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O LIBERALISMO CLÁSSICO E O CAPITALISMO INDUSTRIAL: SMITH, RICARDO, MILL

Doutoramento em Economia Política


História da Economia Política
Ana Costa (ana.costa@iscte-iul.pt), 24 de Setembro de 2021

In the 21st century, these same arguments in favour of free trade and free markets,
and the conceptual toolkits underpinning them, continue to resonate through
contemporary policy and academic debate. Smith’s system was built upon a view
which held that the market would ultimately deliver optimal outcomes. This view
was underpinned by assumptions about the properties of the market and about
individuals as social and ethical beings. As the Industrial Revolution took off, and
markets became more pervasive, this liberal defence was an important intellectual
bulwark to the societal transformation it yielded. That said, Smith’s emphasis on
ethical individuals received much less attention than his asserted properties of free
markets.”

-Ben Clift (2014, pp 47-48)


O LIBERALISMO CLÁSSICO E O CAPITALISMO INDUSTRIAL
➤ Qual o contributo do liberalismo clássico e da economia política clássica para a
construção de uma interpretação sobre o capitalismo, a sua dinâmica de
transformação e os processos subjacentes?

➤ Como se constitui o mercado?

➤ Quais os elementos de continuidade e de ruptura entre o liberalismo clássico, a


economia política crítica de Marx, a economia marginalista, ou o neoliberalismo?
ADAM SMITH (1723-1790)
Duas obras fundamentais: A Teoria dos Sentimentos Morais (1759)
A Riqueza das Nações (1776)

Em A Teoria dos Sentimentos Morais, Smith procura identificar critérios de julgamento moral que tornam
possível a vida em sociedade:
➤ Os seres humanos são movidos por múltiplas motivações: apesar da força do interesse próprio, os
seres humanos são também dotados de sentimentos morais, como o desejo de aprovação social, a
benemerência e o sentido da justiça (em oposição à natureza humana egoísta de Machiavelli,
Mandeville, e Hobbes).
➤ A sociedade pode existir sem beneficência/benemerência (como uma sociedade de mercadores) mas
não sem justiça. A beneficência não pode, nem deve, ser imposta, mas a justiça tem precedência
sobre o interesse próprio.
➤ A justiça é imposta aos indivíduos pela consciência e pela lei.
ADAM SMITH (1723-1790)

Em A Riqueza das Nações, Smith procura demonstrar como a sociedade comercial consegue
prosperar tendo em conta que o comportamento dos seres humanos é guiado pelo
interesse próprio, argumento central na defesa de um ‘sistema de liberdade natural’.
➤ A perspetiva de Smith em A Riqueza das Nações situa-se entre uma:
Abordagem macro dinâmica sobre o crescimento económico e o desenvolvimento e
micro dinâmica referente aos mercados.
Abordagem centrada na consideração da natureza humana e das suas propensões e nas
estruturas sociais, relações de poder e classes sociais.
Abordagem dedutiva e indutiva.
ADAM SMITH E A RIQUEZA DAS NAÇÕES

Tese fundamental: A riqueza das nações, ou o crescimento económico, resulta da


divisão do trabalho, da acumulação de capital e de um contexto institucional
apropriado.
“This division of labour, from which so many advantages are derived, is not originally
the effect of any human wisdom, which foresees and intends that general opulence to
which it gives occasion. It is the necessary, though very slow and gradual consequence
of a certain propensity in human nature which has in view no such extensive utility;
the propensity to truck, barter, and exchange one thing for another.” (Livro I, Capítulo
II, pp. 21)

It is not from the benevolence of the butcher, the brewer, or the baker, that we
expect our dinner, but from their regard to their own interest. We dress ourselves,
not to their humanity but to their self-love, and never talk to them of our own
necessities but of their advantages.”

“At it is the power of exchanging that gives occasion to the division of labour, so the
extent of this division must always be limited by the extent of that power, or, in
other words, by the extent of the market.”

-Adam Smith (Livro I, Capítulo II, pp. 22; Livro I, Capítulo III, pp. 25)
ADAM SMITH E A RIQUEZA DAS NAÇÕES
➤ Divisão do trabalho: divisão técnica e divisão social.
A divisão do trabalho e o aumento da capacidade produtiva do trabalho.
➤ O processo de acumulação de capital (instrumentos de trabalho, matérias-primas e
provisões para os trabalhadores) é prévio à divisão do trabalho:
Os recursos aplicados produtivamente, como o capital (os que mobilizam trabalho
produtivo), acrescentam valor e criam riqueza.
Os recursos aplicados improdutivamente (que mobilizam trabalho improdutivo –
trabalhadores domésticos, soldados, servidores do Estado) não criam valor e esbanjam a
riqueza.
➤ A riqueza da nação depende da proporção dos trabalhadores empregados
produtivamente.
ADAM SMITH E A RIQUEZA DAS NAÇÕES

Os mercados enquanto um sistema descentralizado de coordenação das decisões


económicas individuais. Que condições?
➤ O preço real, ou, a verdadeira medida do valor de troca de um bem, é dado pela
quantidade de trabalho que esse bem pode comprar.
➤ O preço de mercado é o preço pelo qual as mercadorias são efectivamente vendidas
e depende da relação entre a quantidade que é posta no mercado e a procura efectiva
(isto é, a procura por parte daqueles que estão dispostos a pagar o seu preço
natural).
➤ O preço natural constituindo a verdadeira medida do valor de troca de um bem é
constituído pela componente de remuneração do trabalho (salários); do capital
(lucro); e da terra (renda).
ADAM SMITH E A RIQUEZA DAS NAÇÕES
O preço natural como um preço central, em torno do qual os preços de mercado gravitam?
“The natural price, therefore, is, as it were, the central price, to which the prices of all commodities
are continually gravitating. Different accidents may sometimes keep them suspended a good deal
above it, and sometimes force them down even somewhat below it”(WN, Livro I, Capítulo VII, pp. 56)
… acidentes, causas naturais, regulações, …
Não parece existir nenhum mecanismo automático que garanta o funcionamento deste mecanismo de
gravitação dos preços. Estes acidentes constituem circunstâncias em que os produtores exercem um
poder (ilegítimo) sobre os consumidores. Na ausência de virtudes morais (justiça) o mercado
terá vários obstáculos ao seu funcionamento.
ADAM SMITH E A RIQUEZA DAS NAÇÕES
Oposição aos monopólios e associações de produtores - defesa da concorrência de mercado.
Smith tende a sublinhar o ‘lado negro’ da associação - conspiração contra o interesse geral,
fanatismo, facciosismo …
➤ Se a interação social é uma condição fundamental da consciência e da natureza humana:
“The man within the breast, the abstract and ideal spectator of our sentiments and
conduct, requires often to be wakened and put in mind of his duty, by the presence of
the real spectator” (TMS, III.3.38). “It is from that spectator, from whom we can expect
the least sympathy and indulgence, that we are likely to learn the most complete lesson
of self-command” (TMS, III.3.38);
➤ Por sua vez, os sentimentos morais, as virtudes, podem ser corrompidas pela associação:
“[the] propriety of our moral sentiments is never so apt to be corrupted as when the
indulgent and partial spectator is at hand, while the indifferent and impartial one is at great
distance” (TMS, III.3.41).
ADAM SMITH E A RIQUEZA DAS NAÇÕES
Sistema de liberdade natural
➤ Defesa da concorrência e da liberdade de iniciativa:
“Every man, as long as he does not violate the laws of justice, is left perfectly free to
pursue his own interest his own way, and to bring both his industry and capital into
competition with those of any other man, or order of men. The sovereign is
completely discharged from a duty, in the attempting to perform which he must
always be exposed to innumerable delusions, and for the proper performance of
which no human wisdom or knowledge could ever be sufficient; the duty of
superintending the industry of private people, and of directing it towards the
employments most suitable to the interest of the society.” (WN, LivroIV, Capítulo
IX, pp. 391-392)
ADAM SMITH E A RIQUEZA DAS NAÇÕES
Deveres do soberano:
➤ Garantir os princípios de justiça
➤ Segurança contra ameaças externas
➤ Criar e manter instituições e obras públicas que, sendo do interesse da sociedade, não são
aprovisionadas pela iniciativa privada (i.e. bens públicos) ex: vias de comunicação, educação
primária.

Smith exclui a distribuição, dos deveres do soberano?


À primeira vista sim: a justiça distributiva é da esfera da beneficência (logo não deve ser imposta)
No entanto, defende: (a) a educação pública de todos paga com os impostos; (b) impostos
progressivos; (c) as leis dos pobres.
ADAM SMITH E A RIQUEZA DAS NAÇÕES
“Wherever there is great property, there is great inequality. For one very rich man,
there must be at least five hundred poor, and the affluence of the few supposes the
indigence of the many. The affluence of the rich excites the indignation of the poor,
who are often both driven by want, and prompted by envy, to invade his possessions.
It is only under the shelter of the civil magistrate that the owner of that valuable
property, which is acquired by the labour of many years, or perhaps of many
successive generations, can sleep a single night in security. (…) The acquisition of
valuable and extensive property, therefore, necessarily requires the establishment of
civil government. (…) Civil government, so far as it is instituted for the security of
property, it is in reality instituted for the defence of the rich against the poor, or of
those who have some property against those who have none at all ” (WN, Livro V,
Capítulo I, pp. 408; pp. 413)
DAVID RICARDO (1772 - 1823)
On the Principles of Political Economy and Taxation (1817)
Pilares fundamentais: relação entre acumulação de capital e crescimento económico,
teoria da população, teoria da renda diferencial.
➤ Sobre a questão do valor …
A Economia trata apenas dos bens cujo valor deriva do trabalho necessário para a sua
obtenção.
O valor relativo (ou de troca) dos bens é quase exclusivamente determinado pela
proporção entre as quantidades de trabalho necessárias à produção de cada um.
Quaisquer que sejam as alterações de salários e lucros, enquanto se continuar a obter
uma determinada quantidade de bem com a mesma quantidade de trabalho, o seu valor
de troca mantém-se.
DAVID RICARDO
➤ Sobre a Renda …
“é aquela parte do produto da terra que é paga ao senhorio pelo uso das
potencialidades originárias e indestrutíveis do solo”.
Só existe renda porque a terra produtiva é escassa e o crescimento populacional
obriga a cultivar as terras de menor qualidade.
A renda da terra é dada pela diferença de qualidade de dois tipos de terra ou pela
diferença das suas capacidades produtivas e é exigida pelos proprietários das terras
de melhor qualidade.
O trigo não é caro porque se paga renda, mas paga-se renda porque o trigo é caro.
DAVID RICARDO
➤ Sobre a Renda …
“é aquela parte do produto da terra que é paga ao senhorio pelo uso das
potencialidades originárias e indestrutíveis do solo”.
Só existe renda porque a terra produtiva é escassa e o crescimento populacional
obriga a cultivar as terras de menor qualidade.
A renda da terra é dada pela diferença de qualidade de dois tipos de terra ou pela
diferença das suas capacidades produtivas e é exigida pelos proprietários das terras
de melhor qualidade.
O trigo não é caro porque se paga renda, mas paga-se renda porque o trigo é caro.
DAVID RICARDO
➤ Sobre os Salários …

O trabalho é uma mercadoria como outra qualquer: preço natural e preço de mercado.
➤ Sobre os Lucros …
O lucro é um resíduo.
Tendência para a queda da taxa de lucro (como resultado da acumulação de capital e do
crescimento demográfico).
O progresso técnico poderia contrariar a tendência para a queda dos lucros, mas não a pode
eliminar. A sociedade capitalista tende para a estagnação.
➤ Teoria das vantagens relativas (ou comparativas): Um país pode ter interesse em importar
artigos que poderia produzir ele próprio em condições mais favoráveis do que um parceiro
comercial, desde que exporte para esse parceiro internacional outros artigos em que
relativamente tenha ainda mais vantagem.
JOHN STUART MILL (1806-1873)
The Principles of Political Economy: with some of their applications to social philosophy (1848)
On Liberty (1859)
Utilitarianism (1863)
The Subjection of Women (1869)
A discussão sobre a distribuição da riqueza e a propriedade é central na obra de J. S. Mill:
"The distribution of wealth depends on the laws and customs of society” (Principles of Political Economy, 1868,
pp. 182)
➤ Ao contrário das leis da produção, que são baseadas no mundo físico e na natureza humana, as leis da
distribuição da riqueza dependem das leis e costumes da sociedade.
➤ Estes costumes e leis variam em diferentes épocas e países e podem ser diferentes se a humanidade assim o
decidir.
➤ A propriedade privada é a instituição fundamental que condiciona a distribuição de riqueza e não é
inquestionável.
JOHN STUART MILL: DISTRIBUIÇÃO E PROPRIEDADE
➤ Várias são as objeções que têm sido levantadas em relação ao Comunismo … No
entanto:
“If, therefore, the choice were to be made between Communism with all its chances
and the present state of society with all its sufferings and injustices, all the
difficulties, great or small, of Communism, would be but as dust in the balance”.
(Principles of Political Economy, 1868, pp. 186)
JOHN STUART MILL: DISTRIBUIÇÃO E PROPRIEDADE
Porém ...
➤ A comparação deveria ser feita entre o Comunismo, na sua melhor formulação, e o regime de
propriedade privada, não como está instituído, mas como deveria estar.
➤ O verdadeiro princípio da propriedade privada nunca foi sujeito a teste em nenhum país:
➤ A propriedade privada só é desejável enquanto garantia individual dos frutos do trabalho e da
abstinência
➤ A distribuição da propriedade não é o resultado de uma partição justa mas antes da conquista e da
violência:
“The guarantee to them of the fruits of the labor and abstinence of others, transmitted to them
without any merit or exertion of their own, is not of the essence of the institution, but a mere
incidental consequence, which, when it reaches a certain height, does not promote, but conflicts with
the ends which render private property legitimate.” (Principles of Political Economy, 1868, pp. 187)
JOHN STUART MILL: DISTRIBUIÇÃO E PROPRIEDADE
➤ A instituição da propriedade reconhece o direito de propriedade sobre coisas que não
foram produzidas pelos próprios (pelo seu trabalho) nem resultam da sua
abstinência (herança, terra).
➤ O restabelecimento do verdadeiro princípio da propriedade privada exige uma
reforma do direito sucessório e da propriedade fundiária.
➤ A propriedade privada de pequenos agricultores, cooperativas de produtores e as
associações industriais, na medida em que permitem o usufruto dos resultados do
trabalho fornece os incentivos adequados que responsabilizam os trabalhadores pela
boa condução dos negócios.
JOHN STUART MILL: SOBRE O GOVERNO
➤ Dir-se-á que o Estado se deveria limitar à protecção dos indivíduos contra a força
e a fraude, mas isto é vago como critério:
Quais os critérios de propriedade? (A definição dos direitos de propriedade requer
especificação)
Que contratos devem ser garantidos? Todos? Ou só os legítimos? Como se
determina a legitimidade de um contrato?
Devem ser garantidos alguns serviços públicos, mas quais?

➤ Não existe uma regra a priori para delimitar a acção do Estado a não ser a da
conveniência geral.
JOHN STUART MILL: OS FUNDAMENTOS E OS LIMITES DO ‘LAISSEZ-FAIRE’
Objeções à interferência do Governo:
➤ A intervenção do Estado exige meios pecuniários e esses meios resultam
sempre de impostos compulsivamente determinados.
➤ Qualquer aumento das funções do Estado significa um aumento do seu poder;
este poder pode traduzir-se numa opressão das minorias pela maioria (e a
liberdade das minorias deve ser respeitada).
➤ Qualquer função adicional do Estado recai sobre um corpo já sobrecarregado (e
existe um problema de incentivos - as pessoas compreendem os seus negócios
melhor que os funcionários e cuidam melhor deles).
➤ Um povo que adquire o hábito de esperar vozes de comando do Estado
desenvolve só metade das suas faculdades.
JOHN STUART MILL: OS FUNDAMENTOS E OS LIMITES DO ‘LAISSEZ-FAIRE’
Circunstâncias em que o princípio de laissez-faire deve ser contrariado:
➤ Quando os indivíduos não são capazes de avaliar os seus melhores interesses (educação,
cultura).
➤ Quando a iniciativa privada só é possível por associação (a iniciativa deve ser mantida nas
mãos privadas mas controlada pelo Estado).
➤ Situações em que a interferência da lei e da regulação se justifica não para se substituir ao
julgamento individual, mas para o tornar possível.
➤ Proteção das pessoas vulneráveis.
➤ Proteção da sociedade de actos praticados pelos indivíduos com consequências negativas
para outros, a nação, ou gerações futuras.
➤ Provisão de serviços públicos que nenhum privado está em condições de prestar, ou
estando, ninguém o faz
Retornar à questão de partida: Qual o contributo do liberalismo clássico e da economia
política clássica para a construção de uma interpretação sobre o capitalismo, a sua
dinâmica de transformação e os processos subjacentes?

➤ Visão substantiva dos processos económicos e a indivisibilidade da economia


política e da filosofia moral - a resolução do problema de coordenação de decisões
tomadas individualmente (como se constitui o mercado?) reclama aspetos da
filosofia moral.
➤ Não existe regra para delimitar a acção do Estado a não ser a da conveniência geral.
➤ É possível antecipar no liberalismo clássico elementos de ruptura e continuidade
com a revolução marginalista e as ideias neoclássicas.
➤ Caldas, José Castro, Ana Costa and Tom Burns (2007), “Rethinking economics: the potential contribution of the
classics”, Cambridge Journal of Economics, 31(1): 25-40.
➤ Clift B (2014), Comparative Political Economy: States, Markets and Global Capitalism, Basingstoke: Palgrave Macmillan
[Chapter 3]
➤ Mill, John Stuart Mill (1868), Principles of political economy with some of their applications to social philosophy (People's
Edition), London: Logmans, Green, Reader and Dyer [Book II, Chapters I and II].
➤ Milonakis, Dimitris and Ben Fine (2009), From Political Economy to Economics - Method, the social and the historical in the
evolution of economic theory, Chapter 2 “Smith, Ricardo and the first rupture in economic thought”, London: Routledge.
➤ Nussbaum, Martha C. (2004), “Mill Between Aristotle & Bentham”, Daedalus 133(2): 60-68.
➤ Smith, Adam (1993[1776]), An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, Oxford: Oxford University
Press, [Book 1, Chapter VII, 53-62; Book 1, Chapter XI, 145-157].
➤ Watson, Matthew (2005), “What makes a market economy? Schumpeter, Smith and Walras on the coordination
problem, New Political Economy, 10 (2): 143-161.

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