Você está na página 1de 9

1044 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

As relações de poder no trabalho da


Estratégia Saúde da Família
Power relations in the work of Family Health Strategy

Eliana Aparecida Villa1, Antônia Vitória Soares Aranha2, Liliane de Lourdes Teixeira Silva3,
Cristina Rabelo Flôr4

RESUMO Trata-se de pesquisa qualitativa que tem por objetivo analisar as relações de poder
estabelecidas no trabalho da Estratégia Saúde da Família. Foram realizadas entrevistas se-
miestruturadas com dezenove profissionais integrantes de três equipes e utilizados registros
efetuados a partir de observação participante. Os dados foram analisados segundo Bardin e
categorizados em duas unidades analíticas. O estudo demonstrou que alguns paradigmas são
difíceis de modificar, especialmente quando são vistos de forma natural pelos envolvidos. No
entanto, avanços foram verificados a partir do posicionamento daqueles muitas vezes vistos
como inferiores nas relações de poder desse serviço.

PALAVRAS-CHAVE Atenção Primária à Saúde; Estratégia Saúde da Família; Relações interprofissionais.

ABSTRACT It is a qualitative study that aims to analyze the power relations established in the
work of the Family Health Strategy. Semi-structured interviews with nineteen professional
members of three teams were conducted and records obtained from participant observation
were used. Data were analyzed according to Bardin and organized into two analytical categories.
The study showed that some paradigms are difficult to modify, especially when they are seen as
natural by the involved people. However, advances have been verified from the positioning of
those often seen as inferiors on power relations in this service.

KEYWORDS Primary Health Care; Family Health Strategy; Interprofessional relations.


1 Universidade Federal de

Minas Gerais (UFMG) –


Belo Horizonte (MG), Brasil.
luavilla@gmail.com

2 Universidade Federal de

Minas Gerais (UFMG) –


Belo Horizonte (MG), Brasil.
antoniavitoria@uol.com.br

3 Universidade Federal de São

João Del Rei (UFSJ) – São


João Del Rei (MG), Brasil.
lilanets@ufsj.edu.br

4 Universidade Federal de São

João Del Rei (UFSJ) – São


João Del Rei (MG), Brasil.
cristinaflor@ufsj.edu.br

SAÚDE DEBATE | Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, P. 1044-1052, OUT-DEZ 2015 DOI: 10.1590/0103-110420151070365
1044
As relações de poder no trabalho da Estratégia Saúde da Família 1045

Introdução burocráticas conformadas em verdadeiras


pirâmides hierárquicas de autoridade.
O campo da saúde se constituiu a partir de Segundo Cecílio (2011), a gestão do cuidado
uma relação de poder-saber presente no pro- está atrelada à cooperação de diversos atores
cesso de trabalho. Segundo Foucault (1986), a coexistindo em diferentes espaços marcados
profissionalização dos técnicos se deu por por disputas, acordos e assimetrias de poder.
meio da articulação entre saber e poder Nesse sentido, Sulti et al. (2015) assinalam que
médico, instituindo-se uma série de práticas os trabalhadores da saúde misturam em seu
disciplinares de regulação das relações e do trabalho diário compromissos normativos
espaço institucional a partir da hegemonia e papéis institucionais com suas práticas
médica, em torno da qual foram se consti- personalizadas.
tuindo todas as demais profissões. As relações de poder também são eviden-
O poder só existe em ato. É sempre re- tes na Estratégia Saúde da Família (ESF). São
lacional, um modo de ação de uns sobre os profissionais que vivenciam relações gera-
outros. O poder envolve as relações entre doras de conflitos em virtude da diversida-
dois ou mais atores sociais, nas quais o de de opiniões e posturas. Em alguns casos,
comportamento de um é afetado pelo com- há tentativa de dominação profissional com
portamento do outro; o poder expressa a centralização da organização do serviço,
capacidade que um indivíduo tem de levar o ainda que esta não seja oficialmente instituí-
outro a fazer algo que de outra maneira não da (LANZONI; MEIRELES, 2012).
faria, por imposição (FOUCAULT, 1986). A ESF propõe um modelo de organização
A visão foucaultiana desconstrói a percep- voltado para maiores aproximação e valo-
ção de que há um polo que somente domina rização da comunidade, em detrimento da
e outro que somente sofre a dominação. O centralização profissional, buscando sair de
poder é exercido numa cadeia de submissões um padrão de atenção médico-centrado para
da qual ninguém é o alvo único, mas perpas- uma proposta multidisciplinar horizontali-
sa os diferentes indivíduos. Foucault amplia zada e integradora (BRASIL, 2012).
essa noção na medida em que não busca Contudo, a realidade do trabalho em
identificar o polo dominante ou o dominado, equipe na ESF ainda se distancia do que é
mas entender a posição, os sentidos e as re- preconizado para a efetivação de uma ati-
lações de cada sujeito na rede de dominação. vidade multiprofissional e compartilhada.
O poder presente nas relações também pro- Conforme alertam Lanzoni e Meirelles (2012),
picia a produção do saber, e uma das formas de há uma inexistência de responsabilidade co-
fazê-lo é pela resistência dos trabalhadores. O letiva entre os membros da equipe, o que gera
autor assinala que se o poder fosse somente re- descontinuidade entre as ações específicas
pressivo, não teria a força que tem: “ele produz de cada profissional e uma pobre interação
coisas, induz ao prazer, forma saber, produz entre eles frente às atividades de trabalho.
discurso” (FOUCAULT, 1986, P. 8). Historicamente, o médico assume a
Sob outro enfoque, discutindo a teoria posição de poder na equipe de saúde, de
weberiana de poder, Cecílio (1999) afirma que forma natural. Nesse sentido, Costa e Martins
o poder, quando exercido de forma legítima, (2011) afirmam que o conhecimento específico
tem o sentido de autoridade. A dominação dos médicos garante, tradicionalmente, legi-
legítima baseia-se na crença em ordens timidade para exercer o controle sobre os
e no direito de mando daqueles nomea- demais membros da equipe e usuários.
dos para exercer a dominação. É o tipo de Dessa maneira, torna-se relevante desvelar
poder existente no interior das organizações as relações de poder-saber presentes no tra-
formais, constituído por meio de estruturas balho da ESF, visando a uma maior integração

SAÚDE DEBATE | Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, P. 1044-1052, OUT-DEZ 2015


1046 VILLA, E. A.; ARANHA, A. V. S.; SILVA, L. L. T.; FLÔR, C. R.

entre os trabalhadores que permita a realiza- conteúdo coletado nas entrevistas, norte-
ção de uma assistência de melhor qualidade. ados pela análise de conteúdo de Bardin
Portanto, este estudo tem como objetivo ana- (2011). A análise resultou na construção de
lisar as relações de poder-saber que se esta- duas categorias: ‘As relações de poder na
belecem entre os integrantes de Equipes de saúde da família’ e as ‘Mudanças de para-
Saúde da Família (EqSF). digma nas relações de poder’.
Os participantes do estudo foram iden-
tificados com a(s) letra(s) da categoria
Metodologia profissional a que pertencem e numerados
conforme a ordem da entrevista, com vistas
A trajetória metodológica adotada foi uma à manutenção do anonimato.
abordagem qualitativa, que possibilita a
imersão em um universo de saberes e signi-
ficados dos sujeitos envolvidos na pesquisa, Resultados e discussão
além de permitir compreender os movimen-
tos sociais, culturais e a relação entre pessoas
e instituições (MINAYO, 2014). Categoria 1: As relações de poder na
O projeto de pesquisa foi submetido ao saúde da família
Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG,
sendo aprovado sob o parecer Nº ETIC Nesta categoria são relatadas as relações de
420/05 e Protocolo CAAE – 0420.0.203.000- poder existentes entre as diferentes classes
05. Os dados foram coletados nos meses de de profissionais da EqSF, e entre esses e os
março, abril e maio de 2007. usuários do serviço de saúde.
O estudo foi realizado com membros de Foi possível constatar, por meio da pre-
três EqSFs de um Centro de Saúde do muni- sente investigação, que as relações de
cípio de Belo Horizonte (MG). Participaram poder-saber estão vívidas entre os integran-
da pesquisa dezenove profissionais de saúde, tes das ESF, porém, ocorrem de forma na-
sendo três médicas (M), seis auxiliares de turalizada. Ao serem questionados sobre a
enfermagem (AE), três enfermeiras (E), seis existência do poder na convivência diária, a
agentes comunitários de saúde (ACS) e a maioria dos trabalhadores não a identificou
gerente da unidade (G). Todos os integrantes diretamente, enfatizando o bom relaciona-
consultados (das três equipes) concordaram mento entre todos. No cotidiano do serviço,
em participar. A obtenção dos discursos ficou evidente o estreitamento das relações
encerrou-se quando ocorreu a saturação dos entre os diferentes profissionais, entretanto,
dados, percebendo-se ter atingido uma des- prevalece uma memória cristalizada de uma
crição suficiente do fenômeno. hierarquia objetiva e impessoal.
Para realização da pesquisa qualitativa, Detalhes atitudinais denunciaram os
optou-se pela entrevista semiestruturada e comportamentos diferenciados entre os
pela observação participante, registrada em membros das equipes. Pode-se relacionar
diário de campo. A pesquisadora permane- alguns deles, tomando alguns trechos das
ceu em imersão no serviço por três meses. descrições contidas nos diários de campo:
Foram elaborados 27 relatórios, com obser- nas reuniões, as opiniões das médicas foram
vações das atividades realizadas no Centro as primeiras a serem solicitadas; em três, das
de Saúde nos dois períodos: manhã e tarde. cinco reuniões observadas, os assuntos ini-
Os resultados foram obtidos a partir da ciais foram os que envolviam as médicas, para
exploração do material por meio de co- poderem sair logo após suas participações;
dificação, numeração e classificação do as enfermeiras e técnicas de enfermagem, ao

SAÚDE DEBATE | Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, P. 1044-1052, OUT-DEZ 2015


As relações de poder no trabalho da Estratégia Saúde da Família 1047

entrarem nos consultórios, mesmo fora do há evidências de uma postura submissa dos
atendimento médico, fizeram-no com mais usuários, que permanecem na expectativa de
cerimônia que junto aos outros profissionais; modelos de conduta e de prescrições.
as solicitações e os diálogos são mais formais Vale ressaltar que essa relação poder-sa-
quando dirigidos às médicas. ber presente nos serviços de saúde resulta
A presença do poder nas relações da equipe de uma complexa e engenhosa construção
da ESF é declarada por uma das médicas: social, que, ao longo do tempo, foi se cristali-
zando no imaginário social, como o poder do
Eu acho que ainda existe, sim, essa questão do médico sobre a vida e a morte do indivíduo,
poder na saúde, infelizmente. A questão do poder, e, por isso, a suposta diferença desse profis-
principalmente do médico [...]. O médico tem um sional com relação aos demais:
poder de decisão muito maior que o enfermeiro,
o auxiliar [...] Acho isso péssimo! Às vezes, quero Ah, não sei se posso chamar de ‘poder’... Mas a re-
que o auxiliar participe mais da reunião, ou o en- lação na equipe depende, sim, muito do médico. Ele
fermeiro se posicione, mas eles têm medo de falar que decide. O [médico] que estava aqui ficava mais
porque ‘o médico pode não gostar’. (M1). na dele... Aí, a gente também não se sente à von-
tade pra comentar nada. Sei lá se ele vai gostar, se
Embora o trabalho da ESF se apresente vai achar que a gente está falando o que não deve,
com uma estruturação mais horizontali- então a gente acaba é ficando quieta, né? (AE1).
zada, permanece uma conduta na qual o
médico é a figura central, uma autoridade, A atitude de ‘ficar quieta’, assumida pela
mostrando que independentemente dos trabalhadora, pode ser a expressão de um
lugares ocupados pelos vários trabalhado- comportamento naturalizado, que acusa
res, relações de poder são marcantes na hie- uma diferença hierárquica entre ambos.
rarquia entre os profissionais. A trabalhadora, em seu discurso, manifes-
Segundo Costa e Martins (2011), essa hie- ta uma posição enunciativa marcada por
rarquia se estende, também, à relação profis- uma distância interna, cunhada nas dis-
sional/usuário, comprometendo a autonomia tâncias social e profissional entre as dis-
dos envolvidos no processo assistencial. Nesse tintas categorias.
sentido, por vezes, o usuário chega ao serviço Sobre o domínio do poder-saber,
em estado de dependência e de alienação, es- Foucault (1995) destaca que em qualquer
perando respostas e soluções, principalmente circunstância dialógica pode haver disputa
do médico, como aponta o relato abaixo: pelo poder, ainda que nem tudo seja dito
de maneira direta. Nesse sentido, o que
[...] Como médica, a minha experiência aqui e tam- não é dito pode permanecer subentendido,
bém em outros lugares mostra que, por mais que como mostra o fragmento do discurso de
você tente que o paciente seja mais independen- uma das enfermeiras:
te, assuma sua parte, no final, ele volta e quer que
você resolva tudo, a todo custo. E querem sempre Aqui tem, sim, apenas uma médica do grupo de
o remédio [...]. É um hábito já internalizado. (M3). apoio que destoa dos demais, porque se coloca
como superior, não em relação aos seus colegas
A persistência da submissão do usuário ao médicos, mas aos enfermeiros e demais profissio-
saber dos profissionais só se mantém porque nais. É uma postura como se os outros fossem ‘os
tanto um quanto outro alimenta essa lógica. burros’! É assim que eu vejo. É uma pessoa muito
Cadoná e Scarparo (2015) salientam que, difícil. E com essa pessoa não é possível troca ne-
mesmo com a utilização de práticas con- nhuma. A pessoa que te impõe alguma coisa [...],
sideradas emancipatórias e participativas, mantém uma distância [...]. (E1).

SAÚDE DEBATE | Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, P. 1044-1052, OUT-DEZ 2015


1048 VILLA, E. A.; ARANHA, A. V. S.; SILVA, L. L. T.; FLÔR, C. R.

O depoimento expressa o poder sobre as uma carta de todo tamanho ao órgão gestor, que
práticas articuladas ao saber científico, o que respondeu à usuária se des-cul-pan-do pelo aten-
nos remete a Pires (2011), quando afirma que dimento! Recebemos essa cópia, e eu fiz questão
os enfermeiros têm dificuldade de analisar de ir até lá, falar pessoalmente, porque, antes de
as relações de poder presentes no trabalho da darem razão ao usuário, eles têm que consultar
equipe e no serviço de saúde, fato que com- a gente, saber o que aconteceu realmente. (E2).
promete o caráter político do seu agir e enfra-
quece seu discurso e seus posicionamentos. As entrevistadas manifestaram insa-
Outro olhar sobre o tema diz respeito ao tisfação com as cobranças frequentes dos
poder legal-administrativo presente nas ins- superiores quanto às obrigações no traba-
tituições de saúde, mesmo aquelas que têm as lho e com a falta de apoio recebido quando
estruturas mais horizontalizadas (CECÍLIO, 1999; se trata dos seus direitos. Conforme Sulti
2011). A maneira hegemônica de gestão, ainda et al. (2015), na gestão dos serviços estão
presente na ESF, contribui para manter inal- presentes os desejos, as necessidades e os
terados a hierarquização e o autoritarismo interes­ses dos trabalhadores, incluindo
nas relações entre gestores, trabalhadores e os saberes, o poder e o modo de operar as
usuários, sem produzir maior eficácia e efi- relações. Para os autores, a articulação e
ciência desejadas (SULTI ET AL., 2015). as diferentes formas de gestão dependem
A fala de uma das auxiliares de enferma- dos gestores, que devem estar voltados não
gem ilustra a hierarquia existente: somente para a produção de saúde, mas
para a efetivação dos princípios do Sistema
Quanto ao poder, acho que a gente tem uma hie- Único de Saúde (SUS).
rarquia de trabalho pra respeitar: a gerente, o mé- A tecnologia do poder-saber funciona de
dico, o enfermeiro, pra organizar o trabalho. Claro forma interligada às normas institucionais
que eles têm poder. Não que você tenha que ser explícitas e implícitas. Todos os trabalhado-
submissa, mas a enfermeira, a gerente tem poder res e usuários fazem parte da teia de poderes,
sobre mim, funcionária. (AE4). podendo sujeitar e submeter o outro, quando
no lugar de quem detém o poder:
No Centro de Saúde em estudo, as deci-
sões são tomadas por um Colegiado Gestor [...] Mas na minha equipe tem isso [a enfermei-
que representa o conjunto de trabalhadores. ra fala]: ‘Eeeeeu sou suuuua enfermeira e você
Trata-se de uma autonomia relativa, pois o é miiiiiiiinha auxiliar! [...] você faz aquilo que eu
Colegiado decide a partir das determinações mando’[...]. Eu já pensei em me desligar do PSF,
superiores do Distrito, que detém o poder mas, no momento, por questões financeiras, eu
legal-administrativo. Para Cecílio (2011), os não posso de jeito nenhum. (AE2).
gestores são percebidos como elementos
externos à equipe, por vezes, vistos como O enfermeiro sente-se subjugado na
superiores e inatingíveis, fato refletido no relação com o médico e os gestores e, como
distanciamento desses com os trabalhadores coordenador da equipe de enfermagem,
e suas necessidades, conforme apontam os assume uma postura de ‘mando’ com relação
discursos: “Aqui a gente só tem deveres. Os ao auxiliar de enfermagem, determinando as
direitos ficam esquecidos” (E1). ações que devem ser cumpridas. Para Garcia
et al. (2014), na coordenação do processo de
Há um grande desrespeito dos gestores com o trabalho da ESF, o planejamento é um meio
profissional, porque eu tive um problema sério de exercer o poder. Pode ser um instrumen-
com eles: fiz um atendimento correto de uma to decisório, bem como uma ferramenta de
Senhora, mas que ela não concordou e mandou do­minação, cerceando a possibilidade do

SAÚDE DEBATE | Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, P. 1044-1052, OUT-DEZ 2015


As relações de poder no trabalho da Estratégia Saúde da Família 1049

trabalhador de intervir, manifestar-se e par- [...] Tem também muitos pacientes que vêm tirar
ticipar das ações planejadas. dúvidas com a gente. Saíram da consulta e vêm
A teia de poder-saber pode ser percebida, perguntar pra gente. Aí você pergunta: – Mas a
também, na distinção feita pelo usuário: médica não lhe explicou isso? Não explicou ou ele
não entendeu? Mas chega pra gente, e aí você vai
Outro dia, já falei pra enfermeira: ‘qualquer dia detalhando as coisas. Eu acho que com o médico
você precisa ir comigo, mas não vai de branquinho, eles ficam um pouco receosos, principalmente os
não, vai é de abada [uniforme do ACS] [...] Aí você mais humildes [...]. (AE3).
vai ver como eles vão te tratar. Aí, sim!’. (ACS1).
Segundo Faïta (2007), o sujeito produz dis-
A distinção relatada reflete a diferença cursos a partir de uma posição e de um con-
hierárquica de poder atribuída a cada catego- texto determinado, influenciado por outras
ria, como declarado por outra trabalhadora: falas, anteriores e posteriores ao seu enun-
ciado, mobilizando saberes diversos para a
Outro dia, no acolhimento, um rapaz chegou, me compreensão da relação interativa daquele
xingou de tudo quanto é nome, porque estava de- momento. A linguagem é uma ação e permite
morando a consulta [...]. Na hora que ele entrou uma atuação direta sobre as pessoas. Ela é
aqui no consultório, abriu a porta, foi todo manso uma construção de sentido em uma situação
com a enfermeira, como se nada tivesse aconteci- singular que se expressa nas palavras.
do. A linguagem deles com a gente é outra [...] a O trabalho na ESF sugere, entre outros
gente fica com as cacetadas. (ACS2). fatores, a compreensão da linguagem e os
simbolismos que a constituem, tais como
A linguagem é um elemento essencial na as formas de comunicação, a participação, o
relação de poder-saber entre trabalhador/ mal-entendido, o não dito, a interpretação,
usuário, mas pode atuar como forma de bem como as diferentes formas de expres-
dominação. Por meio da linguagem, é pos- são (FAÏTA, 2007). Tal fato é comprovado no de-
sível influenciar o comportamento do outro poimento: “Tem um rapaz da minha equipe
visando a atingir os objetivos almejados. Tal que falava daquele médico: ‘Ele é só na dele,
função fica explícita nas relações de traba- tá nem aí. Aí eu não consigo falar quase nada.
lho, já que a linguagem é muito mais desen- É como se diz: eu entro mudo e saio calado’”
volvida e facilitada por aqueles que detêm o (AE2). No silêncio do usuário, a expressão
poder. É o que mostra o discurso: de não se sentir visto pelo profissional.
A medicina exerce um poder histórico nas
Alguns parece que têm medo de falar com o mé- relações de cuidado, concentra o poder do
dico! Chegam pra mim e pedem: fala pra ele! [...] diagnóstico e da intervenção terapêutica, cum-
Mas eu entendo, porque tem médico que não dá a prindo uma autoridade técnico-científica. No
mínima, pensa que sabe tudo [...]. Aqui na equipe entanto, apesar da existência subjetiva dessa
isso já mudou. (AE4). relação de poder, moralmente, médico e pa-
ciente são indivíduos sem distinção (AGUIAR;
O usuário, em circunstâncias diversas, OLIVEIRA; SCHRAIBER, 2013). Nessa direção, Cecim e
não dispõe de todos os termos e condições Merhy (2009) colocam que, a depender das rela-
para descrever seu estado e fica inibido ções estabelecidas entre usuário e profissional,
diante de quem, para ele, detém o poder- esse poder pode produzir a tirania do distan-
-saber. De modo geral, pouco questio- ciamento e uma atitude de total desatenção
na, e é comum sair do atendimento com para com os aspectos psicossociais do sujeito.
dúvidas, buscando esclarecimentos junto Assim, deve-se ressaltar que diferentes
aos outros profissionais: relações de poder-saber são estabelecidas no

SAÚDE DEBATE | Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, P. 1044-1052, OUT-DEZ 2015


1050 VILLA, E. A.; ARANHA, A. V. S.; SILVA, L. L. T.; FLÔR, C. R.

ambiente de trabalho da EqSF, devendo ser e até pensava: – quando isso vai mudar? [...] Ago-
traçadas estratégias que visem a horizonta- ra, dou a maior força pras colegas, pra a gente par-
lizar as relações de trabalho e cuidado, con- ticipar de tudo (AE3). Mas estamos num momento
forme previsto nas diretrizes da ESF. de transição ainda, porque com o outro médico não
tinha nada disso, não. Ele era ele e pra ele só. Você
Categoria 2: Mudança de paradigma falava alguma coisa, e ele ouvia e balançava a ca-
beça [...]. Hoje, com a outra médica, tem uma troca
Nesta categoria analítica, serão discutidas mesmo, e a gente discute junto. (AE1).
novas formas de vivenciar o poder-saber,
propondo novos paradigmas direcionado- Como pontua a trabalhadora, as transfor-
res dessas relações. mações do trabalho em saúde, particular-
A valorização dos sujeitos, trabalhadores mente, na atenção primária, vêm ocorrendo
e usuários permite alterar radicalmente as paulatinamente. É a partir dos pequenos im-
relações de poder-saber e seu reflexo nas pulsos, das escolhas singulares, que as mu-
práticas da saúde. Historicamente, podemos danças serão efetivadas.
acompanhar as diferentes estratégias articu- Também entre os médicos foi assinalada a
ladas pelos profissionais em busca de saídas, alteração de comportamento:
que resultaram em conquistas e no conse-
quente desenvolvimento do trabalho: O médico com médico, um nem olhava a cara do
outro. Era uma atitude individualista. O médico
Alguns colegas não se comprometem [...], mas tinha uma relação só com o enfermeiro de nível
eu acredito que a gente pode mudar [...] precisa- superior, então, pra chegar nessa escala pro auxi-
mos organizar melhor nossos trabalhos, se impor liar e pro ACS, mudou muito, abriu o leque, e todo
mais, sabe? Eu tenho muito mais potencial pra mundo saiu ganhando. (M2).
outras coisas do que ficar só ouvindo queixas,
por isso vou à luta. (E1). Assim, por meio da consolidação de novas
atitudes, os profissionais percebem novas
Novos modos de produção de saúde se formas de atuação, individual e coletiva, e
estabelecem a partir da resistência do traba- estabelecem relações diferenciadas, menos
lhador, presentes nas diferentes e singulares hierarquizadas no modo de ser e fazer na ESF.
formas de gerir seu trabalho. Nas palavras de O usuário também pode colaborar para a
Barros e Barros (2007, P. 61), “o trabalhador não criação de um novo paradigma relacional de
é mera vítima que sucumbe às sistemáticas poder-saber quando se percebe ouvido em
tentativas de desqualificação [...], ele (re) uma escuta atentiva, aquela em que o tra-
existe, (re)criando o próprio processo de tra- balhador se dirige ao outro como sujeito da
balho”. Abrem-se, assim, possibilidades no relação e não como objeto de seu discurso,
dizer ou no fazer, nas formas de relação, no permitindo ao usuário colocar mais de si no
confronto e na resistência, na gestão singular processo de cuidado.
e coletiva da saúde e da vida. Da experiência do usuário, de seu en-
É o que pode ser constatado quando as contro com as propostas conceituais e
trabalhadoras, buscando driblar as dificul- atitudes a serem desenvolvidas, surgem
dades, encontram as saídas, estabelecendo possibilidades de mudanças a serem reali-
novas normas, novos meios de desenvol- zadas de uma maneira gradual:
ver suas atividades:
É que o nosso trabalho não é somente técnico
Agora, eu vejo que tenho que contribuir e que tenho – não vale somente o meu saber. Tem que ter o
muuuuuito pra contribuir. Antes, nem abria a boca outro lado, que envolve muito da cultura. É um

SAÚDE DEBATE | Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, P. 1044-1052, OUT-DEZ 2015


As relações de poder no trabalho da Estratégia Saúde da Família 1051

processo lento. Hoje, eles já entram e conver- relações de poder presentes no cotidiano,
sam, mas a distância imposta na relação médi- tanto dos trabalhadores quanto dos usuários,
co-paciente era muito grande. Era o médico lá manifestada na acomodação burocrática ou
em cima e o paciente cá embaixo, mas isso, aos na omissão daqueles que a vivenciam, como
poucos, está mudando. (M2). também dos gestores.
A organização da ESF é elaborada e dis-
Nessa relação de cuidado, cabe ao pro- cutida, em cada um dos níveis hierárquicos,
fissional criar condições para a construção a partir da noção que os gestores têm do
da autonomia do sujeito, mesmo que uma trabalho, sem que um consiga vislumbrar
autonomia relativa, porque vai depender as dificuldades e a racionalidade que rege a
do entendimento do usuário e da potência prática dos demais. Diante da ausência de
do profissional, naquele momento, para in- respostas ou de respostas insuficientes da
fluenciar em um dado contexto ou situação. gestão, alguns trabalhadores buscam contor-
É no espaço relacional que ocorre o encontro nar a situação, fazendo um uso de si amplia-
entre profissional e usuário, com a constitui- do, desdobrando-se e, por vezes, esgotando
ção de vínculos e de compromissos. suas potencialidades físicas e psíquicas.
É imprescindível, portanto, que o ato assis- É importante ressaltar a relação de poder
tencial esteja pautado numa relação dialógica entre profissional e usuário, manifestada
e que seja guiado por uma postura indagado- pela linguagem, que permite ao primeiro
ra, sem o peso da hierarquia de poder-saber, o domínio frente ao segundo. Contudo,
para que o usuário possa se expressar a partir deve-se considerar que todo sujeito é de-
do vivido. E, consoante esses apontamentos, tentor de um saber próprio que o legitima.
tomamos Cecílio (2011), ao enfatizar a necessi- Portanto, o usuário deve ser protagonista
dade de serem retomados os projetos de co- na relação de cuidados e a linguagem não
gestão, de ultrapassá-los a partir do trabalho pode subjugá-lo.
vivo em ato, como um espaço de produção de Alguns paradigmas das relações de
possibilidades e das singularidades. poder-saber existentes nas estruturas de
serviços de saúde dificilmente são modifi-
cados, especialmente quando são vistos de
Conclusão forma naturalizada. No entanto, o presente
estudo mostra avanços no sentido de rompi-
O presente estudo retrata as diferentes rela- mento com alguns desses padrões, por meio
ções de poder-saber entre as categorias pro- de atitudes singulares que refletem maior
fissionais e entre essas e os usuários da ESF, confiança e mais firmeza de posicionamen-
além de identificar caminhos em direção to de alguns trabalhadores.
à construção de novas formas relacionais A relação de poder-saber existente entre
entre os envolvidos no processo de cuidado. os integrantes da ESF mostra que um implica
O poder mobilizado e construído no traba- e é implicado pelo outro, e não deve ser con-
lho da ESF sugere, portanto, que a gestão do cebida de forma independente das vivências
poder tem a potência de modificar os sujei- humanas e de um processo constante de re-
tos e as situações e de reverter os padrões elaboração e de transformação do estabele-
dominantes de subjetividade no trabalho. cido. A aquisição de saber não pode se fazer
Nos serviços de saúde, de modo geral, de cima para baixo, mas pelo próprio sujeito,
foi possível constatar certa banalização das mediado pela interação profissional. s

SAÚDE DEBATE | Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, P. 1044-1052, OUT-DEZ 2015


1052 VILLA, E. A.; ARANHA, A. V. S.; SILVA, L. L. T.; FLÔR, C. R.

Referências

AGUIAR J. M.; OLIVEIRA A. F. P. L.; SCHRAIBER L. Ergologia: conversas sobre a atividade humana.
B. Violência institucional, autoridade médica e poder Niterói: EdUFF, 2007.
nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saú-
de. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 11, p. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 6. ed., Rio de
2287-96, nov. 2013. Janeiro: Graal, 1986.

BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: 70, 2011 ______. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUS
H. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além
BARROS, R.; BARROS, M. E. B. Da dor ao prazer no do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro:
trabalho. In: SANTOS-FILHO, S. B.; BARROS, M. Forense Universitária, 1995.
E. B. (Org.). Trabalhador da saúde: Muito prazer!
Protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho GARCIA, A. C. P. et al. Análise da organização da
em saúde. Ijuí/RS: Ed. Unijuí, 2007, p. 61-71. Atenção Básica no Espírito Santo: (des)velando cená-
rios. Saúde debate, Rio de Janeiro, v. 38, n. especial, p.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à 221-236, out. 2014.
Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional
de Atenção Básica. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2012. LANZONI, G. M. M.; MEIRELLES, B. H. S. A rede de
relações e interações da equipe de saúde na atenção
CADONÁ, E.; SCARPARO, H. Construcionismo social na básica e implicações para a enfermagem. Acta Paul
atenção básica: uma revisão integrativa. Ciência e Saúde Enferm., São Paulo, v. 25, n. 3, p. 464-70, 2012.  
Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 9, p. 2721-30, 2015.
MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa
CECÍLIO L. C. O. Autonomia versus controle dos traba- qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.
lhadores: a gestão do poder no hospital. Ciência e Saúde
Coletiva, Rio de Janeiro,  v. 4 n. 2, p. 315-29,  nov. 1999. PIRES, M. R. G. M. Limites e possibilidades do trabalho
do enfermeiro na estratégia saúde da família: em busca
______. Apontamentos teórico-conceituais sobre pro- da autonomia. Rev Esc Enferm USP, São Paulo, v. 45, n.
cessos avaliativos considerando as múltiplas dimensões spe. 2, p. 1710-5, dez. 2011.
da gestão do cuidado em saúde. Interface (Botucatu),
Botucatu, v. 15, n. 37, p. 589-99, abr./jun. 2011. SULTI, A. D. C. et al. O discurso dos gestores da
Estratégia Saúde da Família sobre a tomada de decisão
COSTA, D. T.; MARTINS, M. C. F. Estresse em profis- na gestão em saúde: desafio para o SUS. Saúde debate,
sionais de enfermagem: impacto do conflito no grupo e Rio de Janeiro, v. 39, n. 104, p. 172-182, mar. 2015.
do poder do médico. Rev. esc. enferm. USP, São Paulo, v.
45, n. 5, p. 1191-1198, out. 2011.
Recebido para publicação em maio de 2015
Versão final em setembro de 2015
FAÏTA, D. A linguagem como atividade. In: Conflito de interesses: inexistente
SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. (Org.). Trabalho e Suporte financeiro: não houve

SAÚDE DEBATE | Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, P. 1044-1052, OUT-DEZ 2015

Você também pode gostar