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PREFÁCIO

A BELEZA SUJA

José Carlos Barros

Procurar um descentramento; um lugar de fora. E procurar também cortar fios,


ligações, aproximações. Até o olhar poisar nos objectos e devolver apenas o que
os objectos mostram à superfície do que parecem ser. Acontece que esta (espécie
de) máquina fotográfica tem uma memória por dentro: e quando a luz do flash
ilumina os objectos, os eventos, ou antes mesmo do disparo, já as interrogações
(e o desconforto delas) acompanham esse impulso, esse movimento sem retorno
em direcção ao coração das coisas. Falo de uma poesia que parece decidir-se no
território da sua própria impossibilidade; num conflito permanente entre ficção
e realidade, entre concretude e fingimento, entre aceitação (desistência) e
interrogação; entre milagre, revelação e, por outro lado, afastamento e
reconhecimento da insuficiência do poema no desígnio de mudar o mundo.
Nem sempre os títulos dos livros de poesia remetem para o seu universo
temático. Neste caso, no entanto (e não obstante a primeira sensação de
desconcerto), o título é já o enunciado, o resumo, do projecto que move o autor
nesta busca (ou deambulação) pelas margens, por «um pequeno subúrbio/ onde
os carros não passam», por lugares onde os terramotos apanham «pessoas que
faziam amor» e «morriam de uma causa lenta e dolorosa» e onde (em vão?) se
espera «a esperança/ de um próximo começo». Polishop é o nome de uma
conhecida cadeia de venda de produtos milagrosos: cremes contra as rugas e a
celulite (e as estrias), cintas vibráteis que resolvem os problemas das
adiposidades abdominais, escadas de alumínio que ocupam apenas, num
armário, o espaço de vinte centímetros, kits para desmontar variadores (seja lá
isso o que for), artefactos que picam a cebola sem o incómodo prosaico das
lágrimas. O título é a acertada metáfora deste universo de perdas, de
desencontros, de impossibilidades (também de exaltações), de encenações – e,
simultaneamente, de procuras, de rasuras (intervalos, fronteiras) entre o que é e
o que poderia (deveria) ser. Há, nestes versos, o incómodo que reverte de um
olhar irónico, altivo, desarmado, livre, sobre as armadilhas do quotidiano, sobre
o desconcerto das relações humanas (sentimentos, moralidade), sobre a
normalidade, assim interrogada, de supostos inquestionáveis códigos de
conduta; sobre o logro das aparências; um olhar (às vezes apenas fotográfico,
neutro) a trazer à superfície o lixo, a sujidade, as partes por unir, a
incompletude, a impossibilidade de chegar a um lugar e de ocupá-lo por inteiro;
onde, por indiferença (por desistência, por cansaço), «as pessoas sobrevivem
quando alguém morre». O título do livro é a metáfora do mundo retratado
nestes versos: a vida, o quotidiano, olhados de cima, de fora, como se tudo se
desenvolvesse já num território de pechisbeque, de prometidos paraísos a
pilhas, de felicidade anunciada a prestações. Os produtos da Polishop – a ilusão
do mundo perfeito, a promessa da alegria, as virtudes do consumismo, os
consequentes ruídos do anúncio, da frase, da publicidade erigida a realidade
concreta – parecem ser tudo o que temos quando (como algures se dirá neste
livro) o tempo é de montarmos o circo e fazermos de conta. E por isso, num
outro poema, se fala do político que cola, nas paredes, os seus próprios cartazes,
confrontando-se com o logro do que ele mesmo anuncia (como num produto
que a Polishop venderia em horário nobre para curar as varizes). Nem sempre
os poemas deste livro, na sua aparente dispersão temática e formal, parecem
fazer parte de um conjunto lógico, coerente, de peças que vão encaixando até
mostrar o retrato inteiro que (por um momento) não adivinhávamos nas suas
partes desligadas. Mas este é um livro de poesia, mais que uma recolha de
versos e poemas: essa aparente dispersão (que nos ilude pelas inusitadas
imagens, pelas incursões aparentemente exteriores ao poema, pelo salto – que
se revela ser contiguidade – entre o poema lírico mais extenso e a concisão do
aforismo, pelo encadear de reflexões sobre a arte poética ou a crua descrição dos
estilhaços do quotidiano) revela-nos, aos poucos, um pano inteiro onde os
diferentes (múltiplos) fios não cerziram mais que pedaços desatados. Há algo
(há muito), nestes versos, de surrealidade, de sobressaltada transfiguração das
imagens, de re-leitura, de re-interpretação, de deflagração às vezes sem um
centro reconhecível que possa acudir-nos. É certo: porque a linguagem não se
desliga nunca dos temas e do universo que procura servir: esse universo de
perplexidade e desencanto onde já nem é possível regressar ao ponto de partida
nem caminhar a partir de nenhum ponto. Porque nos perdemos no lixo das
coisas, na «beleza suja» em que nos distraímos e afastámos de nós mesmos,
entre logro e fingimento, entre imagens (falsas) cujo sentido já nem chegamos a
interrogar. Servida por um rigor que busca na palavra o sentido exacto e último
das coisas, esta poesia (a deste livro) confronta-nos com o mundo que vivemos
tantas vezes sem exigirmos dele o que está por detrás (ou além) do lodo e do
imperceptível milagre de um tempo anterior (antigo) em que era possível
acreditar: «éramos tão novos (…), bebíamos veneno para dormir». É por aí que
esta poesia nos leva: pelo incómodo sobressalto; pela convicção de que é
preferível bebermos veneno para dormir, de que é indispensável amarmos «o
amor quando nasce», do que nos sujeitarmos à impossibilidade de nos
sentarmos a uma mesa do Majestic ou de «soltar os cães dentro dos poemas de
amor».

NOTA: em 28 de Maio de 2010 a obra “Polishop”, de Tiago Nené, foi


apresentada por José Carlos Barros no “Pátio de Letras”, em Faro.
POLISHOP

click,
dormem em simultâneo sobre as escarpas
e sobre a sua beleza suja,
interior ao sono, interior à chuva,
colocam as mãos nos bolsos como se lá estivesse
parte de uma incompletude que os completasse,
consolidam a solidão inacessível,
sentem o vento processar o seu rigor irregular
nos pulsos rasgados,
ouvem música petrificada, julgam que o ritmo
e o movimento da cabeça os podem apartar,
e por isso se intitulam apenas
de ouvintes de música,
click,
nunca saberiam assinalar, por exemplo, nos negativos
da presente sessão, os lugares íngremes
das suas infâncias
que se consolam e flagelam entre si.
sobre eles disparo como se atirasse a matar
sobre as suas ideias transumantes
em direcção à trovoada oca
dos meus olhos brancos.
click,
o crepúsculo carrega-nos, a confusão inicia-nos as fugas,
todas as fugas, todas as horas que a bem ou a mal
singram e quebram.
quem me dera poder embriagar-lhes a sombra,
desatar-lhes os nós da vida,
poder vê-los andar de novo,
e ficar aqui para sempre, neste fim de tarde,
compensando a minha completa falta de rosto
com a tripulação dos meus dedos
fingindo sobre a máquina fotográfica.
METROPOLITANO

[aos que sabem ouvir]


no metropolitano do ouvido
o ritmo da minha inconsciência:
os subúrbios do poema que são mais seguros,
o desperdiçar de sentimentos
nas complicações de uma velha
identidade, um método ludovico,
o centro de uma cidade que anda
sobre o seu congestionamento.
[uma nova carruagem chega
com destino ao braço esquerdo
e a uma acção simples].
creio que ouvir pode ser falar com o ouvido,
e falar com o ouvido pode ser devolver
totalmente esse sentido.
finalmente oiço o grito de munch,
é encorpado, com textura de sílex,
eternamente velho num ventre de silêncio,
e não enterra quaisquer lamentos.
[uma nova carruagem chega, sem destino].
fecho os meus olhos.
PERFÍDIA

Incrível como se ama


qualquer animal
recém-nascido.
por isso, ainda
que em vão, amamos
o amor quando nasce, esse
animal que em criança
alimentamos,
e que um dia
nos comerá o coração.
CORAÇÕES DE PLENILÚNIO

Querer-te é o castanho doce dos figos sobre a mesa,/ as tâmaras,


a voz da grande Kolthoum vinda de uma / janela num cântico apaixonado ao Nilo
Victor Oliveira Mateus

a entrada secreta é breve como


a abertura dos lábios meramente à PALAVRA.
a necessidade de uma necessidade gera
a incompletude que produz o néctar
no coração feminino de plenilúnio.
as folhas no ar conduzem borboletas inatmosféricas,
o vento conduz o ódio que a criação retém
num fio de silêncio atravessando
a transparência oculta da matéria.
a entrada da espera é breve
e emancipa um segredo que ainda se funde
nas membranas de uma tentativa
assertiva e ovípara de coerência.
esperar por ti é esperar que o primeiro final
da história que ainda corre num só cateto
te desiluda como um relógio que pára,
um gato subitamente fusco, ou
um verso mau do nosso poeta preferido.
MAJESTIC

e não há uma só repetição


que se cruza com uma primeira vez,
e alguém que deixa uma beleza em prol de outra,
o desamor de um amor culpado,
uma eternidade invertida,
o cansaço invisível num homoponto.
e não há uma dor que sobe aos dons,
e um inverno rigoroso que é o pudor do verão
[e talvez da primavera],
e os líquenes de uma canção por gestos.

e não há corações num frappé


[é, porém, lindo o majestic]
sobre uma travessa de uvas
passando nas ruas dos dedos que emparedam
o sangue oculto mas lilás
sob o movimento dos astros da pele.

e nenhum segredo desperdoa todo o tempo,


e não retiramos as minas de tacto sobre o mapa da cidade,
e nunca regressaremos aqui, antes
dissolvemos agora o rasto do seu infinito.

e diz oscar wilde que o inverno traz consigo a sabedoria,


e eu ainda espero que vague uma mesa.
A DENSIDADE DOS SISTEMAS

[aos perfeccionistas]

o onde é demasiado denso para o quando,


o quando é demasiado denso para o quem,
o quem é demasiado denso para o o quê,
o o quê é demasiado denso para o porquê.
rejeitar as coisas que não tens
é acender o rastilho do tempo que resta,
a densidade comparativa dos sistemas
destruí-los-á um por um:
primeiro o espaço, depois o tempo, depois
o facto consumado, depois as dúvidas
e finalmente as explicações infundadas.
- e nós?
- nós acabaremos por subsistir no território
da alma, sem densidade alguma.
MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA

[ensaio sobre celebridades]

com as rugas escondidas de uma distância esticada,


o útero mudo, uma língua fóssil, a emoção mortífera.
o seu fruto é frígido, o seu todo tem as partes por unir.
as alíneas do seu índice são duvidosas e a música
que lhe enche o quarto é de vinil branco. o seu
tempo não tem a densidade que o nome exige,
apesar de ninguém o saber. dos seus olhos saem
porcelanas, o seu inverno é subterrâneo, a sua história
conta-se por carta. no seu exílio conheceu gente
que traduziu goethe e hölderlin e lhes acrescentou versos
por graça. os seus erros nunca couberam dentro de versos
porque o seu coração sempre mudou com as novas
grafias. nunca ninguém colocou um dedo que fosse
nas suas feridas porque sempre as soube esconder
fora dos locais do rosto. o seu sigilo tem a duração
do olhar, e este, sem distinguir planos, descontinua
a discrição dos movimentos dos outros. o seu infinito
oscila na memória inconsciente, a sua água é
vaporizada com as sombras do corpo contra a luz
quente. o seu alheamento é um pequeno subúrbio
onde os carros não passam e o passado das pessoas
que lá vivem fica na grande cidade. a sua imaginação
é solitária, a sua razão sempre extirpou a matéria fluida.
as suas pétalas são autónomas em relação às flores,
as suas cores envelhecem como se por esse facto
deixassem de ser úteis. a partir de certa altura
a sua natureza torna-se sonora e inexprimível, e
as suas obsessões são indefesas e frágeis. rilke
um dia escreve-lhe uma carta que veio devolvida
e nela constava um poema escrito à mão e pingos
de suor nocturno. todos os seus princípios eram
oficialmente os seus fins, e o silêncio do público
estranhamente o fazia notar ainda mais. até que ela
morre, morre mais do que a lei da vida, e o seu abismo
continua exuberante. apesar de ter vivido uma vida
corrosiva, ela permanece como um protótipo, porque
as pessoas não vêem as pequenas coisas, porque as
pessoas não se revêem nos equilíbrios, porque as pessoas
parecem sobreviver quando alguém morre, porque
as pessoas apenas sabem ver ao longe.
O TERRAMOTO

[a uma pessoa intemporal]

querida joana, o terramoto apanhou pessoas que faziam amor,


pessoas que morriam de uma causa lenta e dolorosa,
pessoas que celebravam contratos com apertos de mão,
pessoas com instrumentos na terra fértil,
pessoas que faziam de conta, pessoas sem relógio.
os que faziam amor perpetuaram-no, os que morriam
viram a sua morte impedida por uma colectiva e mais bem aceite,
os que celebravam contratos perderam as mãos coladas,
os que trabalhavam na terra fértil foram soterrados,
os que faziam de conta procuraram cumprir uma promessa,
os que não tinham relógio escaparam ao tempo.
meu amor, sermos egoístas é tentar impedir que as coisas mudem,
sermos intensos é não respeitar causas e efeitos,
espero-te no meu futuro, ainda que ele não seja
o efeito directo de um presente que ainda treme muito.
SUBMERSÃO

[a uma pessoa demasiado especial para ser compreensível]

sem desatar o nó de cegueira


ou deixar cair o pano,
direi que a submersão
chegou ao ponto de nos acharmos
dois estranhos sem tacto
num dos milhares de pontos.de.vista
do fim, esperando a esperança
de um próximo começo.
AUNG SAN SUU KYI

montemos o circo. façamos


de conta. deixemos
que o sonho acorde e confesse.
sintamos todo o impacto
de ver as palavras de pele
tomarem forma
e rédea de coisas lúcidas
presas no desejo de um pequeno erro.
o nosso coração
é a nossa cabeça, e para sermos felizes,
ou temos sorte,
ou somos brilhantes.
somos romeu e julieta,
reféns perfeitos
de todos os sonhos.
GESTAÇÃO / POEM IN PROGRESS

a ecografia morfológica está bem,


as medidas estão certas,
o poema está com um quilo e pouco
e tem trinta e dois centímetros.
daqui parece perfeito,
sei que não tem hidrocefalia,
nem lábio leporino,
ou cataratas congénitas.
eu vi-o mexer-se bem no fundo do seu
pré-destino moral
e todos os seus significados
continuavam inteiramente livres,
o seu autêntico deliberado,
e os seus acontecimentos espantosos
impondo ao sonho as excepções
que ele necessita para ser credível.
para a semana far-se-á
uma amniocentese, e se porventura
o líquido estiver contaminado,
sou capaz de tomar
pirimetamina, sulfadiazina e ácido folínico.
LICITAÇÃO

Pode um homem enriquecer a natureza com a sua incompletude?


Manoel de Barros

não sei o que esconde


o silêncio
nunca o entendi
talvez sirva
para leiloar sentimentos

sim, deve ser


exactamente isso
que acontece -
e a licitação mais baixa
sempre vence.
CONCEITO

No vazio leve das miragens, esconde-se, / nas vindimas da noite,


/ o corpo dormente da eternidade que rebenta
Maria do Sameiro Barroso

para viveres, lembra-te, só precisas


de um conceito.
e depois sabê-lo, sem contudo o decorar,
e constatar que é
impossível guardá-lo,
porque digamos que é impossível
guardar
o que deve ser maior,
bem maior do que o que somos.

isso a vida, podes ir,


tudo o resto é
meramente científico e teórico.

um dia encontrar-te-ás
num tempo com o teu rosto velho,
desaparecendo
sobre todo o alimento
do espaço que ainda cresce.
COTOVELOS SOBRE A MESA

invisíveis luzes estão acesas.


vejo o andré, o
fundador, desintegrando as direcções
do tempo sujo
passível de ser reciclado em boa arte.
o mário, o
de vasconcelos, enfia a rosto na cabeça
e engole as sombras disponíveis
dos alimentos citadinos mas rugosos.
o antónio, o de maria e o de lisboa, sorri como
aparece na capa
de um livro póstumo (consultem-no)
e crê retirar aos poucos
o ar aos insectos que circulam.
do outro lado o
alexandre, o de o'neill,
ergue-se em direcção a uma das
casas-de-banho de que o mundo, contiguamente,
é feito.

mas vendo bem as coisas,


talvez segundo
um intervalo quadrangular,
este meu trabalho do olhar
dirá apenas respeito
ao meu poema. o que lhes interessará a eles
é que uma vez chegados
ao surrealismo reflexo do seu público anonimato
cada um escreverá o seu.
HÍMEN DO TEMPO

impossível, e nesse impossível uma forte sensação de possível, os


poetas que morrem dentro de aves, os sons que se ouvem no ar,
transformações de palavras, palavras de palavras. impossível, e
nesse impossível uma última sensação de possibilidade, todo o
tempo em simultâneo suspenso, consumido o espaço com a
mesma aleatoriedade do sangue que narra.
03032007

no livro que me foi emprestado -


uma edição de poesia de novalis -
vinha uma nota
muito ténue a lápis tremendo. dizia
procuro o último livro de
ruy duarte [de] carvalho - de que nunca li coisa alguma -
e encontro este, que procurei
há dias sem encontrar.
vinha datado
e escrito assim: 03032007.
não vinha assinado, nem a caligrafia
pertence a quem mo emprestou.
e estes factos, lentamente suspensos
na superfície móvel da memória mais imediata,
impuseram
no mapa sem rios da minha leitura
um sentido extremo de ficção real.
UM POEMA COM FORMA ESTRANHA

alargar [anota aí]


a imobilidade depois de ver a rapidez das sombras,
uma [filma, filma isto]
existência não expressa
é mais
verdadeira. só ele [tira a máquina da chuva]
saberia como
fazer passar o seu corpo por cima de si mesmo,
por fora da música, do [que música é esta?]
karma, sobre as nuvens [um, dois e terês] fixas
de cor profunda [ele é
o poeta dos íssimos, mas shiuuu]
tudo o que lhe odeiam [ele tem
trinta
e nove de febre e toda a genialética]
é tudo
o que eles gostariam de ter,
ele que sabe como resumir todo o silêncio a só um começo.
[corta. repete]
JOHN UPDIKE

morreu sem um critério rigoroso.


não se poderá dizer que tenha sido a lei da vida
ou a lei da morte
ou uma derradeira e infinita
composição da urgência.
hoje morreu-lhe o corpo, morreu porque assim
disseram os médicos, porque assim
disse o seu pulso frágil como o equilíbrio
da terra, e porque agora é o tempo que o respira.
hoje morreu-lhe o corpo, repito em voz alta.
e isso é tudo o que,
da perspectiva da nossa memória incompleta,
precisamos de saber.
PARA O BEM E PARA O MAL

[autobiografia]

para o bem e para o mal / eu sou o tiago nené e nasci / dentro do


meu corpo, muitos dias após o meu nascimento. / não posso mais
ser outro, estou preso / ao solo de mim mesmo, perdi as clarividências
que me pertenciam / quando eu próprio lhes era imensamente
imperceptível. / para o bem e para o mal / o meu apelido
não é comum, e morfológica / e espiritualmente me remete bem lá
para o começo, / ao átrio das coisas novas e palpáveis / com o
relevo móbil do coração bem saliente. / para o bem e para o mal
/ uso uns óculos ralph lauren com uma armação / castanho-escura
e uma graduação de quatro, / repito, quatro dioptrias em cada
olho. / porém, ainda há aqueles que me conhecem, ou conheceram,
/ sem óculos, com os olhos profundos directamente sobre /
as suas almas furtivas, e os seus olhos densamente / sobre os
meus, onde as minhas lembranças de ontem são / impressas nos
poemas de hoje. / para bem e para o mal / eu sou de facto o tiago
nené, / posso prová-lo, posso exibir o meu / bilhete de identidade,
submeter-me a análises de sangue, / ou caminhar elegantemente
sobre a rua. / e há quem ame e quem deteste, / quem ache simpático
ou estúpido, / ou ainda quem me condene por soltar os cães
dentro dos poemas de amor. / na verdade, / e para o bem e para
o mal, / eu sou tudo isso, / mas se tivesse de me definir ou redefinir,
diria / apenas que sou aquele que agora resume a vida / numa
gorda miserável, / espremível como uma laranja / cujo sumo resultará
muito azedo.
REFEIÇÃO COMPLETA

talvez não queiras um amor absoluto,


mas uma só refeição completa.
podes comer-me as pernas,
os braços, o fígado à florentina,
e os dedos dos pés al ajillo,
ou talvez encontres o peixe que
vive dentro do meu sangue.
não é verdade que assim morra,
diz o livro que não podemos viver sem amor,
e podemos morrer sem amor?
o amor é o momento,
e o meu amor é passivo, são as tuas
hipocondrias nos meus órgãos,
os teus dentes exemplares nas minhas praças
e a misteriosa velocidade
só de imaginar o que digo com a convicção
e ordem com que o exijo.
fá-lo, fá-lo, fá-lo, fá-lo.
chegarás à côdea do meu coração
de três dias lentos. afinal,
não precisas de um amor absoluto,
mas de uma só refeição completa.
O SONHO

e cobri o rosto sem preterir as cores

ESPAÇO & TEMPO

os lugares estão vivos quando conduzem a outro tempo

MAPPUGGHJE

partiram aqueles que precisam de regressar

MOTS-VALISE

incrível como são os olhos com sede


os que deixam cair a água.
KARMA

e duvidamos dos instantes


mas não de todo o tempo,
dos versos mas não da poesia.
se alguém nos disser
que o tempo parece uma cascata de céus
acreditamos mais facilmente
do que se alguém disser
que nos ama.
e acreditamos nos poetas,
e não naqueles loucos
que dizem que uma pessoa
se mata muitas vezes
se tiver muitos corpos. e duvidamos
de certas palavras
mas não de todas as combinações
entre sílabas. acreditamos
na geração do movimento mas
não conseguimos sair do meio do caos.
e acreditamos nos tiros
que acabámos de ver partir
mas não que estamos
prestes a morrer.
O TRIÂNGULO DE SANGUE

As palavras / não dizem o mundo / dizem o desejo /


de dizer o mundo
Luís Ene

não fiques lento perante o imóvel,


instala num triângulo de sangue
uma pequena rua.
deixa essa rua açoitar o sangue que corre
parado no seu asfalto.
não isoles os teus sentidos, não os atires
como pedras.
ninguém suspeita se apenas viveres
segundo o rigor da tua arte.
sê perpendicular às tuas fugas,
corre e apaixona o mundo.
DOUBLE FANTASY

I just believe in me, Yoko and me, and that's reality.


The dream is over, what can I say? The dream is over.
John Lennon

deus é uma distância profunda sem corpos que a meçam.


a minha presença é uma boca invulnerável à matéria.
EU contraí a minha força e saúde militares,
eu desenhei uma maçã no mapa-múndi
e fechei os olhos com violência com o propósito de a engolir.
a minha mão operou o impossível no sono feérico,
nele clarificou as pontes destruídas
entre os meus principais pensamentos
e mais tarde haveria de se cruzar
com um mark chapman de olhos vermelhos
e o DOUBLE FANTASY debaixo do braço
ouvindo a pestilância que vinha do dakota.
está uma noite espontânea e o paul goresh não registará
nada que neste momento só pergunte.
a noite, digamos, é da cor da dança invisível
dos dentes mudando de posição quando a boca
se fecha para ESCUTAR apenas.
cinco tiros rasgam o ar e o sonho acaba. a noite
perdeu o túnel por onde passava a sua fantasia.
SINFONIA DAS NUVENS

eu acho que te amo, disse.


como se o amor,
o verdadeiro amor,
admitisse
algum tipo de dúvida.
CIDADE SUBJECTIVA

e depois existe uma cidade subjectiva


(sem casas)
e observa-se no ar
um copo de whisky gigante, ouvem-se vizinhos furtivos
sobre a sede rígida,
e emagrecem as palavras que riscam a parede, descreve-se
a memória cautelosamente
e sazonam-se as vozes que vão escurecendo
num buraco de energia.
e faz-se silêncio e não há luz na mão.
[e o futebol não pára
(um jogador vê o segundo amarelo e volta
para o geral subjectivo)]
e por fim,
uma última corrida à tona de um semi-sono vivo,
a solidão de um golo.
nasce então o esquecimento de uma alegria
(violoncesca)
de noite, luzes e transpiração.
A HORA IMPLÍCITA

[a uma pessoa que vive na direcção da sua vontade, em horas


implícitas]
todos os acasos são subterfúgios, por exemplo
este silêncio é mais lento que
a cabeça que o absorve, fendendo em mim uma página em branco.
[e chove] foi preciso
transformar-me em chuva para que as minhas lágrimas
adquirissem a velocidade que condissesse
com a condição antológica do meu estado.
[e dá-se uma transfusão de estações do ano por detrás
do branco da página] - um ajuste de contas é circundante,
um abraço cheio comove os nervos dos braços vazios.
através de mim passa o meu corpo, eu vejo-o,
a carne é um gueto escuro, a sua sombra um centro falso
sem gravidade,
o equilíbrio deu à luz o intervalo
que desliga a luz das palavras íntimas - espalho-me por cada
sua raiz que me trouxe até aqui.
[e começo de novo, e alimento-me de mim mesmo]
ainda confundo poesia com amor
e um amor nato e frio com um sorriso radioactivo e dolente,
[só os ecos das palavras absolvem]
e um sorriso radioactivo e dolente com a certeza absoluta
e magnífica das coisas que dançam com submarinos no sangue
[a morte ainda nos espera longe:
dará uma vida poeticamente configurada uma morte lírica?]
e no meio de tudo, [retomo], desse silêncio mais lento que o
coração que o absorve,
a ideia de que um homem inteligente
jamais colocaria as coisas do seu ponto de vista.
[e limpamo-nos um no outro]
e regressamos na ficção da boleia do pensamento
certeiro de alguém que passa no momento em que nos ocorre
que seria suficiente fazer uso do potencial pandémico deste amor
para acabar com tudo e impedir o regresso e o progresso.
[e a nossa lembrança conjunta, no tempo justo e diurno,
é a única que ainda cresce no jardim da memória.
e a chuva cessa, o sol espreguiça, são seis em ponto,
o frio de palavras inaudíveis
escuta por entre a respiração ofegante de um corpo
que rasteja devagar até mim.]
FAZ DE CONTA

[a uma mulher bonita]

faz de conta: que


a festa acabou, a felicidade continua,
e nós ainda escolhemos
o vocabulário
para nos cravarmos os dedos
na pele móbil
como o tempo que nos esquece
sem fazer de conta, sem
germinar ou colocar a nossa beleza
conjunta na ambiguidade de uma boca
maternal,
sem umas mãos que nos exonerem
da linguagem indiscutível,
veneno azul,
que nos aproxima os silêncios
que hão-de vir
e as artes materiais dos fármacos.
CAMPANHA

o candidato não deve preocupar-se


com certas questões,
são quinze dias terríveis,
e isto não é uma equipa de futebol.
aqui não há artistas e ainda temos
uma lacuna no terreno: não conhecemos
nem a ti maria, nem o zé bois,
nem boa parte da população
de risco ao H1N1
e possivelmente resistente ao tamiflu.
precisamos de mais gente,
e o voluntariado está difícil nos dias de hoje.
aqui todos têm opiniões,
[o mandatário projecta-se
dentro de si mesmo, por entre o silêncio que antes
lhe esculpiu as feições]
há uma técnica de comando e controlo,
um yin e um yang,
e temos uma auto-estima muito prodigiosa,
fortemente disciplinados quanto
à delegação de competências
e dinâmica de grupo.
por isso não entendo
como é possível passar-se à noite
de carro pelo concelho
e ver-se o candidato a colar os cartazes.
TAXONOMIA

a verdadeira taxonomia dos géneros


remete-me para a obra de ilmar laaban,
rumores claros ao arquivar o som.
e eu escrevo,
os vizinhos queixam-se da minha autonomia
e independência sonora,
do modo como bato os ovos
e concebo uma omelete de som e cassandra.
algumas pessoas circulam em mim
descalças com os pés na água índigo,
preocupadas com a estética
de um discurso ilógico sobre os bunkers
de uma identidade ocidental,
pessoas experimentais
que discutem a feminilidade em silêncio,
não entendendo nunca o papel
da tecnologia na poesia, o seu mestrado
sobre a memória contemporânea
dos meros corpos, e o elo perdido dos
vanguardistas sem contextofobias
porque os seus diplomas arderam
noutros obstáculos biográficos.
i must be free now i must be free now
and should not hesitate
i should go now but instead instead
instead there's i mean
há um século xxi por ensaiar
e um futuro neo-determinista
a colocar de costas
para a minha performance pletórax.
e eu bato, continuo a bater os ovos
até ver uma gueixa a tocar shamisen
e eu mato, e me uso comparativamente,
doo-me como um revólver quente,
e eu morro, e eu escrevo, e eu sinto.
POEMA DE BOAS-VINDAS AOS MOTARDS NA
28.º CONCENTRAÇÃO INTERNACIONAL DE MOTOS -
CIDADE DE FARO

vêm em duas rodas, as vísceras sincronizadas


com a mão direita, pensam que o futuro
é tudo o que se esquiva ao passado.
desmentem verdades absolutas,
instalam fantasias no lugar de medos,
transgridem regras
em prol de uma verdade indecisa,
picoteiam suavidades como dúvidas remotas,
redefinem caminhos, nem sempre
cientes do risco.
a sua ilusão é redundante por opção,
não precisam de falsificar a urgência
porque a sua gravidade se perde por si só.
pulverizam a cidade de faro pelo verão,
o seu barulho incendeia um próximo regresso,
enquanto o seu amor vem em pequenos monopólios.
e selam abraços de cerveja multicolor
com os seus olhos invisíveis, desaparecem
tão rápidos quão ubíquos como um tiro de luz.
ÉRAMOS TÃO NOVOS

Despertei com a tua ausência tão mal sintonizada como sempre, /


Como sempre repleta de café morno queimando os meus sonhos.
Celia Léon

éramos tão novos,


explodíamos por tudo e por nada,
lembrávamo-nos de existir
em cada pequena coisa,
atendíamos telefones públicos,
incendiávamos o silêncio com um grito,
adorávamos que nos invejassem,
bebíamos veneno para dormir.

a memória era costeira e mecânica,


havia búzios em nós, o som perfeito, esculpido
de uma cidade esvaída,
da tímida perspectiva do mar.

e só o não saber nos marcava as horas, cada minuto


desprendia os corpos mútuos,
o repetido fim interrompido ia bebendo o resto do tempo.
PROTOCOLO

kyoto, pulmões de ferro,


picar o ponto a:
delírios minúsculos,
seguir a linha dos pássaros,
feridas dissemelhantes,
ruas emparedadas no interior
dos teus canais,
aproximações da inocência,
distância entre sangues marítimos,
respiração húmida do beijo frondoso,
óculos de um gandhi-flipper
ficcionado num olhar
que ainda caminha,
cintila numa cor oca
de clarividência irresponsável,
evidencia a árvore íntegra
por cima do teu lábio
fazendo o mar ciciar
nos pulmões de ferro,
na tua cabeça livre,
no teu suave azul solúvel
gotejando isenção,
libertando substância subtil e dúctil
das coisas meramente ténues,
essas coisas, esse hábito volúvel,
esse protocolo
fragilmente feroz, fictício, nu,
flora no interior
do teu corpo ausente e frio.
TEORIA DO FIM

[a Graciela Perosio]

não sabemos o caminho de regresso / ao nosso começo.


talvez nos tenhamos perdido / no infinito caótico da criação,
o infinito no rosto que muda / noutro infinito que fica
no sorriso que intui. / tirámos todo o silêncio / das
entranhas da terra para saber que a nossa estadia mútua /
é uma marioneta nos reflexos de um e de outro, /sendo que
aqueles, os reflexos, estão condicionados pelos espíritos, signos,
ou pela maneira peculiar e inata / de se comer uma laranja azul
[mas isto, claro, é uma mera suposição].
não sabemos o caminho de regresso ao nosso começo, /
é esta a questão. / talvez porque não seja o mesmo, o caminho, /
talvez porque este não esteja exactamente no mesmo lugar
e se tenha transformado num verso [num verso em linha recta],
talvez porque o começo esteja noutro lugar ou tenha havido dois
que se cruzaram, enlearam e perturbaram,
ou talvez porque o fim tenha simplesmente mudado de lugar.
[e tudo isto, claro, são meras suposições]
EPÍLOGO

Impressiona que um escritor tão jovem produza primeiras obras tão especiais. Talvez
imperfeitas (como todas), mas, sem dúvida, especiais. Recordemos que Tiago Miguel
Serrano Pereira Nené (Tavira, Portugal, 1982) apenas havia publicado um livro em
Portugal e poemas avulsos em revistas literárias de Espanha, Portugal e México. E
especifico: a obra que tem em mãos o leitor versa sobre um dos temas poéticos por
excelência: o homem situado dentro do espaço e do tempo. O normal nos poetas jovens,
talvez devido à sua aprendizagem, é que comecem com poemas onde o eu pessoal se
confunde com o lírico e tratem temas menos substantivos como o amor passional. No
entanto, Tiago aproxima-nos do espaço/tempo sagrado por excelência, os centros
comerciais (ainda que virtuais). Talvez não sejam, na actualidade, estes centros, lugares
que substituíram os templos. Lá, cumprimos os nossos rituais de consumo enquanto o
tempo se demora. O que é o espaço, para Tiago Nené? Será um espaço arbitrário,
caprichoso, ideal? Aventuro-me a responder que não, que o seu espaço tem por objecto
o mais cruel do real quando se aproxima do Aberto segundo a concepção de Rilke.
Talvez não seja assim quando nos diz: desaparecendo / sobre todo o alimento/ do
espaço que ainda cresce.
O poeta concebe o espaço, como o faria Ana Hatherly, como um território-tempo que
contém toda a luz do mundo, intervalo por onde desliza o pensamento imaginando
imagens numa cosmovisão de sentimentos, paixões e arrebatamentos. Porque o poeta,
ainda que duvide, nunca é neutral com as palavras, e somente através de imagens entra
em comunicação com o indizível. Segundo Bachelard, a função fenomenológica da
imagem poética é a sublimação que opera mediante a mesma e que se expressa pela
abertura de um estilo único: “captar a imagem do ser na mesma brevidade efémera
de sua ontologia”. Não será esse o preciso sentido do poema que inaugura o livro onde
o autor se confessa coleccionador de imagens graças a uma câmara fotográfica? Ainda
que em última instância nos confesse que “a confusão inicia-nos as fugas /…/ todas as
horas que a bem ou a mal singram e quebram. / quem me dera poder embriagar-lhes a
sombra, desatar-lhes os nós da vida”.
Uma parte do nosso universo é luz, mas tal não significa que haja vida. Para o poeta do
algarve Tiago Nené, um espaço está vivo se conduzir a outro tempo, o que é dizer o
contrário do que acontece nos centros comerciais: esses espaços que atrasam o tempo e
para ele se iluminam com uma luz difusa, uma luz eléctrica que não produz sombras.
Mais do que templos os poetas nos fazem lembrar túmulos, mausoléus ou velórios. E
daí o diabólico e o numinoso, que é quase o mesmo, destes espaços. Talvez estejamos
dentro de um espaço sem hímen, onde o tempo suspenso nos diz: “está num não-lugar.
Ainda que sorria por o estarmos a filmar para sua segurança, actue como se nada fosse,
controle as suas emoções e não se esqueça de passar pelo duty free…” Ante esta
situação o poeta busca essa plenitude impossível de conseguir. Talvez inspirando-se no
poeta brasileiro Manoel de Barros, busca a sua “incompletude” através de um processo
que consiste em desaprender: desaprender oito horas por dia ensina os princípios.
Assim se nos revela outra parte essencial deste livro que nos fala da ânsia de plenitude,
da fome lato sensu, entendendo por fome “essa falta espantosa do ser, esse vazio que
tortura, essa aspiração, menos à utópica plenitude que à simples realidade” (Amélie
Nothomb). Num estilo febril, com quarenta de febre, omitindo maiúsculas em nomes
próprios e depois de ponto final (e que falta faz, não somos tão importantes quanto
isso), o poeta trata de descobrir as zonas de espanto do espaço, do amor, da comida, do
tempo nos seus começos e no seu fim, febril como a caótica viagem de um anti-herói do
nosso tempo, febril como uma má digestão que perdura demasiado tempo.
Esperemos que Tiago Nené não demore muito a oferecer-nos novos poemas em
próximos livros.

Jack Landes
Huelva, 30 Outubro de 2009

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