No capítulo 7 do livro, Camps vai tratar da indignação e do compromisso. Para esse
fim, inicia falando sobre a ira, afirmando que é uma das emoções mais controvertidas, sendo considerada inconveniente para as pessoas. Camps traz Aristóteles, que trata da ira no Livro II da Retórica, considerando-a como uma vontade de vingança, causada por uma depreciação sem razão manifestada ao sujeito, ou aos seus próximos. Segundo ele, pode-se depreciar por desdém, ultraje ou colocando a pessoa em situação vexatória. Em todos os casos essas atitudes são percebidas como injustas e imerecidas. O filósofo diz que os mais suscetíveis a se encolerizar são os que se encontram em situação de inferioridade, pois se irritam com os indiferentes a sua situação. O que provoca a indignação é a falta de consideração, o não reconhecimento pelo que a pessoa é, o fato de ser tomada como inferior, anulada ou não vista. A ira expressa, então, a debilidade do ser humano que ao não receber o trato que merece, deseja a vingança e o reparo do desprezo do qual foi objeto. Para Aristóteles, a indignação, porém, é uma emoção distinta. Como a compaixão, ela surge da percepção de uma injustiça. Dessa forma, para bem indignar-se, há que se ter bons critérios: a indignação é justa ao homem bom que não obtém o que foi acordado, ao que tem bom juízo e odeia a injustiça. Camps pondera que também pode se indignar o homem ambicioso que não obtém o que quer. O filósofo, ao contrário, afirma que a indignação é provocada pela impressão de um desajuste. E, já que parte de uma falta de justiça, a indignação pode servir de impulso para a virtude. Ao contrário de Aristóteles, um filósofo da moral, Sêneca, um moralista, não vê a ira como capaz de se reverter em uma coisa boa. Ao tentar perceber os benefícios que o irado 1 Escrito a partir do Cap. 7 do livro de Vicória Camps, El gobierno de las emociones. Barcelona: Herder, 2011, para a disciplina Problemas Educacionais Contemporâneos II. 2 Acadêmicas da Disciplina, discentes do PPGEDU UPF. possa obter ao se deixar levar por essa emoção, conclui que o benefício é nulo. Portanto, o importante é livrar-se desse sentimento, pois, ao contrário, acabará dominando quem o possua. As paixões são para os estoicos padecimentos e, em geral, sempre nocivas. Ainda que não se possa dizer que a capacidade de encolerizar-se seja exclusiva dos humanos, pois os demais animais se irritam, a ira como paixão só se dá nos humanos. Porém, para os estoicos ela não é natural, pois é inútil, e a natureza não dá nada inconveniente aos humanos. A proposição ao sábio estoico é que ele aprenda a agir de acordo com a natureza, sem querer dominar o que é natural e inevitável como a morte, a velhice ou a doença. Porém se a dor é inevitável, o sofrimento não é, dependendo de nós sofrer ou não sofrer, conforme a disposição mental de aceitar ou afrontar as desgraças. Não podendo ser natural o que é destrutivo, a ira é um sentimento a ser combatido. O problema em sua essência é que a ira engendra vingança, que não é bem vista por Sêneca. A apatheia, própria dos sábios, é o entendimento do que seja a realidade e a representação mental que fazemos dela. Essa representação pode não refletir a realidade, pois mostra uma percepção subjetiva, parcial e condicionada pelas múltiplas circunstâncias que nos constituem e singularizam nosso ponto de vista. Assim, o homem sábio deve perceber a realidade sem o filtro de sua subjetividade. Ele não se deixa levar pela cólera, mas se defende dela. Mesmo se a vingança for necessária, não será a ira com sua loucura e precipitação que ajudará a perpetrá-la. Também não pode existir ira comedida, pois se a paixão se assenhora é impossível detê-la ou moderá-la. Por exemplo, num julgamento, o bom juiz não pode se valer da raiva provocada pelo ato praticado pelo réu, mas julgá-lo com parcimônia e sem ódio. O sábio não se irrita porque não percebe a injustiça, mas porque a vê com muita clareza, sabendo que a irritação não irá ajudá-lo a combatê-la. Os estoicos apontam alguns remédios para a ira, que Camps ironiza como os precursores da autoajuda. Para eles, primeiramente há que se fazer um exercício de refutação, com o objetivo de não ser arrastados pelo pathos e dominar a si mesmo. Uma das atitudes a ser cultivada é a paciência, a moderação, escolhendo conviver com pessoas que não nos provoquem cólera e que concordem com nossas razões 3. Também é preciso não se irritar com coisas fúteis e sem importância e ter uma atitude reflexiva diante das inconveniências da ira. Nesse ponto, Camps faz uma reflexão: se a ira é algo tão nocivo, pode a indignação diante de uma injustiça ser uma coisa positiva? Tem sentido falar de uma indignação social, 3 A ira se autoalimenta e se vale de um contraponto: para que se mantenha são necessários dois. moral? Ela traz novamente Aristóteles para dizer a causa, tanto a ira quanto da indignação, é o rompimento de uma regra, seja de respeito, que alguém se acredita merecedor, seja de justiça, que funda a meritocracia. Dessa forma, sentir indignação diante de situações que violem os direitos humanos e os princípios morais mais universais deveria ser uma boa forma de reagir diante da ignomínia, dando mostras de saúde moral e social. O filósofo analítico Strawson, infere que a indignação é um sentimento reativo, mas moral, porque é impessoal, desinteressado ou generalizado. São as desigualdades que determinam que a vingança não seja propriamente um sentimento irracional, mas natural nas relações humanas. Deve-se questionar se ela é grande motivadora da lei que age com a intenção de reparar os danos sociais. Ao contrário do que se prega, a lei não deve ser a interpretação da vingança, mas o que tenta evitá-la. Sermos vingativos faz parte de nossa natureza humana, porém, esse sentimento também pode ser modelado, qualificado. A vingança é uma paixão poderosa e perigosa, mas, ainda assim, uma emoção socialmente construída que pode ser cultivada, tornando-se uma apreciação completa do bem comum e da lei. Camps ao concluir diz que o faz de forma inquietante, pontuando que a indignação, a ira e a vingança, quando são adequadas e sob o jugo da lei, se alimentam do compromisso por uma realidade mais justa e harmônica. Elas atuam rechaçando as realidades que se tornam cenário de crimes, corrupções e demais situações que denigrem o humano.