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A BELEZA SUJA
click,
dormem em simultâneo sobre as escarpas
e sobre a sua beleza suja,
interior ao sono, interior à chuva,
colocam as mãos nos bolsos como se lá estivesse
parte de uma incompletude que os completasse,
consolidam a solidão inacessível,
sentem o vento processar o seu rigor irregular
nos pulsos rasgados,
ouvem música petrificada, julgam que o ritmo
e o movimento da cabeça os podem apartar,
e por isso se intitulam apenas
de ouvintes de música,
click,
nunca saberiam assinalar, por exemplo, nos negativos
da presente sessão, os lugares íngremes
das suas infâncias
que se consolam e flagelam entre si.
sobre eles disparo como se atirasse a matar
sobre as suas ideias transumantes
em direcção à trovoada oca
dos meus olhos brancos.
click,
o crepúsculo carrega-nos, a confusão inicia-nos as fugas,
todas as fugas, todas as horas que a bem ou a mal
singram e quebram.
quem me dera poder embriagar-lhes a sombra,
desatar-lhes os nós da vida,
poder vê-los andar de novo,
e ficar aqui para sempre, neste fim de tarde,
compensando a minha completa falta de rosto
com a tripulação dos meus dedos
fingindo sobre a máquina fotográfica.
METROPOLITANO
[aos perfeccionistas]
um dia encontrar-te-ás
num tempo com o teu rosto velho,
desaparecendo
sobre todo o alimento
do espaço que ainda cresce.
COTOVELOS SOBRE A MESA
[autobiografia]
MAPPUGGHJE
MOTS-VALISE
[a Graciela Perosio]
Impressiona que um escritor tão jovem produza primeiras obras tão especiais. Talvez
imperfeitas (como todas), mas, sem dúvida, especiais. Recordemos que Tiago Miguel
Serrano Pereira Nené (Tavira, Portugal, 1982) apenas havia publicado um livro em
Portugal e poemas avulsos em revistas literárias de Espanha, Portugal e México. E
especifico: a obra que tem em mãos o leitor versa sobre um dos temas poéticos por
excelência: o homem situado dentro do espaço e do tempo. O normal nos poetas jovens,
talvez devido à sua aprendizagem, é que comecem com poemas onde o eu pessoal se
confunde com o lírico e tratem temas menos substantivos como o amor passional. No
entanto, Tiago aproxima-nos do espaço/tempo sagrado por excelência, os centros
comerciais (ainda que virtuais). Talvez não sejam, na actualidade, estes centros, lugares
que substituíram os templos. Lá, cumprimos os nossos rituais de consumo enquanto o
tempo se demora. O que é o espaço, para Tiago Nené? Será um espaço arbitrário,
caprichoso, ideal? Aventuro-me a responder que não, que o seu espaço tem por objecto
o mais cruel do real quando se aproxima do Aberto segundo a concepção de Rilke.
Talvez não seja assim quando nos diz: desaparecendo / sobre todo o alimento/ do
espaço que ainda cresce.
O poeta concebe o espaço, como o faria Ana Hatherly, como um território-tempo que
contém toda a luz do mundo, intervalo por onde desliza o pensamento imaginando
imagens numa cosmovisão de sentimentos, paixões e arrebatamentos. Porque o poeta,
ainda que duvide, nunca é neutral com as palavras, e somente através de imagens entra
em comunicação com o indizível. Segundo Bachelard, a função fenomenológica da
imagem poética é a sublimação que opera mediante a mesma e que se expressa pela
abertura de um estilo único: “captar a imagem do ser na mesma brevidade efémera
de sua ontologia”. Não será esse o preciso sentido do poema que inaugura o livro onde
o autor se confessa coleccionador de imagens graças a uma câmara fotográfica? Ainda
que em última instância nos confesse que “a confusão inicia-nos as fugas /…/ todas as
horas que a bem ou a mal singram e quebram. / quem me dera poder embriagar-lhes a
sombra, desatar-lhes os nós da vida”.
Uma parte do nosso universo é luz, mas tal não significa que haja vida. Para o poeta do
algarve Tiago Nené, um espaço está vivo se conduzir a outro tempo, o que é dizer o
contrário do que acontece nos centros comerciais: esses espaços que atrasam o tempo e
para ele se iluminam com uma luz difusa, uma luz eléctrica que não produz sombras.
Mais do que templos os poetas nos fazem lembrar túmulos, mausoléus ou velórios. E
daí o diabólico e o numinoso, que é quase o mesmo, destes espaços. Talvez estejamos
dentro de um espaço sem hímen, onde o tempo suspenso nos diz: “está num não-lugar.
Ainda que sorria por o estarmos a filmar para sua segurança, actue como se nada fosse,
controle as suas emoções e não se esqueça de passar pelo duty free…” Ante esta
situação o poeta busca essa plenitude impossível de conseguir. Talvez inspirando-se no
poeta brasileiro Manoel de Barros, busca a sua “incompletude” através de um processo
que consiste em desaprender: desaprender oito horas por dia ensina os princípios.
Assim se nos revela outra parte essencial deste livro que nos fala da ânsia de plenitude,
da fome lato sensu, entendendo por fome “essa falta espantosa do ser, esse vazio que
tortura, essa aspiração, menos à utópica plenitude que à simples realidade” (Amélie
Nothomb). Num estilo febril, com quarenta de febre, omitindo maiúsculas em nomes
próprios e depois de ponto final (e que falta faz, não somos tão importantes quanto
isso), o poeta trata de descobrir as zonas de espanto do espaço, do amor, da comida, do
tempo nos seus começos e no seu fim, febril como a caótica viagem de um anti-herói do
nosso tempo, febril como uma má digestão que perdura demasiado tempo.
Esperemos que Tiago Nené não demore muito a oferecer-nos novos poemas em
próximos livros.
Jack Landes
Huelva, 30 Outubro de 2009