. Parecem sujas, parece que não tomam
banho. Antes de ir para a universidade são arrumadinhas. Depois,
parecem uns lixos.” A seu lado, Vale assentia com a cabeça. Pegou a
deixa para mencionar uma página no Facebook chamada “Antes e
depois da Federal”, que debocha dos modos das estudantes de
universidades federais. “A menina é toda bonitinha e depois de
entrar para a universidade federal aparece cheia de piercing,
tatuagem, usando bermuda, cabelo colorido, parecendo uma doida.”

Como Catel, Assis começou a se interessar por política em 2013. Até


então, não tinha noção do que era ser “de direita”. “Eu só sabia que a
Dilma era terrorista porque ouvia minha mãe falar”, afirmou,
referindo-se sem nenhuma precisão aos tempos em que a ex-
presidente atuou numa organização clandestina de esquerda adepta
da luta armada – não consta, porém, que tenha participado de ações
desse tipo. Assis, que é evangélica, prosseguiu, contando que se
aproximou da direita muito mais por causa da defesa dos valores
cristãos do que pela política. “A esquerda queria destruir a família e a
religião.” Quando soube de Bolsonaro, ela se uniu a outros jovens e
começou a trabalhar, em 2016, pela candidatura presidencial do então

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deputado. Ajudava a espalhar outdoors e painéis de LED pelas ruas


de João Pessoa e atuava nas redes sociais. “Era uma coisa muito
espontânea. Trabalhávamos com doações de 20 a 200 reais.” A
franqueza do candidato também a convenceu: “Ele é transparente,
fala na lata o que precisa ser falado. Não se preocupa com as
consequências.”

Entre uma garfada e outra, Vale creditou o crescimento da direita


bolsonarista no Nordeste “ao temor diante do avanço exagerado das
pautas progressistas”. Seu pensamento não diferia muito do de Assis.
“Agora começamos a ter um pouquinho mais de poder e também a
ganhar espaço na mídia”, disse, acrescentando que durante muito
tempo todos eles ficaram confinados às redes sociais, sem que a
grande imprensa os percebesse.

O
cearense Alex Melo, um homem forte de 46 anos e sorriso largo,
não disfarçava o orgulho de ter concebido as recepções a
Bolsonaro nos aeroportos. Ele contou que muitos grupos de
WhatsApp se formaram na esteira de páginas no Facebook que
divulgavam o candidato de forma bem-humorada, como Bolsonaro
Zuero e Turn Down for What, inspirado num clipe do DJ americano
Snake. A marca registrada dessa última página eram uns óculos
pretos rajados de branco, colocados sobre o rosto do candidato cada
vez que ele respondia aos que o desafiavam. A imagem de Bolsonaro
com os óculos vinha sempre acompanhada do bordão “mitou”. O
meme viralizou. Foi assim que o candidato virou “mito”.

No almoço, Mateus Henrique também não escondia sua satisfação. A


perspectiva de vitória de Bolsonaro tinha, para o estudante de
história, um sabor de vingança. Um ano antes, ele estivera entre os

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que enfrentaram um grupo de esquerda na Universidade Federal de


Pernambuco, a UFPE, durante a exibição de O Jardim das Aflições,
documentário de Josias Teófilo sobre Olavo de Carvalho, guru do
bolsonarismo e da extrema direita brasileira.

As disputas não se limitaram aos espectadores. Em julho de 2017, oito


diretores tinham retirado seus filmes da programação do 21º Cine PE
Festival do Audiovisual em protesto contra a exibição do
documentário – o que acabou lhe dando grande visibilidade na mídia.
Por fim, Jardim das Aflições foi escolhido como o melhor filme do
festival, pelo júri e pelo público.

Foi na UFPE, durante uma exibição em outubro, que a agressão física


tomou o lugar da polêmica nos confrontos sobre o filme. Um grupo
de estudantes antipáticos ao documentário tentou impedir sua
exibição, ameaçando invadir a sala de projeção. “Saiam daqui,
fascistas. A universidade não é lugar de fascistas”, berravam. Os
simpatizantes de Olavo de Carvalho, vários deles trajando camisetas
com imagens de Bolsonaro, reagiram – e a briga correu solta, até que
seguranças vieram interrompê-la. “Disseram que não deveríamos ter
ido lá, no reduto da esquerda, passar o filme, que aquilo era
provocação”, disse Henrique. “Mas o que é isso? A universidade deve
ser aberta para todo tipo de pensamento. Não é democrático não
deixar o filme ser exibido porque tem viés de direita. Isso é
stalinismo. É coisa de gente autoritária.”

O
s protestos de Mateus Henrique emulavam o pensamento de
Olavo de Carvalho. Há mais de duas décadas, primeiro na
imprensa, depois em seus cursos de filosofia online e em
pregações nas redes sociais, Carvalho defende com insistência que

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existe um pensamento hegemônico de esquerda no país. Sua


concepção do que é esquerda costuma ser bastante elástica. De
Fernando Henrique Cardoso a Lênin, quase todo mundo cabe no
guarda-chuva. Uma de suas obsessões é o conceito de hegemonia,
desenvolvido pelo filósofo marxista italiano, Antonio Gramsci.

Morto aos 46 anos, em 1937, depois de passar dez anos preso pelos
fascistas de seu país e escrever boa parte de sua extensa obra no
cárcere, Gramsci defendeu que o exercício do poder tem uma
dimensão coercitiva, que cabe ao Estado, e uma dimensão, por assim
dizer, persuasiva, que cabe não ao Estado, mas à sociedade civil
desenvolver. As escolas, as universidades (poderíamos dizer hoje “as
redes sociais”) são espaços em que se disputa a hegemonia das ideias,
ou da condução mental de uma sociedade em determinado período
histórico. Sem ter hegemonia na sociedade, sem persuasão, é muito
mais difícil se manter no poder recorrendo apenas aos instrumentos
coercitivos do Estado.

Apropriando-se das ideias de Gramsci à sua maneira, Carvalho


denuncia a hegemonia obtida pela esquerda nos fóruns pensantes do
país, com especial obsessão pela USP, e trabalha para que suas
próprias ideias ganhem terreno. Tal projeto já constava do livro O
Jardim das Aflições, de 1995, cujo subtítulo é “De Epicuro à ressurreição
de César: Ensaio sobre o materialismo e a religião civil”, mas que se
dedica também à crítica da esquerda contemporânea. A ele se seguiu
O Imbecil Coletivo – Atualidades Inculturais Brasileiras, de 1996, uma
caudalosa coletânea de pequenos ensaios, a maioria publicada na
imprensa e que transformou o autor num best seller.

Foi nessa época, a segunda metade dos anos 90, que Carvalho
começou a aparecer com mais frequência nas páginas dos grandes
jornais do país. Publicou na Folha de S.Paulo e em outros veículos e

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manteve, entre 2000 e 2005, uma coluna no jornal O Globo, até ser
dispensado. Mudou-se então para Richmond, na Virgínia, onde vive
em um casarão numa área arborizada, ao lado da terceira mulher,
Roxane Andrade Souza. Ao longo dos anos, tornou-se uma espécie de
pai espiritual da direita, que começou a ganhar terreno na esfera da
cultura. Nomes como Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi e Luiz
Felipe Pondé se beneficiaram da trilha aberta por Carvalho. Com Lula
no poder desde 2003, havia espaço para o antipetismo raivoso crescer.
O polemismo de direita virou um nicho de mercado no país.

Carvalho passou a ministrar aulas à distância. Em 2006, criou o


programa True Outspeak, que era transmitido pela internet, do
escritório de sua casa. No programa, feito com produção mambembe
(o que faz lembrar, também nesse aspecto, as transmissões ao vivo de
Bolsonaro), Carvalho discutia política, filosofia, atacava a degradação
dos costumes e dos valores morais – e disparava insultos contra
marxistas, feministas e “gayzistas”. Também inventou, em 2009, o
Curso Online de Filosofia (COF). Sua fala vem frequentemente
recheada de palavrões e imagens chulas ou escatológicas. A mistura
entre o tom elevado e filosofante e a linguagem baixa, comum nas
redes sociais, conquistou o público jovem.

Alguns exemplos. Certa vez, Olavo de Carvalho reagiu aos ataques


do jornalista Breno Altman, ligado ao PT, que no seu site Opera
Mundi o chamara de “filósofo de bordel”, “degenerado” e “verme”.
O ataque se dera em razão das críticas que Carvalho fizera ao Foro de
São Paulo – uma conferência organizada pelo PT, em 1990, para
discutir os rumos da esquerda na América Latina após o fim da União
Soviética – e por ele ter associado o ex-ministro José Dirceu a Raúl
Reys, comandante das Farc, as Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia. Na réplica, Carvalho disse que Altman não podia ser
chamado sequer de carregador de mala de Dirceu – melhor seria

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“chupador de camisinha usada de Dirceu”. E acrescentou: “Ele fica


debaixo da cama do Dirceu chupando as camisinhas usadas dele.” Ao
fundo, era possível ouvir as risadas de uma mulher, presumidamente
sua esposa.

O sêmen parece uma obsessão. Num artigo contra o movimento gay


escrito para o Jornal do Brasil, em 2007, Carvalho afirma: “Não posso
crer que meu pai teria agido melhor se em vez de depositar seu
esperma no ventre da minha mãe ele o injetasse no conduto retal do
vizinho, de onde o referido líquido iria para a privada na primeira
oportunidade.”

Em outra ocasião, falando sobre a baixa qualidade do ensino nas


escolas brasileiras, Carvalho insultou os professores: “Eles querem
ganhar dinheiro para ensinar o teu filho a dar o cu e a chupar a piroca
deles.” Disse que os docentes não mereciam ganhar nada e defendeu
o fechamento do MEC. “O prédio deveria ser derrubado e
transformado em estacionamento de cabras.” Numa terceira
apresentação do True Outspeak, discutindo meio ambiente, atacou
defensores da energia de matriz limpa que haviam chamado o
petróleo de combustível fóssil. “Combustível fóssil é o cu da mãe”,
filosofou. A despeito do que diz, Carvalho costuma preservar o tom
de voz inalterado e mantém a aparência de um senhor pacato, o que
ajuda a compor a figura do velho sábio.

Boa parte dos grupos que surgiram ou cresceram nas manifestações


contra o governo petista – como o Revoltados On Line, o Vem Pra
Rua, o Acorda Brasil – foi declaradamente influenciada por Carvalho.
“Olavo tem razão” virou um bordão estampado nas camisetas dos
manifestantes. Sua notoriedade galgou um novo patamar depois da
publicação do livro O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um
Idiota, uma coletânea de textos publicados na imprensa entre 1997 e

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2013, que já ultrapassou os 500 mil exemplares vendidos. “As pessoas


tiravam fotos nas manifestações com o livro dele e colocavam na
internet”, descreveu Filipe Martins, que fez o curso online de filosofia
e é hoje um dos discípulos mais próximos.

Martins não tem dúvida de que Olavo de Carvalho é a figura central


para se entender o crescimento da direita jovem no Brasil. “Ele
diagnosticou o problema lá atrás, com o livro O Imbecil Coletivo”,
disse, referindo-se à obra de 1996. “Depois foi instruindo a juventude
por meio de pequenos textos, imagens e frases de autores
conservadores, que postava nas suas plataformas digitais.” O maior
mérito de Carvalho, segundo ele, foi ter legitimado o pensamento
conservador. “Somos um país conservador. A maioria da nossa
sociedade não é afeita à união homoafetiva, ao aborto. Os nossos
valores foram escanteados da grande imprensa por serem
considerados incivilizados”, disse Martins. “O Olavo nos ensinou a
não termos vergonha das nossas ideias.”

C
onversei com Olavo de Carvalho, via Skype, em 15 de
novembro. Seu computador fica sobre a escrivaninha do
escritório de sua casa em Richmond. É dali que ele fala com os
alunos e transmite as aulas do Curso Online de Filosofia para os
seguidores. Ao fundo, vê-se uma estante e um armário recheados de
livros. Com modos cordiais, ele disse não ter dúvida de que sua
influência tinha a ver com a falência do pensamento de esquerda.
“Vamos dizer que era possível até os anos 50 uma pessoa inteligente
acreditar que a análise crítica marxista do capitalismo tinha algum
sentido”, afirmou. “Agora isso não é mais possível. Toda a
sustentação dos partidos de esquerda é na base da mentira, do
artifício, do truque sujo, do teatrinho.” Deu um trago no cigarro (é um

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fumante compulsivo) e continuou: “É um castelo de cartas. Ou


melhor, desculpe a expressão, é um castelo de peidos. Não há nada
ali. É tudo furado. O primeiro a chegar lá e cutucar, como eu
cutuquei, a coisa toda cai.”

Durante quarenta minutos de conversa, repisou seus tópicos


prediletos. O desencanto de parte expressiva dos jovens brasileiros
com as ideias progressistas (que ele chama sempre de esquerdistas)
não se explica apenas pela corrupção e pela crise econômica no país.
Diz que está relacionado a questões morais e de costumes. Iniciou
então uma preleção extravagante: “O PT adotou a estratégia da Escola
de Frankfurt para destruir o capitalismo a partir da nova cultura
moral. Essa estratégia defende relações incestuosas entre mãe e filho
como meio de destruir a família. O Haddad está defendendo isso.”
Não consta que a renomada escola que reuniu alguns dos principais
filósofos do século XX, como Theodor Adorno, Max Horkheimer e
Herbert Marcuse, tenha defendido o incesto. Também não se tem
conhecimento de que Haddad tenha feito qualquer proposta desse
tipo. Carvalho, entretanto, insiste que isso ocorreu e que o assunto foi
tratado como fake news pela Folha de S.Paulo, jornal para o qual escreve
de quando em quando. “A Folha de S.Paulo é uma organização
criminosa. Ela só serve pra mentir em favor do PT”, arrematou.

Seus ataques se estenderam a O Globo, que ele afirmou ter cortado a


sua última coluna, em 2005, porque não aceitava a tese dele de que a
esquerda latino-americana articulava um complô a partir do Foro de
São Paulo. Esse teria sido, segundo ele, o motivo de sua demissão do
jornal. “O que O Globo fez foi a maior fraude jornalística da nossa
história. Enganaram o público para proteger Lula e outros bandidos”,
disse.

Carvalho sustenta que existe uma aliança entre o “frankfurtianismo

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da esquerda” (nos termos definidos por ele) e os grandes interesses


internacionais, econômicos e corporativos. O raciocínio é tortuoso. Ao
refutar os valores tradicionais – família, religião etc. –, a esquerda
estaria ajudando a transformar a “ganância econômica” no único (ou,
ao menos, no principal) fator de organização da sociedade. “Na sua
ignorância, a esquerda está fazendo o jogo da Fundação Rockfeller,
do George Soros, do New York Times. Estão todos a serviço dos
milionários. Quando a economia restar como único valor, esses
milionários vão impor ao mundo um capitalismo infernal.” Enquanto
fala ao mesmo tempo contra a esquerda e contra o capitalismo e os
atores da globalização, Carvalho aproxima sua pauta de posições
nacionalistas – e, para evitar os descaminhos, a única solução é este
conjunto harmônico formado pela religião, a família e a pátria.

As teses de Carvalho não seduziram apenas jovens estudantes:


também chamaram a atenção dos filhos de Jair Bolsonaro, que as
sopraram ao pai. Não à toa, em seu primeiro pronunciamento pela
internet após a vitória, na noite de 28 de outubro, o presidente eleito
apareceu em frente a uma mesa sobre a qual havia um exemplar de O
Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota, exposto ao lado
da Bíblia, da Constituição brasileira e de uma biografia de Churchill.
O fascínio da família com o intelectual é tamanho que Flávio, o mais
velho dos filhos de Bolsonaro, e Eduardo, o terceiro do clã, foram até
os Estados Unidos para conhecê-lo.

Apesar de ter a estima do presidente, Carvalho não se considera


ideólogo de Bolsonaro. “Eu me considero um amigo da família. Eles
aceitaram duas ou três ideias minhas. Mas não são meus seguidores”,
desconversou. A modéstia não durou muito. “A intenção deles é de
que eu seja [um ideólogo ao alcance dos Bolsonaro], mas não fazem o
meu curso.” Fez uma pausa, tragou o cigarro com gosto, e
acrescentou: “Agora, dizer que sou ideólogo do partido, de uma

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corrente política, meu Deus do céu… Pegue o exemplo de Mussolini.


O ideólogo dele era o Alfredo Rocco [ministro da Justiça da Itália entre
1925 e 1932]. O que o Alfredo Rocco fazia? Pegava as ideias do
Mussolini e dava a elas uma forma mais elegante. Eu não faço isso
com Bolsonaro.” Para que não restassem dúvidas, reforçou: “Não
estou formulando as ideias do Bolsonaro. Eu não tenho
absolutamente nada a ver com o partido do Bolsonaro, nem com a
campanha do Bolsonaro, nem com coisa nenhuma. Eu já disse que eu
sou apenas um eleitor do Bolsonaro, sou amigo da família,
especialmente do Eduardo e do Flávio.”

N
a sua trajetória já longa pelo campo conservador, o guru do
bolsonarismo acabou deixando desafetos pelo caminho. Um
deles é Rodrigo Constantino, a quem a revista Época chamou
anos atrás de “novo trombone da direita brasileira”. Constantino foi
blogueiro e colunista da revista Veja e hoje trabalha para a IstoÉ. A
expressão “esquerda caviar”, que foi criada na França (gauche caviar) e
ele adotou no título de um livro, lhe rendeu certa fama. Formado em
economia pela PUC do Rio de Janeiro, Constantino hoje vive em
Miami. Ele acredita que Olavo de Carvalho perdeu o prumo ao
defender “a desmoralização do sistema inteiro” e pretender
reconstruir tudo do zero. “É uma coisa meio jacobina”, disse ele, por
telefone. Citou como exemplo do jacobinismo de Carvalho a sua
reação quando o Movimento Brasil Livre, o MBL, anunciou apoio ao
governo de Michel Temer. “As reformas da previdência e política que
o MBL apoiava fazem parte do ideário liberal, e foram rechaçadas por
Carvalho. O comportamento do MBL era racional. Havia uma
preocupação com o país que não existe no discurso niilista do
filósofo”, disse Constantino.

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Carvalho, à época, também atacou os membros do MBL por eles


terem se lançado na política institucional, chegando a eleger sete
vereadores em 2016. Ele defendia que a nova direita deveria se
concentrar na ocupação de espaços “nas escolas, na igreja, nas
sociedades de amigos”, e não no Estado. À maneira gramsciana,
Carvalho privilegiava a busca de hegemonia no âmbito da sociedade
civil, o que, para Constantino, é um equívoco. “A democracia exige
participação nas formas institucionais de poder”, disse. Nas eleições
de 2018, nove alunos do curso de filosofia de Carvalho se elegeram
deputados – e Constantino não se lembra de ter ouvido Carvalho
protestar.

“Está claro que hoje a direita jovem está rachada”, avaliou. “Existe o
MBL, que defende ideias liberais para a economia, e existe essa direita
conservadora apoiadora de Olavo, cujos seguidores foram
apelidados, por ele mesmo, de olavettes.” Constantino apontou o
mais flagrante equívoco político do intelectual: opor-se ao
impeachment de Dilma Rousseff. À época, Carvalho defendeu que o
impeachment não passava de “uma manobra para a salvação da
classe política” e a manutenção da esquerda no poder. O resultado
das eleições do ano passado, com a vitória espetacular da direita,
desmontou, na avaliação do economista, a tese estapafúrdia.

Outro que já manteve boas relações com o intelectual, mas tornou-se


um de seus mais vigorosos desafetos, é o jornalista Reinaldo
Azevedo. Divergências a respeito do impeachment de Dilma
desencadearam a ruptura, mas também as teses de Carvalho em
defesa da democracia plebiscitária. Na visão do jornalista, esse
modelo político seria idêntico ao que o PT aspirava implantar no país,
copiando o que foi feito na Venezuela por Hugo Chávez e Nicolás
Maduro. Em um artigo na revista Veja, em 2016, Azevedo, cuja verve
é tão demolidora quanto à do adversário, chamou Carvalho de

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“mascate da paranoia” e de “Aiatolavo”, em alusão ao líder religioso


xiita. A resposta não demorou. Em entrevista à BBC, Carvalho disse
que Azevedo e outros desafetos queriam ser os representantes
primordiais da direita. E reclamou: “O pessoal comunista nunca
mentiu a meu respeito tanto quanto essa turma de direita emergente.”

Antigos alunos também se decepcionaram com o mestre, como o


ensaísta Martim Vasques da Cunha, doutor em filosofia política pela
USP. Ele contou que, nos anos 90, Carvalho costumava evitar o
embate político e sugeria o estudo e a reclusão. Tudo mudou a partir
de 2010. “Ele partiu para uma guerra cultural.” A banalização do
discurso foi a consequência imediata. “Duvido que esses jovens que
hoje o apoiam têm algum conhecimento profundo de filosofia ou
mesmo das obras dele”, avaliou Cunha. “Essa gente é ávida por
receber informações superficiais na rede, revestidas de uma
roupagem filosófica. São leitores de textos básicos de Facebook.”​

E
mbora renegado por alguns ex-discípulos, Carvalho exerce
inquestionável fascínio sobre a juventude de direita. “Esse
homem sozinho mudou o rumo intelectual da nação”, afirmou o
advogado Victor Metta, em seu escritório, um casarão numa rua
tranquila no Itaim. “Somos todos olavettes: eu, a Leticia, o Filipe e o
Otávio.” Em junho de 2013, quando as ruas brasileiras começaram a
ferver, Jair Bolsonaro era um político praticamente desconhecido da
maioria da população. Mas os ventos já sopravam na sua direção.
Dias antes das manifestações eclodirem, uma gigantesca marcha de
evangélicos ocupou a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em
defesa dos valores conservadores. Por ter apoiado o pastor Marco
Feliciano na discussão sobre ideologia de gênero nas escolas,
Bolsonaro foi o único parlamentar convidado pelos evangélicos a

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subir no palanque para falar à multidão. Ele não falou muito, mas
encerrou seu discurso com o bordão militar que costumava usar em
todas as suas preleções: “Brasil acima de tudo.” Então, dando-se
conta do potencial do voto religioso, acrescentou: “Deus acima de
todos.” Os slogans seriam adotados em sua campanha presidencial.

Foi quando Leticia Catel o descobriu. “Eu pensei: ‘Esse homem vai ser
a salvação’”, contou. Decidiu apoiá-lo. Mas havia um impedimento:
ela morava em Jundiaí, e Bolsonaro era deputado pelo Rio de Janeiro.
Uma amiga a alertou de que Eduardo Bolsonaro, escrivão da Polícia
Federal em São Paulo, sairia candidato a deputado federal pelo
estado nas eleições de 2014. Catel mandou uma mensagem a ele,
dispondo-se a ajudá-lo na campanha. Acabaram ficando amigos.
Eduardo fez o seu primeiro discurso de campanha na fábrica do pai
de Catel, em Jundiaí. Mario Catelani mandou os operários pararem as
máquinas para ouvir o jovem candidato. “O Eduardo me contou
tempos depois que ficou muito nervoso naquele dia”, ela disse, rindo.
“Foi o seu primeiro discurso para uma plateia expressiva.”

Nessa época, Catel estava engajada na busca de uma saída para a


economia livre das amarras do Estado. “Comecei a trabalhar muito
cedo, junto com meu pai, e vi como o Estado, na verdade, atrapalhava
os negócios.” Também se incomodava com os seus professores de
viés marxista e a crítica que faziam ao capitalismo. “Eu não podia
concordar quando diziam que o empresário era ruim e que o
trabalhador era explorado porque eu via o meu pai sempre ajudando
os empregados da empresa dele”, disse. Disposta a encontrar um
caminho que a satisfizesse, matriculou-se em uma pós-graduação no
Instituto Mises Brasil, um think tank sediado em São Paulo que prega
o liberalismo econômico e político, conforme as ideias dos
economistas da chamada Escola Austríaca, cujos representantes
centrais são Carl Menger, Ludwig Von Mises e Friedrich Hayek.

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“Menos Marx, Mais Mises” era uma das frases que costumavam
aparecer em cartazes nas manifestações da direita, levados
principalmente pela turma do MBL. Era o anúncio de que o
pensamento ultraliberal havia entrado no debate.

O Instituto Mises Brasil ocupa parte de um andar em um prédio


moderno e envidraçado, também no bairro Itaim, em São Paulo. A
decoração do local é despojada e agradável, com mesas de madeira e
bancos cobertos por almofadas coloridas, próximos à ampla vidraça.
Foi fundado por Hélio Marcos Coutinho Beltrão, 51 anos, um homem
entusiasmado e sorridente, filho do ex-ministro Hélio Beltrão, ex-
ministro do Planejamento e também da Previdência e da
Desburocratização, durante o regime militar. Coutinho Beltrão é
economista, egresso do mercado financeiro e trabalhou no Banco
Garantia, de Jorge Paulo Lemann, até a instituição, abalada pela crise
da Ásia em 1998, ser vendida para o Credit Suisse First Boston. Ele
contou que passou anos tentando entender as razões de os analistas
financeiros não terem detectado a crise de liquidez que abalou o
mercado mundial naquele final de década – e que quase quebrou o
banco em que trabalhava.

Uma tarde, deparou-se com um livro de Hayek, Desestatização do


Dinheiro, que foi para ele uma revelação. Criou em 2007 o Instituto
Mises Brasil, que tem atraído sobretudo os mais jovens. “Eles
descobrem o Mises e ficam maníacos. Querem ler tudo sobre Escola
Austríaca, querem fazer parte do clube que estuda o assunto, tirar
foto comigo e com os professores”, exaltou-se. O instituto foi além do
liberalismo. Começou a difundir também o “libertarianismo”, que se
pretende herdeiro direto dos liberais austríacos e adotou este nome
depois que o termo “liberalism” foi vulgarizado nos Estados Unidos,
chegando a ser empregado por alas da esquerda.

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Há cerca de dez anos, em uma conversa com Paulo Guedes, o novo


ministro da Economia, este lhe disse que os liberais tinham perdido a
guerra das ideias porque só falavam de teorias econômicas e não
apaixonavam ninguém, ao passo que a esquerda falava de valores
que tocavam as pessoas, como saúde, educação e preconceitos de
todo tipo. Coutinho Beltrão explicou a Guedes que ele estava
tentando fazer no Instituto Mises Brasil justamente isso: fundir o
“liberalismo humanista” de Ludwig von Mises com a defesa
intransigente da liberdade individual do movimento libertarista – o
que inclui, inclusive, defender o casamento gay, o porte de armas, a
liberação das drogas e até o direito ao suicídio. “Se você não está
causando mal a terceiros, o Estado não pode se meter na sua vida.”
Empolgado, ele me disse que a igualdade é uma utopia comum aos
marxistas e aos libertários, mas que os primeiros buscam esse ideal
recorrendo aos meios errados. “Nós, por nosso lado, temos os meios
certos para chegar à igualdade, que é através da liberdade individual.
A Escola Austríaca, embora liberal, é humanista.”

No começo de 2016, por sugestão de Leticia Catel, Eduardo Bolsonaro


decidiu fazer uma pós-graduação sobre economia liberal no Instituto
Mises Brasil. Ela disse que Eduardo passou então a compartilhar com
o pai as ideias apresentadas nas aulas. “Eu ficava muito feliz ao ver o
Jair defendendo ideias que discutíamos no Mises, tais como menos
intervenção estatal, menos impostos, menos burocracia.” Coutinho
Beltrão também reconhece a conversão de Bolsonaro às pautas
liberais, mas evita creditar essa mudança às teses do Instituto Mises
Brasil. “Acho que tem a ver com o fato de entender o que a sociedade
está pedindo. Mas, sem dúvida, o Eduardo deve ter batido muitos
papos com ele.”

Durante sua pós-graduação no Mises Brasil, Catel foi convidada por


Coutinho Beltrão a participar de um grupo do Instituto de Formação

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de Líderes, que reúne herdeiros de grandes fortunas. Ali fez contatos


com muitos empresários, embora ela faça questão de dizer, mesmo
brincando, que não pertence ao “clube dos milionários”. Esses
contatos seriam preciosos para aproximar Jair Bolsonaro da elite
empresarial paulista.

A essa altura, Catel já estava muito próxima da família Bolsonaro.


Durante a campanha presidencial, organizou eventos, contratou
seguranças e ajudou na logística de deslocamento do candidato. “Se o
meu pessoal estivesse no comando da segurança dele em Juiz de
Fora”, disse, “duvido que teria acontecido tudo aquilo.” “Seu
pessoal” é um grupo de ex-policiais donos de empresas de segurança
e que também dão aulas de defesa pessoal e de Krav Magá, luta
utilizada pelo exército israelense e que ela também pratica. Como
conhecia um deputado de origem brasileira no Parlamento italiano,
Catel foi quem ajudou na aproximação de Bolsonaro com o político
de extrema direita italiano Matteo Salvini, atualmente ministro do
Interior e um dos primeiros líderes internacionais a se posicionar a
favor do candidato Bolsonaro.

Por causa de sua atuação no comércio exterior, Catel também tinha


contatos com empresários na América Latina. Às vésperas do
segundo turno, ela foi uma das pessoas que participaram da pequena
comitiva que seguiu até o Paraguai em busca do apoio do presidente
do país, o conservador Mario Abdo Benítez, eleito no ano passado.
Outra ação de peso em favor de Bolsonaro no mundo dos negócios
veio de Victor Metta. Judeu praticante, ele foi um importante elo de
aproximação do candidato do PSL com parte da comunidade judaica
de São Paulo.

A trama de relações de Catel se ampliou e, conduzida pela família


Bolsonaro, ela se aproximou do grupo de generais do entorno do ex-

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capitão. A partir de meados de 2017, esse grupo passou a se reunir em


Brasília para propor ideias para um futuro governo Bolsonaro. Os
encontros ocorriam na casa do general Oswaldo Ferreira, que chegou
a ser cotado para o Ministério da Infraestrutura. Todas as quartas-
feiras, um especialista era convidado para discutir um tema
específico. Catel foi chamada para debater comércio exterior. Filipe
Martins participou das conversas sobre política internacional. E Metta
falou sobre direito tributário, sua especialidade. Como a casa do
general Ferreira começou a ficar pequena para o número de
participantes, Catel tomou a iniciativa de alugar, às suas expensas, a
sala de um hotel em Brasília. Por causa dessa aproximação com os
militares, ela foi apelidada de “Leticia Quartel” por seus detratores.

N
um final de tarde de outubro, fui com Catel e Martins até a
fábrica do pai dela, em Jundiaí. Ela mesma dirigiu o jipe preto
blindado. A empresária havia sido destituída do cargo de
secretária-geral do PSL em 27 de setembro, por decisão do então
presidente nacional do partido, Gustavo Bebianno, e do presidente do
PSL em São Paulo, Major Olimpio – foi este que comunicou a Catel
seu desligamento, via WhatsApp, como costuma ser feita quase toda
a comunicação dos integrantes do PSL.

Ela explicou a decisão dizendo que não foi compreendida em seu


modo de agir. “Eu sou empresária. Gosto de ver as coisas
acontecerem, tomo a frente. Não sou o tipo de pessoa que acha que é
preciso fazer uma assembleia para decidir tudo o que precisa ser
feito”, disse. “Talvez esse meu jeito tenha incomodado algumas
pessoas acostumadas a agir de modo antigo e ultrapassado.” Martins,
da executiva nacional do PSL, saiu em sua defesa. “Para mim não
mudou nada. Continuo consultando a Leticia para tudo. Um partido

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não pode abrir mão de uma pessoa tão eficiente como ela”, disse.
Major Olimpio não vê da mesma forma. “Ela se postava o tempo todo
como coordenadora da campanha do Bolsonaro. Isso causava uma
série de dissabores”, ele disse, enquanto se preparava para dar
entrevista a uma rádio em São Paulo, um dia antes da eleição do
primeiro turno. Ele enumerou suas queixas: “Primeiro, ela não tinha
essa autonomia; segundo, não dava satisfação a ninguém; terceiro, eu
sou o presidente do partido e via por fotos que ela estava cada dia
num lugar, dando entrevista, junto com o general Mourão, sem
autorização do partido para fazê-lo.” Major Olimpio contou que a
destituição de Catel fora decidida por Bebianno, mas que “todos”, ele
frisou, “todos dentro do partido concordaram”. Segundo ele, foi uma
decisão unânime da cúpula do PSL.

O desconforto da cúpula do partido com Catel havia se acentuado


com o episódio do esfaqueamento de Bolsonaro, em setembro. Foi ela
e Metta que levaram, no monomotor do escritório do advogado, o
médico-cirurgião Antonio Macedo de São Paulo até Juiz de Fora para
examinar o candidato, então já operado e atendido pelos médicos da
Santa Casa de Misericórdia da cidade mineira. Catel e Metta
convenceram Bolsonaro e sua família a transferir o candidato para o
Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Ocorre que, antes disso,
Bebianno já havia contatado o diretor do Hospital Sírio Libanês,
Roberto Kalil Filho, para que cuidasse do caso. Kalil enviou três
médicos de sua equipe para examinar Bolsonaro. “Nós não podíamos
deixar que o Jair fosse levado para o Sírio Libanês, que atende os
políticos do PT”, justificou a empresária – o hospital já atendeu
políticos de vários matizes, de José Serra a José Sarney, de Dilma
Rousseff a Paulo Maluf. A família Bolsonaro concordou com os
argumentos e o candidato foi transportado num jato hospitalar para o
Einstein. Bebianno acabou atropelado pela dupla Catel e Metta.

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A fábrica de Mario Catelani fica em um condomínio arborizado, em


Jundiaí. Ele fala baixo e pausado e tem o sotaque carregado do
interior de São Paulo. Sentado em seu escritório, com vista para o
enorme galpão onde fica a área de produção da fábrica, não esconde o
orgulho que sente da filha. “Todos os meus três filhos trabalharam
desde cedo. Eles voltavam da escola e vinham me ajudar no negócio
que estava começando.” E elogiou a independência da filha, que criou
sozinha a própria empresa.

Nesse momento, Catel interrompeu a conversa e disse que, por isso


mesmo, sempre criticou os movimentos feministas. “Eu sempre
trabalhei com homens, num setor muito masculino, que é o mecânico,
e nunca me senti vítima de machismo”, falou. “Sempre consegui ser
respeitada pela minha competência.” Aproveitou para fazer novos
ataques à esquerda que, segundo ela, fica “inventando pautas para
vitimizar a mulher”. Disse que não se importa de levar cantada, mas
não admite que toquem nela, sem que ela queira. “Agora, se me
cantarem e eu não gostar eu revido, xingo, e pronto. Não faço
drama”, afirmou. No momento, não está namorando. “Não tenho
tempo”, justificou. Mario Catelani olhou para a filha e comentou: “Ela
é assim, determinada.” Por isso, ficou surpreso com a decisão do
partido de afastá-la. “Como puderam tirar uma jovem tão
comprometida? Isso me deixou chateado pra caramba.”

Após a vitória de Bolsonaro, Catel, Martins e Metta foram chamados


para participar do grupo de transição, em Brasília. Metta atuou na
equipe de Paulo Guedes. Catel e Martins, no grupo de relações
exteriores, trabalhando próximos ao ministro Ernesto Araújo – que foi
sugerido para o Itamaraty por Olavo de Carvalho. Assim que foi
indicado, Martins fez uma ligação via Skype para Carvalho da qual
participaram Araújo e Catel. O intelectual teve influência também na
escolha do ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, defensor

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Juventude bolsonarista 07/05/2019 21)05

da “escola sem partido”, uma das bandeiras dos bolsonaristas. Dias


depois das duas nomeações, Carvalho escreveu na sua página no
Facebook: “Não trabalho para a direita brasileira. Eu a inventei,
porra.”

Martins acompanhou Eduardo Bolsonaro aos Estados Unidos, em


novembro, na visita ao ex-sub-secretário para assuntos políticos de
Donald Trump, Thomas Shannon, uma tentativa de aproximar
Bolsonaro do governo americano. De lá, Martins seguiu com Eduardo
para a Colômbia, para uma visita ao presidente colombiano, o
conservador Iván Duque. Metta e Fakhoury, por sua vez, foram a
Israel para a comemoração dos 70 anos do Estado judeu. Os dois,
junto com Martins, apoiam a transferência da embaixada brasileira
de Telaviv para Jerusalém, o que é rechaçado por parte da diplomacia
brasileira.

No final de novembro, voltei a falar com Catel, que tinha entrado


numa rotina intensa em Brasília depois da vitória de seu candidato.
“O Jair nasceu para ser presidente. Ele é a minha esperança”, afirmou.
Pragmaticamente, acrescentou: “Muita coisa foi projetada na figura
dele. Será um risco muito grande se ele decepcionar os eleitores. Se
não fizer as mudanças que esperam, as pessoas podem se voltar
contra ele. A militância da direita não é fanática, não é apegada a
personagens e sim a valores. Se o Jair errar, ele perde o apoio. Meu e
de todo mundo.”

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