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A indignação e o compromisso1

Lilian Cordeiro
Michele Guadagnin2

A nossa indignação é uma mosca sem asas


Não ultrapassa a janela de nossas casas

Samuel Rosa, Chico Amaral

No capítulo 7 do livro, Camps vai tratar da indignação e do compromisso. Para esse


fim, inicia falando sobre a ira, afirmando que é uma das emoções mais controvertidas, sendo
considerada inconveniente para as pessoas.
Camps traz Aristóteles, que trata da ira no Livro II da Retórica, considerando-a como
uma vontade de vingança, causada por uma depreciação sem razão manifestada ao sujeito, ou
aos seus próximos. Segundo ele, pode-se depreciar por desdém, ultraje ou colocando a pessoa
em situação vexatória. Em todos os casos essas atitudes são percebidas como injustas e
imerecidas. O filósofo diz que os mais suscetíveis a se encolerizar são os que se encontram
em situação de inferioridade, pois se irritam com os indiferentes a sua situação. O que
provoca a indignação é a falta de consideração, o não reconhecimento pelo que a pessoa é, o
fato de ser tomada como inferior, anulada ou não vista. A ira expressa, então, a debilidade do
ser humano que ao não receber o trato que merece, deseja a vingança e o reparo do desprezo
do qual foi objeto.
Para Aristóteles, a indignação, porém, é uma emoção distinta. Como a compaixão, ela
surge da percepção de uma injustiça. Dessa forma, para bem indignar-se, há que se ter bons
critérios: a indignação é justa ao homem bom que não obtém o que foi acordado, ao que tem
bom juízo e odeia a injustiça. Camps pondera que também pode se indignar o homem
ambicioso que não obtém o que quer. O filósofo, ao contrário, afirma que a indignação é
provocada pela impressão de um desajuste. E, já que parte de uma falta de justiça, a
indignação pode servir de impulso para a virtude.
Ao contrário de Aristóteles, um filósofo da moral, Sêneca, um moralista, não vê a ira
como capaz de se reverter em uma coisa boa. Ao tentar perceber os benefícios que o irado
1
Escrito a partir do Cap. 7 do livro de Vicória Camps, El gobierno de las emociones. Barcelona: Herder, 2011,
para a disciplina Problemas Educacionais Contemporâneos II.
2
Acadêmicas da Disciplina, discentes do PPGEDU UPF.
possa obter ao se deixar levar por essa emoção, conclui que o benefício é nulo. Portanto, o
importante é livrar-se desse sentimento, pois, ao contrário, acabará dominando quem o
possua. As paixões são para os estoicos padecimentos e, em geral, sempre nocivas.
Ainda que não se possa dizer que a capacidade de encolerizar-se seja exclusiva dos
humanos, pois os demais animais se irritam, a ira como paixão só se dá nos humanos. Porém,
para os estoicos ela não é natural, pois é inútil, e a natureza não dá nada inconveniente aos
humanos.
A proposição ao sábio estoico é que ele aprenda a agir de acordo com a natureza, sem
querer dominar o que é natural e inevitável como a morte, a velhice ou a doença. Porém se a
dor é inevitável, o sofrimento não é, dependendo de nós sofrer ou não sofrer, conforme a
disposição mental de aceitar ou afrontar as desgraças. Não podendo ser natural o que é
destrutivo, a ira é um sentimento a ser combatido. O problema em sua essência é que a ira
engendra vingança, que não é bem vista por Sêneca.
A apatheia, própria dos sábios, é o entendimento do que seja a realidade e a
representação mental que fazemos dela. Essa representação pode não refletir a realidade, pois
mostra uma percepção subjetiva, parcial e condicionada pelas múltiplas circunstâncias que
nos constituem e singularizam nosso ponto de vista. Assim, o homem sábio deve perceber a
realidade sem o filtro de sua subjetividade. Ele não se deixa levar pela cólera, mas se defende
dela. Mesmo se a vingança for necessária, não será a ira com sua loucura e precipitação que
ajudará a perpetrá-la.
Também não pode existir ira comedida, pois se a paixão se assenhora é impossível
detê-la ou moderá-la. Por exemplo, num julgamento, o bom juiz não pode se valer da raiva
provocada pelo ato praticado pelo réu, mas julgá-lo com parcimônia e sem ódio. O sábio não
se irrita porque não percebe a injustiça, mas porque a vê com muita clareza, sabendo que a
irritação não irá ajudá-lo a combatê-la.
Os estoicos apontam alguns remédios para a ira, que Camps ironiza como os
precursores da autoajuda. Para eles, primeiramente há que se fazer um exercício de refutação,
com o objetivo de não ser arrastados pelo pathos e dominar a si mesmo. Uma das atitudes a
ser cultivada é a paciência, a moderação, escolhendo conviver com pessoas que não nos
provoquem cólera e que concordem com nossas razões 3. Também é preciso não se irritar com
coisas fúteis e sem importância e ter uma atitude reflexiva diante das inconveniências da ira.
Nesse ponto, Camps faz uma reflexão: se a ira é algo tão nocivo, pode a indignação
diante de uma injustiça ser uma coisa positiva? Tem sentido falar de uma indignação social,
3
A ira se autoalimenta e se vale de um contraponto: para que se mantenha são necessários dois.
moral? Ela traz novamente Aristóteles para dizer a causa, tanto a ira quanto da indignação, é o
rompimento de uma regra, seja de respeito, que alguém se acredita merecedor, seja de justiça,
que funda a meritocracia. Dessa forma, sentir indignação diante de situações que violem os
direitos humanos e os princípios morais mais universais deveria ser uma boa forma de reagir
diante da ignomínia, dando mostras de saúde moral e social. O filósofo analítico Strawson,
infere que a indignação é um sentimento reativo, mas moral, porque é impessoal,
desinteressado ou generalizado.
São as desigualdades que determinam que a vingança não seja propriamente um
sentimento irracional, mas natural nas relações humanas. Deve-se questionar se ela é grande
motivadora da lei que age com a intenção de reparar os danos sociais. Ao contrário do que se
prega, a lei não deve ser a interpretação da vingança, mas o que tenta evitá-la.
Sermos vingativos faz parte de nossa natureza humana, porém, esse sentimento
também pode ser modelado, qualificado. A vingança é uma paixão poderosa e perigosa, mas,
ainda assim, uma emoção socialmente construída que pode ser cultivada, tornando-se uma
apreciação completa do bem comum e da lei.
Camps ao concluir diz que o faz de forma inquietante, pontuando que a indignação, a
ira e a vingança, quando são adequadas e sob o jugo da lei, se alimentam do compromisso por
uma realidade mais justa e harmônica. Elas atuam rechaçando as realidades que se tornam
cenário de crimes, corrupções e demais situações que denigrem o humano.

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