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Síria: um reinado de silêncio num sistema republicano

Amal Wanos1

O antigo presidente Hafez al-Assad – pai do atual presidente – tomou o poder pela
força, no início dos anos 70. Ele não o fez para confirmar um sistema republicano. Pelo
contrário, ele nutria um projeto que contradiz todas as leis e constituições republicanas, e
acabou por construir um reinado em que poderia transferir o poder a um de seus filhos.
A fim de realizar este projeto, ele procedeu da seguinte maneira, durante trinta anos:
encorajou as minorias, sobretudo Alauita [etnia a qual pertence a família do presidente], a
deixar as montanhas para se instalarem nas grandes cidades. Esse projeto não visava incitar
estas minorias a se integrar com os demais cidadãos. O objetivo era fazê-las trabalhar no
exército, nos serviços de informação, e em todas as agências ligadas à segurança do país. Na
realidade, tratava-se de reforçar sua força ligando o destino dessas minorias ao seu poder
político. Hafez al-Assad foi bem sucedido, pois em 2000, após a sua morte, a situação na Síria
estava organizada para que o poder passasse a seu filho: estando os serviços de informação e
as Forças Armadas prontos a fazer o necessário para que tal transição ilegal se realizasse,
nada podia ser feito senão obedecer. Face a isso, surge a questão: como a sociedade síria se
submeteu a ponto de aceitar essa transição que é contra as leis de um país republicano?
Em primeiro lugar, Hafez al-Assad soube minar os islamistas, durante os anos 80, e
afastou do cenário político, e do país, tanto os liberais quanto a extrema-esquerda. De fato,
houve contestações contra o regime no início de 1980 e como não conseguisse detê-las, al-
Assad deu ordens de bombardear selvagemente uma cidade (Hama), a fim de passar uma
mensagem clara às demais: se vocês continuarem a contestar, terão o mesmo destino dos
habitantes de Hama. Até o momento, não se conhece o número exato de vítimas desse
massacre, mas se estima que seja algo em torno de 20.000 a 40.000 mortos. Após ter
condenado os islamistas à morte, e após ter banido do país – ou trancafiado em prisões –
todos aqueles que defendiam ideias democráticas, Hafez al-Assad encontrou-se na confortável
situação de ocupar o poder sem a menor sombra de contestação.
Todavia, a fim de completar seu projeto de construir uma falsa república, era preciso
ainda fazer com que os sírios se tornassem dóceis, fazendo tudo o que seu mestre lhes
obrigasse, ou mais precisamente, torna-los rebanho em permanente medo dos cães de seu
mestre. Graças a essa política agressiva e selvagem, um reinado de silêncio estava se
construindo pouco a pouco. Nesse ritmo, para banir do rebanho as tendências ao livre-pensar,
a repressão era insuficiente, precisava-se ainda de uma teoria política dominante, que
impregnasse a vida dos sírios. A fórmula foi encontrada na consolidação do partido único Al-
Baath, que penetrou a vida dos estudantes, dos trabalhadores, dos funcionários e mesmo das
associações públicas.
Esse partido, cujo chefe segue sendo o presidente, possui três princípios de base: a
unidade, a liberdade e o “socialismo”. Destes, o terceiro princípio foi relativamente realizado
através da socialização da vida do povo sírio, o que evitou a morte pela fome. Para ser ainda
mais explícito, este projeto evitou a morte dos pobres, mas condicionou as pessoas a
pensarem apenas no pão de cada dia. Ao mesmo tempo, esse projeto conseguiu suprimir a
classe média e evitar que as pessoas colocassem questões sobre sua liberdade e dignidade
enquanto seres humanos. Em relação aos dois outros princípios, eles jamais foram aplicados,
pois a unidade dos países árabes é um ideal que o regime sabia, e sabe, ser impossível de
realizar. Em relação à liberdade, os sírios repetem essa palavra sem conhecer seu real
significado, tendo em vista os constrangimentos políticos, sociais e econômicos.

1
Professora de Filosofia na Universidade de Damasco, atualmente vivendo em Paris.
Com essa política, o governo sírio criou gerações que não enxergam para além do
próprio nariz; que preferem a utopia da unidade com os países árabes à liberdade; que veem
no presidente um herói ocupado apenas com o ideal do Homem Árabe. O antigo presidente
queria que os sírios se tornassem à imagem de um rebanho, fazendo todos os mesmos gestos e
partilhando, todos, as mesmas ideias. A liberdade, nesse contexto, é ideia do demônio! A
chegada do filho ao poder, em 2000, não mudou a política do pai, e há quem diga que Hafez
al-Assad continua a dirigir a Síria desde sua tumba.
Por conta dessa república de aparências – onde o silêncio é obrigatório e onde os
aliados do presidente são privilegiados política e economicamente – chegamos à terrível
encruzilhada de crer que ou este regime continua ou teremos uma guerra civil; ou o presidente
permanece ou o país inteiro ruirá em chamas. Enquanto este regime continuar no poder, o país
permanecerá na obscuridade. Enquanto o presidente permitir que as Forças Armadas invadam
as cidades e massacrem os manifestantes, a Síria seguirá rumo à guerra civil, pois a divisão do
país entre os que odeiam o presidente e pedem sua morte e os que estão prontos a morrer para
defende-lo torna-se cada vez mais contundente e perigosa.

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