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estrada

de ferro mauá:
nos trilhos da história
estrada
de ferro mauá:
nos trilhos da história

A lmir C haiban E l -K areh


E liane S alles
Ladeira do Durão, 21/Sl 201, Santa Teresa, Rio de Janeiro – RJ, Brasil. CEP: 20241-230.
Telefone: (21) 2221 2155 | oroboro.com.br

Copyright 2017 de texto by Almir El-Kareh e Eliane Salles


Copyright 2017 desta edição by Oroboro Projetos e Serviços Culturais Ltda.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009.

Projeto realizado com apoio do Governo Federal, Ministério da Cultura, Lei de Incentivo à Cultura.
Patrocínio: MRS Logística S.A.

Versão digital do livro Estrada de Ferro Mauá: B+ Comunicação

Coordenação de produção | N adia M edella


Coordenação administrativa | P aulo M iranda
Edição | V ictor C osta
Projeto gráfico e diagramação | S uiá T aulois
Revisão | C ristina da C osta P ereira
Fotografia | P edro E steves

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

E43
El-Kareh, Almir Chaiban
Estrada de Ferro Mauá: nos trilhos da história / Almir Chaiban El-Kareh,
Eliane Salles.1.ed. – Rio de Janeiro: Oroboro, 2017. 176p.: il.; 26,5cm

ISBN 978-85-93718-00-7

1. Ferrovias – Rio de Janeiro – História. 2. Estrada de Ferro Mauá – História.


I. Salles, Eliane. II. Título.

CDD-385.098153(22.ed)
CDU-656.2(815.3)
C redita-se, ao escritor George Orwell, a autoria de uma das frases mais emblemá-
ticas para o movimento sindical internacional: “A história é escrita pelos ven-
cedores”, entendendo-se por vencedores os que saíram vitoriosos de guerras, os que
acumularam capital ou ainda aqueles que subjugaram seus opositores – ou os tra-
balhadores. Acreditamos que está na hora de a história ser contada por quem a fez!

Daí surgiu a ideia de pôr no papel, de registrar em um livro nossa história – e as-
sim preservar a memória das nossas ferrovias e da nossa trajetória, um caminho feito
de sangue, suor e lágrimas. De grandes perdas individuais, mas de ganhos coletivos
incomparáveis. De trazer à tona e tornar públicos os percalços de homens, de corpos
cansados e espíritos fortes. Gente tenaz, que construiu estradas, pontes, pontilhões,
estações, cortou rochas e montanhas e fez o que mais tivesse que ser feito, enfrentan-
do lamaçais doentios, jornadas extenuantes, feitores travestidos de chefes – e muitas
outras adversidades.

Assim, nós – os ferroviários – desbravamos esse imenso país, garantindo também


a rodagem dos nossos trens, que anunciaram progresso e desenvolvimento para uma
nação, que, em meados do século XIX, ainda se encontrava às margens da economia
mundial. Ao sairmos do regime escravocrata, que as ferrovias ajudaram a extinguir,
auxiliamos, é verdade, a inserir o país no sistema capitalista.

Começou aí então nossa segunda batalha: a luta pelos direitos dos trabalhadores.
Com nosso senso de união e companheirismo, fundamos o conceito de classe traba-
lhadora e de categoria neste país. E estendemos nossa luta e nosso apoio, durante todo
o século XX, às batalhas de companheiros de outras categorias.

Não poderíamos contar nossa história em um único livro. Mas decidimos começar
a contá-la pelo começo: pela Estrada de Ferro Mauá. Preservar sua história e sua
memória – e fazê-las chegar às novas gerações – é, para nós, reverenciar os que a cons-
truíram e até mesmo deram suas vidas por ela e a ela.

Por todos esses companheiros, é que estamos aqui, firmes e fortes, como a Estra-
da de Ferro Mauá, que, apesar de todos os esforços para destruí-la, é e sempre será
a primeira estrada que trilhamos, seguindo um caminho que só faz nos orgulhar de
sermos – e de sempre sermos – ferroviários.

SINDICATO DOS TRABALHADORES EM EMPRESAS FERROVIÁRIAS DA ZONA CENTRAL DO BRASIL

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S e, por um lado, nosso trabalho diário lida com a estruturação de uma companhia
que possa dar sustentação econômica e social à atividade ferroviária, por outro, é
fato que nós nunca perdemos, ao longo dos 20 anos de história da MRS, a vívida noção
do importante legado que a sociedade brasileira nos confia. O fato é que a ferrovia tem
história e relevância distintivas, e é, ela própria, muito maior do que qualquer empre-
sa. É no passado de pioneirismo, visão, dedicação e inúmeras vidas entrelaçadas que
o ferroviário encontra, especialmente nos momentos mais difíceis, a energia e a obs-
tinação que fazem parte de sua própria essência. A história da ferrovia – riquíssima,
mas nem sempre conhecida – é, para as atuais gerações de ferroviários, inspiração e
fonte de um inescapável senso de responsabilidade com o futuro.

Justamente em um momento em que o país se debruça em debates sobre os cami-


nhos possíveis para o desenvolvimento das estradas de ferro, recebemos com grande
prazer e orgulho esta obra sobre a Estrada de Ferro Mauá, cuja história, sob inúmeros
aspectos, permanece atual, instigante e motivadora. O trabalho de pesquisa histórica
da obra irá demonstrar que a ferrovia nasce e se desenvolve para atender a necessida-
des de desenvolvimento, integração e modernização de nossa sociedade. A exploração
jornalística dos relatos de vida ligados à ferrovia irá revelar a paixão, o vínculo fami-
liar e o lugar definitivo que a ferrovia fundou, e não deixou de ocupar, nos corações
dos brasileiros; nada pode estar mais alinhado com aquilo que pretendemos hoje com
o projeto em curso na MRS, o de oferecer novas e mais eficientes soluções ao país, fun-
damentados na paixão por fazer bem-feito, com segurança, e gerando crescimento e
progresso para a sociedade.

Parabenizamos e agradecemos aos autores e à editora pelo trabalho. Que ele sirva
a seus jovens leitores para ampliar horizontes e abrir portas para um mundo de muito
trabalho, dedicação e de paixão pela ferrovia.

GUILHERME SEGALLA DE MELLO


Presidente MRS Logística

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E ste livro nasceu do desejo de muitas pessoas de contar a história da primeira es-
trada de ferro do Brasil, a Estrada de Ferro Mauá (EFM); projeto ousado, criado há
mais de 160 anos, de uma ferrovia com pouco mais de 15 km de extensão entre o litoral
dos fundos da baía de Guanabara e o pé da serra de Petrópolis, cruzando o município
de Magé, no estado do Rio de Janeiro.

A EFM fez parte do trajeto, absolutamente refinado, visto hoje a distância, de ligar
o centro da cidade do Rio de Janeiro ao centro da cidade de Petrópolis, na serra flumi-
nense. Esse trajeto foi pensado por uma das figuras mais irrequietas do Brasil imperial,
o Visconde de Mauá, que investiu esforços e dinheiro na construção de um sistema
trimodal de transporte, composto por barcos, trens e carruagens. Os barcos cruzavam
a baía de Guanabara; os trens cruzavam a EFM; e as carruagens subiam a serra de
Petrópolis. Esse aspecto histórico da narrativa em torno do surgimento e desenvol-
vimento da EFM está contido na primeira parte do livro, “A máquina do progresso”,
escrita pelo historiador Almir C. El-Kareh, que nos apresenta um texto criativo, leve,
gostoso de ler, criado a partir de uma pesquisa que se concentrou em jornais da época.

Se Almir, historiador, concentrou-se em conteúdos jornalísticos, na segunda parte


do livro, “O relato de uma viagem”, Eliane Salles, jornalista, baseou-se em narrativas de
historiadores e pesquisadores. Eliane revela a EFM de hoje. Ela viajou algumas vezes
para Magé a fim de coletar depoimentos tanto de historiadores que estudam as ferrovias
do Brasil quanto de pessoas simples que têm suas vidas de algum modo cruzadas pela
EFM. Eliane convida-nos para um delicioso texto-viagem. Embarcamos junto com ela
no cenário de uma EFM que já não existe mais, mas cuja presença simbólica resiste
fortemente. Temos um olhar antropológico de alguém que busca conhecer os aspectos
afetivos daqueles que pensam, sentem e lembram-se da EFM, e que também nos faz co-
nhecer os percalços da conservação e da preservação da memória ferroviária no Brasil.

Como dissemos, Estrada de Ferro Mauá: nos trilhos da história nasceu do desejo
de muitas pessoas. Em especial, da diretoria e dos trabalhadores do Sindicato dos
Trabalhadores em Empresas Ferroviárias da Zona Central do Brasil, que conceberam
a ideia desta obra, da empresa MRS, que patrocinou o projeto, das palavras de Almir e
de Eliane. E de toda a nossa equipe, que tem a satisfação de apresentá-lo.

Tenha um bom embarque.

OROBORO SERVIÇOS E PROJETOS CULTURAIS


Rio de Janeiro, março de 2017

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Agradecimentos
À s pessoas que acreditaram neste livro e o apoiaram: Antônio Pastori, Bartolomeu
Homem d’ El-Rei Pinto, Danilo Fernandes, Eduardo André Chaves Nedehf, Etiene
Nogueira, Fátima Argon, Francisca Chaves Nedehf, Hélio Suêvo Rodrigues, Isabel Cris-
tina Junqueira de Andréa, Jeanne Cristina Menezes Crespo, Kleber Mauá, Neide Soares,
Raphael Martinelli, Raymundo Neves de Araújo, Sávio Neves, Sebastião Campos e Val-
mir de Lemos. Às instituições: Biblioteca Nacional, Museu Histórico Nacional, Museu
Imperial de Petrópolis e Museu do Trem.

Agradecimentos especiais de Almir Chaiban El-Kareh:

À minha mulher Eliane e à minha filha Anouk, que não me deixaram esmorecer aban-
donando o trem quando já chegava à estação final.

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PARTE I – A MÁQUINA DO PROGRESSO – por Almir Chaiban El-Kareh
Introdução | 18
1. 1854: Um salto para a modernidade | 24
2. A menina dos olhos do Barão de Mauá | 28
3. De menino pobre a Barão do Império | 38
4. Uma viagem ao futuro | 42
5. Quem não arrisca não petisca | 47
6. Uma empresa e três modalidades de transporte | 51
7. Um sonho quase impossível | 55
8. Os meios de transporte de massa e a democratização da sociedade | 58
9. O pecado original | 63
10. A grande traição | 66
11. A morte anunciada | 68
12. Nem com barganha nem com ameaças | 70
13. Dando o braço a torcer | 74
14. To be or not to be | 76
15. Nem oito nem oitenta | 78
16. A última cartada | 82
17. A travessia da baía de Guanabara | 85
18. Subindo a serra | 89
19. O fim da linha | 97
20. “Eu sou o progresso, eu sou a vida!” | 99
21. A última viagem | 108
Bibliografia e fontes | 111

PARTE 2 – O RELATO DE UMA VIAGEM – por Eliane Salles


1. O EMBARQUE | 118
Purgatório da beleza e da memória ferroviária | 120
Aura | 121
Entre o sagrado e o profano | 125
Piabetá | 127
Descarrilamentos | 132
Breve história de um ocaso | 136
Tomando partido | 137
Saindo de vez dos trilhos | 139
2. FERROVIÁRIOS, GRAÇAS A DEUS! | 141
Sem perder um dia de trabalho | 143
Testemunha ocular e auditiva da história | 144
Greves e luta pela categoria | 147
Com muito orgulho e luta | 148
3. BITOLAS E BITOLADOS | 150
Virando a chave | 152
RFFSA | 153
4. A VIAGEM E SEUS ESTRANHOS PASSAGEIROS | 156
A Baronesa | 156
Com um olho na lei e o outro nos cupins | 158
O desaparecimento da estátua | 160
Bons de praga | 162
O trem no imaginário coletivo | 162
Os apaixonados | 164
5. O DESEMBARQUE | 166
Próxima parada: esperança | 167
Os Quatro Caminhos do Imperador | 170
Sonho coletivo | 173
REFERÊNCIAS | 175
A lmir C haiban E l -K areh , nascido em Niterói/RJ, realizou
seus estudos de graduação (1965) e mestrado em história (1974)
na UFF, e de doutorado (1982) e pós-doutorado (1995) em história
pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS)/Paris/
França. Foi professor do Departamento de História da UFF (1966-
1996) e da Uerj (1997-2003), professor-pesquisador do Centre de
Recherches Historiques da EHESS (2008) e do programa Erasmus
Mundus na EHESS (2009). Publicou diversos artigos e capítulos
de livros no Brasil e no exterior, e os livros Filha branca de mãe
preta: a Cia. da E. F. D. Pedro II (1982) e A vitória da feijoada (2012).
PARTE I
A máquina do progresso
por A lmir C haiban E l -K areh
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

Introdução

O Barão, depois Visconde de Mauá, nascido pobre e chamado


Irineu Evangelista de Souza, foi nem mais nem menos que
um homem de sua época. Tendo vivido entre 1813 e 1889, foi tes-
temunha e protagonista de uma das maiores e mais profundas
transformações da história humana, a eclosão e expansão mun-
dial do capitalismo.

Foi nesta conjuntura de grandes transformações mundiais em


que o capitalismo armado de sua tecnologia avançava e transfor-
mava as antigas formas de trabalho e de produção provocando
desemprego, êxodo rural e superpopulação urbana na Europa,
que o Brasil se incorporou ao mercado mundial como grande
exportador de café e grande acolhedor de imigrantes europeus
que, em sua maioria, fugiam da miséria e da fome. Vinham “fazer
a América”. Irineu Evangelista de Souza viveu, portanto, o maior
momento de efervescência econômica e social do século XIX que
se refletia, também, no Brasil.

Aqui, o crescimento econômico era condicionado e estimu-


lado pela estabilidade política alcançada durante o reinado
do imperador D. Pedro II (1840-1889) e pelo vertiginoso cres-
cimento da produção e exportação de diversos produtos, espe-
cialmente o café.

Não por acaso, ainda menino partiu do Rio Grande do Sul para
a Corte, como era chamada a capital do Império, maior polo eco-
nômico do país. O Rio de Janeiro ao longo da primeira metade do
século XIX se tornara não só a maior e mais rica cidade brasileira,
como era também, e de longe, a que possuía a maior população
escrava de todas as Américas.

Os escravos estavam por toda a parte. Nas residências, como


domésticos, participavam da intimidade dos seus senhores e
patrões. Nas ruas, nas oficinas e nos ateliês ocupavam todos os
espaços realizando todos os tipos de trabalho, desde os menos

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qualificados até os mais especializados. Não era possível respi-
rar sem eles; a vida sem eles era impossível.

Foi na maior cidade escravista da época que cresceu e viveu


Irineu Evangelista de Souza. Trabalhando como balconista, ele
aprendeu a arte do comércio e descobriu que, dentre as opções
para enriquecer, a importação de escravos da África era de todas
a mais rentável. Mas não a única. Preferiu enveredar pela via da
produção industrial com a aquisição, remodelação e ampliação do
estaleiro de Ponta da Areia, em Niterói, ainda nos anos 1840, por-
tanto dez anos antes do fim do tráfico negreiro da África, em 1850.

Estava, desde então, definitivamente proibido o lucrativo “co-


mércio de carne humana” feito com a África, mas a escravidão
continuava. Ela se alimentava com o tráfico interno de escravos
entre as diferentes regiões e permanecia um excelente inves-
timento, pois o escravo se tornara mais caro. Mas tão caro que
o seu emprego só era vantajoso na produção de artigos de alto
valor comercial como o café para exportação.

Era urgente tornar a sociedade brasileira como um todo me-


nos dependente da escravidão. O emprego de trabalhadores li-
vres colocava-se como a única saída. Ao mesmo tempo, parte da
Europa passava por crises econômicas e precisava, para diminuir
as tensões sociais, exportar sua população miserável e faminta.
Muitos artesãos e artífices europeus, homens e mulheres, bem
como uma multidão de jovens apenas saídos da infância que
não encontravam mercado de trabalho na Europa também vi-
nham tentar a sorte aqui: vinham “fazer o Brasil”. A sociedade
carioca se europeizou e a população livre aumentou. O censo de
1872 apontava que o número de estrangeiros já havia ultrapas-
sado o de escravos.

Mas não só por transformações econômicas, demográficas e


sociais passava a sociedade brasileira; políticas também. Desde
1840 se iniciou uma política de centralização do poder monárqui-
co em torno dos interesses cafeeiros, especialmente fluminense,
e de submissão dos poderes locais e regionais, provinciais. Era

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

o começo de um longo período de estabilidade política, tão neces-


sária ao desenvolvimento econômico do país.

Desenvolvimento econômico e expansão urbana. Foram estas


as premissas que prepararam o surgimento de uma burguesia li-
gada à produção manufatureira e, principalmente, ao setor de ser-
viços urbanos que devia colocar o Rio de Janeiro em sintonia com
as grandes capitais europeias, Londres e Paris. O aparelhamento
urbano com transportes públicos, iluminação pública e residen-
cial a gás, rede subterrânea de abastecimento de água potável até
o interior das casas, e outra de esgotos que delas partia para cen-
tros de tratamento antes de serem lançados ao mar, eram alguns
dos principais desafios desta nova classe de capitães da indústria.

De todos estes investimentos, o mais importante e um dos mais


lucrativos era a criação de uma malha ferroviária para escoar
a produção do interior para os portos litorâneos de exportação.
Era, também, o que demandava maiores quantidades de capitais
para a sua execução em razão dos desafios tecnológicos que colo-
cava. A construção de uma ferrovia exigia a instalação de trilhos
e pontes de ferro, estações, armazéns e, sobretudo, de locomotivas
a vapor. Era, pois, o que havia de mais avançado em tecnologia,
especialmente quando foi necessário transpor montanhas como
os Alpes europeus, as Montanhas Rochosas nos Estados Unidos e
a Serra do Mar no Brasil.

Até então, as linhas férreas eram de planície, retas, pois nas


curvas os trens descarrilhavam. Foi preciso inventar o boggie,
carrinho situado sob o veículo ferroviário no qual eram fixados
os eixos e as rodas. Por ser móvel em relação ao chassi da loco-
motiva ou do vagão, o boggie se orientava convenientemente nas
curvas, superando-as.

Mas as dificuldades impostas pelas montanhas não se redu-


ziam aos aclives, que eram diminuídos pelas curvas que faci-
litavam a subida, era preciso também que as rodas aderissem
aos trilhos. A técnica do uso da cremalheira central foi posta
em prática pela primeira vez numa ferrovia em 1871, na Suíça.

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A transposição dos obstáculos naturais exigia a construção não
só de viadutos, às vezes gigantescos, em alvenaria, como também
de pontes em estrutura metálica. Frequentemente, a solução es-
tava na abertura de túneis na montanha. A engenharia civil e
a engenharia ferroviária eram constantemente postas à prova.

O Brasil, no início dos anos 1850, só tinha 28 anos de idade e


sua principal riqueza, o café, só então começava a ser exportada
em grandes quantidades permitindo a concentração de riqueza
nas mãos dos grandes fazendeiros cafeicultores e dos seus expor-
tadores. E as enormes somas de capital liberadas pelo fim do trá-
fico de escravos da África não eram suficientes para impulsionar
tantos projetos de aparelhamento urbano e no setor de transpor-
tes a vapor, aquáticos e terrestres, em geral.

Ademais, havia na sociedade brasileira uma desconfiança mui-


to grande em relação às sociedades anônimas que pela primeira
vez surgiam no país. Esta nova e moderna forma de associação de
capitais em pequenas, mas muito numerosas parcelas chamadas
ações, foi a saída encontrada para atrair quem não queria arriscar
toda a sua fortuna num negócio.

E, de fato, o acionista só arriscava na empresa o valor de suas


ações. E foram muitas as sociedades anônimas que se organi-
zaram para realizar todo tipo de obra como mercados públicos,
abertura de praças, ruas, canais, pontes etc. Muitas destas em-
presas, montadas às pressas e sem condições de levar a cabo
o empreendimento a que se haviam proposto, faliram, aumen-
tando a desconfiança dos capitalistas em investir nelas. Isto
explica por que Irineu Evangelista de Souza teve que organizar
várias de suas empresas, como a de Iluminação a Gás do Rio de
Janeiro, contando apenas com o seu capital. Somente depois que
elas demonstravam ser lucrativas outros capitalistas se apresen-
tavam para delas participar como acionistas.

Esta desconfiança só era superada quando a companhia,


nome tomado pelas sociedades anônimas, obtinha a promessa
de uma subvenção do Estado ou a garantia dele da realização de

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

até 7% de lucros anuais. Ou seja, um pouco acima dos juros pa-


gos pelos papéis do tesouro, de 6% ao ano. Se a companhia reali-
zasse lucros superiores a 7%, a subvenção estatal estancava. Em
consequência desta descapitalização crônica e da falta de con-
fiança dos capitalistas que não queriam arriscar o seu dinheiro,
a burguesia empresarial brasileira ficou muito dependente da
ajuda do Estado.

Mauá, apesar de todas as suas queixas, foi muito beneficia-


do pelo auxílio governamental que se fez de múltiplas formas,
mas sempre conseguido através de relações pessoais com polí-
ticos importantes, especialmente aqueles que detinham as ré-
deas do poder. Ele mesmo se elegera deputado pela província
do Rio Grande do Sul e, como tal, defendia seus projetos e suas
empresas, no que era auxiliado por outros políticos que, como
ele, eram empresários, negociantes ou grandes fazendeiros. Po-
lítica e negócios se misturavam abertamente. Isto fazia parte
da ética da época.

A Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro


de Petrópolis, popularmente conhecida como Estrada de Ferro de
Mauá, e hoje apenas Estrada de Ferro Mauá, não foi nem de longe
a mais importante de suas empresas. Aliás, do ponto de vista pu-
ramente econômico, foi mesmo um fracasso. Apesar do seu nome,
os seus trilhos nunca chegaram a subir a serra. Eram carruagens
que levavam os passageiros da última estação ferroviária, a da Raiz
da Serra, até Petrópolis, no alto da serra da Estrela. A empresa que,
em 1883, levou os trilhos à cidade serrana foi a da Estrada de Ferro
Príncipe do Grão-Pará.

No entanto, a Estrada de Ferro de Mauá1 desempenhava um


papel social muito especial ligando o calorento Rio de Janeiro à
fresca e “risonha cidade do prazer” onde se refugiavam os ricos
negociantes da capital e suas famílias, bem como toda a aristo-
cracia que vivia em torno da família imperial. A cidade de Petró-

1 – O autor optou pelo uso da expressão Estrada de Ferro de Mauá. No título e na segunda
parte do livro, adotou-se Estrada de Ferro Mauá, expressão mais coloquial utilizada atual-
mente por aqueles que falam sobre a EFM.

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polis havia sido eleita sede de verão do governo imperial. Mauá
ali possuía um palacete. Ali morreu em 1889.

A Estrada de Ferro de Petrópolis, como se autodenominava


a companhia em seus anúncios nos jornais, foi, sem dúvida, a me-
nina dos seus olhos. E, não por acaso, a data de sua inauguração,
em 30 de abril de 1854, ficou identificada com o próprio Mauá.
Por isso, em 1910, no Rio de Janeiro, quando foi inaugurada a sua
estátua na praça que tomou o seu nome, a data escolhida não foi
a do seu nascimento, mas a do aniversário de sua tão querida es-
trada de ferro. Mauá não foi um mito. Foi simplesmente um dos
maiores protagonistas de seu tempo.

O menino pobre tornara-se, no espaço de cerca de vinte e cinco anos, um dos


homens mais ricos e industriosos do Império brasileiro, o que lhe valeu o título
de Barão de Mauá. (MUSEU IMPERIAL/IBRAM/MINC/nº SGI-216/2017)

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

1. 1854: Um salto para a modernidade

P ara os carnavalescos, o dia 12 de março de 1854, um domingo


de Carnaval, está gravado em suas memórias como aque-
le em que, pela primeira vez no Brasil, um grupo de moços, em
geral jovens e prósperos comerciantes do Rio de Janeiro, todos
luxuosamente fantasiados, saiu às ruas da cidade num desfile
em carruagens. Este primeiro ensaio, carinhosamente acolhido
pela população carioca, foi tão bem-sucedido que surgiu a ideia
de formar uma sociedade com o fim de organizar a celebração
desta nova forma de brincar o Carnaval nas ruas. O Carnaval de-
via substituir o velho e animado entrudo2, agora visto por certos
setores da elite carioca como uma brincadeira de mau gosto e,
mesmo, bárbara e perigosa, indigna de uma sociedade civilizada.

Em apenas quatro dias, o número prefixado de cem sócios esta-


va praticamente preenchido pelos membros mais importantes “da
mocidade da capital” que, reunidos, concordaram que a sociedade
com fins recreativos se chamaria Congresso das Sumidades Carna-
valescas, em clara alusão sarcástica às nossas “sumidades políticas”.
Estava inaugurado o Carnaval de rua que, no ano seguinte, seria
reforçado por outra sociedade carnavalesca, a União Veneziana.

Desde então, e por muitos anos, seus membros ricamente fanta-


siados e precedidos por bandas de música desfilaram a cavalo ou em
carruagens pelas vias públicas do Rio, recebendo os aplausos da po-
pulação que eram retribuídos com flores e balas de confeitos, espe-
cialmente produzidas para esta ocasião. Eis o aviso de sua formação:
Comunicados. Para o Carnaval. […] Ontem, domingo, reuni-
ram-se e, depois de concordar que a sociedade se denominas-
se Congresso das Sumidades Carnavalescas, nomearam uma
diretoria com plenos poderes para levar a efeito os fins da
sociedade, tendo os sócios por dever auxiliar a diretoria com
suas luzes e influência para a melhor regularidade e esplen-
dor dos divertimentos3.

2 – Festejos e brincadeiras, especialmente hídricas, durante os três dias de Carnaval.


3 – Diário do Rio de Janeiro, 14/03/1854, Comunicados, p.1.

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Entretanto, para a maioria da população carioca, aquele
mês de março de 1854 seria sempre lembrado como o de uma
revolução nos seus costumes. No dia 20, foi feito um pequeno
ensaio, bastante satisfatório, e no dia 25 foi para valer: estava
inaugurada a iluminação a gás da capital do Império a partir
das ruas de São Pedro, Sabão, Rosário, Ouvidor, Direita e do lar-
go do Paço. Estas ruas ficaram apinhadas de gente. O contraste
que apresentavam os antigos candeeiros de azeite de peixe ao
lado dos brilhantes lampiões de gás tornava ainda mais notá-
vel a diferença da luz. E, maravilhados diante de tanta clarida-
de, todos se perguntavam como é que podiam ter ficado tanto
tempo privados dela.

Mas isto não era senão o começo de uma profunda trans-


formação que mexeria com toda a vida da cidade, consagran-
do definitivamente o empresário responsável por esta façanha:
o sr. Irineu Evangelista de Souza. Para se ter uma ideia, a inaugu-
ração se deu no coração comercial da cidade, nas ruas de maior
movimento, ao cair da tarde, diante de uma multidão que espe-
rava curiosa. E a espera valeu a pena. Como por um passe de má-
gica, sem ajuda dos escravos acendedores dos antigos, fétidos
e fumacentos lampiões de azeite de baleia, de onde partia um
lúgubre clarão, os novos postes se iluminaram de uma só vez e
um “oceano de luz” límpida e clara dissipou a escuridão a uma
grande distância. Era realmente um espetáculo espantoso, qua-
se inacreditável! E o povo, deslumbrado, caminhou pelas ruas
iluminadas tendo a impressão de que em uma parte da cidade
era dia e na outra era noite4.

Com o gás produzido a partir da combustão do carvão de pe-


dra em sua fábrica da Cidade Nova, conhecida como Gasômetro,
muito em breve a nova iluminação se estenderia, através de tu-
bos de ferro subterrâneos, a todas as ruas e praças da cidade e
seus subúrbios, e todas as casas de negócios e residências teriam
os seus interiores iluminados pela intensa e clara luz do gás.
4 – Jornal do Commercio, 14/06/1854, Relatório da Repartição dos Negócios da Justiça à
Assembleia Geral Legislativa, p. 5.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

Fábrica de Gás Gasômetro. A iluminação a gás dos logradouros públicos


e dos interiores das lojas e residências revolucionou o dia a dia do carioca
em casa e na rua. (Acervo da Fundação Biblioteca Nacional-Brasil)

26
Era o fim daquele suplício de ser obrigado a encerrar-se, numa
noite quente e abafada de verão, entre as quatro paredes de uma
casa, verdadeira estufa. Agora, seria possível poder desfrutar as
caminhadas noturnas à beira-mar e no belo Passeio Público, e
frequentar até muito tarde os cafés, restaurantes e confeitarias,
pontos de encontro dos homens livres abastados, especialmen-
te após os espetáculos teatrais. E até mesmo o Carnaval de rua,
que apenas engatinhava, se beneficiou com a nova iluminação
pública. Os foliões, que em carruagens desfilavam fantasiados
à moda italiana dos corsos, puderam sair mais tarde, nas horas
mais frescas do cair da noite. E, ainda em 1855, ano do primeiro
desfile oficial da sociedade Congresso das Sumidades Carnava-
lescas, surgiu a ideia de um Carnaval “de pé no chão” no Passeio
Público iluminado à luz do gás:
Bailes mascarados no Passeio Público. Sr. Redator. –– A che-
gada do Carnaval e a notícia que corre de não haver bailes
mascarados este ano no teatro Provisório, e atendendo à in-
suficiência do teatro de São Pedro para admitir tanta gente,
sugeriu-nos [sic] a lembrança de ser aproveitado o Passeio Pú-
blico para tal fim nas noites de 17 a 20 do corrente (…) Ora, com
a iluminação a gás que hoje tem o Passeio e com as músicas
dos diversos corpos [militares] desta capital, pouco mais des-
pesa se faria com a decoração (…) O Abelhudo5.

Mas foi o último dia do mês de abril de 1854 que deixou a marca
mais indelével na memória dos cariocas, porque correspondia aos
anseios de toda a classe dirigente nacional: colocar o Brasil em con-
sonância com as nações mais adiantadas da Europa e com os Esta-
dos Unidos da América, ou seja, países sintonizados com os grandes
avanços científicos e industriais da época. As palavras de ordem eram
“civilização e progresso” e a inauguração da primeira estrada de ferro
brasileira simbolizava plenamente este slogan, pois o trem, com seus
vagões puxados por uma locomotiva que se autopropulsava pela for-
ça do vapor, era o que havia de mais moderno e revolucionário em
termos de conhecimento científico aplicado à indústria.
5 – Jornal do Commercio, Correspondência, 05/01/1855, p. 2.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

2. A menina dos olhos do Barão de Mauá

A população carioca ainda não se havia recuperado do espan-


to da iluminação a gás e Irineu a sacudia, pouco mais de
um mês depois, com uma espetacular novidade: o lançamento,
no dia 30 de abril, da primeira empresa brasileira de transportes
utilizando, ao mesmo tempo, a via aquática, a via férrea e a via
carroçável: a Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estra-
da de Ferro de Petrópolis. Isto, num país onde sequer uma linha
de bondes sobre trilhos, ainda que puxados por animais de tiro,
houvesse sido introduzida, era quase inconcebível! Sem dúvida,
o Brasil estava dando um grande salto na trilha do desenvolvi-
mento dos meios de transporte.
Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro
de Petrópolis. O sr. presidente da I. C. N. E. F. Petrópolis convida
aos srs. sócios da mesma companhia para assistirem, no dia
30 do corrente mês de abril, à abertura da 1ª seção da dita es-
trada, cuja solenidade é honrada com as augustas presenças
de Suas Majestades Imperiais. Os sócios poderão mandar pro-
curar, no escritório da companhia na rua Direita n° 52, os seus
cartões de admissão, tanto para serem conduzidos na barca
a vapor da companhia, como para entrarem nos carros e nos
aposentos que lhes são destinados. No mesmo escritório se
vendem também cartões ao público para a viagem de ida e
volta à (sic) Mauá, e igualmente para as carreiras até o fim da
linha e volta, pelos preços da tabela. Rio de Janeiro, 22/04/1854.
O secretário Manoel Correa de Aguiar6.

E por que Petrópolis, no alto da serra da Estrela, havia sido es-


colhida como destino desta estrada numa época em que os trens
ainda não eram capazes de galgar montanhas? Era evidente que
a escolha havia sido mais que tudo política, pois a importância
da região, desde a construção do Caminho Novo, era sobretudo
estratégica. Por ali passavam as tropas de mulas que vinham de
Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro e que para lá voltavam
6 – Correio Mercantil, 22/04/1854, Declarações, p. 2.

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carregadas de mercadorias para prover as famílias abastadas, en-
riquecidas com a mineração do ouro e do diamante.

O clima ameno do alto da serra havia conquistado o impera-


dor D. Pedro I, que ali costumava passar férias no verão em com-
panhia de sua família, fazendo-o decidir a adquirir uma fazenda,
a do Córrego Seco, para ali construir sua residência de verão. Seu
projeto foi adiado com a sua volta a Portugal, onde morreu em
1834. Posteriormente, em 1845, seu filho, D. Pedro II, não só rea-
lizou o sonho do pai mandando construir um palácio de verão,
como também incentivou a instalação de uma colônia de imi-
grantes alemães em terras da fazenda imperial e a criação de um
núcleo urbano: Petrópolis.

A decisão da família imperial de ali fazer construir o seu pa-


lácio de verão motivou a instalação, em magníficos palacetes, de
muitas famílias aristocráticas e de ricos comerciantes da capital
imperial. Em consequência, a subida da serra precisou ser amplia-
da e melhorada para o acesso de suas carruagens, cada vez mais

A residência de verão da família imperial transformou Petrópolis na cidade mais


aristocrática de todo o país e sede do governo durante o longo período estival.
(MUSEU IMPERIAL/IBRAM/MINC/nº SGI-01905/2016)

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

numerosas. Ela tomou o nome de Estrada Normal da Estrela. Era


a primeira estrada carroçável de montanha construída no Brasil.

Antes que a nova companhia da Estrada de Ferro de Petró-


polis fosse inaugurada, havia uma empresa que se encarregava
de levar passageiros do Rio de Janeiro a Petrópolis, e vice-versa.
Era a Companhia de Navegação do Inhomirim. Sua barca partia
diariamente do cais dos Mineiros, no centro do Rio de Janeiro, às
11 horas da manhã e, de volta, às três da tarde, do porto da Estre-
la, às margens do rio Inhomirim. Aí chegando, os passageiros en-
contravam condução em carruagens até Petrópolis, pagando-se
4 mil réis por pessoa. Custando, portanto, uma viagem completa
de ida, 5 mil réis7.

A partir do dia 30 de abril de 1854, ir a Petrópolis seria mais


rápido e bem mais confortável. Para isso, um novo porto no fundo
da baía de Guanabara, o de Mauá, foi especialmente construído
em função das necessidades da estrada de ferro. Ele devia substi-
tuir o porto fluvial da Estrela que apresentava dificuldades para
a navegação de navios de maior calado, mormente nas marés
baixas. Foi, por isso mesmo, construída uma ponte, ou seja, um
cais de atracação que avançava uns 125 metros sobre a baía, para
evitar os inconvenientes das marés. Este cais era dotado de uma
via férrea que o ligava à estação ferroviária Guia de Pacobaíba.
Desta forma, os passageiros podiam desembarcar das barcas a
vapor vindas da estação da Prainha, no Rio, e embarcar imediata-
mente no trem em direção à Raiz da Serra e vice-versa.

Um jornalista que participou dos festejos inaugurais da Estra-


da de Ferro de Petrópolis nos conta tudo, desde o início, quando
embarcou juntamente com “a boa sociedade fluminense” num
dos cinco vapores que “a Companhia de Mauá colocou à disposi-
ção de seus societários, dos convidados e dos contribuintes futu-
ros”8. A viagem dentro da baía, pela beleza da paisagem e frescor
da brisa, foi agradável e rápida, não levando mais que uma hora e
meia. E a barca a vapor Niterói, em que estava o jornalista, ainda
7 – Jornal do Commercio, 30/04/1854, Declarações, p. 2.
8 –Jornal do Commercio, 01/05/1854, Folhetim, p. 1.

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não tinha de todo atracado no porto de Mauá “e já metade dos
passageiros havia saltado na ponte de 400 pés que se estende
pelo mar, como um invasor disputando ao sinuoso Inhomirim os
seus antigos aliados”9. Ao desembarcar, o jornalista já encontrou
um grande número de pessoas “admirando o embarcadouro da
linha de ferro, a ponte, as locomotivas e ansiando pela chegada de
Suas Majestades para que começassem as solenidades do dia”10.

Na verdade, não era a primeira vez que o imperador vinha


àquele lugar. Ele ali estivera menos de dois anos antes, no ato de
fundação desta mesma estrada de ferro com a abertura dos tra-
balhos de sua construção. Aliás, esta visita do monarca ao acam-
pamento dos operários causara muita polêmica e especulação
maldosa pelo fato de Irineu haver depositado em suas mãos uma
pá com a qual Sua Majestade não desdenhou abrir, simbolica-
mente, o primeiro corte da estrada de ferro:
Sua Majestade o imperador passou a pá ao sr. ministro do Im-
pério, este ao sr. ministro da Guerra, seguiu o ministro da Ma-
rinha e assim por diante a todas as autoridades acima referi-
das; e cheio que foi o carrinho, Sua Majestade o imperador se
dignou conduzi-lo até a alguma distância, e depois o entregou
ao sr. presidente da Companhia que o despejou11.

Era normal que este episódio – de um monarca escavando


a terra com uma pá e, em seguida, empurrando um carrinho de
mão – provocasse muitos boatos e disse me disse num país em
que todos, mesmo os pobres, queriam ser senhores e desprezava-
se o trabalho físico, manual, visto como coisa de escravo. De fato,
os mais conservadores criticavam o Irineu por haver exposto o
imperador ao ridículo, fazendo-o passar por um operário. Outros,
mais progressistas, viam nele mais uma prova do caráter moder-
no e avançado de D. Pedro II, que aceitara participar deste ato, até
então impensável e jamais ousado por um monarca europeu. De
qualquer modo, bastava conhecer a complicada etiqueta da Corte
9 – Idem.
10 – Idem.
11 – 2ª Ata da Assembleia dos Acionistas da I. C. N. E. F., Petrópolis.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

Porto de Mauá. O cais do porto de Mauá


coberto e iluminado a gás. A chegada
de um vapor vindo do Rio de Janeiro e
o embarque imediato de seus passageiros
em direção a Petrópolis. (MUSEU IMPERIAL/
IBRAM/MINC/nºSGI-216/2017)

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

portuguesa, por nós herdada, para saber que não houve nenhum
improviso. Tudo havia sido minuciosamente orquestrado e de
antemão aprovado pelo monarca brasileiro.

Era, pois, a segunda vez que D. Pedro II ali pisava em um bonito


e ensolarado domingo de abril. Eram 11:45, nos conta o periodis-
ta, quando se anunciou, por meio dos habituais fogos de artifício,
que Suas Majestades desembarcavam. “Daí a pouco passaram
por meio das alas que formavam os assistentes, e começou a fes-
tividade.” Vieram então lentamente três locomotivas idênticas
que foram benzidas por um representante da Igreja Católica e,
em seguida, retiradas. Pouco depois, em meio aos sons dos fogos
de artifício e da música militar, uma só dessas locomotivas voltou
atrelada “às carruagens e carros do comboio”12.

Não houve, como era de praxe, discursos longos e enfado-


nhos cheios de adjetivos e poucos substantivos. O empresário
Irineu Evangelista de Souza, por ser um homem de negócios e
prático, dirigindo-se ao imperador e à sua mulher fez um discurso
pequeno e objetivo do qual estes três trechos dão uma boa ideia:
Esta é a máquina do progresso, e de nossa opulência no por-
vir. Sem ela de que nos servem (sic) a vastidão de nosso país,
nossos tesouros subterrâneos, nossas imensas solidões cober-
tas de florestas luxuriantes, nosso solo privilegiado?

(...) Hoje, dignam-se Vossas Majestades de vir ver correr a lo-


comotiva veloz, cujo sibilo agudo ecoará na mata do Brasil
prosperidade e civilização, e marcará sem dúvida uma nova
era no país. Seja-me permitido, imperial senhor, exprimir nes-
ta ocasião solene um dos mais ardentes anelos do meu cora-
ção: esta estrada de ferro, que se abre hoje ao trânsito público,
é apenas o primeiro passo na realização de um pensamento
grandioso. Esta estrada, senhor, não deve parar.

(...) Uma proteção eficaz aos primeiros passos deste meio de


locomoção admirável que tem contribuído tão poderosamen-
te para a prosperidade e grandeza de outros povos fará com
que seja uma realidade, e por ventura (sic) em época não mui
distante, esta visão que me preocupa13.

12 – Jornal do Commercio, 01/05/1854, Folhetim, p. 1.


13 – Idem.

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Ilustração da inauguração da Estrada de Ferro de Petrópolis publicada na revista inglesa
The Illustrated London News. (MUSEU IMPERIAL/IBRAM/MINC/nºSGI-216/2017)

O imperador, sábio e cauteloso, sabia que a sua presença bas-


tava como prova de seu apoio à empresa. Por isso, mediu mui-
to bem as suas palavras para não se comprometer, nem em seu
nome nem em nome do seu governo, com qualquer tipo de ajuda
ao empreendimento, que era de alçada puramente particular, e
respondeu: “A diretoria da Estrada de Ferro de Mauá pode estar
certa de que não é menor o meu júbilo ao tomar parte no começo
de uma empresa que tanto há de animar o comércio, as artes e
a indústria do Império14.” O apito da locomotiva, que mais tarde
foi batizada de Baronesa, deu o sinal da primeira corrida. O jorna-
lista prossegue seu relato:
Suas Majestades e toda a sua Corte, as autoridades superio-
res da província do Rio de Janeiro, o presidente do conselho,

14 – Idem.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

os ministros do Império, da Marinha e da Guerra, as senho-


ras dos convidados e muitas outras pessoas mais notáveis
embarcam-se nos vagões ao som de uma banda marcial e de
repetidos aplausos15.

A locomotiva arrancou da estação, arrastou o comboio, cor-


reu, voou, atravessou os quatorze quilômetros e meio da estrada
concluída e chegou em 23 minutos a Fragoso, ponto da provisória
parada final. “Tinha saído à 1:27 e chegado à 1:5016.” Às 2:27, esta-
vam novamente embarcados e, em 20 minutos, desembarcavam
no primeiro ponto de onde haviam partido. Foi enfim servido
o muito aguardado jantar, considerado “magnífico, extraordiná-
rio, grandioso como um poema!”, segundo o relato, provavelmen-
te exagerado, do jornalista.

Houve, ainda, duas outras corridas de trem perfazendo o mes-


mo percurso. Na volta, o salão de jantar foi concedido aos respecti-
vos passageiros. Aí, os copeiros se revezavam com a maior presteza
para repor as mesas, renovar as iguarias e o champanhe e servir aos
convidados deliciosos sorvetes importados que haviam acabado de
chegar dos Estados Unidos. Na mesa imperial, tiveram assento, por
convite de Sua Majestade, apenas o empresário Irineu Evangelista
de Souza e sua mulher, os ministros e conselheiros de Estado e suas
senhoras. Havia mais quatro extensas mesas servidas com profu-
são e bom gosto. Numa delas estavam muitos súditos britânicos e
os redatores dos diversos jornais da Corte que cobriam o evento. Foi,
sem dúvida, desta mesa que partiram as mais entusiásticas e baru-
lhentas salvas de hurras quando Irineu fez um pequeno discurso
de agradecimento ao imperador, que acabava de condecorá-lo com
o título de Barão de Mauá.

15 – Idem.
16 – Idem.

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A máquina revolucionária que hoje mais parece um brinquedo.
(MUSEU IMPERIAL/IBRAM/MINC/ nº SGI-216/2017)

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

3. De menino pobre a Barão do Império

I rineu Evangelista de Souza, nascido em 1813, fora criado num


pequeno sítio de criação de gado na freguesia de Nossa Senho-
ra da Conceição do Arroio Grande, no Rio Grande do Sul, perto
da divisa com o Uruguai. Ali crescera muito modestamente sem
se preocupar com o seu futuro, pois o futuro de uma criança de
um lugarejo tão afastado de tudo não podia ser senão o de trilhar
o mesmo caminho de pequeno estancieiro já seguido por seu pai.
Talvez não tenha sequer tido tempo de sonhar em ser o próspero
proprietário de uma charqueada, pois, aos 5 anos, a morte prema-
tura de seu pai deixou a família quase sem recursos.

A saída encontrada por sua mãe, jovem viúva, foi um novo ca-
samento. Então ela decidiu, como era comum na época, que seria
melhor enviar o pequeno Irineu com o seu tio José Batista de Car-
valho, capitão de longo curso, para o distante Rio de Janeiro. Ali
poderia empregar-se em alguma loja. Certamente, a capital do
Brasil, a maior e mais próspera cidade brasileira à época, ofere-
cia muito mais oportunidades de emprego do que a sua pequena
freguesia. Já, então, era muito comum que meninos da sua idade
de 10 anos viessem sozinhos de Portugal tentar a vida no comér-
cio, ou, como se dizia na época, viessem “fazer o Brasil”.

O seu primeiro emprego foi um pequeno armazém de velas e


chá onde trabalhou durante dois anos. Como qualquer jovem cai-
xeiro, como eram chamados os empregados do comércio, dormia
numa esteira no chão, ou em cima do balcão, e fazia as refeições
com a família do patrão que morava no fundo da loja. Não ga-
nhava nada além de casa e comida, mas também não sabia fazer
quase nada. Depois, já tendo adquirido alguma experiência, foi
trabalhar numa loja de fazendas onde seu salário não era sufi-
ciente para alugar um quarto numa casa de cômodos e sequer
para comprar livros. Para ganhar um extra, engraxava as botas
dos empregados mais velhos.

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Não era incomum que pequenos caixeiros viessem a ser um
dia, com muito esforço, proprietários de seus próprios negócios,
em geral no mesmo ramo em que haviam trabalhado e adquirido
experiência. Provavelmente, este era o sonho do adolescente Iri-
neu. Certamente, sua formação escolar era muito precária. Tendo
vivido numa pequena freguesia rural, seus parcos conhecimen-
tos das primeiras letras devem ter sido ministrados por sua mãe,
como era costume.

Como no Rio de Janeiro ainda não havia ensino profissionali-


zante, as chamadas aulas do comércio, o aprendizado comercial
se fazia na prática. Irineu queria ir mais longe e estudava por sua
própria conta depois do expediente, ainda de dia, pois o comércio,
nas primeiras décadas daquele século, fechava muito cedo, por
volta das três horas da tarde. Um dia, seu tio, aproveitando-se de
sua passagem obrigatória pelo Rio de Janeiro, cidade onde seu
navio fazia escala, foi visitá-lo. Irineu não deixou escapar a opor-
tunidade e lhe pediu, insistentemente, que usasse sua influência
e seus conhecimentos para arranjar-lhe outro emprego numa
casa comercial mais importante.

Em pouco tempo, o tio lhe arranjou um novo lugar. E, com ape-


nas 13 anos, Irineu ingressava como caixeiro na loja do sr. João Ro-
drigues Pereira de Almeida, homem influente, que mais tarde vi-
ria a ser o primeiro barão de Ubá. Ele era nada menos do que um
dos maiores negociantes da cidade, havendo enriquecido com
o comércio de importação e venda de escravos vindos da África,
bem como fazendo agiotagem, ou seja, emprestando dinheiro
a juros elevados.

Esta nova experiência foi a primeira grande escola do Irineu.


Agora, ele trabalhava para um negociante de “grosso trato” com
quem tinha muito o que aprender e em cujo comércio poderia,
esforçado como era, galgar postos e fazer carreira. E, na verdade,
foi aí que o jovem Irineu aprendeu como funcionava uma grande
firma comercial e descobriu, como já se dizia na época, a lógica
do capital, em que o lucro estava acima de tudo.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

Naqueles tempos, a escravidão era aceita pela maior parte


da população brasileira como algo natural. Quer dizer, como se
fizesse parte da natureza humana. E da mesma maneira que
uns nasciam homens e outros mulheres, uns nasciam livres
e outros escravos.

Desta forma, trabalhando num negócio de “grosso trato”, Iri-


neu aprendeu nos três anos que lá esteve que um bom negócio
era aquele que rendia muitos lucros e no qual era possível ga-
nhar muito dinheiro de diversas maneiras, inclusive traficando
gente. E, logo, se tornou o empregado de maior confiança da loja,
seu guarda-livros ou primeiro caixeiro, responsável pela escri-
turação do negócio e por sua caixa, ou seja, por toda a receita e
despesa da casa.

Apesar de toda a experiência comercial do sr. João Rodrigues,


seu negócio faliu e, em 1829, ele foi obrigado, para saldar as suas
dívidas, a vender todo o seu patrimônio. E como ele tinha negó-
cios com a firma do britânico Richard Carruthers, de quem era
devedor, este, sabendo das qualidades do empregado Irineu
Evangelista, o empregou. O jovem gaúcho tinha, então, apenas
17 anos de idade, mas já era quase um homem feito.

Se aprendera muito com o negociante de “grosso trato”, mais


ainda aprenderia com o seu novo patrão, pois os ingleses eram os
maiores negociantes do mundo e sabiam como ninguém vender
as mercadorias produzidas por suas fábricas. De fato, na firma do
sr.Carruthers ele não só aprendeu o inglês como também o mo-
derno método de trabalho em que tempo era dinheiro e a maior
produtividade o segredo de todo bom empreendimento. E tais
foram as provas que deu de sua capacidade de trabalho e perse-
verança que, em 1836, com menos de sete anos de casa e apenas
23 anos de idade, foi convidado por seu patrão para ser sócio da
importante firma de importação e exportação Carruthers&Cia.!

Com um capital de conhecimentos teóricos, adquiridos nos


livros, e práticos, adquiridos no trabalho, com muita garra e
vontade de vencer, convencera seu patrão de que entre todos

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os empregados da loja, mesmo os mais antigos e de nacionalida-
de inglesa, era ele o melhor.

De fato, o empresário britânico, já idoso, queria se aposentar


e voltar para a sua terra natal. Para isso, precisava deixar alguém
realmente capaz à frente de seus negócios. E aquele jovem bra-
sileiro apresentava qualidades excepcionais. Em 1837, quando
Richard Carruthers retornou definitivamente à Escócia, Irineu
assumiu a direção da firma britânica como sócio-gerente, vindo
a ser posteriormente seu principal sócio-proprietário. Tornara-se
muito cedo um homem rico, muito rico.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

4. Uma viagem ao futuro

O s anos 1840 haviam iniciado com a declaração da maiori-


dade de D. Pedro II com apenas 14 anos, marcando o início
de uma época de relativa estabilidade política e crescimento eco-
nômico. A produção do café fluminense só fazia crescer, aumen-
tando a riqueza dos fazendeiros, transportadores e comerciantes
de exportação deste produto que, por sua vez, diversificaram e
expandiram o seu consumo de produtos importados e de luxo
em geral. Daí a grande expansão do comércio em geral, especial-
mente o de importação e o varejista com suas lojas ornadas de
vitrines que atraíam a atenção dos possíveis compradores, esti-
mulando o seu apetite consumista.

Este grande impulso comercial, que se acelerou nas décadas


subsequentes, estimulou a imigração europeia para os nossos
centros urbanos. Com ela vieram muitos artífices e pequenos
comerciantes, bem como um número enorme de pessoas muito
jovens, especialmente portugueses. Estes “pequenos”, que aqui
chegavam entre 10 e 12 anos de idade, se empregavam em todo
tipo de negócio, especialmente o varejista e o de restauração, do-
minado pelos portugueses, que era o que mais crescia numeri-
camente. Quando prosperavam e abriam negócio próprio, eram
conhecidos como “moços do comércio”. Eram eles os foliões res-
ponsáveis pela criação das sociedades carnavalescas cariocas.

Mas os anos 1840 não foram apenas marcados por uma forte
expansão econômica, social e demográfica. Foram anos também de
muita efervescência política, de revoluções que tiveram de ser apa-
ziguadas à custa de muitas despesas de guerra. O então ministro da
Fazenda, Alves Branco, propôs em 1844 um novo modelo econômico
para o país. De fato, ele estava preocupado mais que tudo com os
déficits financeiros do Estado, envolvido em gastos enormes com
a organização administrativa da monarquia, cada vez mais centra-
lizadora, que necessitava aumentar a presença do poder central nas

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províncias17. Maiores, ainda, eram as despesas, que atingiram cifras
astronômicas, para sufocar os movimentos rebeldes de algumas
províncias, provocando o colapso do orçamento imperial.

Tendo em vista aumentar a renda do Estado, que provinha ba-


sicamente das taxas alfandegárias sobre os produtos importados,
aprovou-se uma nova política tarifária tributando-se fortemente
os produtos estrangeiros cujos equivalentes eram produzidos no
Brasil. Desta forma, ainda que não visasse diretamente as indús-
trias nascentes, esta medida as protegeu e foi a mola propulsora
das atividades industriais que despontaram com força.

Num país novo como o Brasil, descapitalizado, não havia outra


maneira de estimular as atividades industriais. Pois, se nem os
franceses tinham condições de competir com os industriais in-
gleses, ainda menos os brasileiros. Por isso, eram muitos os que
acreditavam que aquela política alfandegária protecionista, pos-
to que bem-vinda, era todavia muito tímida. De qualquer modo,
o imposto de importação sobre as chapas de aço e ferro e as ma-
térias-primas para a fundição, que foi fixado em apenas 25%, pos-
sibilitou a criação de novos estabelecimentos metalúrgicos. O de
Ponta da Areia, de Irineu Evangelista de Souza, foi um deles.

Em 1840, Irineu voltara de sua primeira viagem à Inglaterra,


o país mais desenvolvido da época, com a cabeça cheia de proje-
tos. Em Bristol, durante sua visita a um grande estabelecimento
de fundição de ferro e construção de máquinas, inclusive para
a indústria naval, ele ficou maravilhado. Assim, logo que liquidou
o negócio de importação e exportação da firma Carruthers, da
qual já era proprietário, a primeira ideia que lhe veio, e que tratou
de realizar, foi a criação de um estabelecimento idêntico.

Irineu fez parte daquela primeira leva de brasileiros e de imi-


grantes europeus estabelecidos no Brasil que, com arrojo, perse-
verança e muita vontade de vencer, percebeu que era o momento
de aproveitar a conjuntura política e econômica do país. Ou seja,

17 – Durante o Império, o Brasil era dividido administrativamente em províncias. A partir


da República, elas foram transformadas em estados.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

a conjunção da oferta inusitada de capitais liberados pelo fim do


tráfico africano de escravos com uma política de Estado protecio-
nista. Era, sem dúvida, uma oportunidade única e inadiável de rea-
lizar empreendimentos altamente lucrativos dentro da lei e fora
do tráfico negreiro africano, teoricamente proibido desde 1830.

Esta burguesia industrial emergente pegou carona no novo pro-


jeto político do Estado brasileiro. Numa manhã, lendo o Jornal do
Commercio, Irineu tomou conhecimento de que o governo imperial
se encarregava dos projetos preliminares para o encanamento das
águas do rio Maracanã a fim de abastecer os chafarizes da cidade.
No ato, compreendeu que era pegar ou largar. Usando seus conhe-
cimentos e suas boas relações junto ao governo imperial, tratou de
procurar o ministro do Império de quem era próximo e de quem
obteve a garantia da concessão para a realização daquelas obras18.

Com este contrato garantido, seu passo seguinte foi comprar,


em 1846, o Estabelecimento de Fundição e Estaleiro de Ponta da
Areia que incluía, além das terras e benfeitorias, seus vinte e oito
escravos. Apesar de seu nome pomposo, o estabelecimento era
bastante medíocre não passando de um muito modesto galpão
com algumas máquinas e fundição, necessitando de grandes

A estação da Prainha
foi remodelada
para atender à
seleta clientela e
aparelhada com
um moderno cais
que avançava sobre
as águas da baía.
(MUSEU IMPERIAL/
IBRAM/MINC/
nºSGI-216/2017)

18 – Jornal do Commercio, 28/11/1844, Parte Oficial, p. 1.

44
transformações. Ainda naquele ano, contando com os lucros
certos que obteria com as obras de encanamento das águas do
Maracanã, investiu em sua expansão quatro vezes mais do que
os 60 contos que havia pago por ele. E se descapitalizou.

Empresário com muito tino político, sabia da importância da-


quela obra para o fornecimento de água para a capital do Impé-
rio. Obteve do governo um empréstimo no valor de 300 contos
a ser pago em onze anos. Mas teve, em contrapartida, que hipo-
tecar como garantia do empréstimo todas as suas propriedades,
inclusive sua chácara no morro de Santa Teresa.

De fato, o governo imperial, contrariando as regras vigentes,


ajudou a Fundição de Ponta da Areia com aquela enorme soma
sem consultar a Assembleia Geral Legislativa. Alegou-se que se
tratava de uma necessidade pública urgente, ou seja, melhorar
o abastecimento de água potável do Rio de Janeiro cuja popula-
ção sofria muito com a sua falta, principalmente no verão. E o
governo estava seguro de que os legisladores não iriam objetar
a esta iniciativa tendo em vista que aí viviam não só as suas fa-
mílias, bem como as dos diplomatas e ricos comerciantes estran-
geiros radicados na capital do Império. E não havia quem não
quisesse agradar os moradores da capital, a elite econômica e
social do país, e poder contar com o seu apoio político.

Nesta época, o prestígio econômico e social de Irineu estava


nas alturas. Em abril de 1848, o presidente da província do Rio de
Janeiro em visita à sua fundição não dissimulou a sua expres-
são de satisfação ao ver não só a oficina de galvanização de me-
tais, a primeira a oferecer este gênero de serviço no Brasil, mas
também as novas dimensões do edifício com os prédios que
lhe haviam sido anexados: novos grandes galpões para abrigar
o combustível, a oficina de fundição de bronze, a oficina nova dos
ferreiros, a enfermaria, a casa de escravos próxima ao local de tra-
balho e o cais de cerca de 180 metros. Sem contar com o depósito
e o escritório, onde eram realizadas as vendas, ambos localizados
no centro do Rio de Janeiro, na rua Direita.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

E, certamente, havia motivos de sobra para que o novo empre-


sário da indústria se sentisse orgulhoso. Tornara-se um homem
rico e realizado, admirado e invejado. Sua fábrica não era mais
uma simples fundição. Transformara-se num verdadeiro estalei-
ro. Ali eram fabricados caldeiras, rebocadores e embarcações a va-
por feitos em parte de ferro e de madeira cujo valor ultrapassava
o valor de todos os edifícios da empresa. O estaleiro de Ponta da
Areia tornara-se uma marca de prestígio da própria monarquia,
que associava seu nome à ideia de progresso. E o Estado era o seu
principal cliente.

Naqueles dias, a sua casa se enchia de convidados ilustres,


pessoas as mais influentes do governo e da elite carioca, com as
quais mantinha relações de intimidade. Ali, frequentes reuniões
eram realizadas pela comissão encarregada da elaboração do Có-
digo Comercial do Império da qual era membro. Em retribuição
a este trabalho recebeu do imperador o Hábito da Ordem de Cristo.

Irineu olhava o presente com o otimismo que dava a certeza de


um futuro próspero. O estaleiro produzia embarcações a vapor para
as companhias nacionais de navegação, máquinas a vapor para en-
genhos de açúcar, de mandioca e de serrar, e até mecanismos para
escavação de canais, como o de Magé, além de fornecer, segundo
seu plano inicial, os tubos para as obras de canalização das águas
dos rios Maracanã e Andaraí. Assim, ele estimulava o crescimento
industrial do país, que, por sua vez, impulsionava a expansão de seus
próprios negócios. O que, de fato, não era senão a reprodução, em
tamanho nacional, de seu projeto de autossustentação: Ponta da
Areia, indústria do ferro e das máquinas, era a pedra de toque de seu
projeto empresarial.

É claro que nada se comparava com a produção de máquinas


inglesas, muito mais aperfeiçoadas e potentes. Mas, para um
país marcadamente agrícola, que havia conquistado sua inde-
pendência havia apenas vinte e seis anos, era uma produção
industrial bastante expressiva. E da qual a monarquia brasileira
muito se orgulhava.

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5. Quem não arrisca não petisca

N ão era, pois, sem razão que obtivera naquele domingo,


30 de abril de 1854, o título de barão do Império. E que for-
tuna não custaram aquele banquete e toda aquela comemoração
aos cofres da companhia e ao bolso de Irineu Evangelista! O im-
portante é que havia sido um grande sucesso aquela inaugura-
ção. Para o mais novo barão do Império, este sucesso era um forte
argumento em defesa da introdução das estradas de ferro que,
por seus altos custos, necessitavam de apoio e ajuda governa-
mentais. Especialmente num país em que havia escassez de capi-
tais e uma forte desconfiança em relação aos empreendimentos
capitalistas que apenas começavam a surgir.

Na Europa e nos Estados Unidos, a solução para o financia-


mento destas obras gigantescas foram as sociedades anônimas.
Mas, aqui, nossos capitalistas se recusavam a arriscar seus capi-
tais em sociedades anônimas que não tivessem a proteção do
Estado, garantindo-lhes um lucro certo de 6% ao ano.

Os que se opunham aos subsídios governamentais diziam-se


favoráveis a todos os melhoramentos materiais e, em particular,
àqueles que beneficiavam a lavoura, como era o caso das estra-
das de ferro. Mas alegavam que nos Estados Unidos, que serviam
de exemplo para o Barão de Mauá e outros, era a empresa pri-
vada que os construía sem subvenção do Estado. Logo, sem usar
o dinheiro dos contribuintes para realizar seus fins particulares.

O Brasil, país essencialmente agrícola e exportador, não pos-


suía uma forte e bem implantada burguesia industrial. Os gran-
des capitais estavam investidos na agricultura, no comércio e
muito especialmente no tráfico negreiro. As sociedades de ca-
pital por ações, as chamadas sociedades anônimas ou compa-
nhias, estavam apenas engatinhando. A ideia de que era possível
arriscar num negócio apenas e tão somente os capitais investi-
dos em suas ações, ou quotas do capital da empresa, sem colocar

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

As ações, pequenas parcelas do capital das sociedades anônimas, ao alcance de


um maior número de pessoas, facilitaram a organização de empreendimentos
gigantescos. (Acervo MUSEU HISTÓRICO NACIONAL/IBRAM/MINC/ nº 031/2016)

em risco a fortuna pessoal do investidor, começava a fazer cami-


nho. Este risco limitado do capital era um grande atrativo.

Abria-se, assim, uma nova perspectiva para a massa de capi-


tais que era investida com grande margem de lucro no ilícito trá-
fico de escravos negros vindos da África para serem empregados
nas lavouras e nos mais variados serviços urbanos, especialmen-
te o doméstico. Este comércio, que estava oficialmente proibido
desde 1830, só foi drasticamente estancado em 1850 pela lei Eu-
zébio de Queirós, sob a pressão dos navios de guerra ingleses que
não só apreendiam os navios negreiros dentro de nossos portos
como também bombardeavam nossas fortalezas.

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É bem verdade que, desde então, uma parte deste capital foi
desviada para o tráfico interno de escravos que passou a su-
prir as províncias mais prósperas do Sudeste, Rio de Janeiro,
Minas Gerais e São Paulo, em detrimento das mais pobres, do
Nordeste, de onde provinham. A outra parte dele, ainda maior,
teve que procurar novos escoadouros lucrativos e os encontrou
nas enormes necessidades materiais, particularmente de infra-
estrutura urbana e de transporte, que tanto faltavam ao país.
A década de 1850 foi, por tudo isso, o viveiro de uma nova ca-
tegoria de empresários e de empresas até então desconhecida
no Brasil. Tratava-se dos capitães de indústria e suas modernas
empresas capitalistas, as sociedades de capital. Mauá precisava
provar aos capitalistas da cidade do Rio de Janeiro e, sobretudo,
aos governos imperial e provincial, a quem pedia proteção, que
investir em estradas de ferro era um bom negócio, ou melhor, era
o grande negócio da época.

De fato, ainda pairava muita desconfiança no futuro das ferro-


vias e muito especialmente na de Petrópolis, fosse por sua peque-
nez e falta de perspectiva quanto ao seu prolongamento além da
serra, fosse por sua muito magra receita obtida quase exclusiva-
mente com o tráfego de passageiros. A razão desta desconfiança
no futuro da empresa estava no fato de que só de novembro a
junho havia grande procura de passageiros que buscavam fugir
não só do calor carioca como também da febre amarela, que sem-
pre atacava com maior intensidade na estação quente e chuvosa.

Quanto à receita advinda do transporte de cargas, era preciso


esperar que o projeto da União e Indústria, primeira estrada maca-
damizada carroçável do país ligando Petrópolis a Juiz de Fora, fosse
colocado em execução trazendo-lhe um tráfego de mercadorias ra-
zoável, compatível com as despesas exigidas com a manutenção
não só do caminho de ferro, mas também da navegação a vapor da
companhia, que consumia quase 40% de sua renda.

Realmente, o trajeto realizado pela estrada de ferro era muito


curto. Os passageiros eram levados em barcas a vapor do Rio até

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

o porto de Mauá, e somente daí até a raiz da serra da Estrela eram


transportados em trem, num trecho de pouco mais de 16 km. Em
seguida, para subir a montanha, tinham de tomar outro tipo de
transporte, as carruagens puxadas por animais de tiro, chamadas
“carros da serra”, para serem levados até Petrópolis.

A esperança de Mauá era que, em breve, todos se convence-


riam das vantagens daquela estrada de ferro, especialmente os
comerciantes que poderiam subir a serra ou fazer o caminho
inverso, indo e voltando no mesmo dia. Teriam, assim, tem-
po de tratar dos seus negócios no intervalo que mediava entre
a chegada e partida das barcas no Rio, e a chegada e partida das
carruagens em Petrópolis. O que, até a inauguração de sua com-
panhia, não era possível de se fazer senão em três dias. Quanto
ao apreço das ricas famílias da Corte que queriam escapar do
tórrido verão carioca indo para suas belas residências em Petró-
polis, ele já havia sido aliciado.

Aliás, o apoio político dispensado à Estrada de Ferro de Mauá


se deveu, em grande parte, a estas ricas famílias aristocráticas e
aos ricos comerciantes que viviam no Rio de Janeiro e que haviam
feito de Petrópolis o seu paraíso no verão. Deveu-se, igualmente,
aos agricultores que enviavam os produtos de suas lavouras para
o Rio e aos comerciantes varejistas petropolitanos que iam bus-
car na Corte todas as mercadorias de luxo necessárias ao notável
consumo daquela população flutuante de ricas famílias.

Esta preferência não disfarçada da classe dirigente pela cidade


serrana, que era agraciada com favores especiais do governo im-
perial, foi criticada com veemência pelo deputado Costa Ferraz:
(…) e como os poderosos são os que podem passar os verões
em Petrópolis, é por essa razão que essa cidade tem todos
os favores, e por isso se tem até consignado a quantia de 40 con-
tos só para a limpeza das ruas! (…) É preciso que aquelas ruas
estejam sempre limpas, que tudo esteja ali como um brinco
de recreio dos poderosos da terra, porém tudo à custa do sa-
crifício da lavoura19.

19 – Jornal do Commercio, 19/02/1874, Assembleia Legislativa Provincial, p. 2.

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6. Uma empresa e três modalidades de transporte

O que poderia parecer uma vantagem e, até certo ponto,


o símbolo de sua modernidade, ou seja, uma mesma em-
presa realizar de forma integrada o moderno transporte hidro-
viário e ferroviário a vapor, e o tradicional, carroçável, através da
montanha, se transformou num verdadeiro obstáculo ao cresci-
mento da companhia, quando não um pesadelo.

A gestão das estações hidroviárias para embarque e desem-


barque de passageiros e mercadorias, bem como o seu armaze-
namento, sem contar as oficinas de conserto e manutenção do
seu material fixo – estações, armazéns e cais – e flutuante, re-
presentado pelas barcas a vapor de passageiros e saveiros para
transporte de mercadorias, era muito complexa.

A estrada de ferro, por sua vez, exigia um pessoal altamente


qualificado para a construção e manutenção de sua linha – ex-
tensos trabalhos de terraplanagem para elevação dos terrenos,
especialmente em áreas inundáveis, para a colocação dos trilhos,
a construção de pontes de alvenaria e metálicas, abertura de
túneis etc. – bem como para o funcionamento de suas oficinas.
Estes profissionais não eram encontrados em nosso mercado
de trabalho, devendo ser importados do estrangeiro em contra-
partida de salários muito elevados e atraentes.

A subida da serra em carruagens, apesar de ser um transporte tra-


dicional, implicava a manutenção permanente não só dos “carros da
serra”, como também dos animais de tiro que eram muito exigidos.
Pela diversidade de suas exigências gerenciais, seria mais correto que
a Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro de
Petrópolis terceirizasse a etapa hidroviária da travessia da baía de
Guanabara e a carroçável da subida da serra da Estrela, especializan-
do-se na linha ferroviária propriamente dita, que atravessava uma
planície sujeita a enchentes e a alguns desmoronamentos, e que era o
símbolo de sua modernidade. Mas não foi o que se deu inicialmente.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

A viagem entre o Rio de Janeiro e Petrópolis, feita em três


modalidades distintas de transporte, devia ter seu horário inte-
grado de forma que os trens partissem do porto de Mauá logo
que as barcas a vapor vindas da estação da Prainha atracassem.
Por sua vez, as carruagens da serra deviam estar prontas para
partir da Raiz da Serra, ponto final da linha férrea, assim que
o trem chegasse. A mesma regularidade era exigida no traje-
to de volta. Ora, como era natural, tanto a viagem hidroviária
quanto a carroçável estavam mais sujeitas às intempéries e
a atrasos, sendo a pontualidade uma, senão a maior, das vanta-
gens do sistema ferroviário.

Além disso, cada etapa tinha um preço específico e os usuários


deviam saber claramente qual o valor de cada uma delas, em fun-
ção de seu trajeto, mas não só. Os preços também se diferenciavam
no caso de crianças, de pessoas pobres e escravos, estes aqui tam-
bém chamados de “descalços”, sendo reservados para estas duas
últimas categorias sociais vagões especiais, em geral descobertos.

Correio Mercantil, 11/06/1854,


Declarações, p. 2.

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Não foi, pois, uma tarefa fácil, no início do funcionamento da
Estrada de Ferro de Mauá, organizar uma tabela de horários e pre-
ços que fosse fácil de ser compreendida e não causasse confusão,
como de fato causou, provocando muitas reclamações.

E nem sempre foi possível garantir a precisão nos horários dos


trens, como fica evidente no relato do incidente, felizmente sem
grandes consequências, noticiado pelo Jornal do Commercio no
dia 5 de fevereiro de 1863.

Chovera torrencialmente nos últimos dias de janeiro e, no dia


31, às quatro horas da tarde, quando o trem ia para Petrópolis,
o gerente inglês, Milligan, observando que havia um ponto da es-
trada alagado, por precaução tomou a decisão de separar a loco-
motiva dos vagões e ir verificar o terreno. Os trilhos se abateram
com o simples peso e a passagem da locomotiva que, não obs-
tante, conseguiu passar para o outro lado. O sr. Milligan buscou
reforços na Raiz da Serra, de onde regressou com trabalhadores
em dois carros de bagagem. Mas todos os esforços foram em vão.
Para os que insistiam em continuar a viagem, só restava atraves-
sar a pé a imensa lagoa que os separava da locomotiva e acomo-
dar-se nos vagões de carga.

Posta a questão nestes termos, todos os passageiros que ti-


nham família em Petrópolis, entre os quais estavam o Barão de
Mauá e o senador Souza Franco, não hesitaram em decidir-se.
Uns de calças arregaçadas e descalços, outros sem se darem a esse
trabalho, lançaram-se a caminho e vararam a lagoa passando por
lugares onde a água lhes subia muito acima dos joelhos. Às nove
horas da noite, chegaram a casa. As senhoras e os demais pas-
sageiros que iam a Petrópolis apenas por divertimento ficaram
nos vagões, que foram empurrados pelos trabalhadores de volta
até o porto de Mauá, aonde chegaram às dez horas da noite, par-
tindo imediatamente na barca para a Corte. A estrada foi nova-
mente franqueada ao trânsito na tarde do dia seguinte.

Neste relato, duas coisas chamam a atenção. A primeira, o co-


mentário final do jornalista que, se verdadeiro, dava uma ideia do

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

bom humor carioca naquela época: “Ninguém sofreu, senão a con-


trariedade da demora, que ainda assim foi compensada pelos ditos
chistosos e lembranças felizes, que em tais ocasiões soem abundar.”

A segunda é que já era noite quando os vagões, carregados de


passageiros, foram empurrados pelos trabalhadores de volta até
o porto de Mauá, num trajeto em que levaram cerca de três horas!
Estes, certamente extenuados, com os pés machucados e os mús-
culos distendidos, não tiveram comentários engraçados a fazer
nem nenhuma lembrança feliz daquele episódio. Talvez, apenas,
muitos impropérios e palavrões.

Em seu parecer, compreendendo o período que ia de 1º de ou-


tubro de 1858 a 31 de dezembro de 1859, a Comissão de Exame de
Contas elogiava o eficiente trabalho da diretoria da Estrada de Fer-
ro de Petrópolis pelo fato de que, desde o começo do funciona-
mento da linha não tivesse havido nenhum desastre. No entanto,
em 28 de março de 1858, lia-se num periódico que “(…) na quinta-
feira passada deu-se um sinistro na Estrada de Ferro de Mauá.
Foi esmagado um trabalhador entre duas carroças de aterro, em
virtude de sua pouca atenção ou imprevidência20.” Seria, pois,
de supor que tenha havido outros com trabalhadores.

Era evidente que a diretoria procurava separar os acidentes


de tráfego da linha dos acidentes ocorridos em sua construção
e manutenção. Era, certamente, uma forma de passar uma boa
imagem. Ou, de fato, no século XIX a vida dos trabalhadores não
valia muito e, para o jornalista, aquele operário não teria morrido
por causa das péssimas condições em que trabalhava, mas por
sua própria culpa, pois fora incauto e imprevidente. Em todos os
casos, a sua morte como a de outros nos canteiros de obra, pas-
savam desapercebidas. Elas não atrapalhavam a circulação dos
trens de passageiros.

20 – A Pátria, 29 - 30/03/1858, Noticiário, p. 1.

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7. Um sonho quase impossível

U ns diziam que não seria aquela “estradinha”, que, quando


estivesse terminada, teria apenas um pouco mais de 16 km
e que nem sequer conseguiria subir a serra e chegar a Petrópo-
lis, iria desafogar a produção de café do Vale do Paraíba. Outros,
sarcasticamente, diziam que no segundo dia de tráfego de cada
mês haveria falta de carga para transportar. Mas como convencer
os seus detratores de que a Estrada de Ferro de Petrópolis seria
lucrativa, se desde 1852 o governo imperial havia autorizado a
criação de ferrovias que ligassem o Rio de Janeiro a Minas Gerais
e a São Paulo com o fim de escoar a produção cafeeira do Vale do
Paraíba e, em 1855, se organizou, com o apoio do governo impe-
rial, a Companhia da Estrada de Ferro de D. Pedro II com este fim?

Sem nenhuma ajuda do governo, tudo, desde a construção da


linha até a compra das locomotivas e dos vagões, tudo havia sido
feito com o seu dinheiro e o de alguns amigos seus que acredita-
ram no seu projeto. E era porque Mauá e seus sócios só contavam
com seus próprios recursos que não haviam podido construir até
o dia da inauguração senão pouco mais de 14 km e meio de linha
do porto de Mauá até Fragoso, faltando ainda um quilômetro e
meio até o seu ponto final na Raiz da Serra. E se o seu trajeto era
pequeno e podia parecer ridículo, os problemas que haviam en-
frentado para construí-lo haviam sido enormes, pois atravessava
uma extensa planície encharcada e paludosa.

E, de fato, em 1853, na feitura do trecho da estrada da Fregue-


sia da Guia, onde ficava o porto de Mauá, até o Fragoso, a com-
panhia encontrou graves dificuldades não previstas no projeto
e teve de realizar extensos e difíceis cortes, como o do morro
do Camarão. Aí, os trabalhos foram multiplicados por sucessi-
vos desabamentos em consequência da natureza do terreno e
da estação excessivamente chuvosa que se estendeu até o final
de maio daquele ano.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

Da mesma forma, o aterro do terreno pantanoso, encharcado


pelo rio Bonga em suas inundações, foi uma tarefa difícil e de pe-
nosa execução. E mesmo com o emprego dos maiores esforços,
a colocação do lastro e o assentamento dos trilhos sobre o leito
da estrada não puderam ser levados a cabo senão lentamente.
A tudo isto havia que acrescentar a deficiente mão de obra utili-
zada em razão da falta de trabalhadores qualificados.

De fato, no Brasil, não havia pessoal preparado para o trabalho fer-


roviário e para conduzir as locomotivas. Era preciso importar técnicos
estrangeiros, cujos salários eram elevados. Entretanto, Mauá não es-
morecia. Acreditar em seus sonhos era talvez o maior de seus méritos.

Mas agora que o próprio imperador havia provado o confor-


to da viagem e a ligeireza de sua locomotiva a vapor, que fizera
aquele percurso inaugural de mais de 14 km em apenas 20 mi-
nutos, tinha certeza de que os mais céticos iriam se curvar dian-
te dos benefícios das estradas de ferro ainda tão desacreditadas
junto à opinião pública. Sabia-se que construir uma estrada de
ferro através da serra era uma decisão temerosa, pois, além da
falta de capital, a engenharia ferroviária ainda não resolvera
o difícil problema de subir planos muito inclinados.

Mas a mente irrequieta de Mauá não dava tréguas. Em 10 agos-


to de 1856, ele colocou à disposição do público uma viagem especial
da Prainha até a Raiz da Serra, ao preço de 6 mil réis ida e volta por
pessoa, para aqueles que quisessem “presenciar a experiência dos
carros hidráulicos”, ou seja, para subir um pouco mais de 20 metros
da serra num ferro-carril movido por um sistema de cremalheira
hidráulica21. Este sistema havia sido testado anteriormente com
sucesso, mas não era nem técnica nem economicamente viável22.

Diante destas dificuldades, os acionistas da Imperial Compa-


nhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro de Petrópolis deci-
diram, desde suas primeiras reuniões, abandonar o sonho de su-
bir a serra em ferro-carril e manter apenas o projeto de estender
21 – Sistema baseado na existência de um terceiro trilho dentado sobre o qual se encaixa
uma roda motriz também dentada.
22 – Jornal do Commercio, 09/08/1856, Declarações, p. 2.

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suas linhas férreas a partir somente de Petrópolis. Daí, alcançariam
o interior das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais e carreariam
para os seus vagões parte da produção de café do Vale do Paraíba.

Em 1º de dezembro de 1853, os acionistas da companhia foram


convocados extraordinariamente. O Barão de Mauá, seu presiden-
te, queria apresentar-lhes os definitivos “trabalhos gráficos e orça-
mento da Estrada de Ferro de Petrópolis até o rio Paraíba”. Neles
ficava evidente que a estimativa inicial do custo provável da estra-
da havia sido grandemente subestimada. Ou seja, como em outras
companhias organizadas às pressas, sem dispor de planos sólidos
e informações corretas, os cálculos orçados haviam sido, ainda que
inintencionalmente, rebaixados. Seus custos reais seriam muito
maiores e os acionistas iriam embarcar numa empresa de alto risco.

Diante desta constatação, a Comissão de Exames de Contas da


Estrada de Ferro de Petrópolis vendo que, apenas para a conclusão
do trecho até a Raiz da Serra, a companhia havia gasto cerca de
1.200 contos, o “dobro da despesa em que fora orçada”, reviu a sua
posição. Achou mais prudente adiar o projeto de levar o caminho
de ferro de Petrópolis até as margens do rio Paraíba, e explorar ape-
nas o trecho em construção do porto de Mauá até a Raiz da Serra23.

Alguns dos acionistas mais importantes da companhia, como


Joaquim Pereira Vianna de Lima, eleito por inúmeras vezes mem-
bro da Comissão de Exame de Contas, já haviam percebido que
Mauá tinha por hábito subestimar em seus projetos as despesas
reais com o custeio de sua execução. Eram eles que procuravam
pôr freios aos seus frequentes devaneios, mantendo os pés no chão.

Em seu parecer de 1856, esta comissão não estava tão otimista quan-
to o barão em relação ao presente e ao futuro da Estrada de Ferro de
Petrópolis. Referindo-se à finalização da estrada no ano anterior, quan-
do os seus trilhos tocaram os “umbrais da Serra do Mar”, decepcionada
perguntava: “Mas, senhores, quem veio ao seu encontro, quem lhe deu
a boa-vinda? É doloroso confessá-lo: O indiferentismo!”24

23 – Jornal do Commercio, 23/12/1853, Comércio, p. 1.


24 – Parecer da Comissão de Exame de Contas, 29/04/1856.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

8. Os meios de transporte de massa


e a democratização da sociedade

I ndiscutivelmente, a introdução de transportes urbanos de


massa, substituindo as cadeirinhas, as carruagens e os cava-
los como meios de locomoção particulares e individuais, favore-
ceu a mistura entre as classes sociais e os sexos. Este processo de
democratização da sociedade, inexorável diante do crescimento
urbano e demográfico do Rio de Janeiro, não se fez sem algum es-
tremecimento, especialmente numa sociedade em que o número
de escravos e pobres era muito grande.

Mas o problema não estava, de maneira nenhuma, na cor das pes-


soas, pois a sociedade carioca, e a brasileira, em geral, eram, sobretudo
na primeira metade do século XIX, e antes da chegada de grandes le-
vas de imigrantes europeus na sua segunda metade, muito mestiças.
O que explica por que a aristocracia portuguesa, desembarcada com
D. João VI, negando-se a compreender “a diferença de cor da geração
brasileira”, tratava ironicamente a nossa elite de “mulata”25.

Numa sociedade em que muitos intelectuais, jornalistas, edi-


tores, engenheiros, médicos, professores, militares, sacerdotes, po-
líticos e ministros de Estado eram mestiços, a cor da pele era um
assunto tabu no qual não se tocava. O preconceito baseava-se na
condição social e jurídica de escravo, e não na sua cor. Os novos
meios de transporte públicos urbanos, especialmente os ônibus –
carros fechados de dois andares, puxados por quatro cavalos e com
capacidade para 14 passageiros – e, posteriormente, os bondes fo-
ram responsáveis pela maior integração de pobres e ricos, indepen-
dentemente da cor, pois “a pessoa alguma decentemente trajada e
que tenha dinheiro para a passagem, é vedado viajar nos carros”26.

E as mulheres, especialmente as menos abastadas, consegui-


ram romper com a sua tradicional reclusão, podendo circular pela

25 – Debret, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, tomo I, volume 2, p. 162.


26 – Kidder, D. P., Reminiscências de viagens e permanências no Brasil, p. 129.

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cidade em transportes públicos. Aí, a sua interação com o sexo
masculino era inevitável. Eis a reclamação de “Alguns passa-
geiros” no Correio Mercantil do dia 03 de maio de 1856: “O carro
que faz a viagem para São Cristóvão, cujo recebedor é o sr. Braga
(pessoa extremamente amável) traz por escrito a lotação de 14
pessoas, mas não tem capacidade para tanto, pois já com 12 pes-
soas o aperto fica insuportável e até indecente para senhoras.”

A separação entre as classes sociais, nos meios de transporte,


se fazia, quando possível, pela seleção baseada nas tarifas. Mas
nos ônibus, e mais tarde nos bondes, não havia como, pois a ta-
rifa era única, e pobres e ricos, homens e mulheres ocupavam
o mesmo espaço. Aos escravos estava vedado o seu acesso, a não
ser que acompanhassem seus senhores.

Na Estrada de Ferro de Petrópolis, o seu preço era calculado


em função das necessidades de faturamento da empresa a fim
de que, nas palavras do próprio Mauá, “o preço dos transportes
não seja barateado muito além das necessidades econômicas da
localidade a que tem de prestar serviço”27.

Ora, antes da inauguração da Estrada União e Indústria e de


sua ligação a Petrópolis e à estrada de ferro na Raiz da Serra, fora
os pequenos produtores rurais que enviavam suas mercadorias
para a capital e os comerciantes de Petrópolis que se abasteciam
no Rio, além de algum café que circulava pelo caminho de ferro,
o grosso de sua receita advinha dos passageiros. Como se tratava
das pessoas mais ricas do Império, era natural, dentro da lógica
dos cálculos do empresário, que se cobrasse caro pelo transporte
da Corte até Petrópolis. Era, no final das contas, o preço que se pa-
gava para preservar o ambiente aristocrático da cidade serrana.

Consequentemente, o público menos abastado era muito re-


duzido, pois a viagem completa não era nada barata, custando
só a ida seis mil réis, dos quais quatro mil réis da Prainha até
a Raiz da Serra, em 1ª classe, e mais dois mil para subir a serra.
A volta custava outro tanto. Ou seja, somente um trecho correspon-
27 – Jornal do Commercio, 04/03/1862, Publicações e pedidos, p. 2.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

dia exatamente ao salário mensal de um aprendiz numa ma-


nufatura, devendo também trabalhar como balconista28. Mas se
os pobres estavam praticamente excluídos da Estrada de Ferro
de Petrópolis, permanecia, entretanto, a indesejável mistura en-
tre pessoas livres e escravas que viajavam num mesmo vagão.
E eram muitos os passageiros que reclamavam disso.

Este era, sem dúvida, um problema de difícil solução. Na verda-


de, tratava-se de uma queixa antiga e reiteradamente feita pelos
passageiros das embarcações da Companhia Brasileira de Pa-
quetes a Vapor, que ligava todas as capitais provinciais do litoral
brasileiro desde o Rio Grande do Sul até o Pará. Eles se queixavam
de que escravos, que não viajavam em companhia de seus senho-
res, circulavam livremente pelo navio. Alegavam que esta inte-
ração não era bem-vinda e que os cativos ali estavam não como
passageiros, mas como “mercadorias em trânsito”, por terem sido
vendidos de cidades do Nordeste para o Sudeste, e que os navios
eram de passageiros e não de carga.

A solução foi criar espaços apropriados nas embarcações; e,


nos trens, vagões especiais para os “descalços”, assim chamados
porque aos escravos era proibido o uso de calçados, sendo esta
uma das marcas mais visíveis e humilhantes de sua condição.
Mas como separar os senhores de seus pajens e as senhoras de
suas mucamas, tão inseparáveis quanto suas sombras e tão in-
dispensáveis quanto seus braços?

Tantas eram as queixas, mas ninguém se importava com a pre-


sença, aliás indispensável, dos marinheiros da empresa que eram
escravos, próprios ou alugados, então chamados apenas de “pre-
tos”, como prova este anúncio: “Precisa-se de pretos marinheiros
para os vapores da Imperial Companhia da Estrada de Ferro de
Petrópolis; trata-se na estação da Prainha29.” Nem sequer com
a presença deles nas estações da companhia: “Imperial Compa-
nhia de Navegação e Estrada de Ferro de Petrópolis. Precisa-se
nesta companhia de escravos robustos, sadios e morigerados
28 – Idem, 22/02/1853, Anúncios, p. 3.
29 – Jornal do Commercio, 18/06/1855, Anúncios, p. 4.

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Marinheiro. Os marinheiros, geralmente escravos, eram
submetidos a um trabalho muito árduo, especialmente
os carvoeiros e foguistas que operavam as caldeiras a
vapor. (Acervo da Fundação Biblioteca Nacional-Brasil)

para o serviço das diversas estações, dando-se-lhes bom salá-


rio, casa e comida. Rio, 23 de abril de 1858. –– M. H. Pires Ferrão30.”
É claro que o salário acima referido não ficava com o escravo, mas
era pago ao seu dono, que o alugava.

Na Estrada de Ferro de Petrópolis, esta mistura indesejada


de classes sociais, em que os menos abastados usavam o vagão de
2ª classe, só foi parcialmente resolvida com a criação de um va-
gão de 3ª classe para transportar os escravos domésticos que,
normalmente, acompanhavam seus senhores. Entretanto, eram
muitos os negros livres pobres, bem como “a maior parte dos tra-

30 – Correio Mercantil, 24/04/1858, Declarações, p. 2.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

balhadores dos campos”31, que não podiam ou não queriam pagar


as tarifas estabelecidas, tidas como excessivas, e que sem muito
constrangimento, ainda que calçados, tomavam lugar no vagão de
3ª classe, muito mais barato. A companhia reagiu: “Nos carros
de 3ª classe não são admitidas, sob pretexto algum, pessoas cal-
çadas.” A saída foi tirar os sapatos… Então, para que não houvesse
dúvida, outra empresa esclarecia que “preto descalço” era o mes-
mo que escravo: “(…) o preço da passagem será 2$ por pessoa livre
e 1$ por preto descalço (escravo) (…)”32.

Como a proposta da Companhia da Estrada de Ferro de Petrópo-


lis não era exatamente a de democratizar este meio de transporte,
cujas receitas advinham basicamente do tráfego de passageiros
de alto poder aquisitivo, a cada dificuldade financeira sua diretoria
recorria ao aumento do preço das passagens e dos fretes. De uma
feita, foram as crianças o seu alvo: a idade mínima para a meia
tarifa, que era de 12 anos, baixou, se restringindo às crianças de 3 a
6 anos de idade. A partir dos 7 anos, tinham que pagar a tarifa in-
teira. Mesmo assim, as crianças menores de 7 anos que viajassem
juntas tinham que ocupar, duas delas, um mesmo lugar.

Em 17 de julho de 1867, na coluna “Publicações a pedido do Jor-


nal do Commercio”, um anônimo protestava contra “o exorbitan-
te que se despende de passagem até Petrópolis”.

Anúncio da Estrada de Ferro de Petrópolis, que não estava proibida


de possuir nem de empregar escravos em sua construção, manutenção
e em seus serviços. (Jornal do Commercio, 19/11/1857, Anúncios, p. 4)

31 – Klumb, Doze horas em diligência, p. 10.


32 – Jornal do Commercio, 02/04/1869, Anúncios, p. 4.

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9. O pecado original

N ão restava dúvida de que o ponto alto da companhia era


a sua estrada de ferro. Ela representava o que havia de mais
moderno em tecnologia, em velocidade e conforto. A própria em-
presa, oficialmente denominada Companhia de Navegação a Va-
por e Estrada de Ferro de Petrópolis, em que o trecho carroçável
da serra não era sequer citado, era popularmente conhecida
como Estrada de Ferro de Petrópolis ou Estrada de Ferro de Mauá.

Grande símbolo da modernidade – mais ainda do que os navios


a vapor que haviam revolucionado os transportes marítimos na
década de 1840 e colocado o Rio de Janeiro, a partir de 1850, pe-
riodicamente em contato com a cidade inglesa de Southampton
em apenas 28 dias! – o trem representava a integração do mercado
interno do Brasil, a possibilidade de ligar suas cidades do litoral às
do interior mais longínquo, chegando até as margens do rio das
Velhas, em Minas Gerais, e mesmo do rio Paraguai, na esquecida
província do Mato Grosso. O trem atendia aos anseios políticos da
monarquia brasileira que iniciava a árdua tarefa de unificar um
país tão imenso e com uma população tão pequena sob uma ad-
ministração centralizada a partir do Rio de Janeiro.

Tão boas e promissoras expectativas não foram capazes de


amenizar a verdadeira via-crúcis que foi a vida da Estrada de Fer-
ro de Petrópolis. Ninguém duvidava de que nascera pequena por
sua extensão e raquítica pela falta de capital. Mas a sua posição
estratégica entre a cidade do Rio de Janeiro e Petrópolis e a pos-
sibilidade de um dia alcançar o planalto e atravessar Minas Gerais
alimentavam muitas esperanças quanto ao seu futuro.

Era esta estrada de ferro que punha a capital do Império, ainda


muito pouco higiênica e, desde 1850, constantemente assolada
pela febre amarela, em contato com o belo e restaurador clima
das montanhas que lhe ficavam próximas e as do interior do país.
Era alentador o fato de se pensar que uma viagem do Rio a Petró-

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

polis, que antes levava mais de um dia, agora podia ser realizada
confortavelmente em apenas quatro horas, e que, em tão pou-
co tempo, era possível fazer uma mudança radical de condições
atmosféricas, tão agradável e salutar senão necessária durante
o verão, e estar mais protegido daquela horrível e mortal doença.

Mas nem estas vantagens nem o fato de a família reinante


haver feito de Petrópolis sua residência de verão e sede estival
do governo imperial foram suficientes para animar o tráfego
de passageiros, que ficou aquém de todos os cálculos razoáveis.
Somente a construção da Estrada União e Indústria, ligando Pe-
trópolis a Juiz de Fora, em Minas Gerais, poderia, no curto prazo,
tirar a Estrada de Ferro de Mauá do marasmo em que se debatia,
pois ela prometia uma notável expansão do número de passagei-
ros e do volume do frete de mercadorias, particularmente o café.

Seu contratador, Mariano Procópio Ferreira Lage, homem sem


títulos acadêmicos como Mauá, mas muito dinâmico e criativo,
obtivera do governo imperial, em 1852, o privilégio da concessão
por cinquenta anos de uma estrada de rodagem macadamizada
ligando Petrópolis a Três Barras (São José do Rio Preto) no rio Pa-
raíba e daí a Porto Novo do Cunha em Minas Gerais. A União e
Indústria, primeira estrada pavimentada do Brasil, só foi iniciada
em abril de 1856, com subsídio do governo imperial. Em seus es-
tatutos definitivos, aprovados no ano seguinte, ficaria decidido
que ela teria dois ramais, um seguindo a direção de Juiz de Fora e
o outro a de São João del-Rei.

Apesar da ajuda governamental, ela encontrou muitos emba-


raços, especialmente financeiros, e somente em 1858 foi inaugu-
rado o seu primeiro trecho de Petrópolis a Pedro do Rio. E a Estrada
de Ferro de Mauá, à míngua de passageiros e sem carga suficien-
te para transportar, não podia suportar tanta espera. Seu capi-
tal estava se aniquilando por falta de renda. O pedido de Mauá
de um novo empréstimo ao governo imperial, a ser pago em dez
anos, fora levado à discussão na Câmara dos Deputados em 1856.
Mas foi impugnado por um de seus membros sob o pretexto de

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que não se podiam sobrecarregar as finanças do país com seme-
lhante despesa.

Foi quando Mauá, que também era membro da Câmara dos


Deputados, se inflamou e retrucou, perguntando aos seus cole-
gas, se era lícito negar-se um pequeno auxílio à primeira estrada
de ferro construída no Brasil, no mesmo momento em que se pa-
gava ao tenor italiano Enrico Tamberlick a enorme soma de 84
contos por uma temporada de quatro meses no Teatro Lírico! Esta
intervenção em termos contundentes causou o efeito esperado
e sua solicitação foi aprovada com grande maioria33. Mas tinha
ainda que passar pelo Senado onde, no ano seguinte, encontrou
a oposição acirrada de poderosos políticos. Assim, o seu pedido
de ajuda foi arquivado.

De fato, para ser lucrativa e conquistar sua autonomia, sem


depender do sucesso da União e Indústria, a Estrada de Ferro
de Petrópolis devia captar parte da produção de café do Vale do
Paraíba. E Mauá, que detinha o privilégio exclusivo por 80 anos
para a construção do trecho que ligaria Petrópolis às margens
do rio Paraibuna, não poupava esforços nem dinheiro com os es-
tudos preparatórios desta extensão. Ele já gastara do seu bolso
algumas dezenas de contos.

Jornal do Commercio, 23/12/1856, Gazetilha, p. 1.

33 – Mauá, Autobiografia, p. 131.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

10. A grande traição

O governo imperial, pressionado pelos grandes e ricos fazen-


deiros do Vale do Paraíba, estava decidido a chegar o mais
rapidamente possível aos centros produtores de café. Para isso,
havia autorizado, em 1852, a construção de um caminho de ferro
que, partindo da cidade do Rio de Janeiro, fosse terminar em Mi-
nas Gerais e São Paulo. Mas era, de fato, São Paulo, por sua riqueza
agrícola cafeeira, a região mais visada. A nova empresa ferroviá-
ria, constituída sob a proteção imperial em 1855, tomou a forma
jurídica de sociedade anônima e se chamou Companhia da Estra-
da de Ferro de D. Pedro II.

Mauá interpretou esta decisão do governo como uma verda-


deira traição, pois, segundo ele, passava por cima de seus privilé-
gios fazendo clara e desleal concorrência ao seu projeto. E, de fato,
a nova estrada de ferro seguiria, a partir de Três Rios, em zona que
lhe havia sido concedida como continuação de sua linha a partir
de Petrópolis. Em 1857, as coisas não iam nada bem para a Estrada
de Ferro de Mauá. A empresa havia gasto na construção da linha
férrea muito mais do que havia sido previsto em seus cálculos
iniciais. Em seu relatório de 1855, apresentado à Assembleia Geral
dos Acionistas, em que prestava contas dos trabalhos realizados
no ano anterior, Mauá dizia: “Por circunstâncias especialíssimas
desta linha, foi preciso levantar não menos de cinco estações,
e algumas forçosamente de grande dispêndio, para o serviço de
10 milhas de caminho de ferro!”

Mas havia ainda outros gastos a enfrentar, como a recons-


trução de algumas pontes que não haviam sido bem projetadas.
E todo este dispêndio era feito sem que a renda da estrada de
ferro aumentasse. Para que isto acontecesse, seria preciso que
as cargas vindas do interior tomassem o caminho de Petrópolis,
o que não acontecia porque as estradas que para lá iam eram
péssimas e as tropas de mulas as evitavam, se desviando delas.

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Os tropeiros preferiam dirigir-se, como de hábito, diretamente
à Raiz da Serra pelo Caminho Novo de Inhomirim e daí para o fun-
do da baía em direção ao porto da Estrela.

A situação financeira da Estrada de Ferro de Petrópolis tornara-se


tão crítica que muitos acionistas se desesperaram não acreditando
numa possível recuperação da companhia, e outros caíram num
desânimo completo vendo o valor de suas ações despencarem.

Quando tudo parecia perdido, uma luz apareceu no final do


túnel. E, de fato, um ano e meio depois de a estrada de rodagem
União e Indústria ser aberta ao trânsito público em 1858, sua
parceria com a Estrada de Ferro de Mauá, para a qual traspassava
parte de sua carga, elevou de tal maneira a renda líquida da fer-
rovia que ela não precisava mais de ajuda governamental34. Um
artigo do Anglo Brazilian Times, reproduzido no Jornal do Com-
mercio, comentava o fato:
A União e Indústria é uma estrada esplêndida que liga as pro-
víncias de Minas e Rio de Janeiro, correndo pouco mais ou
menos na direção da estrada velha de Minas, a qual por mais
de um século fora uma grande artéria de comunicação e o ca-
nal por onde se exportava a produção da província de Minas.
Na suposição de que assim continuasse a suceder, construiu-se
com grande dispêndio e auxílio do governo a nova estrada da
União e Indústria, que, ligando-se na raiz da serra à Estrada
de Ferro de Mauá, devia supor-se que esta última prosperasse
à proporção que os benefícios conferidos ao distrito atraves-
sado pela União e Indústria se fizessem sentir35.

34 – Parecer da Comissão de Exame de Contas, 28/02/1861.


35 – Jornal do Commercio, 10/04/1869, Publicações a pedido, p. 1.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

11. A morte anunciada

M as uma pequena nuvem sombria começara a surgir no


horizonte pressagiando uma terrível tempestade: a con-
corrência que a E. F. de D. Pedro II poderia vir a fazer à União e
Indústria, ambas subvencionadas pelos cofres públicos, pois
as duas se dirigiam ao Porto Novo do Cunha. A Companhia da
Estrada de Ferro de D. Pedro II, encampada pelo Estado em 1865,
era a preferida do governo imperial. Ela pretendia não só absor-
ver as cargas de café da província do Rio de Janeiro mas também
de Minas Gerais e São Paulo.

Antevendo a forte ameaça que pesava sobre o futuro de sua


ferrovia, Mauá, que dependia das cargas que a União e Indústria
lhe trazia, começou a buscar fretes no interior e a procurar outras
direções na região do café que não fossem servidas por sua pode-
rosa concorrente.

Mas o pior estava por acontecer: a Companhia da Estrada


União e Indústria não ia muito bem financeiramente e se viu
obrigada, em 1859, a tomar com o governo imperial um emprés-
timo de 6 mil contos, dos quais 3 mil seriam investidos na seção
de Petrópolis a Paraibuna e o restante no pagamento de dívidas
contraídas em Londres, sob a garantia do Estado. Em 1861, quando
a União e Indústria inaugurou o único trecho finalmente construí-
do, ligando Petrópolis a Juiz de Fora, com pouco mais de 146 km,
sua situação financeira não era muito melhor. As receitas ad-
vindas do pedágio cobrado às diligências de passageiros e pelo
transporte de cargas não eram suficientes para pagar os gastos
de manutenção do serviço e saldar suas dívidas com o governo
imperial. Ela continuava no vermelho.

Da mesma forma que a E. F. de D. Pedro II, que também se en-


dividara junto ao governo imperial, a solução encontrada foi se
deixar encampar, em 1864, pelo Estado, de quem era devedora,
que se tornou seu proprietário. Em troca do perdão de suas dívi-

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das e de uma indenização de 1.500 contos, a empresa da estrada
de rodagem se comprometia a manter os serviços de diligência
de passageiros e transporte de carga, se obrigava a conservar
a estrada durante quinze anos e a continuar a defender os inte-
resses de seus acionistas.

Mas, com a chegada da E. F. de D. Pedro II a Três Rios e a cons-


trução de sua estação ferroviária, esta empresa ferroviária bai-
xou de tal modo suas tarifas que induziu a União e Indústria, que
mantinha seu monopólio sobre o uso da estrada de rodagem,
a transferir a partir dali seu tráfego de passageiros e de carga
para os seus trilhos. Sobre este fato, homologado pelo decreto
nº 4.320 de 13 de janeiro de 1869, o jornalista do Anglo Brazilian
Times, admirado com o que chamava de “anomalia toda brasileira”,
ou seja, o governo imperial subsidiar com o dinheiro do contri-
buinte duas estradas que se faziam concorrência, dizia:
Quando se reflete que a Estrada de Ferro de D. Pedro II foi am-
plamente auxiliada com os dinheiros do Estado, a tal ponto
que se tornou afinal propriedade do governo, e, por conse-
guinte que a redução das tarifas, que induziu a União e Indús-
tria a transferir o seu tráfego, é feita a expensas do público
e não resultado de uma concorrência particular, parece que
a linha de Mauá, por equidade ao menos, tem também jus pri-
ma facie a algum auxílio do Estado36.

Desde então, as cargas transportadas pela União e Indústria


foram desviadas em Três Rios para a E. F. de D. Pedro II, que se
encarregava de levá-las diretamente até o porto do Rio de Janeiro
sem passar por Petrópolis. A morte da Estrada de Ferro de Mauá
havia sido decretada.

36 – Idem.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

12. Nem com barganha nem com ameaças

O relatório da diretoria apresentado aos acionistas da Estrada


de Ferro de Mauá, reunidos em assembleia geral em 3 de
março de 1869, era muito claro: a companhia entregue unicamen-
te a seus recursos não teria condição de continuar o transporte
a vapor de passageiros e cargas entre a Corte e a Raiz da Serra.
Ela precisava ser socorrida pelo Estado.

A diretoria alegava que a ajuda que pedia ao governo impe-


rial se tratava de uma questão de equidade e justiça para com
a Estrada de Ferro de Mauá. Primeiramente, porque a compa-
nhia fora a primeira a abrir “o caminho para esta grande rede de
estradas de ferro, que vai felizmente cobrindo a superfície do Im-
pério”. Em segundo lugar, ela nunca recebera favor algum mone-
tário do Estado, mas mesmo assim, tinha sempre pontualmente
prontos seus vagões especiais para a família imperial e, muitas
vezes, para os membros do governo. Em terceiro lugar, havia eco-
nomizado aos cofres públicos grandes somas pelo transporte gra-
tuito de tropas e material bélico desde o princípio da Guerra do
Paraguai em 1864. Enfim, se não fosse o entroncamento da Pedro II
com a União e Indústria, ela “continuaria a viver vida segura, dan-
do a seus acionistas o módico lucro de 6% ao ano”37.

Mas, para justificar qualquer ajuda do governo imperial, nas


circunstâncias em que se encontrava o Tesouro, desfalcado pelos
gigantescos gastos com a guerra contra o Paraguai, cumpria que
a companhia da Estrada de Ferro de Petrópolis fizesse todas as eco-
nomias para reduzir ao mínimo o sacrifício do Estado. Em março
de 1869, o ministro da pasta da Agricultura, Comércio e Obras Pú-
blicas, ao notificar o presidente da província do Rio de Janeiro de
que seria conveniente mandar o engenheiro fiscal da companhia
da Estrada de Ferro de Petrópolis examinar o seu estado e sugerir as
medidas necessárias para reduzir o seu custeio face à diminuição

37 – Parecer da Comissão de Exame de Contas, 01/07/1868.

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do seu tráfego, não estava senão mandando um aviso à sua dire-
toria de que era notória a sua má administração.
Como a resposta à solicitação de ajuda dependia da decisão do
Poder Legislativo, ela seria forçosamente demorada e a Estrada
de Ferro de Petrópolis não podia esperar. À míngua, sua diretoria,
a exemplo da União e Indústria, propôs ao Estado que a com-
prasse ou que a deixasse continuar a realizar o mesmo serviço
mediante um auxílio que julgava indispensável. Esta proposta
foi às seções reunidas dos Ministérios do Império e da Fazenda
do Conselho de Estado no dia 10 de março. Aí foi deliberado que
a companhia apresentasse estudos que comprovassem a impor-
tância do auxílio pedido, e provasse que já havia tomado as medi-
das para diminuir suas despesas. Foi-lhe igualmente exigido que
ela demonstrasse, com números, o rendimento da empresa depois
do contrato celebrado pela D. Pedro II com a União e Indústria.
Em resposta, a diretoria declarou haver, em primeiro lugar, su-
primido o trem de cargas, passando estas a ser rebocadas pelo
mesmo comboio que conduzia os passageiros, reduzindo a uma
só viagem diária as duas que se faziam anteriormente. Em se-
gundo lugar, diminuíra o pessoal empregado nas estações, na via
férrea e nos vapores, que ficou reduzido ao estritamente neces-
sário. E, em terceiro lugar, reduzira os vencimentos dos emprega-
dos que haviam sido conservados por serem indispensáveis.
Para aumentar o seu poder de barganha, no início de março,
por proposta do acionista Vianna de Lima, a diretoria foi una-
nimemente autorizada a assumir uma atitude mais agressiva,
ameaçando suspender até o final daquele mês todo o transporte
de passageiros e de cargas caso “não possa obter dos interessados
na continuação desse sistema de serviço uma compensação que
faça face aos prejuízos que ameaçam consumir o resto do capital
que nesta malfadada empresa empregamos”38.
Vendo que o seu pedido não era deferido pelo Congresso e que
seus argumentos e ameaça não haviam servido de nada, a direto-

38 – Assembleia Geral dos Acionistas da I. C. N. E. F. de Petrópolis, 03/03/1869.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

ria decidiu pela suspensão dos seus serviços a partir do dia 31 de


março de 1869. Desta vez era para valer: ela parou de funcionar
no dia 1º de abril. Com a suspensão de suas atividades, a diretoria
da Estrada de Ferro de Petrópolis pretendia não só diminuir as
perdas da companhia como, muito especialmente, demonstrar
o quanto ela era importante para a vida de Petrópolis e das ricas
famílias cariocas que aí possuíam residência de verão, inclusive
a família imperial: “Se a companhia cair pela falta do auxílio
pedido, muita gente da Corte, de Petrópolis e de suas circunvizi-
nhanças perde consideravelmente; e por fim a nova cidade de Pe-
trópolis desaparecerá39.”

Os protestos e reclamações dos usuários não tardaram a ecoar.


Um passageiro, que se identificava como Uma vítima, denunciou
que os empregados da companhia, por despeito, se vingaram nas
cargas dos passageiros da última viagem atirando-as ao chão
sem nenhum cuidado como se fossem fardos de algodão em
rama. Assim, seus volumes despachados em Petrópolis como ba-
gagem, “pagando não pouco dinheiro”, chegaram ao Rio tão ava-
riados “que a maior parte dos objetos, aliás preciosos e de grande
valor, ficaram todos escangalhados e quebrados”. E perguntava:
“Quem pagará semelhante prejuízo aos donos?!!”40.

Três dias depois da cessação dos seus serviços, um grupo de


510 proprietários e moradores de Petrópolis, que se dizia repre-
sentante da “população efetiva e temporária” daquela cidade, di-
rigiu uma petição ao imperador. Ele denunciava “os gravíssimos
transtornos” que havia causado ao município a supressão das
suas comunicações com a Corte “pelo meio mais rápido e aper-
feiçoado a que estava habituado”, uma vez que se via privado
do comércio regular com a capital do Império “à qual está presa
a sua existência”.

Protestava, igualmente, contra o curto prazo dado pela compa-


nhia, pondo “em verdadeiro alvoroço” a numerosa população que

39 – Idem, 18/03/1869.
40 – Jornal do Commercio, 03/04/1869, Publicações a pedido, p. 1.

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havia ido passar “a estação calmosa” em Petrópolis, sendo obriga-
da a deixar precipitadamente a cidade. Esta “emigração forçada”
da rica e dispendiosa “população temporária” antes que termi-
nasse o período de veraneio, que normalmente se estendia até
o final de maio, havia feito cessar os lucros da “população efetiva”.
E, de fato, para uma cidade que vivia sobretudo dos moradores
estivais era muito triste, senão desesperador, vê-los partir antes
do final de março.

Lamentavam os peticionários que a diretoria da Estrada de


Ferro de Mauá não tivesse dado o tempo necessário a fim de que
outros serviços de transporte se organizassem para ocupar o es-
paço deixado por ela, sendo isto uma prova de que a companhia
os tratava “com o mais assombroso menosprezo”. Eles não só se
viam forçados a fazer uma viagem mais longa, tomando a União
e Indústria em direção à estação de Três Rios, para daí seguir pela
Estrada de Ferro de D. Pedro II até o Rio de Janeiro, como também
eram espoliados pela companhia União e Indústria que, se apro-
veitando das circunstâncias, havia elevado “o preço com o trans-
porte dos passageiros para a estação de Entre Rios”41.

41 – Idem, 06/04/1869, p. 1.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

13. Dando o braço a torcer

D epois de mais de um mês de paralisação, vendo que o gover-


no não se dobrava e as decisões legislativas eram muito len-
tas, a diretoria, meditando melhor, entabulou uma correspondên-
cia com o ministro das Obras Públicas e o presidente da província
do Rio de Janeiro. Dela resultou um acordo provisório: o restabele-
cimento do tráfego somente para passageiros e bagagens a partir
do dia 12 de maio, sob a fiscalização de um engenheiro.

Decidiu-se, então, que a companhia se submeteria durante


seis meses às exigências do governo a fim de lhe ministrar as in-
formações precisas sobre as suas reais necessidades. Antes, po-
rém, que findasse aquele prazo, a diretoria da Estrada de Ferro de
Petrópolis, muito espertamente, comunicou ao ministro que, ten-
do efetuado economias no serviço, “julgava que lhe bastava, para
poder continuar o tráfego, que o governo imperial lhe concedesse
a subvenção anual de 60 contos, equivalente a 5% de garantia
de juro do seu capital de 1.200 contos de réis”. No entanto, ou por
má-fé ou por má gestão e falta de informações precisas sobre
o seu funcionamento, ela não apresentou, como lhe fora solici-
tado pelo governo, os esclarecimentos necessários, comprovados
com números, sobre a diminuição de suas despesas de custeio.
O seu pedido foi, por isso mesmo, mais uma vez recusado. Ape-
sar de negativa, a resposta do ministro era promissora e alentava
a esperança de muitos acionistas da Estrada de Ferro de Petrópo-
lis. Ela dizia:
Todos estes esclarecimentos são indispensáveis para assentar
uma opinião favorável e conceder-se uma subvenção pecuniá-
ria, anual, tanto quanto baste para fixar um dividendo razoável
aos acionistas, e salvar-se assim, como é de equidade, uma em-
presa que foi a primeira no seu gênero fundada no país, que
tem prestado serviços relevantes, e que realmente convém não
deixar liquidar-se, perdendo-se importantes capitais42.

42 – Idem, 27/11/1869, p.1.

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E mais, as comissões de Fazenda e Obras Públicas, toman-
do por base o parecer do engenheiro fiscal da companhia, aca-
taram o pedido de ajuda da Estrada de Ferro de Petrópolis. Elas
justificavam este auxílio diante da certeza de que a companhia,
somente com sua renda anual, não podia senão satisfazer os
encargos da manutenção do serviço, ficando os acionistas sem
receber nenhum dividendo. E como os acionistas tinham direito,
pelo emprego do seu capital, ao menos a 6% de lucro ao ano, elas
terminavam o seu parecer dizendo: “Esta circunstância justifica
até certo ponto, a nosso ver, o auxílio requerido ao governo im-
perial43.” Esta alentadora apreciação dada pelas comissões devia
ainda ser aprovada na Câmara dos Deputados e, em seguida, no
Senado. E o tempo passava. Em 4 de fevereiro de 1870, última vez
em que presidiu a Assembleia Geral dos Acionistas, o Barão de
Mauá reafirmou sua esperança:
Circunstâncias que vos são notórias obstaram a que esse au-
xílio nos fosse concedido. Já, é, porém minha firme convicção
que o obteremos em tempo oportuno, não só pelos títulos que
esta companhia tem a algum favor, como porque abandoná-la
é aniquilar Petrópolis, onde há valiosos interesses criados
na fé de que os poderes competentes jamais deixarão ao de-
samparo uma povoação fundada sob tão brilhantes auspí-
cios e de que a população desta Corte já não pode prescindir,
mormente durante a estação cálida44.

Havia, pois, fundadas e promissoras expectativas, e a quase


certeza de que o pedido da Estrada de Ferro de Petrópolis pas-
saria, pois já havia sido aprovado em 1ª discussão. Mas não passou.
Foi rejeitado no dia 16 de maio de 1871 em 2ª discussão na Câmara
dos Deputados.

43 – Idem.
44 – Assembleia Geral dos Acionistas da I. C. N. E. F. de Petrópolis, 04/02/1870.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

14. To be or not to be

E ra tempo de tratar da dissolução da companhia. Esta decisão,


tão grave, havia sido tomada em 1869 no calor da discussão
e brandida como uma ameaça para forçar o governo a atender ao
pedido de subvenção da diretoria.
Chegara a hora da verdade. Durante a Assembleia Geral dos
Acionistas em 10 de março de 1871, coerente com suas posições
anteriores, Vianna de Lima propôs a dissolução e liquidação da
companhia. Propôs também que fosse passada, à custa dela, “car-
ta de liberdade aos sete escravos” que no último balanço figura-
vam entre os “semoventes de sua propriedade”45, ou seja, os bens
constituídos por animais selvagens, domesticados ou domésti-
cos, inclusive os escravos .
Entretanto, naqueles dois últimos anos, as circunstâncias haviam
mudado. Diante da recusa definitiva de qualquer ajuda por parte do
governo imperial, a diretoria da Estrada de Ferro de Petrópolis, reco-
nhecendo sua insignificante capacidade de barganha e seu peque-
no prestígio político, compreendeu que era preciso esfriar a cabeça.
Consentindo que seria “deitar fora a melhor parte que nos resta de
nosso capital”, o presidente da companhia, Bento José Martins, acon-
selhava “a maior calma na discussão, e o maior critério na resolução
que vimos tomar, a fim de não agravarmos ainda mais, por nossas
próprias mãos, a ferida já bastante profunda que recebemos daque-
les de quem devíamos esperar auxílio e conforto”46.
E, de fato, analisando o balanço da companhia nos quatro pri-
meiros meses do ano de 1871, que era a época de maior renda do
tráfego, verificava-se haver um saldo razoável. Com ele havia sido
possível pagar a dívida existente e elevar o fundo social, reparan-
do por esta forma “uma parte da deterioração que vão sofrendo
os valores que constituem o nosso ativo”47.

45 – Idem, 07/03/1871.
46 – Idem, 27/05/1871.
47 – Idem.

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Ora, sendo a receita suficiente para cobrir a despesa, ficando
ainda um saldo para se atender ao desgaste do material, a me-
dida extrema da liquidação da empresa era, naquele momen-
to, desnecessária e contraproducente. O Barão de Mauá, que já
não era o seu presidente e parecia não se dar conta de que os
tempos haviam mudado, continuava sonhando com o amparo
dos “poderes do Estado”. Mas, enquanto ele não chegava, sus-
tentava, muito corretamente, que a companhia devia continuar
operando pelo menos por mais um ano inteiro. Nesse período,
ficaria constatado se o seu rendimento seria suficiente “para pa-
gar o seu custeio, deterioração do material, e algum dividendo
aos acionistas”. Recomendava, também, que se procurasse por
“todos os meios criar receita e diminuir a despesa compatível
com a conservação do material em bom estado”48. A palavra de
ordem era economizar, economizar.

48 – Idem.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

15. Nem oito nem oitenta

D esde a crise de 1869, vendo-se em dificuldades com a bai-


xa repentina de suas rendas, a diretoria tomara medidas
restritivas começando pelos empregados. Reduziu o pessoal da
estação do porto de Mauá a um só vigia e incumbira a venda de
bilhetes ao chefe do trem. Na estação da Prainha, suprimiu o lugar
de administrador da estação por não haver mais cargas a receber,
já que a companhia não oferecia mais este serviço.

Entre as medidas de contenção de gastos impostas pela dire-


toria estava a redução do número de viagens entre a Corte e Pe-
trópolis. Das três viagens diárias que eram feitas no início, elas
foram reduzidas a duas e, a partir do final de 1869, a uma só por
dia. Salvo nos domingos e sábados que fossem feriados ou san-
tificados, quando haveria duas, uma às 6:30 e outra ao meio-dia.
Estas exceções visavam atender aos comerciantes que aprovei-
tavam a folga para ficar em Petrópolis, pois o comércio do Rio de
Janeiro, apesar dos protestos dos empregados, não fechava nem
aos domingos, a menos que fosse santificado ou feriado49.

Para estimular um maior número de viagens, um pacote de


“revisão liberal da tarifa” criou, em maio de 1869, os “bilhetes
mensais” com preços mais reduzidos para os meses de verão. Eles
davam direito a quatro viagens redondas entre a Corte e a Raiz da
Serra com redução de 33% do preço:
Estes bilhetes são nominativos e intransferíveis, e serão anu-
lados se a pessoa neles designada os ceder a outrem, perden-
do em tal caso a soma que houver pago. Devem ser apresenta-
dos toda a vez que um empregado da companhia o exija, e na
falta dessa apresentação cobrar-se-á o preço da viagem por
inteiro, sem direito a restituição alguma. O portador assinará
o seu bilhete, para por esse meio reconhecer-se sua identida-
de, sempre que haja dúvida. Rio de Janeiro, 21 de maio de 1869
–– O presidente interino, Alfredo Basto50.

49 – Jornal do Commercio, 01/12/1869, Declarações, p. 2.


50 – Idem, 22/05/1869, p. 2.

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Em 1º de dezembro de 1870, tendo em vista a diminuição dos pre-
ços das passagens no período estival, os preços da 2ª classe foram re-
duzidos em mais de 60%, passando a custar 40 mil réis oito viagens
mensais de ida e volta, e 100 mil réis as viagens diárias, também re-
dondas. E na expectativa de que houvesse um importante aumento
da procura, a companhia avisou que, a partir do dia 15 daquele mês,
o vapor largaria todos os sábados e vésperas dos dias santificados
às três horas da tarde, e em todos os demais dias às 2:30. E que, nos
domingos, haveria duas viagens da Prainha à Raiz da Serra, sendo
a primeira às sete horas da manhã e a segunda às 14:30.

O significativo aumento da venda destes bilhetes mensais de


1ª classe justificou plenamente aquela medida. E, embora fos-
se menor o número de passageiros, a receita de passagens au-
mentara. A explicação para este fato poderia estar no aumento
da procura pelo bilhete mensal, mas, também, na queixa de um
usuário: Os bilhetes eram intransferíveis e tinham que ser uti-
lizados no prazo de um mês. Quem não fizesse uso deles neste
prazo perderia o seu dinheiro, pois não era restituído pela com-
panhia, “convertendo-se assim o aparente abatimento do preço
em uma fonte de especulação e ganância para a companhia!”51.

Todas estas medidas de contenção de gastos e estímulo à ven-


da de passagens não conseguiram, entretanto, tirar a companhia
da situação de marasmo em que se arrastava desde 1869. A partir
de 1º de julho de 1871, a companhia pôs em prática a autorização
que obtivera do governo provincial para reduzir de sete a apenas
três o número de viagens semanais que era obrigada a fazer en-
tre a Corte e Mauá. Reduzindo as viagens, diminuía os gastos com
o seu custeio e com o seu pessoal.

Em 26 de fevereiro de 1874, durante a eleição da Comissão de Exa-


me de Contas, um acionista sugeriu que a comissão fosse mais lon-
ge em seu trabalho e incluísse em sua análise o estado do material
fixo, rodante e flutuante da companhia, e que estudasse e propusesse
os meios de tirá-la da apatia em que se encontrava havia cinco anos.

51 – Jornal do Commercio, 05/03/1875, Publicações a pedido, p. 3.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

Considerando-se incompetente para realizar tal tarefa por ser


constituída de “indivíduos dedicados ao comércio”, a comissão resol-
veu contratar os serviços de um engenheiro de reconhecida aptidão,
Bartolomeu Hayden. Suas conclusões coincidiram com as do enge-
nheiro da companhia, Januário Cândido de Oliveira, que havia sido
anteriormente incumbido da mesma missão, ou seja, a descrição da
situação exata de todo o material rodante e flutuante, estações, via
férrea e leito da estrada. O engenheiro da companhia, com muita
franqueza, disse: “(…) O estado do nosso material não é lisonjeiro, que
parte dele carece desde já de importantes reparos, e parte não pode
deixar de ser o quanto antes renovada ou substituída52.”

De fato, segundo ele, as medidas de contenção de gastos impostas


pelos próprios acionistas haviam terminado por tolher “os braços à
administração da companhia, impondo-lhe, repetidas vezes, severas
economias que foram, talvez um pouco exageradamente, observa-
das”. Em outras palavras, a empresa estava sendo sucateada por falta
de investimentos e as despesas com o custeio de um material desgas-
tado eram tão elevadas que não compensavam a renda que produzia.

Acompanhando as sugestões feitas pelos dois engenheiros,


a diretoria foi autorizada a despender o que fosse necessário com
os reparos extraordinários indicados nos relatórios. Era, igualmen-
te, instada a renovar o material flutuante que fosse necessário.
Ou seja, adquirir um novo vapor de reboques para substituir
o Bonga, que consumia em seu custeio quase toda a importância
que produzia com o seu fretamento, e substituir o vapor Mauá
por um outro, movido por máquinas mais modernas de muito
menor custeio. Para realizar estas compras, a companhia podia
contar com o dinheiro que resultaria da venda de ambos estes
vapores mais o que havia em depósito no Banco Comercial, além
dos 40 contos do fundo de reserva. Ou seja, um total de mais de
100 contos de réis, quantia que dava para toda a despesa.

Em seu parecer de 19 de março de 1875, a Comissão de Exame de


Contas que havia percorrido toda “a linha férrea de ponto a pon-

52 – Assembleia Geral dos Acionistas da I. C. N. E. F. de Petrópolis, 16/04/1874.

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to, examinando a mesma, as estações e o material”, concluía que
a diretoria procedia com “zelo e com a mais rigorosa economia”.
E, no parecer de 14 de maio de 1877, ela dizia: “Encontramos uma
economia importante no dispêndio com o pessoal da companhia
acima de 25.000$000 anuais, e não obstante este fato, parece-nos,
hoje, ser o serviço mais efetivo do que anteriormente.” Em outras
palavras, aumentara-se a produtividade do trabalho bem como
a quantidade de trabalho por trabalhador, ao mesmo tempo em
que os seus salários eram diminuídos. O que significava dizer que
se economizava à custa da maior exploração dos trabalhadores.

A mesma Comissão de Exame de Contas elogiava a decisão da


diretoria, convencida que estava de que a melhor garantia do futu-
ro da companhia era aumentar os fundos necessários à aquisição
de material fixo, rodante e flutuante e à realização de todos os de-
mais melhoramentos precisos. E, com efeito, uma nova locomotiva
foi encomendada na Europa, substituiu-se parte dos trilhos, bem
como renovou-se e completou-se o lastro em diversos lugares.

Enfim, era preciso aumentar o capital da companhia. Sua soli-


citação foi feita ao governo imperial, “juntamente com a prorroga-
ção dos privilégios concedidos à mesma empresa pelos Governos
Geral e Provincial”. A Imperial Companhia de Navegação a Vapor e
Estrada de Ferro de Petrópolis havia, finalmente, encontrado o ca-
minho de sua, ainda que modesta, autonomia. Aos poucos, avan-
çava contando apenas consigo mesma. Diminuíra e renovara o seu
material rodante e flutuante, reduzira a oferta de serviços e enco-
lhera, consequentemente, o número de seu pessoal e sua folha de
salários. Ou seja, adequara suas despesas à sua renda.

Coincidentemente, observava-se que o tráfego de passageiros e de


cargas de algumas estações intermediárias entre Petrópolis e a frontei-
ra com Minas Gerais estava crescendo e que era possível aumentar sua
renda. A diretoria, para atender esta maior demanda, foi aconselhada a
“adquirir mais alguns carros tanto para a condução de passageiros como
para transporte de cargas”53. Novamente, as esperanças se reacendiam.

53 – Parecer da Comissão de Exame de Contas, 09/05/1878.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

16. A última cartada

D esde 1871, em plena crise da companhia, quando a sua dis-


solução estava sendo discutida, o Barão de Mauá voltou
a investir em seu projeto de levar os trilhos serra acima até Pe-
trópolis. Era, a seu ver, a única maneira de salvar a sua estrada de
ferro. Já, então, era fato consumado que as estradas de ferro eram
um negócio lucrativo e um dos melhores investimentos para os
capitais, mesmo estrangeiros. Novas linhas de ferro surgiam por
todo o território brasileiro.

Temendo, talvez, que outra empresa obtivesse antes dele


o privilégio da execução do trecho da serra, o Barão de Mauá,
baseando-se apenas em estudos preliminares que mandara fa-
zer, orçou as obras em 600 contos e, em 1872, apressou-se em
contratar, em seu nome, com o governo da província do Rio de
Janeiro, o prolongamento da Estrada de Ferro de Petrópolis des-
de a raiz até o alto da serra, com a garantia de juros de 7% sobre
aquele montante.

A obtenção desta concessão era uma prova contundente do


prestígio social e político que ainda possuía, pois não seria pos-
sível que alguém acreditasse que os mais de 8 km de linha fér-
rea em montanha, exigindo alta tecnologia e grandes obras de
engenharia, custariam, quase vinte anos depois, a metade do
que havia custado o trecho de 16 km aberto em terreno plano,
ainda que pantanoso, entre o porto de Mauá e a Raiz da Serra.

Mas, primeiro, era necessário apresentar os cálculos definiti-


vos e levantar o capital necessário para incorporar uma empresa
que se responsabilizasse pela execução das obras e pela poste-
rior prestação do serviço. As dificuldades técnicas eram muito
grandes. Mauá já fizera, anteriormente, vir da Europa duas loco-
motivas de um tipo que ainda estava sendo testado para galgar
declives mais acentuados. As experiências realizadas na serra de
Petrópolis não satisfizeram.

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Em 1873, quando soube da inauguração da Estrada de Ferro
de Righi, na Suíça, construída pelo novo sistema de cremalheiras
criado pelo engenheiro Niklaus Riggenbach, incumbiu o jovem
engenheiro brasileiro, Pereira Passos, de ir ver e estudar o siste-
ma e aplicar a tecnologia na serra de Petrópolis. A novidade deste
sistema consistia em dispor de um trilho suplementar, dentado,
no centro da estrada. As locomotivas utilizadas eram equipadas
com uma roda motriz, também dentada, que se encaixava neste
trilho, permitindo ao comboio conservar a aderência em subidas
muito íngremes.

Esta iniciativa do Barão de Mauá, somada à relativa melhoria


da saúde da empresa, fez com que, em 1874, a discussão sobre
a dissolução da Companhia da Estrada de Ferro de Petrópo-
lis tomasse novos contornos. Mas a diretoria, já escaldada com
os cálculos apressados e muitíssimo subestimados do barão, su-
geriu que se aguardasse “a incorporação da empresa que se pro-
põe construir a estrada (de ferro) da Raiz da Serra a Petrópolis para
deliberar definitivamente sobre o que poderá convir aos nossos
interesses”54. Não se surpreenderam, pois, quando souberam que
os estudos técnicos e os cálculos definitivos realizados pelo enge-
nheiro Pereira Passos haviam ultrapassado de quase dois terços
o valor anteriormente orçado.

Por isso, se Mauá quisesse realizar a construção da nova linha,


se veria obrigado a solicitar ao governo provincial autorização
para o aumento do capital da empresa, que passaria de 600 para
1.520 contos de réis, montante sobre o qual incidiria o juro de 7%.
Coisa difícil de se obter naquela conjuntura: por um lado, a Es-
trada de Ferro de Petrópolis, com suas ações muito depreciadas,
desprestigiada e sem credibilidade, era vista como uma empresa
pouco lucrativa, desestimulando qualquer investimento em sua
continuação serra acima; e, por outro, o Banco de Mauá & Cia.,
principal alicerce de toda a sua fortuna e poderio empresarial,
começava a se ver em apuros.

54 – Idem, 16/04/1874.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

Entretanto, Mauá era ainda muito prestigiado e, naquele mes-


mo ano de 1874, recebeu o título de visconde. Mas, nem assim,
conseguiu levantar na praça esta enorme soma e o seu contrato
caducou. E a dramática crise financeira e bancária de 1875 atingiu
em cheio o Banco de Mauá & Cia. que, juntamente com outros
importantes bancos, fechou por insolvência. O Visconde de Mauá
obteve a moratória no ano seguinte e sua falência foi decretada
em 1878. A Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada
de Ferro de Petrópolis ficara órfã. Mas o sonho de Mauá, de ver
os trens pelo sistema de cremalheira chegarem a Petrópolis, per-
manecia intacto.

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17. A travessia da baía de Guanabara

A estrada de ferro propriamente dita era o coração, ou melhor,


a locomotiva da empresa. Era ela que ditava as normas, a qua-
lidade e o conforto das estações, das embarcações e das carruagens
e caleches, os horários e mesmo os preços da etapa hidroviária que
a antecedia e da de rodagem que a seguia. Mas, apesar de todo o seu
modernismo e simbologia, ela não podia dispensar as demais.

Pelo artigo 1º dos estatutos da Sociedade Anônima Imperial


Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro de Petrópo-
lis, cabia-lhe manter a navegação a vapor entre a Corte e o porto
de Mauá, trecho para o qual obtivera do governo imperial o privi-
légio pelo prazo de 10 anos.

Este traçado correspondia ao percurso do Caminho Novo de


Inhomirim que, desde o início do século XVIII, partia do cais dos
Mineiros, no Rio de Janeiro, atravessava a baía e, subindo o baixo
curso do rio Inhomirim, chegava ao porto fluvial da Estrela. Daí
em diante, através da serra da Estrela, ele seguia em direção ao rio
Piabanha, já no planalto.

Este caminho, no correr do século XIX, sofreu um grande incre-


mento. Primeiro, com a construção, em 1826, da Fábrica de Pólvora
da Estrela, em Inhomirim. Depois, com a construção do palácio de
verão da família imperial, a fundação de Petrópolis e a instalação
de uma colônia de imigrantes alemães.

Antes que a nova companhia da Estrada de Ferro de Petrópo-


lis fosse inaugurada, havia uma empresa que se encarregava de
levar passageiros do Rio de Janeiro a Petrópolis, e vice-versa. Era
a Companhia de Navegação do Inhomirim. Sua barca partia dia-
riamente do cais dos Mineiros às 11 horas da manhã, e do porto da
Estrela às três da tarde. Aí chegando, os passageiros encontravam
condução em carruagens até Petrópolis, pagando-se 4 mil réis por
pessoa. Custando, portanto, uma viagem completa, 5 mil réis55.
55 – Jornal do Commercio, 30/04/1854, Declarações, p. 2.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

Para evitar os inconvenientes de um porto fluvial, a Estrada de


Ferro de Petrópolis optou por construir outro, exclusivo, no fundo
da baía de Guanabara. No antigo cais do largo de São Francisco da
Prainha, no centro da cidade do Rio de Janeiro, em terreno cedido
pelo governo imperial, foram construídos, em estrutura de ferro,
última palavra em arquitetura, a estação da Prainha e um moder-
no cais de embarque e desembarque de passageiros e mercadorias
que, nos moldes do porto de Mauá, avançava baía adentro.

A navegação na baía de Guanabara, apesar de sua aparência


tranquila, era cheia de surpresas. E a primeira não se fez por espe-
rar ainda na noite da festa de inauguração da Estrada de Ferro de
Petrópolis: o último vapor que largou o cais de Mauá, o Guarani, tra-
zendo a bordo mais de duzentas pessoas, sendo um terço ou mais
de mulheres, por pouco não naufragou nas proximidades do Rio de
Janeiro, na altura das ilhas das Enxadas. E o vapor São Domingos,
que partira pouco antes do Guarani, também encalhara nas proxi-
midades de Paquetá56. Felizmente, não houve nenhum ferido grave
ou fatal, mas o prejuízo foi grande e a imagem da companhia ficou
maculada. Para os supersticiosos, era um péssimo presságio.

A baixa rentabilidade da seção hidroviária da Companhia da


Estrada de Ferro de Mauá foi uma constante em toda a sua vida.
Os investimentos feitos na construção de barcas a vapor para
passageiros e de saveiros para o transporte de mercadorias, bem
como em sua manutenção e na conservação de suas estações e
cais, não eram devidamente compensados pelas rendas que a na-
vegação conseguia, mal cobrindo os gastos de custeio, quando
não se via na mais completa apatia.

A falta de experiência também contribuía para o mau desem-


penho do setor. O naufrágio de um saveiro da companhia, em via-
gem de Mauá para a Corte, provocou a perda da enorme soma de
cerca de 12 contos em gêneros. Mas, segundo as regras do direito
e os estilos comerciais da época, uma empresa de navegação que
cobrava os fretes, mas não assegurava as mercadorias, não podia

56 – Correio Mercantil, 02/05/1854, Editorial, O caminho de ferro de Mauá, p. 1.

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ser responsável pelos sinistros do mar, salvo se fossem culpados
de tais sinistros os prepostos dela, o que não era o caso.

No entanto, a contragosto de muitos acionistas, Mauá decidiu,


“com o fim de sustentar o crédito e força moral da companhia”,
que ela se responsabilizaria pelo sinistro e pagaria o prejuízo, em
detrimento de seus próprios interesses. Gesto muito nobre, mas
catastrófico do ponto de vista gerencial.

Com uma tal gestão, era impossível que a empresa desse lucros,
sobretudo porque os prejuízos não eram apenas causados por sua
própria imprevidência. Foi o caso, em 1875, da construção do mo-
derno vapor Príncipe do Grão-Pará, em homenagem ao recém-nas-
cido neto mais velho de D. Pedro II, filho da princesa Leopoldina.

Em meio a grave crise financeira, a companhia, procurando re-


duzir os gastos de custeio com a manutenção de navios a vapor
já obsoletos, decidiu substituir o antiquado vapor Mauá, posto à
venda, e mandou construir um novo e mais potente e, sobretudo,
menos dispendioso.

Todos os cuidados haviam sido tomados. Sua construção fora


fiscalizada por um engenheiro de reconhecido renome e sua
aquisição, antecipada por uma viagem de experiência com os
acionistas da companhia. No entanto, ao realizar sua primeira
viagem, o Príncipe do Grão-Pará, sobrecarregado de passageiros
pela curiosidade que despertava, mostrou que não possuía as in-
dispensáveis condições de estabilidade57.

Somente depois de recorrer a muitas consultas e pareceres de di-


versos peritos, foi que se obteve do armador o compromisso de fazer
um novo casco e modificar a posição das máquinas, a fim de se alcan-
çarem “as necessárias condições de segurança, rapidez de marcha e
comodidade de transporte para os passageiros”58. Mas o atraso na en-
trega e todos esses expedientes haviam custado caro à companhia.

Muitas foram as iniciativas em busca do aumento da rentabi-


lidade da seção hidroviária da companhia. Uma delas era, sempre
57 – Jornal do Commercio, 19/11/1875, Declarações, p. 3.
58 – Parecer da Comissão de Exame de Contas, 1878.

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O porto fluvial de Inhomirim não atendia mais às necessidades dos numerosos e ricos
passageiros que demandavam Petrópolis na segunda metade do século XIX. (Acervo
da Fundação Biblioteca Nacional-Brasil)

quando possível, a de aumentar o preço das passagens e dos fre-


tes, o que, invariavelmente, era muito mal recebido pelo público.
Na baixa estação, durante os meses de inverno, quando a procura
por Petrópolis diminuía, a saída era fazer concorrência às compa-
nhias responsáveis pelo tráfego de passageiros dentro da baía.

Ainda em 1856, decidiu-se que ela participaria do transporte hi-


droviário de passageiros entre o centro da cidade do Rio de Janeiro e
os bairros do Caju e São Cristóvão. Este serviço teve início em 26 de
maio daquele ano e custava inicialmente 160 réis por “pessoa calça-
da” e 80 réis por “pessoa descalça”. Mas, os usuários se indignaram
com tarifas tão exageradamente elevadas e ela recuou. Na semana
seguinte, “para satisfazer as justas exigências do público”, elas foram
reduzidas em 25%: as pessoas calçadas passaram a pagar 120 réis, as
descalças 60 réis e toda “criança de colo grátis”59.

Os vapores da companhia realizavam, também, viagens para


a ilha de Paquetá nos dias de festas religiosas, especialmente as
de Nossa Senhora das Dores e São Roque. Mas, com apenas duas
saídas da estação da Prainha pela manhã e outra à uma hora da
tarde, e duas de volta à Corte à tarde e uma à noite, meia hora
após os fogos de artifício que, tradicionalmente, punham fim aos
festejos, era difícil concorrer com a Companhia União Niteroiense
cujos vapores chegavam a fazer viagens de meia em meia hora.

59 – Jornal do Commercio, 03/06/1856, Declarações, p. 2.

88
18. Subindo a serra

E nquanto o projeto de Mauá de alcançar Petrópolis numa


estrada de ferro não se realizava, o jeito era subir a serra da
Estrela em carros de tração animal. Antes mesmo que a compa-
nhia se organizasse, o serviço de transporte de passageiros serra
acima, em direção a Petrópolis, se fazia através de uma empresa
de carruagens.

Por seus estatutos, a Companhia da Estrada de Ferro de Mauá


podia tomar para si o transporte de passageiros e cargas desde o
ponto terminal da via férrea, na Raiz da Serra, até a cidade de Petró-
polis. Por isso, sua diretoria logo tratou de mandar construir dezes-
seis carruagens, cômodas e leves, e dois ônibus. Este investimento,
decidido pelo então presidente, o Barão de Mauá, era mais uma pro-
va de sua imperícia administrativa. Esses veículos haviam custado
a enorme soma de 25 contos de réis, o que não agradou nem um
pouco a Comissão de Exame de Contas, pois seria ainda preciso gas-
tar-se mais 11 contos de réis para completar o material necessário
ao serviço da serra, sem que a companhia ainda tivesse começa-
do a funcionar e a criar alguma receita. Daí seu parecer, bastante
contundente, de que era preciso livrar-se o mais rápido possível “e
por qualquer forma” de uma “tão difícil quão dispendiosa tarefa”60.

Já assoberbada com os encargos da navegação na baía de Gua-


nabara e da estrada de ferro, tratou logo de terceirizar o serviço da
serra, entregando-o a uma empresa que lhe desse as necessárias
garantias. Enquanto isso não acontecia, sabendo que o material
rodante já adquirido não seria suficiente para absorver todo o trá-
fego de seus passageiros, a diretoria da Estrada de Ferro de Petró-
polis achou por bem não dispensar, ao menos no início, o serviço
da pequena empresa de transporte existente, que foi mantido.

A empresa, que posteriormente realizou o contrato de transfe-


rência de passageiros e bagagem com a Estrada de Ferro de Petró-

60 – Idem, 23/12/1853, Comércio, p. 1.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

polis, pertencia a Antônio Batista de Oliveira e Guilherme Gerhardt.


Por este acordo, a companhia de Mauá lhe venderia o seu material
rodante e ela passaria a deter, na prática, o monopólio deste ser-
viço. Mas, em compensação, ficava com muito pouca autonomia,
muito atrelada e dependente que estava da estrada de ferro.

Na Assembleia Geral dos Acionistas da Estrada de Ferro de Pe-


trópolis, em 1855, Mauá dizia estar muito contente com o desempe-
nho dos empresários responsáveis pelo serviço da serra, que tendia
a melhorar dia a dia, aumentando notavelmente a renda da ferrovia.

A ideia que faziam os usuários das carruagens da serra não


correspondia exatamente ao que constava daquele relatório. Eles
reclamavam da falta de conforto e lentidão das diligências e da
falta de presteza na entrega das bagagens, bem como da falta de
cortesia dos cocheiros. A empresa, acusada de abusar do mono-
pólio que detinha de fato, se viu obrigada a melhorar o seu ma-
terial rodante, a dar um melhor tratamento a seus animais de
tração e a aperfeiçoar a formação de seu pessoal.

Em 20 de abril de 1854, às vésperas da inauguração da estrada de


ferro, sabedora da necessidade de possuir, em Petrópolis, uma esta-
ção de desembarque e embarque, além de um ponto de venda das
passagens, a sua diretoria assinou um contrato com a viúva Charbou-
nier, francesa proprietária do Hotel de Bragança na cidade serrana.

Por este acordo, a viúva cedia um local no prédio de seu hotel para
sede da agência do “serviço dos carros da serra” e, em troca, a compa-
nhia de Mauá se obrigava a fazer o ponto de partida e chegada dos
“carros da serra” em frente ao Hotel de Bragança, bem como a con-
duzir os passageiros, especialmente os que residiam em Petrópolis,
aos seus lugares de destino nas mesmas carruagens em que subiam
a serra. Esta havia sido a forma mais barata que a companhia havia
encontrado para criar uma agência em Petrópolis sem ter que arcar
com os gastos da construção de um edifício para a sua estação.

Diga-se de passagem que a viúva Charbounier, prevendo o im-


pulso que daria à cidade a chegada da estrada de ferro, comprara

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o prédio do antigo Hotel de France e o reunira ao seu, fazendo
importantes trabalhos para poder oferecer ao esperado seleto
público e aos aristocráticos habitantes de Petrópolis um serviço
de alta qualidade.
Esta troca de favores valeu ao Barão de Mauá, em 1863, a acusação
de estar promovendo o recrutamento de clientes para aquele hotel
em detrimento dos demais estabelecimentos hoteleiros da cidade
e, mesmo, dos passageiros que se viam forçados a se hospedar nele.
Neste mesmo ano, foi divulgada pelos jornais uma crítica contunden-
te contra o empresário da Imperial Empresa de Transportes da Serra,
chamado de “monopolizador de conduções da serra” e protegido da Es-
trada de Ferro de Petrópolis, à sombra de quem se elevara às alturas61.
O seu autor, que se intitulava O antimonopolista, acusava am-
bas as empresas de abusarem dos preços aproveitando-se do mo-
nopólio que detinham deste transporte. E era, dizia ele, justamen-
te naquele momento em que “nunca o serviço da serra foi tão
malfeito e pior dirigido” que o “protegido empresário de carros”
elevou a 4 mil réis as passagens de 1ª classe, e a 3 mil réis as de 2ª.
E, desconfiado de que a Companhia da Estrada de Ferro tivesse
participação nos lucros da Empresa de Transportes da Serra, per-
guntava: “Que vantagens tira a Companhia da Estrada de Ferro
de Petrópolis com o monopólio que autoriza, concedendo tantos
e tão visíveis favores ao atual empresário de carros?”62.
Mas, de fato, o serviço dos “carros da serra”, que sob nova dire-
ção veio a se chamar Imperial Empresa de Transportes da Serra,
era complexo, exigia muitos cuidados e era, sobretudo, dispendio-
so, o que não justificava, entretanto, preços tão abusivos. Seu cus-
teio e sua manutenção implicavam a existência de grandes pastos
para os animais se alimentarem, repousarem e se restabelecerem
do árduo trabalho que era subir e descer a serra, particularmente
na estação de veraneio. Além das cocheiras que existiam na Raiz
da Serra e em Petrópolis, havia uma outra, no meio da serra, para
eventual troca e repouso dos animais e para nutri-los.
61 – Jornal do Commercio, 28/12/1863, Publicações a pedido, p. 2.
62 – Idem.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

92
“Eu sou o progresso, eu sou a vida.”
A Estrada de Ferro Príncipe do
Grão-Pará revolucionou a vida
da cidade de Petrópolis
estimulando o turismo.
(MUSEU IMPERIAL/IBRAM/MINC/
nº SGI-216/2017)

93
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

A nova empresa, que se organizara em 1867, mantendo o mes-


mo nome, possuía carroças para o frete de cargas e realizava
a condução de passageiros em caleches. Ela cobrava, indistin-
tamente, o preço único de 2 mil réis, bem inferior aos de seus
antecessores, o que faz crer que as críticas de O antimonopolista
eram fundadas.

Estruturalmente dependente da ferrovia, o ano de 1869 foi


igualmente difícil para a Imperial Empresa de Transportes da
Serra. Em situação ruinosa, a Estrada de Ferro de Mauá, ao sus-
pender seus serviços no dia 1º de abril daquele ano, arrastou con-
sigo sua companheira. Carente de passageiros, a Imperial Empresa
de Transportes se viu sufocada e pressionou a Companhia da Es-
trada de Ferro a retomar suas funções, o que só aconteceu no dia
12 de maio, mas muito precariamente, realizando somente três
viagens por semana.

Não podendo suportar uma tal redução de passageiros, voltou


a pressionar a diretoria da Estrada de Ferro de Petrópolis. Quando
esta, finalmente, cedeu e suspendeu provisoriamente aquela de-
cisão, em setembro daquele ano, já era tarde demais: a empresa
não suportara tal asfixia. No final de 1869, seu novo dono avisava
que o seu escritório em Petrópolis ficava na agência da Imperial
Companhia de Estrada de Ferro, e que as vendas de bilhetes para
os carros da serra, na estação da Prainha, estavam a cargo do em-
pregado da estrada de ferro. E era com este mesmo funcionário
que os passageiros podiam entender-se “a respeito de tudo aqui-
lo que tenha relação com a Imperial Empresa de Transportes”63.

Por este anúncio ficava evidente que a empresa dos “carros da


serra” era um simples apêndice da Estrada de Ferro de Petrópolis,
tendo perdido praticamente toda a sua autonomia. Prova disso
foi a extensão dos bilhetes mensais com desconto de 25%, intro-
duzidos em 1869 na ferrovia, aos carros da Imperial Companhia
de Transportes da Serra. No entanto, eram muitos os que não es-
tavam contentes com o seu serviço e protestavam nos jornais.
63 – Idem, 22/12/1869, Anúncios, p. 7.

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A subida da serra era demorada e a fadiga, o calor e a poeira só
eram suportáveis porque não havia alternativa.

Percebendo que tanto este serviço quanto o de cargas eram al-


tamente lucrativos e podiam se transformar numa nova e ampla
fonte de renda, a diretoria da Imperial Estrada de Ferro decidiu,
em 1875, tomar a frente destes negócios sem ter que dividir os
seus benefícios. Em seu parecer de 4 de abril de 1876, o relator da
Comissão de Exame de Contas enunciava as medidas tomadas
para melhorar o serviço de transporte da serra, já sob a direção da
Estrada de Ferro de Petrópolis. O abrigo dos carros da serra havia
sido aumentado e melhorado. A cocheira da Raiz da Serra havia
sido reedificada e os seus carros estavam mais bem conservados.
O bom tratamento dado aos seus animais podia ser notado no
excelente aspecto deles, mesmo na alta estação, quando eram so-
bretudo exigidos pelo aumento do tráfego na serra.

No entanto, a cocheira ocupada pela companhia em Petrópolis


estava num estado lastimável que não correspondia em nada ao
alto aluguel cobrado por seu proprietário. Pressionado, ele se viu
na contingência de reformá-la. Da mesma forma, a cocheira da
serra estava péssima. Mas seu proprietário se negava a fazer os
reparos necessários. Insatisfeita, a diretoria achou melhor adqui-
rir, em Petrópolis, um terreno e nele edificou um estabelecimento
em que ficaram reunidos os armazéns, o depósito, a cocheira e
outras dependências da companhia. E, no meio da serra, adquiriu
outro terreno e construiu sua própria cocheira, onde pôde acomo-
dar os seus animais.

O serviço dos carros da serra não só melhorou, segundo o rela-


tor da Comissão de Exame de Contas, como a companhia lucrou,
não tendo que pagar aluguéis elevados em troca de um serviço
insatisfatório. A viagem até Petrópolis ficara, de fato, mais bem or-
ganizada. Na estação da Prainha, no ato da compra da passagem
até o alto da serra, o passageiro recebia um bilhete em que tinha
o seu lugar reservado num dos quatro “carros da serra”. Doravante,
a viagem tornava-se mais segura e confortável com a garantia de

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

encontrar, ao desembarcar na Raiz da Serra, transporte para seguir


até Petrópolis, o que não o livrava de possíveis imprevistos.

Este serviço extinguiu-se de todo em 20 de fevereiro de 1883,


quando a Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará adquiriu a Estrada
de Ferro de Mauá e passou a realizar o transporte ferroviário dos
passageiros desde a estação de Mauá até a cidade de Petrópolis.

Sistema de cremalheira central e poste do telégrafo elétrico:


grandes símbolos da modernidade da época.
(MUSEU IMPERIAL/IBRAM/MINC/nº SGI-001905/2016)

96
19. O fim da linha

A situação da Estrada de Ferro de Petrópolis continuava, na


década de 1870, muito precária, vivendo à míngua. E como
não bastasse isto, se via sempre ameaçada por concorrentes que
pretendiam levar os trilhos diretamente do Rio de Janeiro até
a Raiz da Serra, dispensando a travessia da baía de Guanabara e
o trecho terrestre realizado pela ferrovia de Mauá.

Construir estradas de ferro tornara-se um grande negócio, uma


febre. Muitos eram os capitalistas que se uniam em torno de pro-
jetos concebidos às pressas e sem muita seriedade e que, por isso
mesmo, não iam adiante. De qualquer forma, cada concessão da-
da pelo governo provincial a uma companhia que se propunha
atingir por terra a Raiz da Serra era uma punhalada no Visconde
de Mauá, que começava a fraquejar.

Quando, em 1879, um grupo de empresários teve aceitado o


seu pedido de levar os trilhos diretamente da Corte até São José
do Rio Preto, passando por Petrópolis, ou seja, o mesmo trecho
acima da serra do qual ele detinha pessoalmente a concessão,
o visconde, já com 66 anos, confessou em sua autobiografia:
“A concessão foi por mim encarada como desastrosa para a Estra-
da de Ferro de Petrópolis. Desanimei64.”

Não foi desta vez, no entanto, que a estrada de ferro ligando


o Rio de Janeiro a São José do Rio Preto conseguiu sair do papel.
O empreendimento era custoso e de difícil realização. A conces-
são caducou mais uma vez. Ainda naqueles anos, foram apresen-
tadas duas outras propostas. Ambas cogitavam dar continuida-
de à estrada de ferro já existente, subindo a serra até a cidade de
Petrópolis e depois se prolongando para além dela.

Estes novos projetos foram bem acolhidos pela diretoria da Es-


trada de Ferro de Petrópolis. Afinal de contas, ela colheria os mes-
mos benefícios sem ter o ônus de sua construção. Seus acionistas,
64 – Mauá, Autobiografia, p. 135.

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Foram enormes e
caras as obras de
abertura da linha
da serra, só possível
pelo emprego da
cremalheira central
e da roda dentada.
(MUSEU IMPERIAL/
IBRAM/MINC/nº SGI-
001905/2016)

reunidos em assembleia geral, decidiram subscrever 100 contos


de réis da nova companhia que deveria se incorporar, e que real-
mente se incorporou em 1879, a Estrada de Ferro Príncipe do
Grão-Pará. Era uma forma de auxiliá-la ao mesmo tempo em que
desencorajavam aquelas que pretendiam chegar a Petrópolis di-
retamente do Rio de Janeiro, dispensando a de Mauá.

Por sua vez, Mauá transferiu gratuitamente à nova empre-


sa os minuciosos estudos e trabalhos gráficos da linha da serra
feitos pelo engenheiro Pereira Passos, a quem havia remunera-
do por este serviço de seu próprio bolso. E, finalmente, em 1881,
a Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro
de Petrópolis cedeu o seu contrato à do Príncipe do Grão-Pará.

A hora de sua morte, sempre adiada, enfim chegara. Em 1883,


em assembleia geral extraordinária, os acionistas da Estrada de
Ferro de Petrópolis aprovaram unanimemente e assinaram a es-
critura de cessão e venda de todo o acervo social, passivo e ativo,
à Companhia Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará65.

Estava definitivamente extinta a primeira companhia de es-


trada de ferro brasileira. Desde então, a Estrada de Ferro de Mauá
passou a constituir a primeira seção da Estrada de Ferro Príncipe
do Grão-Pará, que ficou popularmente conhecida como Estrada
de Ferro de Petrópolis:
Estrada de Ferro de Petrópolis (E. F. Príncipe do Grão-Pará) (…)
Sem garantia do Estado. Capital, 3.100:000$000. Bitola 1 me-
tro. Extensão 8 km e 810 m da Raiz da Serra a Petrópolis. Per-
tence a esta companhia a Estrada de Ferro de Mauá. Adminis-
tração: presidente, João M. da Silva Coutinho. Vice-presidente,
Francisco Tavares Bastos. Secretário, João Franklin de Alencar
Lima. Diretor-delegado, Luís Berrini66.

65 – Jornal do Commercio, 05/06/1883, Comércio, p. 6.


66 – AlmanakLaemmert, 1884, Parte IV, p. 1051.

98
20. “Eu sou o progresso, eu sou a vida!”

E ram tais as dificuldades a superar na escalada da serra da Es-


trela, que cada etapa vencida era proporcionalmente comemo-
rada e festejada. A primeira comemoração teve lugar no dia 30 de
julho de 1882. Naquele domingo, às 7:30, partiu do cais Pharoux, no
centro do Rio de Janeiro, numa lancha a vapor em direção ao porto
de Mauá, um numeroso grupo formado por representantes do go-
verno imperial e da Câmara dos Deputados, bem como pelos dire-
tores da Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará e muitos dos seus
engenheiros, além de jornalistas e pessoas importantes da socieda-
de. O grupo estava indo assistir, na Raiz da Serra de Petrópolis, à pri-
meira experiência pública da locomotiva do sistema de Riggenbach,
que havia sido importada da Europa para realizar a subida da serra.

Por isso mesmo, este evento teve um caráter mais técnico,


fosse pelo seu objetivo de testar publicamente o novo sistema
de cremalheira, fosse pelo grande número de engenheiros pre-
sentes. Chegado o grupo à Raiz da Serra, a muito aguardada ex-
periência começou às 11 horas, quando aqueles cavalheiros, que
eram cerca de 125 pessoas, subiram ao trem que foi rebocado pela
locomotiva que, sozinha, pesava 18 toneladas.

O resultado foi considerado por todos excelente. A locomotiva


percorreu serra acima a distância de 500 metros desde a esta-
ção da Raiz da Serra até a ponte de estrutura metálica do Batis-
ta, sendo a rampa de 10% de inclinação. De tempos em tempos,
a locomotiva parava meio abruptamente para testar os freios.
A cremalheira central, toda feita de aço, provou perfeitamente
que era de uma segurança indiscutível, mesmo durante as fre-
nagens. Além disso, o sistema de Riggenbach adotado naquela
estrada, que era dos mais aperfeiçoados, não tinha o ruído incô-
modo das outras estradas do mesmo gênero.

Constatou-se, também, que pela velocidade que a locomotiva


podia desenvolver, o trajeto da estação da Raiz da Serra até o alto

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

de Petrópolis se faria, sem risco, em 30 minutos! – “ficando as-


sim reduzidas as viagens da Corte até aquele aprazível lugar”67.
Ao fim da experiência, houve uma abundante refeição num ca-
ramanchão junto à ponte do Batista. Depois, todos os convidados
voltaram à Corte, onde chegaram às três horas da tarde.

A segunda comemoração foi realizada com muito mais pom-


pa, e diante de um público muito mais numeroso, no domingo,
7 de janeiro de 1883. Tratava-se, de fato, da inauguração da maior
obra de engenharia exigida no trajeto entre a Raiz da Serra e Pe-
trópolis: o viaduto da Grota Funda.

Estranhamente, este evento não contou com a participação de


representantes dos governos imperial e provincial. O lugar escolhido
não poderia ser outro senão a localidade da Grota Funda, cuja gargan-
ta, para ser transposta, necessitou de um formidável e majestoso via-
duto, verdadeira obra de engenharia e de arte do engenheiro Eduardo
dos Guimarães Bonjean, que havia arrematado a construção daquele
trecho da estrada. Ele tinha 58 metros de vão e quase 25 metros de
altura. Dizia-se, na época, tratar-se de um verdadeiro “milagre”.

Foi grande a afluência da população de Grota Funda que acor-


rera ao sítio escolhido para a festa, em frente ao viaduto, e que ali
se concentrava muito reverentemente para “saudar o progresso
que às suas portas batia”. Ela ocupava toda a extensão de onde
podia ser contemplado o espetáculo e “grande número de senho-
ras e de crianças do povo enchia a linha do trem e o viaduto”. Sua
curiosidade natural era interpretada pelo mesmo cronista, certa-
mente porta-voz da classe empresarial, como “prodigiosa atração
do trabalhador pelo trabalho”. De qualquer modo, temendo que
a multidão, sob os efeitos de tão “prodigiosa atração”, pudesse per-
der o controle, provocando desordens, os organizadores da festa
distribuíram seguranças, chamados de “pessoal técnico”, para im-
pedir “que cenas lamentáveis não enlutassem a festa.”

Enfim, chegara o grande momento de ver o comboio atraves-


sar o viaduto e testá-lo:
67 – Gazeta de Notícias, 31/07/1882, Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará, p. 2.

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Ouviu-se um sibilo, depois um rumor evolutivo; mais tarde viu-se
um gigante que avançava. No ponto em que apareceu ostenta-
va ele um quê de fantástico, falava-nos de alguma coisa que já
conhecíamos, mas que prazer nos dava relembrá-la. Como que
dizia-nos: “Eu sou o progresso, eu sou a vida (...)” E avançava, e cres-
cia, e mais se agigantava a nossos olhos. Ei-los no viaduto: a loco-
motiva e três vagões! (...) O viaduto suportou o peso e o comboio
arremessou-se na ascensão. Foi um momento sublime!68.

Muitos foram os brindes erguidos. Dentre eles, o cronista des-


tacou o de Cristiano Benedito Otoni, primeiro presidente da Es-
trada de Ferro de D. Pedro II, considerado o seu fundador. Seu
brinde foi em homenagem ao Visconde de Mauá e foi publicado
na íntegra. Eis um pequeno trecho:
Senhores, a comunicação entre o vasto empório do Rio de Ja-
neiro e este soberbo jardim que se chama cidade de Petrópolis,
a comunicação mais cômoda, a mais preferível a todos os res-
peitos, a mais agradável, a mais pitoresca, a mais em harmonia
com as belezas de Petrópolis, a mais adornada de panoramas
majestosos, foi escolhida e adotada há quase trinta anos por um
brasileiro de merecimento que prestou a nosso país serviços
importantes, e cuja infelicidade o torna aos olhos dos homens
que têm coração mais respeitável – o Visconde de Mauá69.

E, certamente, para não ser descortês para com os seus anfi-


triões, acrescentou:
A nossa pitoresca excursão do Rio de Janeiro a Petrópolis só
tinha um senão, era a rodagem demorada do Fragoso ao alto,
a fadiga, o calor e a poeira que nessa subida se suportava.
E este senão a Companhia Príncipe do Grão-Pará, confirman-
do a acertada escolha do Visconde de Mauá, traz-lhe o con-
tingente de um importante aperfeiçoamento e proporciona
aos frequentadores de Petrópolis a viagem mais bela, a mais
curta, a mais deliciosa que nas circunstâncias destes sítios
podiam desejar. Brindemos, pois, à Companhia Príncipe do
Grão-Pará e à sua ilustre diretoria70.
68 – O Mercantil, 10/01/1883, Redação, p. 3.
69 – Idem.
70 – Idem.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

A Estação de
Petrópolis onde se
deu a inauguração
oficial da E. F. Príncipe
do Grão-Pará em
11 de fevereiro de 1883.
(MUSEU IMPERIAL/
IBRAM/MINC/nº SGI-
001905/2016)

Desta data em diante, a cada nova etapa transposta, O Mercantil


anunciava a rápida aproximação do trem da estação de Petrópolis
que já estava construída à sua espera. No dia 20 de janeiro de 1883,
o periódico noticiava que, dois dias antes, o trem da Estrada de Fer-
ro Príncipe do Grão-Pará passara pela primeira vez pelo viaduto
Bonini de 30 metros de comprimento e um pouco mais de altura.
Ir ver o trem passar pelo viaduto Bonini se tornara um programa
recreativo. E lembrava: “As pessoas que forem ao alto da serra, das
quatro horas para as 4:30 da tarde, aí poderão ver o trem71.”

Já não havia obstáculos a superar, a chegada a Petrópolis se


tornara uma simples questão de tempo. No dia 7 de fevereiro,
a mesma folha avisava que, finalmente, o primeiro trem havia
chegado a Petrópolis, provavelmente no domingo anterior, dia 4,
conduzindo “Sua Majestade o imperador, Sua Alteza o conde d’Eu
e alguns passageiros”72. Mas ainda não alcançara a estação final,
da qual já estava muito próximo.

Por isso mesmo, a sua inauguração não causou nenhuma co-


moção e foi anunciada sem muito estardalhaço: Às nove horas da
manhã do domingo, 11 de fevereiro de 1883, chegou o trem à esta-
ção de Petrópolis. Ele trazia “Sua Majestade o imperador e grande
número de passageiros vindos da capital”73.

Tudo foi comemorado muito simplesmente: “O belo edifício da


estação estava graciosamente embandeirado e a população acorrera

71 – Idem, 20/01/1883, Notícias locais, p. 2.


72 – Idem, 07/02/1883, Notícias locais, p. 1.
73 – Idem, 14/02/1883, Notícias locais, p. 1.

102
ao sítio entusiástica e jubilosamente.” A chegada do trem foi recebida
com alguns fogos de artifício e “a banda do Congresso Filarmônico
Quinze de Março saudou a vinda do precursor da vida nova”74.

Paradoxalmente, a realização da última etapa, a sua concreti-


zação, foi de todas a menos comemorada. Os grandes desafios ha-
viam sido superados na subida da serra com a construção de três
pontes, das quais duas metálicas, e dos dois viadutos: o de Boni-
ni e, particularmente, o da Grota Funda, muito festejada. Pouco
mais de uma semana depois, no dia 20 de fevereiro, a Companhia
da Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará prevenia através dos
jornais que, tendo aberto provisoriamente o tráfego da linha en-
tre as estações da Raiz da Serra e Petrópolis, o serviço seria aberto
ao público no dia 22 daquele mesmo mês.

Era preciso, agora, organizar o serviço da nova estrada de fer-


ro. Em comum acordo com a Imperial Companhia de Navegação
a Vapor e Estrada de Ferro de Petrópolis, estabeleceu-se que,
para o serviço de passageiros entre ambas as estradas de ferro,
o trem da serra partiria logo depois da chegada do trem que vi-
nha do porto de Mauá. De Petrópolis, ele partiria sempre às sete
horas da manhã.

Dentro deste mesmo acordo, um anúncio avisava que, a par-


tir também do dia 22 de fevereiro, as barcas a vapor da Estrada
de Ferro de Petrópolis para o porto de Mauá partiriam às três
horas da tarde nos dias úteis, e às 6:30 da manhã nos domingos
e dias santificados. Ou seja, nos dias úteis, para atender a sua
clientela de homens de negócio da Corte, os horários de partida
do Rio eram retardados de uma hora em função da maior brevi-
dade da viagem75.

Enfim, a cidade de Petrópolis estava servida por uma estrada


de ferro que levava os passageiros até a sua porta numa confortá-
vel viagem que, desde o Rio de Janeiro, se fazia em menos de três
horas. Agora, era preciso atender aos clamores dos representantes

74 – Idem.
75 – Jornal do Commercio, 22/02/1883, Declarações, p. 3.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

dos “fazendeiros, negociantes e industriais”, residentes na zona de


São José do Rio Preto, que estavam apressados por ver chegar até
eles o prolongamento da linha de ferro, que tanto haviam apoiado:
A organização da Companhia Estrada de Ferro Príncipe do
Grão-Pará, que levou de vencida as alturas da Serra do Mar,
chegando com seus trilhos à cidade de Petrópolis, cometi-
mento que para alguns era considerado uma utopia e para
outros um arrojo que não cabia nas forças da empresa, foi no
entretanto acolhida pelos abaixo-assinados como a precurso-
ra da prosperidade futura76.

Petrópolis, “a risonha cidade do prazer”, estava mais perto do


que nunca do Rio de Janeiro. As viagens de passeio, e o turismo
em geral, àquela cidade estival passaram a ser fortemente esti-
mulados. A partir do início de janeiro de 1884, em todos os domin-
gos e dias santificados havia para Petrópolis um “trem de recreio”.
A barca partia da Prainha às seis horas da manhã e o trem de
Petrópolis regressava às 17 horas. A viagem redonda custava 8 mil
réis, e “o preço de ida e volta com direito a duas refeições no Hotel
Bragança, 10$00077.

Havia, sem dúvida, uma íntima relação entre os interesses da


estrada de ferro e o comércio de Petrópolis. E a festa de inaugura-
ção do Palácio de Cristal no domingo, dia 3 de fevereiro de 1884,
só a reforçava.

O Palácio de Cristal fora construído no local do Passeio Públi-


co e, por isso mesmo, foi muito criticado por não ser tão útil à
população de Petrópolis, porque o antigo jardim “era o recreio
das crianças e ponto de reunião de todos”78. A inauguração des-
te “palácio-estufa” se fez com toda a pompa. Dela participaram
o imperador e a imperatriz, a princesa Isabel e o seu marido. “Da
Corte vieram muitas senhoras para este tão falado baile”, dizia
o comentarista do Jornal do Commercio, que completava: “Mas

76 – Idem, 30/09/1883, Publicações a pedido, p. 3.


77 – Idem, 04/01/1884, Declarações, p. 3.
78 – Idem, 04/02/1884, Gazetilha, p. 1.

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não foi só para assistir ao baile que veio tanta gente da Corte:
para fugir do calor e aqui passar dois dias também vieram muitas
pessoas. A afluência desde sexta-feira tem sido extraordinária79.”

De fato, uma multidão de moradores do Rio havia tomado


a direção de Petrópolis. Os hotéis ficaram “tão cheios que os úl-
timos passageiros tiveram de dormir nos bilhares e salas. O Ho-
tel d’Orléans não teve outras acomodações senão a rouparia e
o quarto de banho para dar aos dois últimos hóspedes que apa-
receram ontem”80.

Em seu relato, o jornalista não fazia menção aos lucros aufe-


ridos pela Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará naquele fim de
semana, mas o seguinte comentário seu podia dar uma ideia:
“Cerca de 1000 pessoas vieram para Petrópolis, e sabe Deus que
trabalho teve o dr. Berrini para acomodar os passageiros nos car-
ros da Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará81.”

Petrópolis podia, e com razão, se orgulhar não só de ser a sede


de verão do governo imperial e cidade estival preferida pela no-
breza fluminense, como também de ser servida pelo meio de
transporte mais moderno e confortável da época e dispor da
“mais maravilhosa das invenções modernas”, o telégrafo elétri-
co, que a ligava ao Rio de Janeiro82, o que lhe dava uma grande
vantagem do ponto de vista não só econômico-social, mas so-
bretudo político, por facilitar a governabilidade e a centralidade
do poder imperial.

Desde 1853, portanto antes mesmo que fosse inaugurada a Es-


trada de Ferro de Mauá, já estava em efetivo funcionamento, ao
longo da linha férrea, o serviço de telégrafo eletromagnético. Esta
era, aliás, uma prática seguida na construção de todas as estradas
de ferro na Europa e na América do Norte, pois facilitava a comu-
nicação entre as diferentes estações, especialmente em casos de
acidentes ou outro qualquer embaraço.
79 – Idem.
80 – Idem.
81 – Idem.
82 – Assembleia Geral dos Acionistas da Imperial Companhia de Navegação a Vapor e
Estrada de Ferro de Petrópolis, 01/12/1853.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

O telégrafo elétrico, que até então se limitava aos bairros e


aos subúrbios da Corte até Santa Cruz, e à cidade de Niterói, foi
pela primeira vez estendido para o interior seguindo a marcha
do trem.
Uma inovação. Na estrada de ferro de New York a Búfalo dá-se
a cada viajante, com o seu bilhete, uma lista especificada de
todos os pratos e manjares que se podem encontrar nas diver-
sas estações onde se tem de parar a fim de almoçar e jantar.
O viajante escolhe o que deseja, participa-o num escritório que
tem por missão receber estas comunicações, e dá-se-lhe um
número. Chegado à estação, assenta-se à mesa num lugar de-
signado pelo seu número, e ali acha tudo quanto pediu. É o te-
légrafo elétrico que transmite durante a marcha do comboio as
ordens dos viajantes para as diferentes casas da linha83.

83 – Jornal do Commercio, 26/06/1853, Variedades, p. 1.

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O Viaduto da Grota Funda, um dos grandes
símbolos da modernidade e do desenvolvimento
da engenharia civil e ferroviária no Brasil. (MUSEU
IMPERIAL/IBRAM/MINC/nº SGI-001905/2016)

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

21. A última viagem

Desde que fora decretada a sua falência, em 1878, o Visconde de


Mauá, aos 65 anos de idade, se retirou da vida pública que tanto
animara. Primeiro se isolou em sua fazenda de Sapopemba, deci-
dido a explicar as razões da bancarrota de sua principal empresa,
o importante Banco de Mauá & Cia., que arrastara consigo mui-
tas outras empresas com ele comprometidas, inclusive o próprio
Estado brasileiro, que possuía grandes somas nele depositadas.

Havia poucos anos, era um dos homens mais ricos do Império. Era,
então, temido, respeitado e invejado, tendo recebido do próprio impera-
dor o título que o elevava de Barão a Visconde de Mauá, como reconhe-
cimento pelo conjunto de sua obra, coroada em 1874 com a inauguração
da empresa Brazilian Submarine Telegraph Company, sob sua direção.

Por motivo desta distinção nobiliárquica, se reuniu na cidade de


Santos, em casa do gerente do Banco Mauá & Cia., um numeroso
grupo de cidadãos representando os principais interesses do im-
portante comércio local. Então, tomando a palavra em nome dos
comerciantes estrangeiros daquela praça, o alemão Rudolf Wursten
historiou a vida do nobre titular e lembrou que poucos homens ti-
nham, como o Visconde de Mauá, a felicidade de assistir à realização
prática do fruto de suas aspirações. E, depois de apresentá-lo como
um homem de visão, representante da “luta constante da iniciativa
individual em prol do progresso”, finalizou seu discurso dizendo: “Fez-
se por si só, e deu à mocidade um exemplo de que o homem inteli-
gente, constante e ativo pode aspirar às mais elevadas posições84.”

O Visconde de Mauá, o maior símbolo brasileiro de self made-


man, em tom de desabafo, escreveu em suas memórias: “Não pre-
ciso dizer-vos que errei, e errei grosseiramente, optando por uma
nova vida de atividade sem exemplo em nossa terra, e mui rara em
outros países85.” Para saldar suas dívidas, vendeu todo o seu patri-
mônio, inclusive seu palacete de Petrópolis com todos os móveis.
84 – Jornal do Commercio, 04/07/1874, Publicações a pedido, p. 2.
85 – Mauá, Autobiografia, p. 96.

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Não fora, entretanto, de todo esquecido. De tempos em tempos,
recebia sinceras manifestações de apreço por todas as suas reali-
zações. Sua obra era muito maior do que o seu fracasso. Quando,
em abril de 1884, tomou pela primeira vez o caminho de Petró-
polis no trem da Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará, foi sole-
nemente homenageado pela diretoria da companhia por ter sido
o primeiro a cogitar o emprego do sistema de cremalheira no Brasil.

E, no dia 30 daquele mês, em comemoração ao 30º aniversá-


rio da inauguração da Estrada de Ferro de Petrópolis, ele foi uma
vez mais alvo das manifestações carinhosas da mesma direto-
ria, que o homenageou com um busto na estação de Petrópolis.
As últimas palavras pronunciadas por seu presidente foram as
que mais tocaram o público e o homenageado:
(…) O cidadão ilustre que teve a fortuna de levantar a empresa e
primeiro a dotar o país com este poderoso instrumento de pro-
gresso é, pois, eterno credor de nossas homenagens e agrade-
cimentos. Ele aqui se acha, o benemérito Visconde de Mauá86.

No dia 21 de outubro de 1889, por telegrama, chegava ao Rio de


Janeiro a funesta notícia de seu falecimento: “Telegramas. Petró-
polis, 21. Faleceu esta manhã o Visconde de Mauá. O seu cadáver
descerá amanhã, saindo de Petrópolis às seis horas da manhã87.”

No dia seguinte ao seu falecimento, foi sepultado às dez horas da


manhã no cemitério de São Francisco de Paula no Rio de Janeiro. Seu
corpo viera de Petrópolis conduzido num trem especial que partira às
seis horas da manhã. No porto de Mauá, o corpo foi transferido para
uma barca a vapor que o levou até o cais da Prainha, onde chegou às
8:45. Tudo pontualmente, como ele sempre havia querido que fosse
o serviço oferecido aos passageiros de sua companhia. No cais do Rio
de Janeiro, já o esperavam muitos amigos e admiradores:
(…) antigos companheiros seus, senadores, banqueiros, ne-
gociantes, corretores, tudo enfim que o comércio possui de
mais notável pelo prestígio, pela posição e pela inteligência

86 – Jornal do Commercio, 01/05/1884, Gazetilha, p. 2.


87 – Idem, 22/10/1889, Telegramas, p. 2.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE I

ali compareceu para prestar justa e merecida homenagem à


memória de quem tanto o tinha enobrecido88.

Um jornalista, emocionado, comentou: “Na sua última viagem,


o corpo do Visconde de Mauá atravessou, frio e inerte, a estrada de fer-
ro, a que nos dias ardentes de entusiasmo industrial ele dera vida89.”

Falecera, mas não morrera. Continuava vivo nos hábitos coti-


dianos e impensados dos cariocas. O seu legado industrial estava
presente, diariamente, nos seus gestos e nos seus atos mais corri-
queiros, como ler uma gazeta “que logo ao acordar lhe trazem os
telegramas de além-mar; o banho que o reconforta; o bonde que
lhe permite desertar do foco de calor e bulício de cada dia; o gás que
lhe facilita os estudos ou divertimentos”90. Tudo lembrava Mauá.

Vinte e um anos depois, em 1910, e não por acaso no dia 30


de abril, era inaugurada, na capital da República, uma estátua
em sua memória. O monumento, “um belíssimo trabalho do es-
cultor Rodolfo Bernardelli” financiado pelo Clube de Engenharia,
representava Mauá “em pé, em atitude altiva, vestindo sobreca-
saca, com o braço direito envolto pela aba da sobrecasaca e tendo
a cartola e a bengala na mão esquerda”91.

Estava colocado no centro da praça 28 de Setembro, então reba-


tizada praça Visconde de Mauá, no final da avenida Central, voltado
para o mar como se olhasse a antiga estação da Prainha. Um jorna-
lista, presente à inauguração animada por bandas de música e docu-
mentada por “fotógrafos e operadores cinematográficos”, comentou:
Está nossa capital com mais um monumento a embelezá-la e
a pátria brasileira com uma dívida de gratidão paga. O Viscon-
de de Mauá, a glória da engenharia nacional, tem desde on-
tem, na metrópole da República, a sua estátua, que é a maior
homenagem possível prestada aos seus grandes serviços à
terra em que nasceu92.

88 – Gazeta de Notícias, 23/10/1889, Visconde de Mauá, p. 1.


89 – Jornal do Commercio, 23/10/1889, Gazetilha, p. 1.
90 – Gazeta de Notícias, 22/10/1889, Visconde de Mauá, p. 1.
91 – Idem, 01/05/1910, Notas e notícias, p. 5.
92 – Idem.

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RODRIGUEZ, H. S. A formação das estradas de ferro no Rio de Janeiro: o resgate da


sua memória. Disponível em: https://books.google.com.br

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O Visconde de Mauá, do alto de seu pedestal,
observa a marcha inexorável do progresso:
o amanhã é o que se faz agora.
(Foto: Pedro Esteves)
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

1. O EMBARQUE

C erto amigo, cuja principal característica é seu esnobismo nau-


seante, costuma dizer que em lugares civilizados a temperatura só
vai até 25 graus; acima disso, pode apostar, é tempo de barbárie. Tenho
que admitir: a frase, de preconceito explícito e sem qualquer lastro de
verdade, não saía de minha cabeça. Eram nove da manhã, e, no Largo
do Machado, uma região comercial da Zona Sul carioca, na cidade do
Rio de Janeiro, a sensação térmica beirava os 35 graus. Eram apenas
nove horas da manhã! Ou melhor, oito horas, pois vigorava o horário de
verão. Os próximos dias prometiam. Tomei um café expresso, coisa que
detesto, e que me deixou ainda mais acalorada. Fiquei, então, na porta
de um supermercado malcheiroso, esperando o carro que nos levaria
a Magé, na Baixada Fluminense. Mais especificamente a Mauá, no dis-
trito de Guia de Pacobaíba, onde, há 16 décadas, o barão, que herdara da
localidade o nome, e, a meu ver, a sina também, inaugurara a primeira
ferrovia brasileira, a Estrada de Ferro Petrópolis, mais conhecida como
Estrada de Ferro Mauá.

Partimos exatamente às 9:30. Conhecia Magé de nome e má fama.


A cidade, a cerca de 60 quilômetros da capital fluminense, não rara-
mente estampa as páginas de jornais por seus imbróglios políticos (os
últimos três mandatos municipais foram interrompidos por denúncias
de falcatruas variadas), desova de cadáveres e atuação implacável de
grupos de extermínio – ou seja, me esperava a fina flor do mundo cão.
Os municípios da Baixada Fluminense também são conhecidos pelo
calor inclemente. A frase do meu amigo parecia fazer algum sentido e
entrara, de modo randômico, em minha cabeça.

Travava ainda um embate mental secundário: não sabia se pas-


sava protetor solar ou repelente. Deus me protegesse de insolação,
chikungunha; e tiro, é claro! Acabei cobrindo o corpo com os dois.
Faltava-me, contudo, um colete à prova de balas. Essa peleja mental
não durou muito. No máximo uns dez minutos. Acompanhava-me um
especialista em ferrovias, o economista e ferroviarista Antônio Pasto-
ri, a quem aproveito para agradecer a infinita generosidade. Seu dida-

118
tismo e prazer em compartilhar conhecimento foram voltando minha
atenção para o objeto da minha incursão à Baixada: traçar um esboço
de como está hoje a primeira ferrovia do país, um marco progressista,
que inseriu o país no mundo capitalista e em seu modus operandi.
Também foram elas, as ferrovias, que, ao incentivarem a expansão do
trabalho livre e da economia liberal, acabaram se transformando em
espaços importantes para que seus trabalhadores se organizassem
como classe – e como tal, se conscientizassem de seus direitos e
de sua força.

Voltemos à viagem. Depois de termos feito rápidas incursões às


estações ferroviárias de Saracuruna e de Campos Elíseos, ambas no
município de Duque de Caxias, seguimos pela BR 116. Em dado mo-
mento, Pastori nos chamou a atenção para uma placa na qual estava
escrito: “Você está cruzando a primeira estrada de ferro do Brasil.” Para-
mos. Por alguns minutos, procurei resquícios de alguma estrada de fer-
ro. Bom, sobre parte dela já sabia: estava soterrada por camadas e mais
camadas de asfalto. Alguém, em algum tempo da nossa história, ha-
via achado mais interessante plantar uma rodovia por cima da Estrada
de Ferro Mauá. Não sei qual foi a lógica, nem o objetivo, mas depois de
todas as entrevistas que fiz, dos livros que li e dos lugares que percorri,
considero que essa, definitivamente, não foi uma boa decisão.

Placa na BR 116: aviso soa como uma ironia, já que o asfalto cobre a antiga ferrovia.
(Foto: Pedro Esteves)

119
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

Procurava nas margens da rodovia, vestígios da antiga ferrovia. Pasto-


ri apontava para algumas evidências. Eu, infelizmente, não as captava
muito bem: minha atenção se voltava exclusivamente para o mato alto,
o lixo (as pessoas teimam em colocá-lo em qualquer lugar. Tragédias
por aqui não trazem aprendizado!) e os insetos. Naquele momento em
que começava a me inteirar da história da Mauá, ainda não havia apren-
dido que, quando o assunto é memória nacional, é preciso ter “olhos
de ver”. Minha cisma com Magé parecia se confirmar.

Meia hora depois, demos prosseguimento à viagem. A certa altu-


ra, embicamos por uma estrada vicinal e, de repente, o cenário mudou
completamente. Entramos em uma rodovia cercada por morros verdes,
sedes campestres bem cuidadas, de associações profissionais e árvo-
res centenárias. O caminho era emoldurado por um céu azul, desses
que se costuma chamar de “céu de brigadeiro”. O receio e o preconcei-
to começaram a dar lugar a certo encantamento. Estava na estrada que dá
acesso ao distrito de Mauá, em terras mageenses, e aquela, decididamen-
te, não era a Magé do meu imaginário. É claro que passamos por alguns
trechos menos interessantes. Sim, a cidade possui lugares e bairros feios,
quentes e inóspitos. Mas não são assim quase todas as cidades brasileiras?

PURGATÓRIO DA BELEZA E DA MEMÓRIA FERROVIÁRIA

Ao chegar à estação Guia de Pacobaíba, antiga Mauá, primeira estação


ferroviária do Brasil, deparei-me com um lugar bucólico e aprazível. Di-
ria lindo, se não fossem (mais uma vez) o mato alto, o lixo acumulado,
insetos ávidos por nos darem boas-vindas, um píer em absoluta ruína e
pichações amorosas (e outras nem tanto assim) na réplica da primeira
locomotiva a circular em solo nacional, a Baronesa. O girador de loco-
motivas e, do outro lado do terreno, a caixa d’água que abastecia os
trens a vapor, estão tão abandonados que não compõem, parecem não
ser parte da mesma história da singela estação e da Casa do Agente,
que também precisam ser efetivamente restauradas, embora tenham
sido pintadas recentemente. Isso graças ao empenho de um grupo de
ferroviaristas apaixonados (desculpem o pleonasmo: não existe fer-
roviarista que não seja apaixonado pela Estrada de Ferro Mauá. Aliás,

120
a réplica da Baronesa também é obra de um ferroviarista. Mas esse
pessoal merece um capítulo à parte).

Apesar de toda a precariedade, o cenário é idílico. Com palmeiras e


coqueiros e banquinhos. Da enseada é possível avistar morros de um
verde intenso, uma praia de águas turvas, calmas e convidativas e a ilha
de Paquetá e a Ilha do Governador, cravadas a poucos quilômetros dali,
uns 20 talvez. Sou ruim de calcular distâncias. Mas sei de uma coisa:
em seu livro Tristes trópicos, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss
comparou a baía de Guanabara a uma boca desdentada. Não a viu
de Pacobaíba.

O complexo, de quase 100 mil metros quadrados, conta ainda com


300 metros de via permanente, que sai da estação e vai a lugar algum.
Os trilhos, simples enfeites na atual conjuntura, foram refeitos em 2004,
quando a Estrada de Ferro Mauá comemorou 150 anos. Embora pu-
desse estar muito melhor conservada e sendo utilizada em prol da cul-
tura, do turismo ou da educação, a estação emana história e memória
– duas coisas que aprendemos desde cedo a não valorizar. Afinal, é ali
o marco zero das ferrovias nacionais.

AURA

Retornemos ao primeiro dia e às primeiras impressões que tive da es-


tação Mauá. Além da beleza natural, não ofuscada pelos maus-tratos,
percebe-se, logo na chegada, o que falei no parágrafo anterior: a aura
histórica e cultural do local. Outrora, rota costumeira do imperador, de
membros da Corte, de súditos abastados, escravos e outros “pés des-
calços” a caminho de Petrópolis, o local, certamente, foi cenário de con-
fabulações que levaram a decisões e fatos históricos, de conspirações
e tramoias e, obviamente, de desfiles de futilidades inofensivas. Desco-
brir que o descaso, em vários níveis públicos e privados, não embotara
a aura do Complexo Ferroviário de Guia de Pacobaíba foi uma injeção
de esperança: a memória se impunha sobre o descaso. Sentia sua força
histórica. Não, não eram delírios provocados pelo sol impiedoso.

Àquela altura, os termômetros deviam registrar uns 40 graus – à


sombra. Através da Estrada de Ferro Mauá, se pode ler e compreender

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

Estação da EFM em Guia


de Pacobaíba: descaso
não turva sua beleza,
nem diminui sua
importância histórica.
(Foto: Pedro Esteves)

122
123
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

a trajetória econômica e social de parte do Segundo Império e da Pri-


meira República, seus acertos e erros, e as consequências negativas de
uma política de mobilidade que preteriu o modal ferroviário em prol do
rodoviário. “A concepção de reativá-las [referindo-se também à Ferrovia
Grão-Pará] não é somente saudosismo. A combinação de bimodalida-
de (barca-trem) é uma eficiência de 160 anos, que foi esquecida pelos
planejadores”, explica-me Pastori, que também é, descobri em nossas
conversas, estudioso da área de mobilidade urbana.

Mas foi ali, por volta do meio-dia, que embarquei, de fato, no trem da
Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro de Petró-
polis – uma viagem com muitos solavancos, mas na qual pude avistar
um passado rico, ser testemunha de um presente de descasos, e desejar
com todas as forças um futuro melhor para aquele complexo ferroviário
de importância histórica e cultural – e fundamental para toda a economia
de uma região, para a afirmação pública de seu potencial turístico e para
a elevação da autoestima de um povo simpático e acolhedor.

Infelizmente, tenho que ressaltar que, ao longo do período em que


visitei Guia de Pacobaíba cheguei a uma triste constatação. A cada ida
à estação, encontrava mais um sinal de depredação: o mato dominando
o girador de locomotiva, a réplica da Baronesa mais amassada e muti-
lada. Numa dessas visitas, fui fazer uma inspeção na Casa do Agente,
erguida em 1916. Segundo o ferroviarista Kleber Mauá, que voluntaria-
mente tenta preservar os imóveis tombados, a parte interior do imóvel
está toda reformada.

Fui checar. Quem sabe veria algo através de uma fresta em algu-
ma janela ou porta, pois a casa encontra-se fechada. Chegamos à casa
pelos fundos. Meu Pai! Era tanto lixo, tanta sujeira, mato alto, insetos.
Escabreada, pergunto a meu cicerone: “Kleber, tem rato aqui? Só tenho
medo de rato.” Placidamente, o ferroviarista responde: “Rato não tem
não, porque as cobras comem.” Ah, tá!

É bom destacar que, em 1954, quando a Estrada de Ferro Mauá com-


pletou cem anos de vida, foi considerada Monumento Histórico Nacional
e tombada pela Secretaria de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Sphan). Atualmente, nem todos os bens estão sob a responsabilidade
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), uma

124
versão atualizada da antiga secretaria, que tem como missão preservar
o patrimônio cultural brasileiro. Mas isso é assunto para outro capítulo.

Por uma questão ética, devo ressaltar que, quando se trata de pa-
trimônio ferroviário brasileiro, apontar órgãos responsáveis por sua
preservação não é muito simples, não. É preciso ter muita cautela para
não se incorrer em erros e leviandades. Todavia, a estação e a Casa do
Agente estão sob a responsabilidade do Iphan. Questionado sobre a con-
servação da Estrada de Ferro Mauá, Bartolomeu Homem d’ El-Rei Pinto,
diretor do Museu do Trem, que pertence ao Iphan, assumiu a responsa-
bilidade, mas também mostrou as condições precárias com que o patri-
mônio ferroviário é tratado no país e sua impossibilidade como servidor
público de resolver o problema. “Como diretor do Museu do Trem, eu é
que sou o responsável. Só que eu vou à Barão de Mauá de quando em
vez, porque não dá pra ir todo dia, toda semana por n motivos. O mais
importante deles é que o Museu está aberto à visitação com apenas
dois servidores. Um está de licença [na época da entrevista, já estava
afastado há dois meses]. Estou sozinho aqui.”

ENTRE O SAGRADO E O PROFANO

Ainda naquela manhã escaldante, a da primeira visita a Magé, andava


meio nas nuvens, imaginando peças idílicas para aquele cenário tro-
pical-histórico-maravilhoso, quando personagens reais me trouxeram
de volta à realidade. A uns três metros da antiga plataforma de Paco-
baíba, uma mulher de seus 38, 40 anos, estendia sua canga, deitava-se
de bruços, ostentando um biquíni pelo menos dois números abaixo
do recomendável pelo decoro. Crianças crescidas, entre 11 e 13 anos,
a chamavam de vó. O grupo volta e meia entrava no mar, que fica a pou-
cos metros da estação.

A cena me causou uma estranheza benevolente. O lugar possui um


quê de sagrado, faz parte da memória nacional, clama por certo recato.
A paisagem ao redor, no entanto, é um convite ao profano. Imagino famílias
fazendo piqueniques embaixo das frondosas árvores que cercam a peque-
na estação; uma locomotiva partindo em direção a Piabetá com crianças
extasiadas, gritando, rindo alto; namorados sentados nos bancos que ficam

125
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

em frente à estação e às margens da baía de Guanabara, debaixo das


palmeiras e coqueiros – que foram plantados há poucos anos por um
mandato municipal, que forneceu um kit praça (é, leitor, isso existe!), aten-
dendo assim aos insistentes pedidos de ferroviaristas inconformados com
o abandono do local e o desdém com sua importância histórica e potencial
turístico. Reavalio meu pensamento anterior: profanações são em alguns
casos sagradas. De conversa em conversa, fiquei sabendo, dias depois,
que Mauá é um iminente (e eminente) balneário da Baixada.

Outro fato marcaria aquele primeiro contato com a Estrada de Ferro


Mauá. Debaixo das ruínas enferrujadas do antigo píer, ainda em Pacobaí-
ba, homens pegam pequenos peixes e moluscos. Perguntar é parte de
meu trabalho e de minha personalidade. Mas, naquele momento, reprimo
minha inata inclinação para bisbilhotice e não cumpro meu dever. Tenho
medo da resposta. Os homens me parecem extremamente miseráveis:
quem mais entraria naquelas águas que recebem todo o esgoto, in natu-
ra, da região, e ainda buscam nelas seu alimento? Não queria constrangê-
los, sentia culpa e compaixão. Apesar de não se intimidarem com minha
proximidade nem se negarem a responder o que tive coragem de pergun-
tar, nenhum dos quatro homens olhou-me nos olhos. Uma constatação
veio instantaneamente: se a ferrovia funcionasse, se todo o seu potencial
histórico-turístico, e, consequentemente, econômico fosse explorado,
aqueles homens não precisariam estar ali. Não mesmo.

Antigo píer da EFM: monumento histórico em ruínas. (Foto: Pedro Esteves)

126
Nesse primeiro dia, ficamos ali por mais ou menos umas duas horas.
A intenção era fazer o caminho da Ferrovia Grão-Pará, a qual a Estrada
de Ferro Mauá (EFM) passou a integrar em 1883. Rumamos para Pia-
betá, tentando fazer um percurso paralelo aos antigos trilhos da EFM.
Mas é difícil margear algo cuja existência só pode ser comprovada por
cravos e dormentes isolados, resquícios de pontes e pontilhões, ruínas
de estações que deixaram de funcionar há décadas e raros e curtos
trechos de via permanente. Aliás, faço aqui um registro um tanto indig-
nado: como algo que não parece ter sido muito difícil de ser surrupiado
pode ser chamado de via permanente? Bom, só sei dizer que tudo isso
está perdido no meio de um matagal que, ouvi dizer, tem até onça. Mas
nisso eu não acreditei, não.

PIABETÁ

Em um determinado local, já em Piabetá, outro bairro de Magé, e local de


outra estação da antiga EFM, vi trilhos suspensos a um metro do chão
(lembrem-se, sou ruim de cálculos). Estavam cirurgicamente cortados.
Paramos novamente. Aquilo era bem curioso e merecia, digamos, certa
investigação. Puxamos conversa com um homem que estava nas ime-
diações, tranquilamente proseando com um amigo. Ele, com a sinceri-
dade e espontaneidade do homem comum, disse que é normal cortarem
os trilhos para uso particular ( soube, por conversa corriqueira, que algu-
mas empresas e até instituições adotam a prática. Mas não confirmei
com fontes fidedignas). Conclusão: o que resta da antiga ferrovia não
deve ter vida longa. Há muito tempo a EFM passou a ser, se não a maior,
a mais acessível fornecedora de ferro e outros materiais de construção
da região. Pelo menos, foi essa a impressão que tive. O barão, famo-
so mundialmente por seus complexos empreendimentos de engenharia
ferroviária, jamais, nem em seus piores prognósticos, deve ter suposto
tal função para sua amada ferrovia.

Entramos novamente no carro e seguimos em direção à estação de


Piabetá. O trecho Piabetá – Raiz da Serra (antiga Vila Inhomirim) é o úni-
co da antiga EFM ainda em funcionamento, administrado pela Supervia,
concessionária de trens urbanos que opera na região metropolitana da

127
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

Trecho interrompido da EFM em Piabetá: corte cirúrgico dos trilhos revela


a depredação e o abandono da primeira ferrovia brasileira. (Foto: Pedro Esteves)

cidade do Rio de Janeiro. Margeando a linha, entramos na avenida Santos


Dumont, onde é possível ver um bom trecho da EFM, correndo sob árvo-
res frondosas. Mas não dura muito. Uma sinaleira antiga põe um ponto
final nos trilhos. Chegamos, nesse ponto, ao centro comercial de Piabetá.
A linha já não pode mais ser vista. Está escondida embaixo de camadas
de asfalto, sob trailers, calçadas e até de um camelódromo. Volta e meia,
vestígios de trilhos ou dormentes denunciam a sua pretérita existência.

Estacionamos o carro e a partir desse ponto passamos a seguir seu


rastro a pé, em direção à estação de Piabetá. Não chequei a hora em que
chegamos, mas me lembro de que a sensação térmica devia estar a uns 50
graus. Às vezes, minha visão ficava turva, como se visse o mundo através
de filtro azul. Que sol! Entrei pelos fundos da estação (nessas idas e vindas
a Magé, entrei muito pelos fundos). Para chegar à plataforma, fui desviando

128
de lixo, animais e mato. Na plataforma, deparei-me com garotos de 14 a 17
anos, que pareciam estar à toa. No entorno da estação, biroscas vendiam
de tudo. De uma delas, vinha uma música altíssima, um forró cantado por
uma voz esganiçada. Fiquei, por alguns segundos, um pouco atordoada.
Achei que pudesse estar ficando desidratada. Tomei uns goles d’água, res-
pirei fundo algumas vezes, e pronto: continuei o meu trabalho de observar e
captar impressões sobre a mais antiga das nossas ferrovias.

Uma mulher de seus 60 anos era a única pessoa naquela estação


que parecia estar esperando o trem. Perguntei a ela, que se abanava fre-
neticamente com uma toalhinha, os horários em que o trem costumava
passar. “Eles colocam os horários ali (apontando para o que um dia foi a
bilheteria). Mas sempre alguém pega e leva embora.” A malha ferroviá-
ria que chega até ali é a da Central do Brasil, antiga estação Dom Pedro
II, e a estação não tem bilheteiro.

Piabetá, em Magé:
camelódromo funciona,
com aval da prefeitura,
em cima da EFM.
(Foto: Pedro Esteves)

A essa altura, os meninos já me olhavam com uma certa descon-


fiança. Digamos que não simpatizaram muito comigo. Pedi licença,
educadamente, e me mandei. Achei melhor puxar conversa com comer-
ciantes e transeuntes.

Decido dar um rolé por Piabetá, antes de ir para a última estação da


EFM, Raiz da Serra. Paro no trailer de seu Sebastião Campos e dona
Neide Soares. Tomo uma água sem gás, molho os pulsos e começo a

129
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

prosear. Seu Sebastião chegou a Piabetá há 54 anos, em 1962, vindo de


Cambuci na região norte do estado do Rio de Janeiro. Veio servir o exér-
cito, gostou do lugar e ficou. Viu passarem muitos trens pelos trilhos
que atualmente estão embaixo do seu trailer. Não teme ser deslocado,
caso haja uma desocupação por conta de uma reativação. “Quem dera
que isso acontecesse. Capaz de eu não ‘panhar’ mais, por causa da ida-
de. Tô com 73 anos. Mas tenho filho, esposa”, diz.

Seu Sebastião me diz ainda que adora levar seu filho, Marquinho,
de 11 anos, para passar o dia em Guia de Pacobaíba e contar histórias
do antigo trem para o menino, que as adora. Minutos depois, chega um
curumim suado e muito bonito. É Marquinho. O pai pergunta: “Marqui-
nho, você quer que o trem volte?”. “Claro, pai!”, responde instantanea-
mente o menino.

Voltamos ao carro e passamos rapidamente por Fragoso, onde há


160 anos foi concluído o primeiro trecho da EFM. Fomos recebidos com
uma certa desconfiança pelo segurança. “Não pode filmar, nem foto-
grafar aqui. Tem que pedir autorização lá na Supervia”, disse. Resultado:
em tempos em que todos filmam e fotografam todos e tudo, saímos
sem nem um registro da estação.

Mas foquemos no que interessa: a estação encontra-se em bom es-


tado, mas definitivamente não se parece com um bem que teria sido
tombado em 1954, já que é parte integrante da EFM. Tudo parece bem
moderninho. Não entendi nada. Fiquei fazendo as seguintes elucubra-
ções: aquela estação pode não ter sido incluída no tombamento de
1954; tombamentos, como se sabe, no Brasil, não significam preser-
vação; ou ela já estava, digamos, remodelada naquela ocasião. Espe-
culações à parte, o fato é que o nome da estação não está, de maneira
explícita, na lista dos Bens Tombados e Processos de Tombamento em
Andamento nem na do Patrimônio Cultural Ferroviário. As listas estão
disponíveis no site da Instituição93. Num país desmemoriado, remontar
à história de uma pequena estação é procurar agulha no palheiro. Meio
sem sabermos o que fazer e a quem consultar, seguimos para a última
etapa da nossa incursão.

93 – http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/126.

130
Quando chegamos à Vila Inhomirim, ou Raiz da Serra, o antigo nome,
o calor já anunciava uma trégua. Deviam ser umas 15 horas e o céu es-
tava escuro, prometendo um pé d’água, o que não aconteceu. Mais uma
vez, não pudemos entrar na estação. Ficamos, então, espreitando-a
por cima do muro. Tudo parecia normal, calmo e organizado. Fiquei
pensando nas pessoas que passaram por ali, nas adversidades que os
trabalhadores que a construíram há 160 anos tiveram que enfrentar, nas
dores de cabeça que ela deu ao barão, nas chegadas e partidas, nos
choros de tristeza e de felicidade que aqueles cerca de 15 quilômetros
presenciaram (entre Guia de Pacobaíba e Raiz da Serra), nas riquezas
que transportaram. Quantas histórias! Seria possível enumerá-las? Não.
Com certeza. Aquela era a última estação da EFM, mas tomara que não
fosse o fim de linha de nossa primeira estação..

Sebastião Campos e sua mulher, Neide Soares: saudades de ver o antigo trem passar.
(Foto: Pedro Esteves)

131
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

DESCARRILAMENTOS

Para traçar um retrato atual da Estrada de Ferro Mauá, flanei pela cidade
por alguns dias. Nessas perambulações, conversei com várias pessoas.
Pude perceber, então, que existe uma grande desinformação com rela-
ção à ferrovia. Poucos sabiam que aquela tinha sido a primeira do Brasil
e a quarta da América Latina. E menos ainda o que isso representou para
o nosso país. De prosa em prosa, de causo em causo, percebi que todas
gostariam que o trem voltasse a circular. Umas porque amam esse meio
de transporte que suscita tanta poesia, mexe e remexe com o imaginário,
desperta paixões, encanta crianças e adultos; outras, por acreditar que
a reativação da linha, combinada a um projeto turístico e cultural, traria
imensos ganhos para a cidade. Entre eles, a criação de novas fontes de
receitas e empregos, expansão das já existentes e elevação da autoes-
tima de seus habitantes. Nenhum depoimento, no entanto, me impres-
sionou mais do que o do meu colega de profissão, Danilo Fernandes,
proprietário de um jornal de Magé, Enfoque.

Nosso encontro se deu absolutamente por acaso. Procurava o ferro-


viarista Kleber Mauá, que mora em Magé e é muito conhecido na região.
Como não achava sua casa, resolvi pedir informação a um grupo que
conversava nas proximidades. Apresentei-me, expliquei que procurava
pelo ferroviarista, falei do trabalho. Imediatamente Danilo, sem se apre-
sentar, foi me contando a história contemporânea do lugar.

Devo frisar que, durante o processo de apuração, conversei com vá-


rios estudiosos e amantes da Estrada de Ferro Mauá, e todos foram
extremamente generosos e pacientes. Com Danilo, não foi diferente.
O seu background como jornalista, acostumado que é a perceber o que
é informação relevante e o que não é, me ajudou a organizar, no tempo
e no espaço, uma série de informações que tinha, mas não as conse-
guia conectar.

Seu relato, conciso e objetivo, parecia sinopse de um filme de Quen-


tin Tarantino – o enredo envolvia violência, bizarrices e, se fosse fic-
ção, provavelmente seria uma comédia nonsense. Contudo, os fatos,
aparentemente incoerentes, explicavam não só as condições precárias
de nossa primeira ferrovia e do belíssimo entorno. Eles confirmavam

132
a minha suspeita de que, no Brasil, encaramos o que é público não como
sendo de todos, mas como não sendo de ninguém.

Para remontar à história da ferrovia nos últimos 18 anos, tempo em


que deixou a capital fluminense e foi morar em Magé, Danilo listava os
prefeitos e seu posicionamento com relação ao Complexo Ferroviário
de Guia de Pacobaíba. Para minha surpresa, a cidade tem sido palco de
mandatos conturbados: com prefeitos afastados por decisão judicial,
doença e cassação; vice-prefeitos que brigam com o titular e renun-
ciam; eleições suplementares e por aí vai. Enfim, não dá para entrar em
detalhes. Para explicar tanto imbróglio, teria que se escrever outro livro.
E daqueles bem grossos, com muitas e muitas páginas.

É bom frisar também que, em 1998, a prefeitura recebeu uma auto-


rização da Rede Ferroviária Federal (a RFFSA94) para usar e cuidar do
Complexo de Guia de Pacobaíba, que em parte é tombado pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 1954. Não
é de se estranhar, no entanto, que com tamanha instabilidade política,
o complexo ora funcione como moeda para compra de votos, ora esteja
à deriva, sujeito ao mais absoluto descaso. O máximo que um man-
dato fez foi uma reforma paisagística no entorno da estação, colocan-
do pedras, cravando palmeiras, coqueiros e alguns bancos e pintando
a estação e a Casa do Agente. Resultado: atualmente o complexo é ocu-
pado por cerca de 300 construções, e, a cada ano, surgem casebres
e casarões – frutos de invasões orquestradas e espontâneas, algo
comum em um país onde parcela considerável da população é ceifada
do seu direito sagrado de ter um teto para chamar de seu, e do descaso
das autoridades competentes, que preferem fazer vista grossa para as
ocupações ilegais a promover políticas e programas públicos, que, de
fato, propiciem que todos tenham acesso a um lar.

Depois de anos de ocupações sistemáticas, um prefeito recém-em-


possado, cheio de gás, decidiu tomar uma atitude, o que nesses casos
significa destruir casas que outras gestões municipais deixaram que
fossem erguidas; arruinar sonhos acalentados pelas pessoas que, em
boa parte, foram incentivadas por políticos oportunistas, que as con-
venceram a se estabelecerem ali. A ordem era limpar o terreno, o que
94 – Vamos tratar melhor da RFFSA em um capítulo adiante.

133
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

acabou não acontecendo. Não. Não foi pela intercessão divina, certa-
mente clamada pelos moradores. A interrupção da desocupação de-
veu-se, segundo Danilo, à prosaica constatação de que as invasões
eram capitaneadas por um deputado do mesmo partido do Executivo
municipal. E assim, de mandato em mandato, de eleição em eleição,
as invasões têm sido toleradas. “Quem poderia se responsabilizar pelas
remoções tem medo de levar o troco nas urnas”, me afirmou Danilo.

Por isso, as invasões seguem aumentando. E a barafunda também.


Por ser uma área de preservação ambiental – isso mesmo, o Complexo
de Guia de Pacobaíba também é parte de uma reserva ambiental –, é
necessário que a prefeitura de Magé autorize os moradores a colocarem
relógio de luz. A prefeitura, no entanto, não emite tal documento, visto
que não pode validar o que é ilegal. Também não pode iluminar as ruas.
O que se vê, então, é um emaranhado de fios, que chega a amedrontar.

Dias depois da minha primeira incursão à Guia de Pacobaíba, fui


conferir o que Danilo relatara. Foi um teste de coragem. Era fim de tarde
e se armava no céu um temporal daqueles. Embrenhei-me, ciceroneada
por Kleber Mauá, nas ruas de terra do complexo. Passava por baixo das
teias ilegais de fios elétricos numa velocidade que só o medo é capaz
de impulsionar. Vai que um deles se rompe, entra em curto-circuito. Sei
lá. De vez em quando, me deparava com um poste improvisado. Para
ser mais precisa: com um pedaço de madeira de uns três ou quatro me-
tros com uma lâmpada fluorescente pendurada. Mas isso não é muito
comum, não. Ou seja, as casas têm luz, de forma precária e ilegal, mas
têm. Para chegar até elas, no entanto, seus moradores têm que enfren-
tar o breu e seus percalços. Consta, segundo outra fonte com quem
conversei, que nas imediações da estação são comuns o comércio e
o consumo de drogas. Mas me faltou, digamos, tempo para checar.

Outro fato costumeiro, segundo Danilo, é a estratégia de construir al-


guma igreja evangélica no local. “O fato de ser igreja sensibiliza. Depois,
aquilo vai virando casas”, me explica. A prática é frequente, e como jor-
nalista, meu colega sentia-se no dever de denunciá-la para que fossem
tomadas providências. Certo dia, um amigo lhe aconselhou que parasse
urgentemente com as reportagens: o pastor, líder de uma dessas igre-
jas, era um miliciano. Danilo corria o sério risco de virar estatística. Juro:

134
gostaria de colocar aqui aquele emoji do apavorado. Faltam-me pala-
vras. Pastor miliciano? É Tarantino em estado puro.

Danilo tem histórias para dar, vender e emprestar sobre o Complexo


Ferroviário de Guia de Pacobaíba. Vida de jornalista é assim. A gente
procura. Logo, acha muitas histórias. Esta, no entanto, foi ao seu encon-
tro, sem que ele a procurasse. Em 2014, o secretário de Turismo do es-
tado do Rio do Janeiro visitou Magé. Declarou-se, na ocasião, impres-
sionado com a beleza da região e seu potencial turístico inexplorado.
Prometeu então corrigir o que chamou de “um erro histórico”. Lutaria
para inserir o município no calendário e roteiro turísticos do estado e
a primeira providência seria revitalizar o Complexo Ferroviário de Guia
de Pacobaíba. Uma das medidas seria construir o Memorial do Trem
no local. Para isso, garantia, buscaria recursos no Ministério do Turismo.

Os preservacionistas e amantes da Estrada de Ferro Mauá não se


empolgaram. Estão calejados, cansados de promessas vãs, que se per-
dem no vácuo entre as conversas e a sua concretização. Para surpresa
de todos, no entanto, poucos dias depois baixava em terras mageen-
ses – pasmem – o ministro do Turismo. Queria conhecer as belezas
da região e o complexo ferroviário. Resumindo: mais um forasteiro, que,
como eu, se encantara por Guia de Pacobaíba.

Saiu prometendo verbas para a tão desejada revitalização. E cum-


priu. Contrariando os céticos prognósticos, em janeiro de 2015, apenas
cinco meses após a ilustre visita, a prefeitura de Magé foi informada
que uma verba de um milhão de reais havia sido depositada na Caixa
Econômica Federal (CEF) para a construção do memorial. Para resgatar
o montante, seria preciso cumprir algumas exigências, que consistiam
em apresentar o projeto do memorial e mais uns trinta documentos.

Acostumados ao bom combate e considerando que teriam quase


oito meses pela frente para apresentar a papelada, começaram a acre-
ditar que – finalmente – o sonho de ferroviaristas, preservacionistas e
amantes de Magé se concretizaria. Iriam à luta. Mas não contavam com
o insólito. Numa segunda reunião com a Caixa Econômica Federal, cujo
objetivo inicial era apenas realizar uma avaliação prévia da documenta-
ção, a Secretaria de Turismo de Magé foi comunicada de que não rece-
beriam mais a verba. A Secretaria Estadual de Turismo não apresentara

135
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

o termo de Emissão Provisória da Posse do Complexo de Guia de Paco-


baíba. E, por esse motivo, a verba havia retornado a Brasília.

De verdade, o que mais me impressiona nessa história toda é a per-


sistência dos que amam a EFM. Lembrei-me de uma conversa que havia
tido uns dias antes com Bartolomeu Homem d’El-Rei Pinto sobre a bu-
rocracia e a ingerência de muitas instituições sobre o Complexo de Guia
de Pacobaíba. Na ocasião, o diretor do Museu do Trem me falou ainda
um pouco sobre a sobreposição de responsabilidades que alguns trechos
têm, tanto de órgãos federais quanto de esferas governamentais (munici-
pal, estadual e federal). Vou falar disso mais à frente. Posso adiantar uma
coisa: coloque ao seu lado lápis e papel. Você vai precisar desenhar para
não se perder. Foi isso que tive que fazer para conseguir entender.

BREVE HISTÓRIA DE UM OCASO

Em minhas andanças para redescobrir a Estrada de Ferro Mauá, acabei


trombando com uma obviedade, de que, por ser leiga, e este assunto
nunca ter estado na pauta das minhas preocupações, nem suspeitava:
a história das nossas ferrovias é também a história dos últimos 160 anos
do Brasil. Simples assim. Em cada linha erradicada ou criada; em cada
estação e trilhos abandonados; em cada tecnologia adquirida; em cada
vagão refrigerado ou locomotiva sucateada estão impressos os avanços,
retrocessos, percalços e tendências da economia e da política nacionais.

Neles, também estão evidenciados o que entendemos por mobili-


dade urbana e o respeito que temos (ou melhor, que não temos) pela
memória do nosso país e pelo meio ambiente. “A gente sofre com essa
coisa de a estrada de ferro estar abandonada. Em Portugal, a estrada
de ferro está funcionando até hoje. E ela só é dois anos mais nova que
a daqui. A da Etiópia, de 1878, com todos os problemas do país, ainda
está funcionando. A de Banguecoque, de 1869, funciona até hoje. A do
Japão, de 1872, que corta a ilha de norte a sul, ainda está funcionando.
Enquanto a nossa tem boi na linha, literalmente, na do Japão anda hoje
um trem-bala”, lamenta Eduardo André Chaves Nedehf, tetraneto do Ba-
rão de Mauá. Detalhe importantíssimo: todas essas estradas de ferro
citadas por Eduardo têm a participação de investimento feito por Mauá.

136
Era importante, para mim, tentar entender por que, na contramão da
Europa e também dos Estados Unidos, o trem (e aqui incluo também me-
trô, veículos leves sobre trilho e bondes) não se constitui, no Brasil, em um
modal de transporte sequer importante. Intrigava-me mais ainda a não
opção por ferrovias, uma vez que países continentais como o nosso são
naturalmente aptos e vocacionados para o transporte ferroviário, ideal
para médias e longas distâncias. E isso é ponto pacífico. Decididamente,
faltava alguma informação importante para aquilo fazer sentido.

TOMANDO PARTIDO

Para descobrir onde descarrilamos, não procurei livros, nem jornais an-
tigos, muito menos consultei documentos empoeirados em arquivos
públicos. Nem me preocupei com o macrouniverso. Se eu conseguis-
se entender por que abandonaram a nossa primeira ferrovia, cujo valor
histórico e o potencial turístico são inestimáveis, poderia, através do
microuniverso, tentar entender um megaerro. Pensando assim, fui atrás
de ferroviários, ferroviaristas, engenheiros da RFFSA, economistas, mo-
radores de Magé e sindicalistas. Interessava-me a impressão das pes-
soas sobre o que havia se passado com a Estrada de Ferro Mauá, queria
saber a opinião de quem a ama e quer vê-la reativada.

Sim, estou sendo tendenciosa. Embora haja muitas controvérsias


sobre a saúde financeira da Mauá mesmo em seu apogeu, optei pela
versão que aponta para o sucesso do empreendimento durante uma
fase. Faço isso não por parcialidade, mas para ser, de certo modo, jus-
ta: cifras e números são importantes para qualquer iniciativa. Quando
se trata da Mauá, temos que considerá-la para além desse enfoque.
“É o resgate do patrimônio cultural brasileiro. No Segundo Império, foi
pleiteado que nas terras de Magé fosse construída a primeira estra-
da de ferro do Brasil, a quarta da América do Sul. É o resgate de um
monumento histórico, turístico e cultural. Essa é a nossa luta”, fala,
de maneira apaixonada, Hélio Suêvo, ferroviarista, engenheiro ferroviário
e idealizador de uma proposta para reativar a EFM.

Suêvo é também autor do livro A formação das estradas de ferro no


Rio de Janeiro: o resgate de sua memória. Nele, Suêvo relata:

137
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

Logo nos primeiros tempos, a ferrovia apresentou grandes


resultados em sua arrecadação. Em 1855, a EFM transportou
658.600 passageiros e 3.680.000 arrobas de produtos agrícolas,
das quais 2.200.000 arrobas de café. Em 1860, a receita atingiu
11% do capital empregado. Basicamente até o ano de 1867, a Es-
trada de Ferro Mauá obteve lucros, e apenas após a construção
da Estrada de Ferro D. Pedro II e da Rodovia União Indústria regis-
trou-se um progressivo declínio nas suas atividades, em conse-
quência da transferência de cargas para os novos concorrentes95.

Com a falência do barão e de sua ferrovia, a solução foi vendê-la, o que


levou o governo imperial a aprovar, em 4 de julho de 1883, o contrato de
venda de todo o material, linhas e estações para a Companhia Estrada
de Ferro Príncipe do Grão-Pará, a qual recebeu todos os direitos da Mauá.

Salto então para 1926. Com a inauguração da estação Barão de


Mauá, em São Cristovão, na cidade do Rio de Janeiro, cuja linha iria
até Piabetá, bairro de Magé, e de lá faria a integração para Petrópolis,
a EFM começa a descer a ladeira. A travessia de barco foi eliminada, a
EFM passou à condição de ramal e a só transportar passageiros. Onze
anos mais tarde, em 1937, a EFM sofre novo golpe: o trecho Mauá-Fra-
goso foi desativado.

Em 1954, quando completou seu primeiro século de vida, a Estrada


de Ferro Mauá foi tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional. Isso,
no entanto, não fez muita diferença. O descaso continuou firme e forte.
Além do desprezo recorrente à memória, o transporte ferroviário no Bra-
sil já vinha em declínio desde a década de 1940. Em 1962, foi a vez de
o serviço de passageiros entre Bongaba e Guia de Pacobaíba (a Estrada
de Ferro Mauá passou a se chamar Guia de Pacobaíba em 1945) ser
extinto. Os cuidados com essa relíquia ferroviária sempre foram precá-
rios, mas, como dizem por aí, nada é tão ruim que não possa piorar. E foi
o que aconteceu nos últimos 50 anos, que foram ainda piores para seu
patrimônio. E, pouco importa, se o complexo é tombado ou não: desca-
so não respeita decretos.

95 –Suêvo, H. A formação das estradas de ferro no Rio de Janeiro: o resgate de sua


memória, p. 18.

138
SAINDO DE VEZ DOS TRILHOS

A partir das décadas de 1960 e 1970, começaria um período de grandes tur-


bulências não só para a Mauá. O sindicato dos ferroviários era um dos mais
combativos; quando queriam, paravam o país. A categoria tinha uma força
como poucas na história do movimento sindical do país. Vivíamos os “anos de
chumbo”. E os militares não tinham a menor simpatia pelos ferroviários. Com
isso, paulatinamente a Rede Ferroviária Federal (RFFSA), à qual a EFM foi incor-
porada em 1957, vai sendo sucateada. A EFM, então, nem pensar. Ficou à deriva.

Para se ter uma ideia, numa incursão, para conhecermos parte do


trajeto da antiga Grão-Pará (a que adquiriu a EFM), pude constatar
como o patrimônio ferroviário havia sido vilipendiado. Algumas vezes,
de forma absurdamente criativa. Parece um paradoxo. Não é. É possível
ser criativamente desrespeitoso com um bem que é de todos nós.

A verdade é que as pessoas, se não com o aval de prefeituras e outros


órgãos, mas com sua permissividade, foram fazendo gambiarras arquite-
tônicas, com estações, plataformas, casas do agente, encontrando funcio-
nalidades para tudo o que foi abandonado à própria sorte no trecho entre
Raiz da Serra e Petrópolis. Assim, portas viraram mesas, trilhos foram con-
vertidos em móveis, sinaleiras em colunas de sustentação. E por aí. Juro:
vi um puxadinho, com partes de uma antiga estação, que me lembrou as
construções projetadas pelo famoso arquiteto catalão Antoni Gaudí.

A EFM teve seus espasmos preservacionistas – o primeiro, em 1974,


e o outro em 2004. No melhor estilo “para inglês ver”, as estações fo-
ram reformadas (ou teriam sido apenas maquiadas?) para a comemo-
ração dos 120 e 150 anos, respectivamente, de sua inauguração. Em
1974, chegou-se a instalar um Museu Ferroviário no local. Durou pouco.
Em 1977, suas portas foram fechadas e o acervo, recolhido. O motivo
alegado na ocasião foi falta de segurança. Como não basta restaurar,
a conservação do patrimônio tem que ser permanente, e em pouco
tempo o lugar já apresentava sinais de deterioração.

Seguindo nos trilhos do tempo, em 1982, me deparei com outro revés.


A linha Bongaba–Piabetá foi suspensa – mais uma vítima de uma políti-
ca federal de desativar trechos deficitários. “Em nenhum lugar do mundo
a passagem cobrada para transportar pessoas, no modal marítimo ou fer-

139
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

roviário, dá lucro. Por isso, em todo lugar do mundo as passagens são sub-
sidiadas pelo governo. Isso até hoje”, explica Bartolomeu d’El-Rei Homem
Pinto ao ser questionado por mim pela opção do Brasil em preterir suas
ferrovias sob o argumento de que elas eram financeiramente inviáveis.

Na década seguinte, mais precisamente em 1998, a RFFSA, já com


seus dias contados, firmou contrato com a prefeitura de Magé, no qual
lhe concedia o direito de uso para instalar um empreendimento comer-
cial de reurbanização e preservação de uma área de 74 mil quadrados,
vizinha à estação de Guia de Pacobaíba. O documento previa ainda a ex-
ploração da área contígua à faixa de segurança da Estrada de Ferro
Mauá, entre as estações de Guia de Pacobaíba e Piabetá. “O documen-
to definia as atribuições e responsabilidades da rede e da prefeitura
de Magé. E uma das atribuições [da prefeitura] era fiscalizar a faixa
da antiga estrada de ferro. E a prefeitura não fez isso. Como também
a Rede Ferroviária não fez a parte dela. Nenhum dos atores cumpriu
suas responsabilidades”, lamenta Suêvo.

Ainda segundo Suêvo, em 17 de dezembro de 1999, a RFFSA entrou


em liquidação e perdeu o controle sobre o seu patrimônio, que naquela
época “já sofre invasões e grande processo de deterioração”96. Suêvo
escreveu isso em 2004. Passados doze anos, as coisas só pioraram.
E, por tudo o que vimos em Guia de Pacobaíba, se nada for feito urgen-
temente, a situação se agravará. E muito.
Casa na serra de
Petrópolis: detalhes
revelam se tratar,
na realidade, de
uma antiga estação
da Estrada de Ferro
Príncipe do Grão-
Pará. (Foto: Pedro
Esteves)

96 – Idem, p. 19.

140
2. FERROVIÁRIOS, GRAÇAS A DEUS!

A o receber a missão de traçar um esboço do que é a Estrada de


Ferro Mauá nos dias atuais, não imaginei que fosse esbarrar em
minha própria história – sou filha, neta, sobrinha e prima de ferroviários.
Nunca também tinha feito uma conexão simples, óbvia vista de hoje:
todos os meus familiares tinham uma segunda família – a “família fer-
roviária”, colegas e amigos com quem dividiam crenças, valores, risadas
e, principalmente, seu amor incondicional pelas ferrovias brasileiras. Era
um grupo coeso, que, como toda família, tinha seus embates, mas na
hora h formavam uma rede de proteção incrível.

No livro Batistinha: o combatente dos trilhos, texto compilado de uma


entrevista concedida ao Centro de Memória Ferroviário, o líder sindical
e ex-deputado federal Demisthócledes Baptista da Silva, assassinado
em 1983, ao responder se já tinha colocado muita gente para trabalhar
na rede, porque muitos diziam que estavam na rede por causa dele, diz:

Não, nunca empreguei. O que houve foi o seguinte: criei com


a direção da rede um acordo no qual só entravam na empresa fi-
lhos e parentes de ferroviário. Este regulamento deu problemas,
inclusive com o Partido Comunista, porque em determinada época
eles queriam indicar gente. O Hércules Correa era deputado e para
ele ganhar a Mesa da Assembleia teria que fazer esta negociata
com os outros deputados, que indicariam pessoas... Falei para ele
que aqui na rede, não. Em consequência, passaram a dizer que ha-
via o PCL – Partido Comunista da Leopoldina, que era o nosso!)97.

Detalhe importante: Batistinha era filho de ferroviário. Mais que ser


um incentivo, uma benesse trabalhista ou uma regra nepotista, esse
regulamento – me parece – seria uma forma de dar continuidade à “fa-
mília”, fortalecendo laços de amizade, como em uma relação de com-
padrio. O fato é que havia entre os ferroviários um sentido profundo de
irmandade que ultrapassava as questões de consanguinidade.

97 – FIGUEIREDO, B. G. (org.) Batistinha: o combatente dos trilhos, p. 29.

141
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

Havia também, nos homens de minha família, só consigo ver isso hoje,
um senso político avançado. Numa época em que ninguém falava em
sindicatos e política, meus parentes discutiam, é verdade que baixinho,
fatos da política nacional. Isso nos anos 1970. Hoje sei: os ferroviários, de
modo geral, e alguns, em particular, participaram ativamente de muitos
momentos importantes de nossa história. Não tinha como ser ferroviário
e, ao mesmo tempo, alienado político. Desculpe-me, leitor, se o termo pa-
rece muito anacrônico. Não encontro outro mais preciso. Com as mídias
sociais, e a proteção física e até mesmo o anonimato que elas propiciam,
todos parecem politizados. Não era assim nas décadas de 1960, 1970 e
até em meados de 1980.

Lembro-me também de que a Leopoldina98, assim a chamavam,


era tema de almoços e jantares; motivos de brigas e gargalhadas. E
como tinham histórias pra contar! Meu Deus! Tudo acontecia naque-
le universo. Quando criança, não entendia muito bem as figuras de
linguagem utilizadas. Eram muitas metáforas e ironias. Mas perce-
bia que entre meu pai e meu avô havia uma tensão, uma pendência
– parece-me, não sei ao certo, pois os dois já faleceram. Aliás, meu
pai falava que os ferroviários morriam logo que se aposentavam. Pelo
menos, com ele foi assim.

Mas voltando à pendenga, consta que meu avô suspeitava do


meu pai, achava que ele tinha um quê de subversivo. Meu pai partici-
pava do sindicato e exaltava pessoas que meu avô via com reservas.
Ouvi meu pai falar muitas vezes num tal de Batistinha, a quem seria
apresentada muito mais tarde, quando entrei na faculdade em 1986.
Hoje compreendo que havia diferenças ideológicas abissais entre
aqueles dois homens, mas que também existia um elo em comum –
ambos eram apaixonados pela tal Leopoldina, que achavam que era
uma homenagem à imperatriz. Descobri, neste trabalho, que o nome
se refere à cidade de Leopoldina, em Minas Gerais, um dos berços da
dita ferrovia.

98 – Companhia Estrada de Ferro Leopoldina, cujo primeiro trecho foi inaugurado


em 1874. Ao longo de sua história, incorporou várias linhas estaduais e privadas,
entre elas a Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará.

142
SEM PERDER UM DIA DE TRABALHO

Entendi um pouco dessa segunda família dos homens de minha casa,


conversando com alguns ferroviários. Um deles foi o seu Etiene Noguei-
ra, de 78 anos. Encontramo-nos em um bar do sobrinho em Piabetá,
Magé, onde o ferroviário bate ponto todos os dias, de manhã e à tarde.
Seu Etiene, no melhor estilo Minas Gerais (nasceu em Palma, na Zona
da Mata), não é do tipo falante. Entre um copo de cerveja e outro, vai
respondendo mineiramente às minhas perguntas. Só se torna menos
sucinto quando pergunto se sente saudades de algo do tempo em que
trabalhava. “Ah! Dos meus colegas de serviço. A categoria era muito
unida. Era legal pra caramba. Trabalhava com prazer mesmo”, responde
sem hesitar, comprovando a minha tese da irmandade ferroviária.

Provoco-o, lembrando que, em 1964, no golpe militar, os ferroviá-


rios eram muito combativos e, por isso, alguns foram perseguidos.
Questiono-o sobre se não havia dedo-duro entre os colegas. “Vi mui-
to ferroviário ser perseguido. Mas não tinha dedo-duro, não. No meu
tempo, não”, afirma categoricamente.

Aos poucos, no entanto, seu Etiene vai ficando mais à vontade, reve-
lando seu amor e dedicação à companhia na qual trabalhou por 31 anos.
“Eu não perdia um dia de serviço. Trabalhei esse tempo todo sem perder
um dia de serviço na rede! Eu me aposentei em 1991, sem perder um
dia de serviço. Graças a Deus! Eu gostava muito, minha filha. Poxa! Mas
naquele tempo a gente tinha valor na rede. Vou falar o português claro:
o patrão hoje não dá valor ao empregado”, me diz.

Pergunto, então, se não faltou nem no dia do nascimento de sua úni-


ca filha, hoje com 50 anos. “Não. Deve de ter calhado [o nascimento da
filha] na minha folga, né?”, fala, soltando uma gargalhada. Provoco-o
novamente, insinuando que os problemas só aconteciam na folga. “É”,
responde concisamente. Como venho de uma tribo de ferroviários, des-
confio da resposta. Meu pai não esteve presente no nascimento de ne-
nhum de seus quatro filhos. Não porque não os amasse e os desejasse,
ele era um pai muito amoroso, mas suas obrigações com a Leopoldina
se sobrepunham às de pai, de marido e a qualquer outra. Era inimaginá-
vel faltar ao serviço.

143
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

Seu Etiene entrou na rede em 1961, foi praticante, auxiliar e agente


de estação. Sua primeira lotação foi em Vila Inhomirim, onde ficou por
apenas um ano. Depois foi transferido para Piabetá, trabalhando ali por
uma década. O tempo restante foi lotado em Saracuruna (bairro de Du-
que de Caxias, na região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro).
Lembra-se bem dos tempos em que os trens iam e vinham de Guia de
Pacobaíba. “Às 7:30, saía [o trem] de Vila Inhomirim e ia pra Guia e Mauá,
voltava às dez horas. Aí, voltava à tarde, às cinco horas pra Guia outra
vez. Isso de 1960 pra cá. Quando eu entrei na estrada, já tava funcionan-
do. Eram passageiros e os peixeiros. Aqui não tem peixaria, não. Os pei-
xes vinham no trem pra aqui de manhã. Eles traziam os peixes pra vender
aqui em Piabetá. Não tinha bagagem, não”.

Pergunto sobre o mau cheiro que peixes costumam deixar (me pa-
receu que aquele trem era uma espécie de peixaria ambulante). “Eram
aqueles trens de madeira, do tempo antigo, ninguém ligava, não”, me
responde. Os tempos eram outros, e os hábitos e exigências também.
Com certeza! O aposentado me conta também das filas enormes que
se formavam na estação Piabetá. “Vinham até aqui (estávamos mais ou
menos a uns 300 metros da estação). Com a baldeação em Saracuruna,
o pessoal prefere ir de ônibus. Hoje não tem mais nada. Descem dois,
três trens de manhã e vão até Saracurana só, antigamente ia até Barão
[de Mauá, em São Cristóvão, bairro carioca]”. Seu Etiene não chegou
a ir a Guia de Pacobaiba a trabalho, mas frequentava o lugar e lamenta
o rumo que a primeira ferrovia tomou. “Eu ia lá pescar. Agora tá tudo
cheio de mato. Seria uma maravilha [se a reativassem]. Mas teria que ter
um ministrozinho forte mesmo. Porque é uma mixaria pra gastar, é pou-
ca coisa. Uns 10 quilômetros só”. Pena que nem todos pensem assim.

TESTEMUNHA OCULAR E AUDITIVA DA HISTÓRIA

Outro entrevistado que me chamou a atenção foi seu Raymundo Neves


de Araújo, 86 anos de vigor e energia, ferroviário até o último fio do cabe-
lo. Na segunda frase que trocamos, ele já foi dizendo: “Tive a felicidade
de entrar na Leopoldina em 1955. De lá pra cá, eu tenho viajado muito
por toda a ferrovia. Conheço todo o trecho. Às vezes, fico até admirado

144
de ver como é que pode acabar com uma coisa tão linda igual à que nós
tínhamos. O país precisa do transporte ferroviário. Trabalhamos tanto
para conservar uma coisa. E agora está tudo esfacelado”, me declarou.

Não restavam dúvidas: estava diante de mais um apaixonado inve-


terado, que mesmo tendo saído da RFFSA há cerca de trinta anos, não
deixou de batalhar pelos interesses não só dos ferroviários, mas também
das ferrovias nacionais. Quando se tem uma causa para lutar, a energia
física e mental parece se renovar a cada dia, penso, impressionada com
a vitalidade do entrevistado, que a certa altura me conta com um sorriso
nos lábios: “Ontem [domingo] levei sete pessoas da família num Santa Fé
[utilitário esportivo da Hyundai] para visitar meu primo em Vista Alegre
[subúrbio do Rio]. Venho trabalhar todos os dias dirigindo.” Cerca de 35
quilômetros separam Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, onde mora,
de São Cristóvão, Zona Central carioca, bairro em que trabalha.

Seu Raymundo, que entrou como auxiliar de trem e chegou a super-


visor, passando por quase todas as categorias, há 16 anos é presidente
da Associação Mútua Auxiliadora dos Empregados da Estrada de Fer-
ro Leopoldina, a mais antiga associação trabalhista do Brasil, que, em
2017, completará seu primeiro centenário. Viaja com frequência para
seminários, debates, eventos, participa de audiências públicas no Con-
gresso Nacional – tudo isso sempre relacionado à questão ferroviária.

Seu Raymundo sempre foi lotado na estação Barão de Mauá, mas,


em função de seu trabalho, cruzou várias ferrovias, inclusive a própria
Estrada de Ferro Mauá. “Fui a Mauá com a inspeção, entre 1967 ou
1968. Não me lembro muito bem. Mas fui com o trem de inspeção [que
consistia em um vagão, com limpa-trilhos, empurrado por uma locomo-
tiva. Seu objetivo é levar a administração para inspecionar os trechos].
Ia como guarda-salão”, lembra.

Aliás, foi como guarda-salão que seu Raymundo presenciou uma


conversa emblemática entre Mario Andreazza (ministro dos Transpor-
tes nos governos Costa e Silva e Médici) e Camilo Cola, dono da Viação
Itapemirim. “Eu vi uma negociação do ministro Andreazza com o dono
da Itapemirim para tirar os trens de Vitória. Eu ouvi! Eles estavam al-
moçando, contando histórias, e eu com a antena ligada. Era uma via-
gem de inspeção para Vitória, para inaugurar o porto de Tubarão. Foram

145
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

o repórter Amaral Neto, Andreazza e mais algumas pessoas. Quando


chegou lá em Vitória, ele [o ministro] foi convidado para almoçar. A tri-
pulação também foi para o restaurante. Eles sentaram em uma mesa, e
nós, em outra. Então, o Camilo Cola botou a mão no ombro do ministro
e falou assim: ‘Ministro, quando vocês vão tirar essas porcarias daqui
pra eu botar meus ônibus?’ O Andreazza só respondeu: ‘Breve.’ Depois
de três anos, o trem saiu mesmo. E ele [Camilo Cola] botou 16 carros
na linha de Campos a Cachoeiro [do Itapemerim]”, conta.

De acordo com seu Raymundo, é falácia essa história de que os


trens eram deficitários. Segundo o ferroviário, a estação Bongaba, por
exemplo, era muito ativa e funcionava como um entroncamento de li-
nhas. Nela, passavam os trens que iam de Petrópolis a Mauá e do Rio de
Janeiro com destino a Campos e Cachoeiro do Itapemirim. “Só de carga
passavam uns três ou quatro trens indo e uns três ou quatro voltando
todos os dias”.

Seu Raymundo, que é filho de ferroviário e três de seus filhos tam-


bém trabalharam na rede, entrou na empresa, quando ela ainda per-
tencia aos ingleses, antes de integrar a Rede Ferroviária Federal. Mas,
como se sabe, nos anos 1950, já havia uma clara política pela adoção do
transporte rodoviário em detrimento do ferroviário. No entanto, ele diz
ter vivido algo bem diferente do que dizem e não concorda que trans-
porte de passageiros não tenha dado lucros para as ferrovias. “Chega-
mos a sair daqui, da estação Barão de Mauá, pra ir pra Vitória com 2 mil
passageiros. Fim de ano e Carnaval, a gente botava trem extra”, afirma.

O presidente da Mútua tem muitas histórias para contar. Os ferro-


viários sempre têm. Outro caso bastante curioso relatado por seu Ray-
mundo, e que mostra o espírito aguerrido dos ferroviários, também foi
protagonizado por outro ministro dos Transportes da ditadura militar,
Juarez Távora (1964 a 1967). De acordo com seu Raymundo, o minis-
tro tinha raiva dos ferroviários. O motivo seria uma visita de inspeção
a uma oficina ferroviária em Macaé, no estado do Rio de Janeiro. “Quan-
do ele fez o discurso dele, um ferroviário jogou uma estopa molhada de
óleo em cima dele. Sujou ele todinho. Ele limpou com a mão e disse:
‘Isso não vai ficar assim.’ Foi nossa perdição ali. Começou a acabar com
tudo”, recorda-se.

146
O ferroviário viu e viveu também momentos mais gloriosos em sua
vida profissional. Em 1960, quando a nova capital do Brasil foi inaugura-
da, seu Raymundo integrava a tripulação do primeiro trem que chegou
a Brasília, depois de cruzar alguns estados e várias cidades. “Entrei com
o primeiro trem em Brasília, levando a imagem de Nossa Senhora Apare-
cida, a Padroeira do Brasil, que a vida toda ficou na [estação] Dom Pedro II.
Passamos por várias estações, parando e fazendo uma visitação”, conta.

GREVES E LUTA PELA CATEGORIA

Em nossa conversa, que durou exatos 48 minutos, seu Raymundo re-


monta ainda à participação dos ferroviários, ele incluído, no Trem da Le-
galidade. A Campanha da Legalidade foi uma mobilização civil e militar
que defendia a posse do vice-presidente João Goulart, após a renún-
cia do presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, enquan-
to alguns setores, notadamente militares afinados com o pensamento
conservador e que o consideravam comunista, queriam o rompimento
da ordem constitucional.

Esse é considerado um dos momentos de maior instabilidade polí-


tica da história brasileira – e os ferroviários e seu Raymundo estavam
lá. “O Jango era muito do lado do trabalhador. E eles não queriam que
ele assumisse. Tínhamos um sindicato bem forte, organizado, uma
federação livre de cabresto. Fizemos uma greve nacional: enquanto o
presidente João Goulart não tomasse posse, a gente não voltava para
o serviço. Ficamos 12 dias parados: avião não subia, navio não saía,
ônibus não carregava gente”.

Seu Raymundo continua na batalha, firme e forte. Atualmente, uma


de suas muitas frentes de atuação é lutar pela revitalização da estação
Barão de Mauá, em São Cristóvão, na cidade do Rio, que se encontra
em estado de completo abandono. De acordo com seu Raymundo, uma
comissão formada por várias entidades entrou na justiça e conseguiu
o que pleiteava. A 20ª Vara Federal do Rio condenou a concessionária
que opera os trens no Rio de Janeiro, e que seria responsável pela ma-
nutenção da estação, a reparar e restaurar os danos da antiga estação
da Leopoldina, patrimônio cultural e histórico. Caso não inicie as obras,

147
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

a concessionária estará sujeita a uma multa diária de R$ 30 mil. “Eu vou


passar em vida a reinauguração da Barão de Mauá”, diz confiante. Se
depender da vitalidade de seu Raymundo e da nossa torcida, seu sonho
será realizado – e muito em breve.

COM MUITO ORGULHO E LUTA

Há profissões que se agregam à personalidade de seus trabalhadores e


parecem não sair deles nunca mais. É o caso dos ferroviários. Conversei
com muitas pessoas, ferroviários ou não, e nenhuma delas se referiu
a um antigo profissional da rede como ex-ferroviário, nem mesmo como
ferroviário aposentado. O tratamento é um só: ferroviário, como se
a pessoa ainda estivesse na ativa. Nem mesmo em uma associação de
aposentados, que visitei e na qual proseei com muitos deles, alguém se
referiu aos antigos empregados da rede como ex-ferroviários.

Não foi diferente com Isabel Cristina Junqueira de Andréa, presiden-


te da Associação dos Engenheiros Ferroviários (Aenfer). A entidade tem
entre seus objetivos defender a classe ferroviária, os destinos da fer-
rovia nacional e a preservação de sua memória histórica. Inicialmente
abrigava apenas engenheiros. Hoje, no entanto, é aberta a outras pro-
fissões. Isabel é engenheira, trabalhou na RFFSA, de 1974 a 2003, e tem
uma irmã que é ferroviária.

Numa empresa eminentemente masculina, não dava para fugir, em


nossa entrevista, da questão de gênero. E foi mais ou menos assim que
começou nosso papo. Isabel, sem nenhum resquício de ressentimento,
lembra-se de que os chefes ficavam receosos de delegar a ela determina-
das atividades. “Quando eu entrei, meu chefe não queria me mandar para
o trecho, mas eu queria ir ao trecho. Depois, com o tempo, acabou esse
tabu e a gente fazia inspeção de linha e tudo isso”, conta Isabel. Fico com
a impressão de que, independentemente de sexo, ferroviários gostam da
lida e da luta. Isabel, uma senhora, plácida e elegante, não é diferente.

Parto, então, para outra pergunta de praxe: quero saber a razão, o


porquê desse orgulho de ser ferroviário, que parece só aumentar com
o tempo. “Não sei explicar. A gente veste a camisa da empresa. É uma
coisa! A ferrovia é tão maltratada e a gente continua tendo esse orgulho

148
e querendo que tenha o lugar que ela deveria ter aqui no Brasil. Os fer-
roviários sempre foram combativos. A gente não desiste dessa causa.
A gente tomou isso como uma causa nossa: lutar sempre pela ferrovia”.

É fácil entender tamanho orgulho. Além dos bons salários, da força


política e sindical da categoria, a RFFSA, com todos os maus-tratos que
sofreu por anos a fio, com erradicação de linhas, sucateamento do ma-
terial rodante e por aí vai, ainda mostrava, nos anos 1970, década em
que Isabel ingressou na rede, uma pujança invejável e até hoje ímpar.
“Nós (a Divisão Especial do Subúrbio do Rio, que pertencia à rede) já
chegamos a transportar para o subúrbio 1,2 milhão de passageiros/dia.
Nenhuma concessionária, eu acho, bateu até agora essa marca. Não
sei precisar o ano, mas era o ano que o coronel Weber era o chefe da
Divisão Especial. O Geisel [general Ernesto Geisel, que presidiu o país de
1974 a 1979], inclusive, visitou a rede”, orgulha-se.

Mas nem esses bons resultados mudaram o rumo das coisas. “Tí-
nhamos esperança de que a ferrovia tivesse um desenvolvimento
principalmente na parte de carga. Tem cargas perigosas que são um
absurdo estarem sendo transportadas por rodovias. Não deveria haver
aquela fila de caminhões para embarcar soja no porto de Paranaguá.
Aquilo era pra ser embarcado por trem. É economia de combustível,
menos poluição, diminuição de manutenção da rodoviária. Deveria ter
uma integração. Não sou contra o rodoviário. Tinha que ter uma integra-
ção, cada um tem uma finalidade. Então grandes cargas para grandes
distâncias tinham que ser [por] ferrovia”, afirma incisivamente. Ao que
tudo indica, a luta, assim como o orgulho, não vão acabar. Não para
essa geração.

149
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

3. BITOLAS E BITOLADOS

Em seu livro A formação das estradas de ferro no Rio de Janeiro: o res-


gate de sua memória, o ferroviarista Hélio Suêvo relata as dificuldades
em se remontar à história das ferrovias. Em certo trecho, ele escreve:

Após quatro anos de pesquisas e baseado em fatos e con-


sultas em documentação fidedigna, posso concluir que a história
da origem das estradas de ferro em nosso país é confusa e não
exprime em absoluto a verdadeira realidade99.

Para fazer este breve resumo sobre a história das ferrovias, depa-
rei-me, a todo momento, com dados conflitantes, mesmo consultando
fontes que são referências quando o assunto é ferrovia. Peço que se
considere, também, que não se trata de um relato histórico preciso, mas
de uma tentativa de listar fatos que componham um mosaico que faci-
lite o entendimento das condições atuais das nossas ferrovias.

A história das ferrovias brasileiras, como já vimos, começa em


Magé, no estado do Rio de Janeiro, com a Estrada de Ferro Mauá. De
meados do século XIX à atualidade, muita coisa mudou e, infelizmente,
não para melhor. É preciso ressaltar que nesses 160 anos de trajetória,
o desenvolvimento, e também o declínio, do sistema ferroviário estiveram
intimamente relacionados a políticas governamentais, algumas bastan-
te equivocadas. Mas não se podem creditar os insucessos apenas à
política e aos políticos. Gestões privadas incompetentes e atabalhoadas
também foram responsáveis por fracassos retumbantes. E isso desde
sempre. Podem ser citados, como exemplo, os primeiros empreendi-
mentos ferroviários: além da EFM, que apresentou lucros apenas por
um curto período, a Recife and São Francisco Railway (1858) e a Bahia
and São Francisco Railway Company (1860), respectivamente segun-
da e quarta ferrovias inauguradas no país, também não obtiveram êxi-
to financeiro. De acordo com Suêvo, “das quatro primeiras estradas
de ferro brasileiras, somente a E.F.D. Pedro II [a terceira, de 1858, que

99 – Suêvo, H. A formação das estradas de ferro no Rio de Janeiro: o resgate de sua


memória, p. 166.

150
posteriormente passou a se chamar Estrada de Ferro Central do Brasil]
foi bem estudada e teve por isso resultados. As outras pagaram caro
pelo erro de seus traçados e previsões e fracassaram”100.

Algumas, no entanto, tiveram melhor performance, como a São Paulo


Railway Company Limited (seu primeiro trecho entrou em operação em
1867), que não só foi a primeira e mais importante linha férrea daquele
estado, como também a mais lucrativa empresa britânica da América
Latina. Com 139 quilômetros, ligava Santos a Jundiaí, ambos municí-
pios paulistas.

Outra ferrovia que merece destaque é a já citada aqui Companhia Es-


trada de Ferro Leopoldina, cujo primeiro trecho foi inaugurado em 1874.
A ferrovia, ao longo de sua história, incorporou várias linhas estaduais e
privadas, entre elas a Grão-Pará, sofreu inúmeros revezes e serviu a três
estados – Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo. Em 1950, teve sua
encampação definitiva autorizada, ficando sob a jurisdição do Ministério
da Viação e Obras Públicas e subordinada ao Departamento Nacional de
Estradas de Ferro. Contudo, mesmo com tantos percalços, tornou-se si-
nônimo de ferrovia nos lugares por ela cortados. Isso até os dias de hoje.

De fato, ao longo do século XIX, surgiram muitas outras companhias.


Em 1889, a malha ferroviária nacional contava com 9.356 km de exten-
são, cobrindo o Distrito Federal e 14 dos 20 estados da época. Apesar
de as construções de novos trilhos serem francamente impulsionadas
após a Proclamação da República, segundo Suêvo, em 1925, “muitas
dessas ferrovias deixaram de existir, absorvidas por empresas maiores
ou encampadas pelo estado”101. Além das mazelas locais, não é difícil
concluir que a Primeira Guerra Mundial e a Crise de 1929 impactaram
na economia brasileira e, consequentemente, repercutiram no desem-
penho das companhias ferroviárias.

O cenário não melhorou nos anos que se seguiram. Ainda de acor-


do com Suêvo, ao longo da década de 1930 e da Segunda Guerra
Mundial, as dificuldades só fizeram aumentar. “Com a dificuldade de
importação de material rodante e com a fixação pelo Estado de tarifas
inadequadas para um período altamente inflacionário, as dificuldades

100 – Idem, p. 167.


101 – Idem, p. 167-168.

151
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

financeiras se acentuaram, o déficit permanente instalou-se e pouco


a pouco as companhias de estradas de ferro foram passando para
o controle estatal” 102.

VIRANDO A CHAVE

O economista e
ferroviarista Antônio
Pastori na estação
de Piabetá. (Foto:
Pedro Esteves)

Contrariando a opinião de estudiosos em mobilidade, que consideram


o modal ferroviário o mais indicado para um país com as característi-
cas do Brasil, genuinamente vocacionado para esse tipo de transporte,
a ferrovia começa, nos anos que sucederam a Segunda Guerra Mundial,
a perder espaço para ônibus e carros. “No pós-Segunda Guerra, surgiu
uma grande inovação, as locomotivas a diesel elétricas, mais econômi-
cas e eficientes que as a vapor. Ao mesmo tempo, tem-se a ascensão
do automóvel, que permitiu maior autonomia à classe média ascenden-
te”, explica Antônio Pastori (o economista e ferroviarista que me acom-
panhou em minha primeira visita a Magé).

Ao que tudo indica, as rodas venceram o embate. De acordo com


Pastori, esse desejo por autonomia esvaziou as ferrovias que transpor-
tavam passageiros, o que fez com que a atenção das companhias se
voltasse ao transporte de cargas. “Esse fenômeno ficou muito evidente
nos Estados Unidos e na América latina. Nesse particular, havia grandes
interesses na indústria automotiva americana de que o automóvel pas-
102 – Idem, p. 168.

152
sasse a dominar o cenário da mobilidade e, para tanto, era necessário
dominar e instalar fábricas nesses países”, me esclarece Pastori.

RFFSA

Nos anos 1950, a saúde financeira das ferrovias brasileiras não ia nada
bem. Para sanear o sistema ferroviário nacional, em 30 setembro de
1957, foi criada a Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA). A estatal reu-
nia sob seu guarda-chuva 18 ferrovias e tinha como objetivo reduzir
os déficits, padronizar os procedimentos, modernizar a operação, re-
duzir a despesa e aumentar a produção. Ou seja, uma missão e tanto.
A RFFSA operava através de superintendências, que cuidavam de re-
giões específicas.

Em 1952, cinco anos antes da criação da RFFSA, o presidente Getú-


lio Vargas havia autorizado a inclusão do sistema ferroviário nos itens
a serem estudados pela Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, cujo
objetivo era planejar o desenvolvimento do Brasil nas áreas de agricul-
tura, mineração, suprimento de energia elétrica e reequipamento das
vias de transporte. “Essa comissão apresentou estudos mostrando a
inviabilidade de certos trechos ferroviários, tanto para passageiros [cujo
objetivo embutido seria a venda de automóveis] como para cargas [que
visava à venda de caminhões]. Paralelamente, havia um argumento in-
sofismável não declarado. No Brasil, o governo era o dono das ferrovias
e responsável pela sua manutenção, conservação e investimentos, ca-
bendo ao passageiro e ao dono da carga, somente o ônus da tarifa, mui-
tas vezes aquém da realidade. Se o paradigma fosse mudado, o ônus
da operação de transporte passaria a ser quase todo do motorista e
do dono da carga, cabendo ao governo somente oferecer as rodovias
a custo bem inferior ao das ferrovias. Também não haveria a despesa
com pessoal, que seria premido por baixos salários, transferências de
localidade e aposentadoria precoce”, explica Pastori.

Os avanços das rodovias e a extinção da malha ferroviária se expan-


diram pelos anos 1960 e 1970. Paralelamente, o Brasil vivia sob o jugo
de uma ditadura militar. Questionamentos, manifestações e opiniões
contrárias não eram, digamos, bem-vindos. E pior: eram rechaçados,

153
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

não raramente, com prisões e torturas. Não obstante, o governo enfren-


tava diversas crises econômicas, especialmente a do petróleo, o que
impacta diretamente na RFFSA.

No fim da década de 1970, já durante o processo de redemocra-


tização do país, a RFFSA sofreu, segundo Pastori, um grande abalo
orçamentário. E daí pra frente, o caminho foi em declive acentuado.
Nos anos 1980, a degradação da infraestrutura, da via permanente e
do material rodante da rede se torna ainda mais profunda. Nesta época,
o modal ferroviário já apanhava, de goleada, para o rodoviário, mais efi-
ciente naquele tempo. “Além disso, investimentos mal realizados gera-
ram uma grande dívida à estatal. Em 1984, a rede estava num desequi-
líbrio técnico-financeiro tão grande que já não suportava rolar a dívida
contraída. No final da década, o orçamento da RFFSA era de apenas
19% do que fora no fim da década de 1970”, conta Pastori.

A abertura da economia, a inserção do Brasil no mercado internacio-


nal, a necessidade de alternativas racionais e investimentos no trans-
porte de cargas e passageiros e a enorme potencialidade do setor no
país foram argumentos utilizados para o processo de privatização da
rede, que foi extinta pela lei 11.483, de 31 de maio de 2007, marcando
o fim de uma era no sistema ferroviário nacional.

Em tempos nos quais se observam filas de caminhões parados nas


cercanias de portos; grande preocupação com a emissão de gases po-
luentes (o trem movido a diesel, relata Pastori, emite muito menos dió-
xido de carbono que o modal rodoviário), altos índices de acidentes nas
rodovias nacionais e congestionamentos monumentais, não é difícil se
chegar à conclusão de que algo precisa ser feito – e urgentemente –
para que o transporte de cargas e passageiros volte a entrar, literalmen-
te, nos trilhos.

Trilhos da Estrada de Ferro Mauá


em Piabetá: um dos poucos
por onde ainda circulam trens.
(Foto: Pedro Esteves)

154
155
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

4. A VIAGEM E SEUS ESTRANHOS PASSAGEIROS

Antes de falar dos passageiros incomuns com os quais cruzei, é preciso


falar da tripulação da Estrada de Ferro Mauá. Apesar de empreender-
mos esforços variados e constantes, não conseguimos chegar sequer
a um ferroviário que efetivamente tenha sido lotado em um dos trechos
da antiga Estrada de Ferro Mauá. Essa ausência comprova o descaso
que se destaca neste livro e reforça a convicção de seus idealizadores:
é preciso formalizar, pôr no papel, na web, em imagens, a história das
ferrovias e da sua gente.

E melhor que documentos, jornais antigos e outros tipos de arquivos


de valor histórico é preciso, estou convencida, escutar a história dos que
participaram, com seu trabalho e empenho, da trajetória das nossas fer-
rovias. Resgatar a história oral, dando vez e voz aos seus protagonistas
anônimos. Essa é minha opinião como jornalista, que tem como ofício
o dever de registrar os fatos, apurá-los, ouvir versões e confrontar de-
poimentos contraditórios.

A BARONESA

Uma réplica da primeira locomotiva a percorrer a Estrada de Ferro Mauá,


a Baronesa, compõe com a estação e a Casa do Agente um quadro que
remete às primeiras décadas do século XX. Bem, pensei, os órgãos
competentes tiveram pelo menos a sensibilidade de tentar criar um cli-
ma histórico, colocando uma cópia da Baronesa no local. Inclusive, para
os professores (que se não utilizam o local para contar a história do mu-
nicípio e também do país, deveriam fazê-lo), propiciaria ministrar aulas
mais interessantes e motivadoras.

Mas a coisa não era bem assim, não havia intenção nem dinheiro
públicos envolvidos. A réplica é uma iniciativa do empresário e fer-
roviarista Sávio Neves, que, em 2009, desembolsou entre R$ 50 e 60 mil,
ele não se lembra a quantia ao certo, para que a cópia fosse feita por um
ferroviário aposentado, que tem uma oficina em Duque de Caxias, na

156
Baixada Fluminense. “Na verdade [com relação ao pagamento], foi além
disso. Fui participando de cada etapa. No período de oito meses, fui duas
ou três vezes lá com prazer. Não me dava trabalho. Era prazeroso, na
medida em que via nascer a réplica da Baronesa que enfeitaria a primei-
ra estação ferroviária do Brasil, a de Guia de Pacobaíba”, afirma Sávio.

Sávio é engenheiro mecânico e há 14 anos comanda a Trem do


Corcovado, empresa responsável pelo trenzinho que liga o bairro
do Cosme Velho, na Zona Sul do Rio, ao Cristo Redentor – cartão-
postal do Brasil. Também é presidente da Associação Brasileira
das Operadoras de Trens Turísticos Culturais (ABOTTC) e da Aca-
demia Ferroviária de Letras (sim, leitor, existe uma Academia Fer-
roviária de Letras). É mineiro de São João del-Rei, cresceu vendo
o ir e vir da Maria Fumaça, uma das principais atrações da região, e
acha que seu amor por ferrovias vem daí.

Aliás, o exemplo da Maria Fumaça, que liga São João del-Rei a Tira-
dentes, ambos polos turísticos importantes de Minas Gerais, deveria ser
seguido pela Estrada de Ferro Mauá. Inaugurada em 1881 pelo então
imperador Dom Pedro II, a Maria Fumaça está, com perdão do troca-
dilho, a pleno vapor desde então. São 12 quilômetros nos quais seus
passageiros podem desfrutar da diversidade ecológica (a estrada corta
o Cerrado e a Mata Atlântica), além de poder apreciar edificações que
ainda preservam o traço arquitetônico do século XIX.

Baronesa: réplica
serve de mural para
recados apaixonados
e outros nem tanto.
(Foto: Pedro Esteves)

157
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

A história da réplica da Baronesa, além de demonstrar o apreço do


ferroviarista pela primeira ferrovia brasileira, mostra outra faceta da
questão. Essa menos interessante. Procurei saber quais foram os trâ-
mites (a burocracia, nesses casos, costuma descarrilar qualquer boa in-
tenção) para que a réplica da Baronesa fosse colocada ali, num espaço
tombado pelo patrimônio histórico e de preservação ambiental. “Trata-se
de um bem móvel. Uma réplica sem valor histórico. Não consultei ne-
nhum órgão de patrimônio”, diz. O fato é que ela já está lá há seis anos
e ninguém, nenhum órgão se pronunciou. Coisas do Brasil.

COM UM OLHO NA LEI E O OUTRO NOS CUPINS

Segundo relatos, é comum ver os ferroviaristas pintando e limpando


a estação de Guia de Pacobaíba por conta e riscos próprios. “Houve
um ataque de cupim naquela entradinha, onde tem uma rampinha. E
eles [o Iphan] disseram: ‘Nós não podemos fazer nada.’ Aí o seu Luiz
Otávio, Suêvo e Pastori [todos ferroviaristas] foram pra ali jogar que-
rosene para matar os cupins. Se dependesse do Iphan, aquilo ia de-
sabar”, relata Eduardo André Chaves Nedehf, historiador e tetraneto
do Barão de Mauá.

Não encontrei evidências de que o Iphan se incomode com esse tipo


de iniciativa, embora tenha conhecimento da maioria delas. O fato é que
atualmente o acervo da RFFSA está sob a responsabilidade de diferen-
tes ministérios. Coube ao Iphan a tutela de muitos desses bens. O pro-
blema é que aumentaram as responsabilidades do Instituto, mas não
o quantitativo de especialistas e de verbas, o que acabou complicando
ainda mais o que já não era simples.

A apaixonada atuação dos ferroviaristas já chamou atenção até do


Ministério Público Federal (MPF) de São Gonçalo, Região Metropolitana
da cidade do Rio de Janeiro. Em 2013, foi movida uma ação pública contra
Cristina Vereza Lodi, então superintendente do Iphan, e seu antecessor,
Carlos Fernando de Souza Leão de Andrade, por improbidade administra-
tiva. Segundo o MPF, os superintendentes teriam permitido a ocupação
irregular e a realização de obras sem supervisão técnica em Guia de Pa-
cobaíba. A reforma havia sido feita pela Associação Fluminense de Pre-

158
servação Ferroviária (AFPF). Em depoimento, tanto Cristina quanto Carlos
Fernando afirmaram saber que as obras estavam sendo realizadas.

Em entrevista ao jornal O Globo, em 17 de abril de 2013, o procura-


dor da República Lauro Coelho Júnior, responsável pela ação, declarou:
“Não se trata apenas de falta de recuperação do bem, mas irregularida-
des no uso do terreno e invasão do prédio da estação. É uma situação
peculiar porque a associação invadiu para cuidar. É uma ação irregular,
mas que acaba sendo um mal menor.”

Outro ponto questionado pela mesma ação diz respeito a um con-


trato firmado, em 2007, entre o Iphan e uma empreiteira, a GDK, para
a ocupação de um terreno adjacente à estação de Guia de Pacobaíba.
Além de pagar um aluguel, dizem que R$ 8,6 mil mensais (informação
que não consegui confirmar), a empreiteira deveria cuidar da manuten-
ção do bem tombado, o que a acusavam de não ter feito. A ação tam-
bém apontava irregularidades na licitação.

Depois desse imbróglio legal, a GDK saiu do terreno. É aí que entra


na história outro ferroviarista, o produtor cultural Kleber Mauá – o único
a ter a chave da estação! Kleber passa todos os dias pelo local e, aos sá-
bados, domingos e feriados, mantém as portas abertas para visitação.
E fica no local para prestar esclarecimentos sobre a história da ferrovia.
Tudo isso voluntariamente.

Kleber é integrante da AFPF e diz ter um carinho especial por Guia


de Pacobaíba, lugar que lhe traz boas lembranças, pois foi ponto de en-
contro com as namoradas em sua juventude. Como integrante da AFPF,
foi o indicado para cuidar da estação num projeto de revitalização da
Grão-Pará, que envolvia o governo do estado do Rio e os municípios de
Magé e Petrópolis. O Iphan, em determinado momento, também pas-
sou a participar do projeto. “Nós (AFPF) colocamos uma biblioteca aqui.
A Fundação de Cultura de Magé veio e construiu um pequeno museu.
Na outra casa (a Casa do Agente), fizemos uma sala de leitura. E eu
fiquei tomando conta, recebendo pela prefeitura de Magé. Ficou tudo
muito bonito”, lembra Kleber.

Na ocasião, Kleber tinha em mente vários outros projetos, como o de


utilizar os galpões da GDK para, em parceria com algumas entidades,

159
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

oferecer cursos, palestras e oficinas, à comunidade. “Também íamos


fazer uma feirinha com os artesãos. Cadastrei todos os artesãos da
praia. Resultado: o Iphan não deixou nada ser realizado”, conta.

O fato é que depois dos problemas do Iphan com o MPF, o cenário


mudou completamente. O projeto parou. “Fomos literalmente expulsos
daqui pelo Iphan”. Pergunto então por que ele ainda tem a chave da
estação. “Ah! Porque sou resistente. Essa chave era da GDK. Pedimos
emprestado e nunca mais devolvemos”.

Segundo Kleber Mauá, o Iphan sabe de sua atuação e não tem –


pasmem! – a chave da estação. “Eles vêm aqui e não falam nada. Tiram
fotografias e vão embora. Nem entram”. O Instituto paga seguranças
para tomarem conta daquela parte do complexo ferroviário, mas para
dar conta da limpeza e da manutenção do lugar, Kleber adotou uma so-
lução, no mínimo, inusitada, pelo menos quando se trata de provimento
de recursos financeiros para preservação de bens culturais. O ferrovia-
rista pede aos visitantes da estação e aos frequentadores da praia de
Mauá que doem latinhas, que ele revende para comprar sacos de lixo,
vassoura, desinfetante etc.

O DESAPARECIMENTO DA ESTÁTUA
A antiga praça Mauá, no Rio de Janeiro, passou recentemente por uma
grande reforma paisagística, tornando-se o Boulevard Olímpico e, de
quebra, um dos lugares mais visitados da cidade. A remodelação trouxe
algumas dores de cabeça para os cariocas, percalços normais a todas
as regiões que passam por grandes obras, e aborrecimentos extras
para os ferroviaristas – que veem o Barão de Mauá como uma espécie
de patrono da causa. Isso porque, no meio do quebra-quebra da obra,
a estátua do barão, um presente do escultor Rodolfo Bernadelli e doada
pela família ao governo federal, havia desaparecido. A estátua em bron-
ze estava fincada no local desde 1910.

Os ferroviaristas, que estão sempre conectados com tudo o que diz


respeito à memória ferroviária, logo deram por sua falta e comunicaram
à família do barão. Não é para menos. No Rio, as coisas somem, desa-

160
parecem. Em 2013, por exemplo, foram afanadas seis vigas de aço de
um viaduto (a Perimetral) que havia sido demolido. Juntas, as peças
pesavam 110 toneladas! O episódio até hoje não foi elucidado. Quem
as pegou e o que fez com elas são perguntas que permanecem sem
respostas. Um mistério absoluto. Os ferroviaristas ficaram cabreiros.
A estátua do barão só pesa quatro toneladas. Começou-se então uma
caçada implacável pelo busto do barão. E, até o seu resgate, foram
consumidos quatro anos de temor. “Foram várias buscas que fizemos
à estátua. Acabamos descobrindo que ela estava na lixeira da fábrica
de asfalto da prefeitura do Rio, na Leopoldina”, conta Eduardo André,
tetraneto do barão.

Iniciou-se uma verdadeira campanha entre os ferroviaristas para


que a estátua não tivesse o fim que todos temiam e que já se anuncia-
va. Entidades e ferroviários começaram a espalhar o ocorrido em seus
sites. A família resolveu recorrer à marinha mercante, da qual o barão
é patrono. Seu comandante passou a enviar cartas e mais cartas ao
então prefeito Eduardo Paes. Tiveram como resposta o silêncio. Incan-
sáveis, foram protestar com o Iphan, que os aconselhou a ir à Fundação
Parques e Jardins. “Me levantei [da mesa de reunião] e disse: então vou
reclamar com os pombos”, conta André.

Certo dia, depois de várias incursões sem resultado, André recebeu


a ligação de um conhecido, dizendo que conhecia um general aposen-
tado. O militar toparia pegar a estátua no peito e na raça. Dito e feito.
“O general pegou 20 recrutas, um caminhão e partiu para o lixão. A es-
tátua já não estava mais lá. Um funcionário, interrogado pelo general,
contou que o prefeito a tinha mandado para Vicente de Carvalho, para
uma fundição particular. O general chegou à fundição e disse: “Taca no
caminhão.” E a trouxe de volta.

O general ainda a levou para o Arsenal de Guerra, onde a estátua foi


restaurada. Depois de pronta, ficou na Associação Comercial do Rio de
Janeiro até que pudesse voltar ao lugar de origem. “Ficou tão evidente
esse absurdo, que o Eduardo Paes teve que voltar atrás. Nós fizemos
uma carta exigindo que a estátua voltasse, que ficasse no centro da
praça Mauá e de frente para o município de Magé, onde está a primeira
estação”, diz o historiador.

161
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

BONS DE PRAGA
Ainda de acordo com André, o busto de Mauá só voltou ao seu lugar de
origem porque o ex-prefeito tem medo de praga. E a família é boa na
arte de praguejar. “Quando a Leopoldina desativou a Estrada de Ferro
Mauá, minha avó, a Piquixita, jogou uma praga violenta. Ela disse que
a Leopoldina nunca mais se levantaria, enquanto a ferrovia original não
estivesse funcionando de novo. E ela nunca mais se levantou”, conta.

A mãe de André, dona Francisca, é uma senhora de 83 anos, com no


máximo 1,50 de altura, de lindos olhos azuis e sorriso angelical, e que
parece ter herdado o dom do praguejamento. Pelo menos é, segundo
André, essa a percepção, e o temor, do ex-prefeito. “Eu falei com ele:
‘minha mãe vai lhe jogar uma praga violenta. Você não vai conseguir se
eleger nem pra Comlurb103.’”

Numa reunião posterior entre ferroviaristas, Iphan, família Nedehf e


o prefeito, dona Francisca apontou novamente sua bengala para Paes
(de vez em quando, ela mira sua bengala para algum detrator da família
ou da obra do barão), cobrando que a estátua ficasse no seu local de
origem. “Se ele vê mamãe, ele morre de medo. Na mesma hora falou:
‘Vamos botar, vamos botar.’” E botou mesmo. A estátua do barão está lá,
no meio do Boulevard Olímpico, na exata direção de Magé, com as mãos
na cintura, admirando sua querida estação Mauá.

O TREM NO IMAGINÁRIO COLETIVO

Um dos primeiros filmes (se não o primeiro, há controvérsias) exibi-


do na história do cinema foi o documentário A chegada de um trem
na estação, produzido e projetado pelos irmãos franceses Auguste e
Louis Lumière, considerados por muitos os pais do cinema. Isso em
1895. Na literatura, especialmente, na poesia, trens e ferrovias têm
sido argamassa para construção de obras-primas, como, por exem-
plo, o poema “Trem de Ferro”, de Manuel Bandeira, cuja sonoridade,
ritmo e jogo de palavras reproduzem o som indefectível das antigas
locomotivas: “Café com pão/Café com pão/Café com pão/Café com

103 – Companhia Municipal de Limpeza Urbana da cidade do Rio de Janeiro.

162
pão/Virge Maria que foi isso maquinista?”, anuncia, em seus primeiros
versos, a saída de uma Maria Fumaça.

Outra preciosidade artística é o “Trenzinho caipira”, que compõe as


Bachianas nº 2 do maestro Heitor Villa-Lobos. Uma de suas mais co-
nhecidas e aclamadas composições, a música se caracteriza por imitar
os sons de uma locomotiva em movimento. Anos mais tarde, o poeta
Ferreira Gullar diz ter entrado em transe, enquanto a ouvia.

É que, quando menino, meu pai, que fazia comércio ambulante,


me levava nas viagens de trem entre São Luís e Teresina. O trem
saía de madrugada e, ao amanhecer, cortava o Campo dos Peri-
zes, um vasto pantanal, povoado de garças, marrecos, nhambus,
pássaros de todo tamanho e cor. Eu ficava deslumbrado, a cada
viagem. Deslumbramento esse que voltou quando ouvi a tocata
das Bachianas nº 2 (Folha de São Paulo, 6 de dezembro de 2009).

Sem que esse fosse o objetivo inicial de Gullar, o poema acabou se


transformando na letra do “Trenzinho caipira”, de Villa-Lobos. Curiosa-
mente, anos depois da entrevista à Folha, no dia 5 de dezembro de 2016,
Gullar seria enterrado ao som dessa canção, cantada por sua família.

Aliás, os trens têm servido, fartamente, de inspiração à MPB. Dá para


se fazer uma playlist eclética, do samba ao rock, passando pelas bala-
das mineiras e pela música de viola: “Trem das onze”, de Adoniram Bar-
bosa; “Encontros e despedidas”, de Milton Nascimento; “O trem azul”, de
Lô Borges; “Trem das sete”, de Raul Seixas; “Um trem para as estrelas”,
de Cazuza; “Trem do pantanal”, de Almir Satter. Como se vê, e se pode
ouvir, uma lista e tanto.

Não é à toa que a temática é recorrente. O trem, os trilhos, as estações,


as ferrovias possuem fortes cargas simbólicas, materializam conceitos,
resgatam memórias, aguçam a criatividade. No imaginário coletivo, po-
dem representar sentimentos, fatos, forças e linhas de pensamento – até
mesmo opostas. Assim suscitam encontros e desencontros, chegadas e
partidas, viagens, vento no rosto, desbravamentos e ocupações, movimen-
to, ação, ordem e desordem, progresso, capitalismo e sindicalismo. A lista
poderia se estender infinitamente. Mas os argumentos parecem ser sufi-
cientes para esclarecer por que o tema desperta grandes paixões.

163
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

OS APAIXONADOS
Duas coisas me levaram ao jornalismo: o desejo de ser testemunha
ocular da história e o de fazer viagens antropológicas, o que, no meu di-
cionário particular, significa conhecer pessoas e maneiras de viver, bem
diferentes da minha. Ao imergir no universo ferroviário, mais uma vez
saciei esse segundo desejo: esbarrei com os ferroviaristas. A palavra,
um neologismo, se algum dia for dicionarizada, virá seguida da seguinte
definição: “Amantes dedicados e ardorosos das ferrovias nacionais, da
sua história, dos trens e de todo o universo que os cerca; travam bata-
lhas, muitas inglórias, para que o patrimônio ferroviário seja preservado
e reativado.”

A maioria tem uma relação quase messiânica com a causa ferroviá-


ria. Outros, me parece, possuem também interesses empresariais ou
mesmo caprichos pessoais – mas não é isso que os mobiliza. Posso
estar enganada, mas mesmo para esses últimos, a relação amorosa se
sobrepõe à financeira e também a vaidades. Achei isso incrível.

O mais curioso é que boa parte deles não é ferroviário, digamos, pro-
fissional. São apenas pessoas que amam os trilhos e os trens – cada um
por um motivo particular. São de diferentes classes sociais, profissões
e posições políticas, unidos exclusivamente pelo amor às ferrovias. Em
um primeiro momento, algumas posições me pareceram divergentes e
inconciliáveis. Ledo engano. Depois de muito bater pernas e conversar,
concluí que todas convergiam para a revitalização das nossas ferrovias.
E, no fim das contas, é isso que importa para todos.

Descobri, também, um chamego especial pela Estrada de Ferro


Mauá. Faz sentido. Ela é a ferrovia-mãe. A despeito de seus resultados
financeiros pífios, foi ela que abriu caminho para que o Brasil engati-
nhasse rumo ao progresso. Seu trajeto se resumiu a 16,32 km de com-
primento. Parece pouco. A história mostra que não.

Uma prova dessa afeição especial é o empenho que ferroviários e


ferroviaristas despendem para revitalizá-la. Lamentam o fato de o mar-
co zero ferroviário ser tão desprezado pelas instâncias públicas que
deveriam lutar para que sua memória fosse preservada e seu valor re-
conhecido. Ao me enveredar por essa história descobri pelo menos três

164
propostas, consistentes e bem elaboradas, para reativá-la. Propostas
que preveem retorno econômico, cultural e educacional, especialmente
para estudantes e a população em seu entorno. Também contemplam
pontos como mobilidade e meio ambiente, amplamente previstos e es-
tudados. Os projetos são complementares e, se conseguirem se des-
vencilhar da burocracia, possibilitarão ganhos permanentes para todos.

165
estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

5. O DESEMBARQUE

O fim desta viagem se aproxima. Saio com duas certezas. Primeira,


este livro é um pequeno esforço para resumir a trajetória, as his-
tórias e a importância da Estrada de Ferro Mauá. Ao ser inaugurada,
a EFM trouxe para o país muito mais que um meio de transporte mais
técnico e tecnológico. Esse modal transformaria a economia do país,
sendo protagonista no processo de desenvolvimento do seu capita-
lismo, incentivando a produção de commodities e facilitando sua ex-
portação; redesenharia o nosso mapa, acelerando os processos mi-
gratórios e de urbanização num país de proporções continentais; traria
mudanças nas relações trabalhistas, uma vez que, apesar da mão de
obra escrava, as ferrovias utilizaram, em sua maioria, homens livres e
imigrantes, que mesmo mal remunerados e explorados, se organiza-
ram, formando as primeiras associações trabalhistas fortes e cons-
cientes de sua força como classe.

Minha segunda certeza é que a preservação ferroviária no Brasil, da


sua memória, de seus imóveis, de seus trilhos e materiais rodantes e
documentais, é muito mais complexa que se possa imaginar. Trata-se
de uma teia de fios espessos que se entrelaçam em nós, difíceis de se-
rem desatados. São muitas legislações, instituições e esferas governa-
mentais envolvidas, que ora se contrapõem e ora se sobrepõem. O difícil
mesmo é serem, pelo menos, complementares. O fato é que na maio-
ria dos casos, por absoluta entropia, o meio de campo fica confuso –
e ninguém vai na bola. Ou se vai, faz gol contra.

No caso da Estrada de Ferro Mauá, ainda existe outro agravante. De


acordo com Jeanne Cristina Menezes Crespo, que responde pela área
de patrimônio ferroviário do Iphan, o tombamento da EFM tem carac-
terísticas muito específicas e próprias. “Esses tombamentos, muito
antigos, sempre apontam: tomba-se a área tal, mas não existe uma sis-
tematização de qual é a área, uma poligonal determinada. Muito menos
uma poligonal que a gente trabalhe agora, que é uma questão do en-
torno, porque isso facilita a gestão do bem e isso estabelece também
critérios, procedimentos de intervenções e tudo o mais”, afirma.

166
De acordo com a servidora, o Iphan está atento a essas especifici-
dades. “De 2000 para cá, a gente tem feito um esforço de regulamen-
tar, digamos assim, de regularizar esses tombamentos, fazendo o que
a gente chama de rerratificação, que é um novo estudo, com critérios
do presente, trabalhando outras legislações e trabalhando essa questão
de normatizar esses tombamentos e áreas. Com base nesse estudo,
estamos fazendo isso também para Mauá-Fragoso, porque é um bem
muito peculiar. É uma extensão territorial. Desde quando foi tombada,
ela é muito peculiar”, diz.

PRÓXIMA PARADA: ESPERANÇA

Reativar a linha Mauá-Fragoso é um sonho acalentado por ferroviá-


rios, ferroviaristas e preservacionistas. Para realizá-lo, no entanto, seria
preciso empreender esforços hercúleos e sinérgicos, tanto financeiros
quanto políticos e, até mesmo, comunicacionais. É preciso que a po-
pulação e a opinião pública em geral compreendam seu valor histórico
e abracem a ideia. Num país onde as áreas de saúde e educação ain-
da clamam por cuidados intensivos, pleitear verbas e atenção à cultu-
ra e à memória nacional pode soar como um despautério. Sabemos
que não o é.

Mas é fato que reativar a Estrada de Ferro Mauá implica desafios


gigantescos e de várias ordens, consequência direta de décadas e dé-
cadas de abandono e outras perversidades que se podem infligir a um
bem público: há trechos sob pavimentação, outros cruzando rodovias,
outros cortando a área de atuação da concessionária que opera os trens
metropolitanos. Há ainda partes da EFM debaixo de casas, casebres e
casarões, de lojas, botequins e de áreas destinadas ao comércio popu-
lar. Para completar, a EFM está numa área de preservação ambiental,
cujas particularidades e legislações devem ser observadas.

Mas existe um processo de rerratificação em curso e com ele (quem


sabe?) possam vir se não as melhores soluções, pelo menos as que
garantam a preservação da EFM e de sua história. “Foi feito um levan-
tamento [entre 2014 e 2015], um plano para esse bem tombado na área
do terminal [de Guia de Pacobaíba] a Fragoso. Foi feita uma licitação,

167
168
Guia de Pacobaíba: potencial turístico e cultural inexplorado. (Foto: Pedro Esteves)

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

contratou-se, fez um plano de conservação, de gestão, inclusive com


a questão das legislações incidentes sobre o trecho, fez-se um diagnós-
tico. E a partir desse plano, estamos trabalhando na rerratificação”, diz.

Ainda de acordo com Jeanne, o estudo é completo e inclui um pro-


jeto de gestão, mas não de reativação de toda a linha. “O plano de ges-
tão prevê que pode ser possível a reativação de alguns trechos”, afirma.
Dado o cenário atual, pode-se dizer que já é alguma coisa.

OS QUATRO CAMINHOS DO IMPERADOR

O economista Antônio Pastori e o engenheiro Hélio Suêvo, ambos fer-


roviaristas, são autores de propostas que têm como objetivo revitalizar
e reativar tanto a Estrada de Ferro Mauá quanto a Estrada de Ferro Prín-
cipe do Grão-Pará, companhia à qual a EFM foi incorporada em 1883.
Elaboradas separadamente, as propostas são complementares e com-
põem um projeto intitulado “Os Quatro Caminhos do Imperador”.

A primeira proposta de revitalização das antigas ferrovias da região


prevê a implantação do Trem Expresso Imperial no antigo trecho da fer-
rovia Grão-Pará, que subia a serra até Petrópolis. De acordo com Pas-
tori, seu idealizador, bastaria a reconstrução de 7,4 km de trilhos, sendo
seis deles no plano inclinado da serra de Petrópolis. O Trem Expresso
Imperial ligaria as localidades de Alto da Serra e de Petrópolis à estação
Vila de Inhomirim, em Magé. O local é ponto final de uma das linhas
da Supervia, que começa em Saracuruna, em Duque de Caixas. Esse
trecho da concessionária de trens suburbanos (Saracuruna–Vila Inho-
mirim) não é eletrificado e tem bitola diferente do restante da linha, que
termina (ou começa, depende do seu referencial) na estação Central
do Brasil, no centro da cidade do Rio de Janeiro.

A proposta é que com o Trem Expresso Imperial cinco mil veículos


por dia deixem de circular pela rodovia Washington Luís, trecho da BR
040 que liga a cidade do Rio de Janeiro à de Petrópolis. O investimento
seria da ordem de R$ 128 milhões (valores de novembro de 2016), com
um prazo de retorno estimado em seis anos. E mais: o meio ambiente
também seria beneficiado. “Se forem em média 5 mil automóveis por
dia (que não circularem em função de a população ter o modal ferroviá-

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rio como opção), a atmosfera deixará de receber uma tonelada de CO²
por ano”, explica Pastori.

Outro projeto, também de autoria de Pastori, é o Trem Expresso Exe-


cutivo Supervia, que, complementando o Trem Expresso Imperial, circu-
laria entre as estações Saracuruna e Central do Brasil, perfazendo uma
distância de 35 km em 40 minutos. Com tarifa e acomodações dife-
renciadas, o Trem Expresso Executivo Supervia retiraria mais de 10 mil
carros por dia das rodovias, desafogando trechos das BR 116 e BR 040.
Estudos apontam que, se três trens fizerem 16 viagens por dia, ao fim
de um ano, cerca 2,9 milhões de passageiros terão se beneficiado des-
se transporte.

A terceira proposta é a menina dos olhos do seu idealizador, Hélio


Suêvo. Trata-se da reativação de 11 km da Estrada de Ferro Mauá – do
trecho que vai de Guia de Pacobaíba a Piabetá, de onde os passageiros
da EFM poderiam seguir para Petrópolis, via Trem Expresso Imperial ou
para o Rio de Janeiro, indo a Saracuruna, e, de lá, pegando o Expresso
Executivo Supervia. Com um enorme potencial turístico, a integração
dos projetos ajudaria a sacudir, para melhor, a economia da região, as-
sim como melhoraria o deslocamento da população local. Para Suêvo,
apaixonado pela EFM, o ganho mais importante seria, no entanto, de
outra ordem. “É o resgate do patrimônio brasileiro, de um monumento
histórico, turístico e cultural deste país. Essa é a nossa luta. Meu objeti-
vo é a luta pela memória ferroviária do Brasil”, diz.

De acordo com Suêvo, a reativação seria feita em módulos, aos pou-


cos. A primeira etapa contemplaria as estações de Guia de Pacobaíba e
Bongaba e o trecho que as liga. “A ideia é fazer a parte de infraestrutura
de apoio nesses dois complexos, reconstruir os 7 km de estrada de fer-
ro. Não é só colocar o trilho. Mas ver a parte de drenagem, ver a platafor-
ma, ver se precisa fazer uma reconstituição de aterro, ver como estão os
bueiros que cruzam essa ferrovia. Tem que reconstruir uma ponte e sua
estrutura, que as enchentes levaram. Ver qual o material rodante, qual
tipo de trem será colocado ali”, resume.

E, por fim, a quarta proposta: a Barca do Imperador, que ligaria a


praça Mauá, na Zona Portuária da cidade do Rio de Janeiro, a Guia de
Pacobaíba, com uma escala na Ilha do Governador, Zona Norte carioca.

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

Completo, o trajeto teria cerca de 21 km. Implementada essa proposta,


estaria completo todo o itinerário idealizado pelo Barão de Mauá (e que
só foi concretizado pela Grão-Pará) e percorrido por Pedro II há mui-
tas décadas. Ao chegar a Guia de Pacobaíba, turistas e população da
região tomariam o trem da EFM com destino final em Piabetá, e de lá,
apanhariam o Trem Expresso Imperial – tudo isso com um conforto
e segurança inimagináveis no tempo do Segundo Império.

Arredores da estação de Guia de Pacobaíba: abandono e beleza natural convivem em todo o complexo.
(Foto: Pedro Esteves)

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SONHO COLETIVO
Valmir de Lemos, o Índio, presidente do Sindicato dos Trabalhadores
em Empresas Ferroviárias da Zona Central do Brasil e idealizador deste
livro, compartilha com Pastori e Suêvo o sonho de ver uma locomotiva
cruzar a Estrada de Ferro Mauá. Sonho também de seus companheiros
ferroviários sindicalizados. O foco de Índio são os personagens que vi-
vem no entorno da via férrea e por onde os antigos trilhos insistem em
permanecer, apesar dos maus-tratos sofridos ao longo de décadas.

Para Índio, a revitalização de um pequeno trecho, acoplado a tra-


jetos maiores, traria, sem dúvida, investimentos na área, abrindo um
mercado de trabalho para os próprios ferroviários, a serem empregados
nas novas funções criadas para manter o ramal em atividade. Retornar
o trânsito de trens de passageiros, refazendo o trajeto Guia de Paco-
baíba a Vila Inhomirim, permitiria que a comunidade pudesse voltar
a utilizar os trens como meio de transporte.

Outra proposta do presidente é a criação de um projeto sociocultural,


no qual crianças e jovens pudessem conhecer a história da EFM, in loco,
através de viagens feitas em um dos vagões do novo trem. Um grupo
de artistas de contação de histórias reviveria em prosa, verso e canções
a epopeia de sua construção, o legado de seu idealizador e um pouco da
história do fim do Brasil Império.

O passeio de uma hora teria início em Guia de Pacobaíba, onde os


artistas se apresentariam com roupas, linguajar e comportamentos
próprios da época imperial. Pequenos livretos seriam distribuídos para
que os espectadores pudessem acompanhar o enredo da performance.
As histórias, divididas em quatro partes, de acordo com as antigas es-
tações de trem da região, permitiriam conhecer, a cada pequeno trajeto,
uma parte dessa pequena grande história revisitada. O material, elabo-
rado especialmente para esse programa, contaria com a participação
de historiadores e professores. Em Vila Inhomirim, uma exposição e um
gostoso lanche marcariam o fim do passeio.

Assim como este livro se destina a escolas, centros culturais e bi-


bliotecas localizadas no entorno da ferrovia, o projeto seria uma for-
ma de atender, principalmente, àqueles que frequentam esses lugares

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estrada de ferro mauá: nos trilhos da história
PARTE II

e servir como ferramenta de auxílio à preservação, fazendo com que


o público infantojuvenil, ao reconhecer e se dar conta da importância de
nossa história, possa comprometer-se, de todo o coração e por a toda
vida, a zelar por ela.

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REFERÊNCIAS
FIGUEIREDO, B. (org.). Batistinha, o combatente dos trilhos. Rio de Ja-
neiro: Arquivo de Memória Operária IFCS/UFRJ & Centro de Memória
Ferroviária do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias
da Zona Central do Brasill, 1994.

SUÊVO, H. A formação das estradas de ferro no Rio de Janeiro: o resgate


de sua memória. Rio de Janeiro: Sociedade de Pesquisa para Memória
do Trem, 2004.

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HOMENAGENS
A importância da figura de Irineu Evangelista de Souza, Barão e depois Visconde de Mauá,
construtor da primeira estrada de ferro a funcionar em nosso território, descortinando um novo
patamar de desenvolvimento para o Brasil, fez com que os Correios, em 1954 e 1963, criassem
dois selos comemorativos pelo aniversário de 100 anos da Estrada de Ferro Mauá e pelos 150
anos do nascimento de seu idealizador.

Fonte: Correio Brasil

Visconde de Mauá é considerado Patrono da Marinha Mercante e dos Transportes por sua
atuação na criação do Estaleiro Mauá, em Niterói e, como dito acima, pela construção da
Estrada de Ferro Mauá. Devido a sua importante participação na vida econômica do país,
durante o século XIX, o governo brasileiro resolveu homenageá-lo, em 2010, com a emissão de
mais um selo comemorativo.

Fonte: Correio Brasil

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