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Revista Cineclube

Academia das Musas

Cineclube Ano 1 | Edição 1 | nº 001


Distribuição gratuita

Academia
das Musas
Cineclube
Academia
das Musas
Acima, frame do
filme “Frágil como o
Ficha técnica: mundo”, de 2002
Editoração: Juliana Costa e Helena Lukianski
Revisão de textos: Helena Lukianski, Tânia Cardoso, Daniela Strack e Luciana Tubello Ao lado, Katharine
Hepburn em
Arte Gráfica e diagramação: Caroline Motta Christopher Strong,
Logotipo Academia das Musas: Eric Pedott 1933, de Dorothy
Arzner
Integrantes:
Bruna Giuliatti, Bruno Carboni, Camila Cardoso, Carla Oliveira, Daniel Strack, Daniela Strack, Eric Pedott, Abaixo, Alice Guy
Blaché selecionando
Francielle Beria, Helena Lukianski, Isabel Waquil, Juliana Costa, Leandro Hard, Leonardo Bomfim, Luciana elenco de “Fra
Tubello, Marcela Bordin, Maria Henriqueta Satt, Tânia Cardoso. Diavolo”, de 1912
Colaboradores:
Andres Costa, Beti Tomasi, Edgar Heldwein, Fernando Costa, Marcus Mello, Vitor Cunha.

Agradecimentos:
Às equipes da Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia/SMC/Prefpoa e Sala Redenção - Cinema
Universitário, Marcus Mello, Beti Tomasi, Leonardo Bomfim, Fernando e Andres Costa, Edgar Heldwein e
Vitor Cunha.
4 | Índice

8 | Rita Azevedo Gomes: A


Vingança de Uma Mulher (2012)
60 | Ida Lupino:
O Mundo Odeia-me (1953)
Entrevista de Vanessa Dias Por Francielle Beria

17 | Alice Guy (1913), Lois Weber


(1915) e Dorothy Arzner (1933)
64 | Claire Denis:
S’en fout la mort (1990)
Por Juliana Costa Por Daniel Strack

26 | Safi Faye (1975), Moufida Tlati


(1994) e Mati Diop (2009)
40 | Larisa Shepitko:
Asas (1966)
51 | Maren Ade:
Todos os Outros (2011)
67 | Jane Campion: Um Anjo em
Minha Mesa (1990)
Por Carla Oliveira Por Leonardo Bomfim Por Juliana Costa Por Leandro Hard

30 |  Agnès Varda: 42 | Maria Clara Escobar:


Os Dias com Ele (2013)
53 | Agnieszka Holland:
A Mulher Solteira (1981) 69 | AFarrokhzad,
casa é escura (Forough
Sem teto nem lei (1985) Por Leonardo Bomfim Por Carla Oliveira 1962)
Por Tânia Cardoso Por Daniela Strack

44 | Ana Carolina:
Mar de Rosas (1977)
56 | Marguerite Duras:
India Song (1975)
35 | Céline Sciamma:
Garotas (2014) Por Luciana Tubello Por Carla Oliveira
Por Helena Lukianski 71 | EXTRA
45 | Jeanine Meerapfel:
Amigomío (1993)
62 | Anocha Suwichakornpong:
História Mundana (2009)
Karen Akerman:
Talvez Deserto, Talvez

38 | Claire Carré: Por Isabel Waquil Por Francielle Beria Universo (2016)
Embers (2015) Por Marcela Bordin
Por Helena Lukianski 49 | Liliana Cavani:
O Porteiro da Noite (1974)
63 | Hélène Cattet, Bruno Forzani:
Sofrido (2009)
Por Camila Cardozo Por Francielle Beria

47 | Catherine Breillat:
Para Minha Irmã (2005)
58 | Claudia Llosa:
A Teta Assustada (2009)
Por Camila Cardozo Por Bruna Giuliatti
6 | Editorial

O
grupo de estudos Academia das Musas e difundir as suas obras. dias atuais, nos faz pensar que a “musa” inspiradora, da Cinemateca Capitólio, espaço gerido pela
foi, de certa forma, uma decorrência do Quando decidimos continuar nossos estudos é também inspirada, isto é, é objeto, ao mesmo Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia da
grupo de estudos Aurora, que começou em direção a este recorte de pesquisa - diretoras tempo em que é sujeito da criação artística, da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre.
em 2012 e resultou na Revista Aurora mulheres - achamos melhor trocar o nome do grupo mesma forma que o sujeito moderno, o sujeito do O filme debatido foi Garotas (2014), de Céline
e no fanzine Zinematógrafo. Em 2015, o grupo para que ficasse mais clara a nossa intenção. A ideia cinema. Sciamma e compareceram ao encontro naquele
Aurora realizou seus estudos em cima da tese de de batizarmos nosso grupo com o nome do filme Nos pareceu uma divertida coincidência sábado quente, cerca de 40 pessoas, número que
doutorado de Luiz Carlos de Oliveira Jr, “Vertigo - a de Jose Luis Guerín surgiu após a exibição deste assistirmos ao filme naquele momento. Academia naturalmente foi arrefecendo com o decorrer do
teoria artística de Alfred Hitchcock e seus desdobra- em uma sessão especial que aconteceu em Porto das Musas é a apropriação de duas ideias que ano. Tivemos mais dois encontros na Cinemateca,
mentos no cinema moderno”, que parte do estudo Alegre, dentro do projeto Sessão Plataforma. Em de certa forma questionamos com as práticas do debatendo os filmes A Vingança de Uma Mulher
do clássico Hitchcockiano como uma tese sobre a Academia das Musas (2015), que é uma resposta ao nosso grupo de estudos: a “academia” como único (2014), de Rita Azevedo Gomes e Para Minha
imagem e a representação. Em capítulo dedicado filme anterior do diretor – como o mesmo revela em local legítimo de produção de conhecimento e de Irmã (2004), de Catherine Breillat. A partir de
a discutir o ponto de vista feminino em Um Corpo entrevista – Na Cidade de Sylvia (2007), temos uma pesquisa, e “musas” como entidades femininas de então passamos a nos reunir na Sala PF Gastal,
que Cai (1958), surgiram conversas interessantes “escola” de arte e filosofia, formada basicamente culto da beleza e da inspiração. Apropriar-nos de sala municipal da cidade, gerida pela mesma
sobre o tema e, a partir das discussões geradas, por mulheres, onde o professor Raffaele Pinto conceitos históricos (subvertendo-os) pareceu mais coordenação, na Usina do Gasômetro, um centro
após o fim da leitura da tese, resolvemos continuar (!) explora teoricamente a figura das “musas” na interessante do que jogá-los na fogueira. Tomado cultural público localizado na orla do Rio Guaíba.
nossos estudos por este viés. Porém, nos pareceu história da filosofia ocidental, enredando-se com as como reflexão ou como chiste, é um nome que nos Desde então, nosso grupo pesquisou e
pouco produtiva, e também pouco sedutora, a ideia estudantes e sua esposa em relações de sedução, diz respeito: a sala de cinema é nossa Academia e debateu cinematografias diversas: as pioneiras de
de trabalharmos com questões da representação de poder e de disputa intelectual. Em determinada nos inspiramos em nossas musas inspiradas. Hollywood, Alice Guy Blaché, Lois Weber, Dorothy
feminina ou da mulher no cinema, por acreditarmos passagem do filme, uma das personagens lamenta- Nosso primeiro encontro aconteceu no Arzner e Ida Lupino; cineastas Africanas, Safi Faye,
que faríamos sempre as mesmas análises a partir de se por ter perdido um namorado que tinha nela dia 06 de janeiro de 2016, após Moufida Tlatli e Mati Diop; Iranianas, Forough
diferentes objetos. Decidimos que nos interessava uma fonte de inspiração ao mesmo tempo que a uma chamada aberta pelo Farrokhzad, Shirin Neshat, e Samira Makhmalbaf;
pensar no ponto de vista da mulher por meio da inspirava a escrever, por se tratar de um romance facebook, na Sala Multimídia cinema erótico, de horror, entre outros. Durante o
sua produção fílmica, através da história do cinema. epistolar. O professor, ao consolá- ano de 2016 o grupo também realizou sessões de
Essa escolha também vem ao encontro da opção la, pondera que a escrita, a exibição públicas em parceria com instituições como
por fazer uma pesquisa afirmativa. Não obstante as poesia, está nela, e que o Instituto Goethe, a Sala Redenção – Sala e Cinema
críticas a respeito da falta de mulheres no campo au- esta a encontrará (a Primeiro filme debatido Universitário da UFRGS, a própria Coordenação
diovisual (completamente acertadas), conhecíamos poesia) também em na Sala Multimídia da de Cinema, Vídeo e Fotografia, além de marcar
poucas (ou não conhecíamos, na verdade) iniciativas outros amantes. Cinemateca Capitólio encontros em salas de cinema comerciais para
que estudassem as cineastas que conseguiram de Assim, o filme faz foi Garotas (2014), de assistir em grupo filmes de diretoras mulheres em
Céline Sciamma. Na foto,
fato produzir seus filmes dentro da(s) história(s) do uma interessante Karidja Touré e Idrissa
cartaz. Os encontros são quinzenais e acontecem
cinema – é de conhecimento público que no início reflexão a respeito Diabaté sempre aos sábados pela manhã.
da indústria cinematográfica as mulheres ocupavam da passividade Entre os projetos para atividades de
diversas funções, como diretoras, roteiristas e mon- ou da atividade 2017, está a presente publicação, com textos de
tadoras, e que este número reduz drasticamente da figura integrantes do grupo e convidados, sobre grande
entre as décadas de 30 e 70, quando então as mu- mitológica parte dos filmes estudados e debatidos ao longo
lheres começam a se organizar para uma retomada, da musa, de 2016. Esperamos que esta produção, além de
ainda assim ainda não alcançamos o patamar do transpõe divulgar a obra de cineastas importantes da história
cinema realizado por homens. Então a ideia era (e esta do cinema e da contemporaneidade, instigue outras
é) fazer uma pesquisa das mulheres que fizeram reflexão iniciativas como a nossa.
cinema ao longo da história e de realizadoras atuais, para os
8 | Entrevista

Entrevista com Rita


VSD – Qual foi o ponto de partida para fazer o
Vanessa Sousa Dias – Como nascem as ideias Altar?
dos seus filmes? RAG – O Altar também começou com um

Azevedo Gomes
texto que me obcecou, queria-o na íntegra, o que
Rita Azevedo Gomes – Na maior parte das era impossível — 40 páginas para um actor sozinho.
vezes nascem de um texto, um texto que me sugere O que condiciona as coisas e as ideias iniciais são as
qualquer coisa. No caso do Frágil [como o Mundo] foi possibilidades de as executar – que normalmente não
uma notícia de jornal, sobre uns miúdos adolescentes, são as que ambicionamos. Ora, eu não tinha subsídio
um rapaz e uma rapariga, encontrados mortos muito (concorri, mas nunca o tive) e sonhava fazer o filme
Por Vanessa Sousa Dias compostinhos, deitados, sem sinais de violência, à
sombra de uma azinheira num campo do Alentejo.
nos Açores, tinha arranjado lá um sítio extraordinário
e estava a ver-me a trabalhar ali. A falta de dinheiro
Era uma daquelas histórias que ninguém percebia, obrigou-me a filmar numa casinha emprestada, no
dois miúdos que se matam: como é que morreram – Montejunto, a fingir que era ao pé do mar. Quando
porque, aparentemente, nas vidas deles estava tudo foi preciso o mar lá fomos ter com ele, faz de conta
bem e nada sugeria que o pudessem fazer – foi isso que era logo diante do terraço da casa. Quer dizer: eu
que deu o Frágil [Como o Mundo]. tenho uma certa elasticidade e consigo meter-me no

A
entrevista com a cineasta Rita Azevedo Entrevista conduzida por Vanessa Sousa Dias No caso de A Colecção Invisível, foi outro acaso: que posso, não no que quero mas no que tenho, e é
Gomes foi originalmente realizada pela comprei um livro num alfarrabista no Porto porque por isso que consigo fazer filmes. Se estivesse à espera
pesquisadora Vanessa Souza Dias para o livro Oriunda de Lisboa, cidade onde nasceu em achei graça à capa – gosto muito de coisas gráficas de subsídios nunca mais filmava (apenas tinha perdido
Novas&Velhas tendências no cinema por- 1952, Rita Azevedo Gomes tem abraçado projetos na – depois vi que eram contos do Stefan Zweig, e o essas batalhas de que saímos humilhados). Cruzar os
tuguês contemporâneo, uma publicação do Centro área do cinema, do teatro e da direção artística desde livro ficou lá em casa durante imenso tempo até que braços não faz o meu gênero, tenho de me manter
de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC), os anos 70, atividades essas que tem desenvolvido um dia o li. Eu estava a ler um dos contos e já estava em pé e de continuar a trabalhar. Se não me querem
coordenado por João Maria Mendes. Sediado na em paralelo com a sua carreira de artista gráfica. completamente no filme. Depois há sempre uma apoiar, paciência. Limito-me muito ao que posso: se
Escola Superior de Teatro e Cinema e financiado pela Trabalha atualmente na Cinemateca Portuguesa como ligação entre textos: mesmo no Frágil como o Mundo, só tenho quatro dias para filmar, tento filmar nesses
Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Resultado programadora e na vertente das publicações. o script é composto por um bocado de texto daqui, quatro dias — e às vezes as dificuldades até dão coisas
do projeto de investigação Principais tendências no outro dali, coisas de que gosto. Faço ali uma manta de muito boas.
cinema português contemporâneo, a pesquisa do Filmografia: O Som da Terra a Tremer (1990), retalhos – de algum modo trata-se de roubar, mas as
livro iniciou-se em abril de 2009 e foi concluída em O Cinema Vai ao Teatro (1996), Intromissões (sobre coisas estão lá e gosto delas, gostava de as ter dito eu, VSD – Ainda sobre as ideias e o processo de
novembro de 2011. Além de Rita Azevedo Gomes, a obra de Manoel de Oliveira) (1998), King Arthur mas não me sinto uma patifa por ir lá buscá-las. escrita: trabalha sozinha, com outros?
foram entrevistados grandes nomes do cinema (1999), Frágil Como o Mundo (2001), Altar (2002), A Há um filme em que se deu um caso diferente: RAG – Com outros só depois, porque tenho
português – Margarida Gil, João Canijo, Teresa Villa- 15a Pedra: Manoel de Oliveira e João Bénard da Costa A Conquista de Faro foi uma encomenda da Faro imenso pudor, incertezas: o que me acontece muitas
verde, Miguel Gomes, João Pedro Rodrigues, Manuel em Conversa Filmada (2004), A Conquista de Faro Capital Nacional da Cultura 2005; convidaram-me vezes, por exemplo n’ A Colecção Invisível, é que desde
Mozos, entre outros. Como descrevem os autores, o (2005), A Colecção Invisível (2009), A Vingança de uma para fazer um filme sobre a cidade e pensei: “Não muito cedo já estou a pensar no filme – o senhor que
principal interesse do livro é entender o que pensam mulher (2012), Correspondências (2016)* tenho nada a ver com Faro nem gosto especialmente não vê e que tem aquelas imagens todas –, tudo é
realizadores, produtores, distribuidores e exibidores da cidade”. Então telefonei para Agustina Bessa-Luís e absorvido pelo filme que já tenho em mente, e é-me
sobre o cinema português. * Os últimos dois filmes da filmografia de Rita Azevedo Gomes não constam perguntei-lhe se havia algum escritor algarvio, poeta, muito difícil chegar àquele ponto em que tenho que
no arquivo original dessa entrevista e foram adicionados pelas editoras
da revista com o objetivo de atualizar essa informação, deixando-a o mais ao qual eu pudesse ir beber qualquer coisa e ela dizer “isto está aqui e tem que ficar na sequência; isto
completa possível. escreveu-me um texto original. é muito interessante mas não está cá a fazer nada”.
Isto aconteceu-me na primeira versão de O Som
da Terra a Tremer e estive seis anos com o script...
10 | Entrevista

tudo o que eu gostava entrava para o script, mudei o mudo muita coisa, entra muita coisa que não estava embora”. ideias muito concretas: tinha estado no Pico e queria
script em casa, sozinha, e depois, quando finalmente prevista. O script é uma espécie de esboço, mas há aquele azul do Atlântico, a rocha preta e a floresta.
fui fazer o filme, fui buscá-lo e ele estava atulhado, várias formas de trabalhar com ele: há pessoas que VSD – Na folha da Cinemateca correspondente Depois fui lá, encontrei edifícios e confirmei, “só pode
metade ficou de fora. têm tudo escrito, o Hitchcock até dizia que a rodagem ao Altar os nomes das pessoas que trabalharam ser aqui”. Mas cada pessoa custaria 70 contos, mais
era enfadonha porque já estava tudo feito, ele odiava no filme surgem corridos (“filme feito por”), em a estadia... e acabou-se. Aconteceu-me pior com o
VSD – Seis anos num script é muito. Quanto fazer o filme, rodar; nada de imprevistos ou de coisas vez de serem destacados cargos e funções. Os seus Som da Terra a Tremer: três dias antes de começar a
tempo demora a consolidar uma ideia e a escrevê-la? inesperadas; mas isso é o que me está sempre a filmes pertencem, também, às pessoas com quem filmar telefonei para Nápoles, para o Antonio Orlando
RAG – Demoro até poder fazer o filme – quem acontecer: no Frágil [como o Mundo], queria filmar trabalha? (ator), a dizer que finalmente tinha o bilhete de avião
me dera que fosse amanhã, mas nunca é. Estamos em certo sítio e acabei por ir para Vila Franca de Xira, RAG – Sim, aparece isso assim, mas é porque para ele vir, e responde um senhor com uma voz igual
em 2009 e A Conquista de Faro foi feito em 2005, para cima da auto-estrada, numa casa horrível, tive de fizemos todos de tudo: o Jorge Lopes é um grande à dele (o pai), e em napolitano, que eu não entendia,
quero dizer, não andei só a pensar neste filme [A mudar tudo. amigo e sabe imenso de Fotografia, mas ajuda-me diz-me que o Antonio Orlando tinha morrido num
Colecção Invisível, 2009]. Tenho mais dois com que no que há para fazer, se for preciso segurar na perche desastre de automóvel. Tinha-o conhecido no Rei das
ando há dez anos na cabeça. Preciso de tempo para VSD – Quando está a escrever faz contactos segura; se for preciso ir buscar alguém de carro vai. Rosas [Werner Schroeter, 1986]. Para o Altar eu tinha
arranjar condições técnicas e é muito difícil fazê-lo com produtores? No som não tinha ninguém, mas um dia veio o [José] pedido um subsídio ridículo, contra todas as regras,
sem dinheiro. Não sou eu que o imponho, é-me RAG – Pode acontecer, mas normalmente Barahona; no outro dia não havia ninguém e fazíamos de 6.500 contos ao ICA e deram-mo, à 5a ou à 6a vez.
imposto pela vida, mas depois desse tempo – que é os produtores viram-me as costas. Ou fazem nós; ou telefonava e vinha a Michelle [Chan] fazer Aparentemente estavam a tentar subir a fasquia para
terrível, custa muito e é desmoralizante –, olhando como o Paulo Branco: “sim, sim, vamos submeter uma perninha, mas só à tarde, e portanto era um 50 mil, e eu, armada em sirigaita, ia fazer o filme com
para trás, vejo que por alguma razão houve esse o seu projeto, concorra para o dinheiro”; nunca aglomerado de coisas feitas em grupo. Ou o Edmundo 6500. Depois o Fernando Lopes deu-me película e lá
tempo. Isto não significa que prefiro as coisas assim, me defendem. Com as produtoras tenho tido, [Díaz], que fez a Fotografia: no último fim de semana se fez o filme, mas quando eu disse, “o ator não vem,
eu preferia trabalhar sem estar naquela angústia. A infelizmente, situações pouco gratificantes – e não ainda tínhamos de fazer cenas à beira-mar com o não existe Antonio [Orlando]”, foi muito violento e eu
pessoa enfraquece: digo-me muitas vezes – porque digo que não haja pessoas que tenham feito coisas René Gouzenne, e o Edmundo vira-se para mim e diz só tinha três dias para encontrar outro. Estava tudo
são muitos anos – que se calhar era melhor acabar, extraordinárias – porque normalmente os meus “Rita, desculpa, mas isto não estava previsto, eu não preparado para o filme, tinha equipa mas cheguei a
mas não; acabar não é opção, portanto vai-se vivendo filmes são filmes sem dinheiro eles ficam afastados. Se posso mais, tenho a família e um filho que vai nascer”. perguntar-me “o que é que eu faço? Fecho o filme?”
como se pode, vai-se andando. Sempre me fizeram tivesse muitos subsídios e dinheiro, tinha produtores. Portanto fiz eu a câmara, mas sempre a telefonar ao Foi o único script que escrevi a pensar num actor e de
confusão aqueles que ganham o subsídio e só Edmundo [Díaz]: “Qual é o botão? A câmara não liga!”, repente nada daquilo fazia sentido. Decidi avançar e
começam a filmar daí a dois anos, ou nem fazem o VSD – A Coleção Invisível teve uma tudo isto no meio de ventania, o René [Gouzenne] fui para o Bairro Alto à procura de um ator, encontrei
filme. Como é possível? Nunca estive na situação de participação financeira da Fundação Gulbenkian. aflitíssimo porque tinha o comboio para Paris (ele um rapaz a servir num bar, o Miguel [Gonçalves],
dizer “agora não vou filmar, não estou preparada”. A RAG – Sim, a Gulbenkian foi simpática e interrompeu os ensaios do Becket para vir fazer o ele veio fazer o filme e eu mudei tudo porque a
fome é tanta, que lá vou eu. participou, mas com menos de 15 mil euros. Os filme) e era um senhor de idade, e estava naquelas personagem tinha acabado.
equipamentos, a câmara e o material de som, foram ansiedades e a câmara não arrancava. Portanto o que
VSD – Escreve guiões técnicos? Como se emprestados, por exemplo, as luzes eram do Acácio eu podia escrever na ficha técnica? E até gosto desses VSD – Salvo esse acidente, tem conseguido
materializam as ideias? [de Almeida]; o mesmo se passou na pós-produção, filmes que têm os nomes assim, todos seguidos. trabalhar com os actores e actrizes que quer?
RAG – Faço sinopses porque me pedem, faço o e depois vieram o Tiago de Matos e o Joaquim Pinto RAG – Tenho. Às vezes há acasos, como a Anna
script porque no princípio tinha de se apresentar um para as misturas som, foi o céu! Às vezes também me VSD – Como costumam ser as suas repérages? Leppänen; fiz A Conquista de Faro com a Rita Durão
script no IPC (atual ICA). Não gosto de fazer guiões, pergunto: se esta gente toda adere a mim, de certeza RAG – Faço imensas repérages. Quando e gostei muito de trabalhar com ela, e com a Leonor
reconheço que fazer guiões é bom, ajudam porque que não é porque sou bonitinha e tenho 20 anos, isso estou com um filme na cabeça chego a um sítio e Baldaque também correu tudo muito bem – mas não
arrumam as ideias, mas não tenho nada aquele acabou. É porque querem fazer o filme. Devo-lhes digo “podia ser aqui”, começo logo a adaptar-me sabia como é que ia fazer com o “rei”, por exemplo,
preciosismo do script e da descrição de cenas. Quando isso. Não vou desistir porque é a única paga que ao local: “se tiver de filmar aqui, como é que faço?”. e andava aflita à procura de um ator. Tenho muita
faço essas tretas, e para mim são tretas, é porque lhes posso dar, é dizer “tanto me apoiaram que eu Em qualquer sítio começo a ver como é que seria. dificuldade com os atores homens, não via nenhum;
mo exigem. Eu decido muito na altura, na filmagem não posso dizer que já não me apetece, que me vou Quando tive a ideia de fazer o Altar nos Açores, tinha pus-me à procura na Internet, e de repente vejo o
12 | Entrevista

João Reis: não sabia quem ele era, mas deram-me um fazer e refazer, tudo, desde penteados a maquiagem, princípio que estão sempre a inventar e a reinventar
filme do Canijo onde ele entrava, e eu já estava outra mas isso é natural: a pessoa que fez interpretou de e a fazer e a improvisar: o Acácio [de Almeida] está VSD – Porque motivo é que essa pessoa reteve
vez na véspera de filmar. Pensei “vou experimentar, uma maneira, e eu também não tive tempo para lhe sempre à procura, nunca sabe tudo. Mas às vezes, é o material?
vou falar com ele” (ele tinha acabado de casar com a explicar o que queria. É complicado, porque pode verdade, há muitas incompetências. RAG – Não sei, estava com medo que eu fugisse
Catarina Furtado). Telefonei-lhe e ele estava em lua de ser ofensivo para as pessoas, mas não pode ser de e não lhe desse o filme? Estava convencido que
mel, do outro lado do mundo, mas disse-me “mande- outra maneira. Quando eu refaço e as pessoas vêem, VSD – Já lhe aconteceu dispensar alguém da tinha ali a galinha de ovos de ouro porque pensava
me o script por e-mail” e eu mandei-lho, e ele disse entendem e até aderem. Mas nestes casos, com equipa por se ter revelado incompetente? que o filme ia para Cannes? Queria que eu lhe desse
que sim. Chegou da lua de mel com jet lag mas às oito pouco tempo, acontecem coisas como esta: não RAG – Por incompetência não, mas por o dinheiro da Gulbenkian? Não sei. No genérico
da manhã estava em Bucelas de fato, porque ainda conheço, por exemplo, o diretor de Fotografia, Jorge questões de gosto sim – foi uma zanga que durou uns aparece “A Produtora” porque me obrigam a ter
por cima eu pedi-lhe para trazer uns casacos, e não Quintela, que chegou na véspera de filmar outra coisa anos e hoje somos amicíssimas, foi uma questão com uma produtora; não posso mandar um filme para
ganhou um tostão! Gostei imenso dele. Mas está a em Serralves e caía ao chão de cansaço; adormecia a pessoa que estava a fazer os décors do Frágil como o Montreal, tem que ser uma produtora; e não vou abrir
ver o estado em que eu estava, era o primeiro dia e eu em pé, etc. E eu a ver que não tinha tempo, e então Mundo, uma pintora muito criativa, muito plástica, e uma empresa de produção, não quero, não gosto nem
nunca o vira, e ele chegou completamente apardalado naqueles primeiros três dias de adaptação só ouço: que assumiu aquilo como um quadro dela e foi por ali sei. Tinha de haver um produtor portanto pus lá “A
e com sapatos, calças e casacos para eu escolher, foi “mas porque é que ela quer isto; porque é que este fora. Um dia cheguei ao décor e disse “Ó Adriana, não Produtora” e toca a andar.
fantástico. me põe a câmara aqui?” Mas ao quarto dia eles é nada disto”, e ela levou a mal, ficou magoada porque
começam a entender e a dizer “estou muito contente veio trabalhar comigo no maior dos entusiasmos e VSD – Quando vê o material sente que fica
VSD – Costuma ensaiar com os atores? por ter vindo fazer este filme”. E dois dias depois acaba eu tive de pensar “não se trata de mim, é o filme, muito material em falta, ou que devia ter repetido
RAG – Nunca tenho tempo suficiente para a rodagem, portanto não chega a haver formação da é o que fica”. Mas tenho problemas normalmente takes?
trabalhar com atores porque, como trabalho à equipa, e quando ela começa a criar corpo já acabou com as pessoas da produção: estão ali e podiam nem RAG – Eu tenho muito medo de ver o material,
pressão, numa semana, por exemplo, encontro-me tudo. Eu acho que o trabalho primordial do realizador estar. No Frágil como o Mundo foi terrível, porque porque sei que vou querer mudar tudo, mas também
quanto posso com eles antes da rodagem. Depois, no é a atenção, para não irmos atrás da primeira de repente aparece o Paulo Branco e está ali aquele não resisto a vê-lo. No Frágil como o Mundo o Paulo
local, tudo muda: no caso particular d’ A Conquista de borboleta que nos passa à frente. Tem de haver uma tempo todo e até é ótimo, mas muita gente estava ali Branco só me deixava ver uma percentagem mínima
Faro, enquanto andavam para lá a pregar – porque atenção geral e pessoal, até nesses pormenores, no set a fazer não sei o quê, gente que nunca entra do material por dia, ora eu tinha planos de dez
eu também fazia isso tudo, o décor, mesmo neste “como é que vou falar com o Jorge Quintela sem ferir nem nunca sai, está ali com walkie talkies... essa parte minutos – filmava dois planos, um com dez e outro
[A Coleção Invisível] fui eu que fiz tudo, pintei, não a pessoa?” Enfim, nunca houve problemas, mas é nunca correu bem. com quatro – e só podia ver um minuto.
havia outra hipótese – e n‘ A Conquista [de Faro] era a tudo muito mais difícil sem tempo de preparação, sem
mesma coisa, tive de improvisar ali algumas coisas... E haver preparação. VSD – Relativamente à pós-produção: quando VSD – E na montagem prescinde de muito
enquanto se montava aquilo tudo eu meti-me numa é que vê o material? material ou sente que há coisas em falta?
sala ao lado com a Rita [Durão] e com o João [Reis] e lá VSD – As pessoas com quem tem trabalhado RAG – Vejo quando posso. Se puder ver RAG – Eu nunca penso no que está em falta,
discutimos, normalmente é assim. têm-se relevado competentes ou sente que por vezes durante a rodagem vejo, mas n’ A Coleção Invisível, na montagem faço como faço para a filmagem. Acho
algumas coisas falham? por exemplo, não consegui por falta de tempo, tinha que nunca me aconteceu poder fazer um plano que
VSD – Que dificuldades e limitações tem RAG – Acontece falharem coisas mas isso é que lá estar cedíssimo ainda para fazer décors e não me faltasse, nunca tive essa hipótese: chamar toda
encontrado durante as filmagens? normal. Tenho tido sorte com os técnicos — com sei mais quê, e não tinha tempo para ver o material. a gente outra vez é impossível. Estar tudo disponível
RAG – Muitas, sobretudo imensas limitações de as pessoas que fazem som e imagem, etc. – mas No último dia pedi para ver tudo e, lá está, tinha e junto durante uma semana já é um trabalhão: se
tempo. N’ A Coleção Invisível tive de tomar decisões há coisas que são complicadas no que toca à parte uma pessoa que me estava a apoiar na produção – acabou, acabou. Chego à montagem, e o que está,
brutais e todos os dias deitava fora quatro ou cinco visual e estética: como é que eu posso explicar o inclusivamente como produtor e foi muito feio – disse- está.
cenas – e ainda bem, porque se calhar não estavam décor que está ali? O melhor é fazê-lo eu; se quero me “não, agora o material não sai da minha mão” e
lá a fazer nada. Se calhar é problema meu porque umas flores artificiais, de papel com desenhos, tenho reteve-me o material durante duas ou três semanas, VSD – Que tarefas ficam reservadas para a pós-
eu delego, percebe, mas depois quando vejo o que de as desenhar eu, senão nunca mais lá chegamos. portanto não consegui mais trabalhar com ele. produção áudio e imagem?
está feito nunca fico satisfeita, portanto tenho que Normalmente as pessoas, as melhores, partem do RAG – Depende do filme, mas normalmente
14 | Entrevista

com o som tenho dificuldades. No Som da Terra a a gravar, ia para Sintra às três da manhã e levava um promocionais? E como tem sido a sua relação com os também senti, da parte de cineastas portugueses,
Tremer não tinha ninguém fixo para fazer o som, um DAT. Acho que todas as pessoas que filmam deviam festivais? uma espécie de “está lá quietinha”, até de amigos
dia vinha o Victor [Ribeiro], no dia seguinte já não fazer som, porque o som, só por si, situa-nos face ao RAG – Aí está uma parte em que também sou que fazem cinema, “faz lá a tua vida mas não te
vinha; no Frágil [como o Mundo], por exemplo – tinha filme de uma maneira completamente diferente. coxa: quando chega esta parte da promoção não sei metas nisto, não te queremos cá”. E o fato de eu ter
tudo muito montadinho com o Paulo Branco – tinha fazer nada, não dá para divulgar nada. Queria ver feito um filme com cinco tostões também caiu mal,
o Philippe Morel — mas aquilo não correu nada bem. VSD – Que músicas são usadas no Altar? se arranjava uma distribuidora que pegasse nisso, como se me estivessem a dizer “olha esta agora a
Já filmei sem som nenhum de referência e depois, RAG – O tema principal é uma canção em mandar para não sei quantos festivais, mas sou uma estragar-nos tudo”. Acabei por fazer o Frágil como
quando tinha aquilo tudo feito, ter de dobrar diálogos, dinamarquês, que se chama “Altar”, e no fim do filme trouxa nesse aspecto e claro que, por exemplo, do o Mundo sozinha, e o Paulo Branco (produtor) só
até de refazer textos que encaixassem nas imagens. A há uma coisa no Teatro São Carlos, na ópera, porque festival de Montreal, um dia mandaram-me um e-mail entrou, quando já estava tudo preparado (castings,
Coleção Invisível correu bem, porque o David Almeida no fim pedi à Susana Moody, cantora em São Carlos, a dizer “andamos há dez dias a tentar falar consigo preparação, roupas, tudo). O subsídio só chegou
Ribeiro veio de Madrid para fazer o filme, e depois que me cantasse aquilo a capella, sem nada, o que porque queríamos o filme e você não responde”. depois da rodagem. Mexi-me tanto no Frágil [como o
o Olivier Blanc também fez som e dobragens, fez as é difícil – ela vinha de um espetáculo no Norte, em Respondi “quero, quero” e cinco minutos depois Mundo], eu falava com diretores de serviços florestais
vozes do [Jorge] Molder no corredor, aquele texto da Trás-os-Montes, veio de camioneta, e quando chegou recebo cinco e-mails de departamentos do festival a – e aquilo em Sintra é tudo pago ao preço de ouro
Rita, etc... Mas é normal haver complicações. vinha quase sem voz – e o Nuno [Leonel] do som veio pedirem cartazes, trailer e eu não tinha nada. e eu não paguei um tostão, o Paulo não pagou um
gravar aquilo. Ela aprendeu a letra em dinamarquês tostão, porque eu fiz tudo sozinha, montei aquilo
VSD – Costuma participar no design da banda e cantou-me aquilo ali assim ao cru no Teatro São VSD – E relativamente às cópias legendadas, tudo: uma rua é 120 contos ou 200 ou 300 por dia ou
sonora? Carlos, com aquela acústica. E tenho coisas do teve algum apoio à parte? à hora, depois vai a dar uma curva e ali já pertence a
RAG – Eu tenho umas ideias normalmente, Roberto Murolo, um italiano. RAG – Não. A Conquista de Faro era difícil outra área, já não pertence ao Parque Natural, e eu
mas no caso d’ A Coleção Invisível, por exemplo, para de traduzir – não me vou pôr a traduzir Agustina ia para aquelas reuniões com aqueles senhores dizer
a cena final das panorâmicas eu tinha uma música VSD – Nos projetos que apresentou para [Bessa-Luís] para inglês – e pedi a uma pessoa, a um “é aquela zona ali, onde há a curva”, e eles diziam
e a cena foi filmado com essa música, só para dar financiamento, foi a Rita que fez o orçamento? tradutor, que fizesse aquilo e paguei. No Frágil [como “ah, mas isso já não é nosso”, mas enfim, lá consegui
a referência do movimento e para ajudar o [Jorge] RAG – Não sei fazer orçamentos, peço sempre o Mundo], como era o Paulo Branco o produtor, pagou todos os décors à borla, menos uma praça, porque a
Quintela – porque o chão era podre e quanto eles ajuda – e depois há disparates, quando começam a a um tradutor. Neste caso eu fiz a tradução (francês) e Edite Estrela (então presidente da Câmara) descobriu
tiravam os móveis todos, aquilo abanava tudo – e pôr não sei quanto para não sei quê. Não sei fazer depois tinha um amigo que é melhor a francês e pedi- que aquilo era uma produção da Madragoa, do Paulo
portanto, a música é que dirigia, em parte. Faço isso às orçamentos, preciso imenso de ajuda, não percebo lhe para ele rever tudo. Não é uma coisa de que goste, Branco, e exigiu dinheiro.
vezes, ponho música para dirigi-los e, na preparação, nada dos preços, não tenho nenhuma noção. Uma vez fazer a tradução.
eu própria estou a ouvir música, a música dirige-me ajudou-me a Maria Vaz da Silva, “dá cá o script e eu VSD – Tem trabalhado com pessoas de
a mim também, “esta música é aquilo”, e às vezes até faço-te isso”. O único que fiz foi o do Som da Terra a VSD – Numa entrevista da internet, nacionalidade estrangeira?
a levo para a rodagem e ponho-a a tocar para eles Tremer: atirei para lá um valor e a coisa pegou à quinta relativamente ao filme O Som da Terra a Tremer, vi RAG – Trabalhei com o [William] Lubtchansky,
entrarem, ajuda imenso. Neste caso toda essa música tentativa. A pessoa que está a fazer o orçamento faz- que o filme não passou em circuitos comerciais, mas que foi fabuloso, ele estava muito doente, a viver
que eu tinha na cabeça desde o início, que era uma me perguntas “mas aqui o que é que quer?”, Agora, só em alguns festivais. na província, fora de Paris, e um dia apanhei aqui o
coisa de Mozart, e também uma Sinfonia de Mahler, por exemplo, o filme que gostava de fazer chama-se RAG – Eu pedi isso ao Paulo Branco, ele dizia- [Jean-Marie] Straub e a Danielle [Huillet] e estava
mas de repente o Joaquim Pinto disse-me “não pode A Portuguesa, é um conto do Musil e tem um texto me sempre que sim, mas depois nunca acontecia. aflita para a Fotografia – já não sei de que filme – e a
ser, tens que mudar”, impôs-me aquela canção final: original da Agustina Bessa-Luís. É um filme de época, Danielle [Huillet] disse “fala, fala com ele, que ele dá-te
foi a primeira vez que veio muita coisa do Joaquim com comitivas, um castelo, mas não vou filmar num VSD – Depois da sua primeira longa-metragem umas sugestões”, e pronto: de uma cabine telefônica
Pinto e do Nuno Leonel, porque eu costumava fazer castelo, vou filmar numa casa, vou pintar um cenário, ficou dez anos sem filmar – o que motivou essa telefonei-lhe e foi fabuloso, deu-me indicações, “eu
tudo: cheguei a fazer música para o Frágil como o portanto esta conversa tem de ser tida com quem faz paragem? não posso, infelizmente” – ele estava muito mal,
Mundo, fui com umas bolhas, vidro e cataplanas para o orçamento... RAG – Foi muito complicado porque fiz O mas deu-me indicações. E trabalhei com o [Antonie]
fazer uns sons de que precisava, misturados com Som da Terra a Tremer, e ele não saiu; depois houve Bonfanti no som do Frágil como o Mundo.
violino, e foi muito engraçado porque estava sozinha VSD – Costuma pensar em materiais uma grande divisão nas pessoas sobre o filme e
16 | Entrevista

VSD – Há diferenças entre portugueses e VSD – Quais têm sido as suas influências em Alice Guy Blaché, Lois Weber e
três pioneiras
estrangeiros, ao nível de métodos de trabalho? termos artísticos? Ontem, na antestreia d’A Coleção
RAG – Se calhar há um bocado essa ideia de Invisível, houve um plano em particular (do Jorge
que porque é estrangeiro é melhor, mas isto é a nossa
mania portuguesa, e às vezes é verdade, outras vezes
Molder em primeiro plano, um plano longuíssimo)
em que a expressão do ator parecia saída de Dreyer. Dorothy Arzner:
do cinema americano
não. Há pessoas cá super talentosas, por exemplo,
o Acácio de Almeida é uma pessoa extremamente RAG – Não, não foi por isso, mas gosto imenso
talentosa. de Dreyer, por exemplo, no Frágil como o Mundo citei
o Dreyer de trás para a frente: o cachimbo, o senhor
VSD – Qual a sua relação com o digital e com a das barbas, a família. É engraçado porque ninguém
película?
RAG – O meu último filme é mini DV. Eu não
me fala do Dreyer, e aquilo, na minha cabeça, era
totalmente à beira do plágio – uma espécie de Por Juliana Costa
gosto de DV, acho que o dv não foi feito para ser apropriação, não sei devida ou indevida, mas também
projetado, é para ser vista no leitor, no ecrã de 70 cm. não tenho esses pudores. No caso da expressão do
Ainda têm que arranjar uma coisa que seja projetável. Jorge Molder não, nem me passou tal coisa pela
E depois vai a cassete não sei para onde e aquilo é cabeça: aquilo foi mais uma vez um recurso que eu

O
projetado e sai uma porcaria, já não tem nada a ver pensei na rodagem, aconteceu que nessa semana início da indústria cinematográfica estejam engajadas”. Dessa primeira fase destacamos
com o filme mas as pessoas não sabem. É muito de rodagem todos os dias os atores, que não são americana foi marcado por grandes para pesquisa as diretoras Alice Guy e Lois Weber,
estúpido, acho que as pessoas não exigem nada, profissionais, chegavam e diziam “olha, afinal amanhã mulheres em lugares de direção, que tiveram colaborações bastante distintas e igual-
qualquer coisa serve e portanto não percebo como é não posso vir porque...”. Ora eu tinha ali o Jorge roteiro, montagem e produção dos mente importantes no cinema americano do início
que não há recusas. Por exemplo, fui a Turim com o Molder, e cristalizei ali tudo na cara dele – e se calhar filmes. Cineastas como Alice Guy Blaché, Lois Weber, do século, e Dorothy Arzner, que veio a ser a única
Altar, mas aquele não é o filme que eu fiz, a projeção não foi má ideia. Mabel Normand; roteiristas como Francis Marion, mulher diretora da época de ouro de Hollywood.
era tão lastimável – o festival era o lançamento de As minhas influências são o Nicholas Ray, o Anita Loos, June Mathis - também a primeira mu-
toda a gente, na altura, agora já não – de repente [Carl Theodore] Dreyer, [Werner] Schroeter, [Robert] lher produtora executiva de Hollywood -, e Mary
vejo aquilo e parecia uma polaróide carregada de Bresson, mas se estou diretamente com eles quando Pickford - co-fundadora do estúdio United Artists e Alice Guy
verdes e de amarelos; tentei ir ao projecionista, filmo, ou seja, se estou a pensar num deles, nunca da Academy of Motion Pictures Arts and Sciences
simpatiquíssimo, e pronto, aligeirou-se um pouco consigo – quando quero fazer uma coisa de que -, entre outras, foram nomes fundamentais nos Alice Guy Blaché foi a mais importante rea-
a coisa, fiquei aterrada e não descansei enquanto gostei muito não consigo, sai sempre mal, é incrível: anos do primeiro cinema e do cinema mudo. Para lizadora da virada do século e a diversidade da sua
não pus o Altar em película. A película inspira mais já me aconteceu isto com um plano qualquer de se ter uma ideia da importância das mulheres nesta produção vai de belas vistas e experimentos visuais,
confiança porque fixa a coisa. Fiz uns testes com pormenor, quis fazê-lo de certa maneira mas não indústria, estima-se que na folha de pagamento de montagem e narrativos, tendo feito o primeiro
alta definição e aquilo também não em convenceu, dava, era sempre mentira, artificial, não colou. A do Universal Studio, entre 1912 e 1919, havia 11 filme narrativo de ficção da história do cinemaii, até
eu punha a câmara nos Restauradores e aqui um propósito d’ O Som da Terra a Tremer, disseram-me diretoras mulheres responsáveis pela realização de a realização de longa-metragens. São atribuídos a ela
cabelo de alguém, e o cabelo parecia nylon, aquelas que estava ali o “universo de [Andrei] Tarkovsky”, e cerca de 170 filmes durante o período. Em 1915, a mais de 1000 filmesiii produzidos entre 1896 e 1922.
cabeleiras de nylon, e do lado de lá da praça passava eu nunca tinha ouvido falar do Tarkovsky, nunca tinha Motion Picture Suplement (uma das primeiras re- Após a morte de seu pai, Guy começou como tipista
uma pessoa com a mesma nitidez. Depois houve visto filme nenhum dele e tive vergonha, mas imensa vistas especializadas em cinema, fundada em 1911, e datilógrafa na Companhia Gaumont em 1894, aos
outra coisa que me enervou, é que se filmasse em alta gente me falou do Tarkovsky, amigos, críticos. Quando que manteve suas atividades até 1977) publicou um 21 anos, um ano antes da fundação da companhia
definição tinha que fazer em 16.9, ou então tinha que finalmente vi filmes dele, por acaso nem fiquei artigo intitulado “Women’s conquest in filmdom” por Leon Gaumont. Logo tornou-se a principal
pôr depois um artifício na montagem, uns efeitos em apaixonada, acho muito açucarado, muito retocado. em que dizia: “Não se pode nomear uma única encarregada da empresa e foi sob a sua direção que
que punha umas máscaras, mas isso já vai intervir a Não estou a dizer que não seja bom, mas não é ali que vocação, seja no lado artístico ou comercial do seu a companhia se expandiu. Consta que Alice estava
imagem. eu me revejo. progresso (do cinema), no qual as mulheres não com Leon Gaumont no dia 22 de março de 1895, na
18 | Artigo

primeira exibição de filmes dos Irmãos Lumiére, com (1905), nos quais Alice opera com um sistema de considerados inutilizáveis devido a uma falha técnica dos Estados Unidos, assim Alice Guy torna-se a
os quais os dois em breve viriam a trabalhar. De se- sincronização de som e imagens, o “Chronophone”vi em seu regressovii. É característica dos filmes desta primeira mulher a estar à frente de uma companhia
cretária, gerente logística, responsável pelos contatos de tecnologia avançada para a época. De meados de primeira fase o experimentalismo tecnológico e de de cinema nos Estados Unidos. Nos catálogos oficias
com clientes e engenheiros de equipamentos foto- outubro até o final de novembro de 1905, Alice Guy manipulação da imagem. Sem dúvida a sua relação dos filmes das duas companhias, não constam os
gráficos e de filmagem, Alice viria a ocupar também viaja pela Espanha (Barcelona, Zaragoza, Madrid, com técnicos e engenheiros do cinema como secre- filmes produzidos no período de 1907 a 1910, que
funções criativas e roteirizar, produzir e dirigir seus Córdoba, Sevilha, Gibraltar, Granada, Serra Nevada e tária e encarregada da Gaumont deram a ela um co- seria a “fase americana” da Gaumont, o que nos leva
próprios filmes. Em 1896, produz então o primeiro Algeciras) com seu cameraman, Anatole Thiberville. nhecimento técnico dos equipamentos de filmagem a crer que esta expansão não deu muito certo, ou ao
filme narrativo de ficção da história do cinema “A A dupla fez diversos filmes em teatros e ao ar livre, e mesmo dos processos de produção e revelação das menos esta tentativa.
Fada dos Repolhos” . iv
registrando costumes locais, ruas e vistas de paisa- películas, que poucos possuíam no período. Logo Na Solax, seu marido trabalhou como gerente
Pelo sucesso deste filme, passou a produzir gens, silenciosos e com som. Infelizmente, muitos Alice começaria a experimentar também em suas de produção e diretor de fotografia e Alice Guy como
e a dirigir várias películas para a produtora. São da dos filmes sonoros realizados nesta viagem foram narrativas e formas de contar as histórias. diretora artística, dirigindo muitos de seus lançamen-
fase de seu trabalho na Gaumont, De volta a Paris, a partir de 1906, a cineasta tos. Durante os dois anos em que teve sucesso, a
por exemplo, os filmes de peças de começa a rodar muitos filmes com a duração de um Solax Company começou a carreira de vários atores e
dança, muitas vezes coloridos à mão, carretel (cerca de 13 minutos), com narrativas mais transformou em estrelas artistas como Darwin Karr e
como vários Serpentine Danse’s, (de sofisticadas, que eram grande sucesso de público. Blanche Cornwall, que estrelaram uma série de me-
1897 a 1902), Danse Fleur de Lotus Três exemplos desta fase são “Anarchiste” (1906), lodramas críticos ao sistema social, como A Man’s a
(1897), Ballet Libella (1898), Danse que conta o episódio de um menino salvo pela mãe Man (1912), The Roads That Lead Home (1913), The
du Papillon (1900) e Le Danse des da execução por soldados franceses; “Heroine” Girl in the Armchair (1913), e The Making of an Ame-
Saison (1900)v, entre muitos outros (1907), filme sobre uma pequena menina que foge rican Citizen (1911), filmes de ação, como The Detec-
deste gênero. Dessa fase também da sua mãe, vive várias aventuras em um parque tive and His Dog (1912) e o filme multi-carretéis The
são os filmes cômicos, coreografados e, sozinha, acaba ajudando a polícia a prender um Pit and the Pendulum (1913)viii, de 30 minutos de du-
ou com truques de montagem do ladrão; e “Les Résultats du Féminisme” (1906), uma ração. Karr e Cornwall também estrelaram comédias
tipo “some e aparece”, como “The crítica ácida e bem humorada aos papéis sociais de como A Comedy of Errors (1912), Canned Harmony
Burglars” (1898) e “The Landlady” homens e mulheres, em que ela imagina um mundo (1912), His Double (1912), e Burstop Holmes’ Murder
(1900). Suas vistas lumerianas, ou com as tarefas invertidas: homens cuidando da Case (1913). Outros filmes da Solax de comédia de
registros de realidade, alcançam casa e das crianças enquanto as mulheres bebem e travessuras de Guy que se destacaram são Cupid
também uma sensibilidade muito fumam nos bares. É desta fase também o ambicioso and the Comet (1911), e What Happened to Officer
específica, destaco o filme “Bathing “La vie du Christ” (1906), um filme de 35 minutos, Henderson (1913). Há também o filme perdido In
in a Stream” (1897), em que Alice fil- feito de pequenas cenas, com um grande orçamento the Year 2000 (1912), em que os papéis de gênero
ma um grupo de jovens se banhando para a época. Com título autoexplicativo, o filme con- masculino e feminino são completamente
em uma queda d’água. Entre seus ta a história de Jesus Cristo por meio da encenação invertidosix, fazendo uma alusão ao seu filme do pe-
vários experimentos, estão “Avenue das passagens bíblicas: a chegada da família santa ríodo da Gaumont francesa Le Résultats du féminis-
de l’Opéra” (1900), em que a rea- em Belém, nascimento de Cristo, cura de Lázaro, me (1906). Grande parte destes filmes de um carre-
lizadora inverte o filme e faz com julgamento de Poncio Pilatos, crucificação e ressur- tel fílmico, que tinham duração de 12 a 15 minutos,
que todos se movimentem de trás reição. foi sucesso na época e Alice e Herbert eram grandes
para frente, e seus incríveis experi- Em 1907, casa-se com Herbert Blaché e parte nomes na indústria cinematográfica nascente.
mentos em busca do cinema sonoro para Nova Iorque, onde ele atuaria como gerente de Após estes lançamentos, o casal pode fazer
como em “Dranem Performs ‘Five produção local da Companhia Gaumont. Em 1910, investimentos em novas tecnologias de filmagem e
O’Clock Tea’” (1905) e o “Félix Mayol o casal se associa a George A. Magie para fundar a instalações de produção da companhia em Fort Lee,
Performs ‘Indiscreet Questions’” Cartaz do filme “House of Cards” (Alice Guy Blaché, 1917) Companhia Solax, o maior estúdio pré-Hollywood Nova Jersey, onde muitos dos primeiros estúdios
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americanos estavam instalados no período. Assim, Apesar de Guy não ser exatamente uma mi- em 1905, na Companhia Gaumont Americana (dois outros cinco estúdios pequenos para formar o Uni-
a partir de 1912, começaram a produzir filmes mais litante das questões de gênero, e da realizadora ter anos antes da chegada do casal Blaché), e dirigiu seu versal Film Manufacturing Company, permanecendo
longos, utilizando o comprimento de um carretel feitos filmes de todo o tipo, de westerns a comédias primeiro curta metragem em 1911, A Heroine of como subsidiário deste. Em 1913, dirigiu uma versão
ao limite e até fazendo algumas produções de dois de costume, muitos de seus filmes (talvez a maior ‘76xiii, juntamente com Edwin S. Potter e seu marido, do The Picture of Dorian Gray, de Oscar Wilde, com
carretéis. Um marco da produtora, Dick Whittington parte) trazem personagens femininas bem trabalha- Phillips Smalley, com quem viria a dirigir a muitos de Wallace Reid como Dorian Gray. Até 1917, Weber
and His Ca” (1913)x, teve o comprimento de três das, de todas as faixas etárias (de crianças a idosas), seus filmes. Em 1916 ela era a realizadora mais bem produz e dirige filmes para a Universal, com um
rolos (45 minutos), um orçamento de US$ 35.000, e protagonistas em relação ao seu destino, cômicas e paga da Universal Studio (entre homens e mulheres) breve hiato em 1914, ano em que, pela relutância do
filmagens super elaboradas (incluindo a queima de independentes, além de abordarem com sensibili- e foi considerada pelo pesquisador Anthony Slide, Estúdio Universal em produzir um longa-metragem,
um barco). Foi o projeto mais ambicioso do estúdio e dade temas do universo feminino. Alguns mais sutis ao lado de D. W. Griffith, como “o primeiro ‘autor’ o casal migra para Bosworth, a companhia de Julia
também de Alice Guy, e, provavelmente, a obra-pri- como os que trazem personagens femininas infantis genuíno americano, uma cineasta envolvida em to- Crawfordxix, onde realizou Hypocrites, banido em
ma de seu período de Solaxxi. Ainda assim, a empresa como protagonistas da trama e agentes da narrativa, dos os aspectos da produção e que utilizou a película vários estados americanos pela nudez frontal da
acaba contraindo dívidas, talvez por não se adaptar como em “Heroine” (1911) e Falling Leaves” (1912), para externar suas próprias ideias e filosofias”xv. Lois atriz que representou a alegoria Verdade. Em 1915,
bem às narrativas mais longas que o período exigia, e outros mais enfáticos como “Les Résultats du Fémi- Weber foi considerada, junto com D. W. Griffith e Weber e Smalley retornam à Universal, tornando-se
em 1913, para fugir da influência do Banco Seligman nisme” (1906) e In The Year 2000 (1912). Os temas Cecil B. DeMille, uma das “três grandes mentes” da uma das diretoras mais bem pagas do período. Lá
(ao qual já pertencia boa parte da empresa em fun- sociais também são importantes para Guy, como Hollywood nascente, apesar de ter sido marginaliza- goza da liberdade almejada para criar seus filmes,
ção dos empréstimos), Herbert Blaché sai da Solax e em The Making of an American Citizen (1911), em da em relação aos seus contemporâneosxvi. desde a escrita de os roteiros, a escolha dos atores,
funda sua própria companhia, a Blaché Features. Bla- que trata da questão dos imigrantes na América. Em Weber foi a cineasta que primeiro utilizou das locações, até a planilha de orçamento. Carl
ché utiliza estúdios, cenários e figurinos e atores da “Pierrette’s Escapades” (1900), Arlequim, Pierrô e o split screenxvii para mostrar ações paralelas, em Sus- Laemne, diretor da Universal em 1915 declarou: “Eu
Solax, o que faz as duas empresas quase indistinguí- Colombina interagem em uma cena coreografada de pense (1913), curta-metragem de 13 minutos que confiava à Senhora Weber qualquer soma de dinhei-
veis no início. Blaché e Guy se alternam na produção intriga amorosas, em que os dois personagens mas- inaugura o gênero no cinema. Ainda teve os olhos da ro que ela precisasse para fazer qualquer imagem
e na direção de filmes média e longa-metragens na culinos são interpretados por mulheres e acabam se censura da época voltados a ela ao filmar o primeiro que ela quisesse fazer”xx.
empresa de Blaché, até que em 1914 a Solax é final- beijando ao final da película, lançando mão de ques- nu frontal feminino da história do cinema em Hypó- Este reconhecimento se deve ao sucesso de
mente extinta. No final de 1914, as demandas do tões sobre comportamento, sexualidade e gênero. crites (1915). Entre seus pioneirismos estão também Weber nas bilheterias, mas, sobretudo, à sua postura
mercado passam para cinco ou mais rolos de filmes, Apenas a partir dos filmes recuperados e disponíveis ter sido, junto com seu marido, um dos primeiros em relação ao trabalho criativo. Em suas palavras:
o que implicava produções de mais de uma hora de para pesquisa já é inquestionável a importância da diretores a experimentar o som no cinema, fazendo “Um diretor de verdade deve ser absoluto. Ele (ou
duração, “então o casal se une à Popular Plays and obra de Alice Guy para a história do cinema, o desen- os primeiros filmes sonoros nos Estados Unidosxviii ela, neste caso) só sabe os efeitos que ele quer
Players, uma produtora que produzia filmes” para volvimento da linguagem cinematográfica e o nas- - sabendo que Weber iniciou sua
distribuidores como Metro, Pathé e World Film. A cimento da indústria norte-americana, mas apenas carreira com Alice Guy e Herbert
“The Price of a Good Time” (Lois Weber, 1917)
parceria com a produtora termina em 1916, quando com investimento em pesquisa e restauro dos seus Blaché na Gaumont americana
os Alice e Herbert, atuando como US Amusement filmes que teremos ideia do tamanho de sua obra. em 1908, seria natural presumir
Corporation, decidem fazer seus próprios negócios que o casal tenha iniciado Lois nos
de distribuição com os mesmos clientes que compra- experimentos sonoros e mesmo na
vam seus filmes da Popular Plays and Players. Neste Lois Weber indústria cinematográfica. Foi tam-
período, Guy dirige sete longa-metragens, incluindo bém a primeira mulher a dirigir um
Ocean Waif (1916)xii e The Great Adventure (1918), Diferentemente de Alice Guy, e por ser de filme longa-metragem, The Mer-
estrelado por Bessie Love, para Pathé Players. Alice um período um pouco posterior, Lois Weber conse- chant of Venice (1914), igualmente
continua dirigindo filmes até 1922, quando, após guiu migrar melhor das produções de um ou dois em parceria com Phillips Smalley.
se separar de Herbert, volta para França com seus carretéis da primeira quinzena do século XX para Em 1911 o casal Weber e Smalley
dois filhos. Lá começa a lecionar cinema e a escrever os longa-metragens de mais de 60 minutos do final ingressa para a Rex Motion Picture
revistas e novelas a partir de roteiros fílmicos. dos anos 10. Weber iniciou sua carreira como atriz Company, que em 1912 se uniu a
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produzir, e só ele deve ter autoridade no arranjo, “pregadora”, já que defendia o cinema como forma demitiu em massa um grande números de mulheres não pudesse dirigir um filme, em 1927, Arzner realiza
corte, titulação ou qualquer outra coisa que possa de direcionar um discurso às massas, mas sempre em diversas funções, além de não creditar nenhum sua primeira produção como cineasta, Fashions for
parecer necessário fazer para o produto acabado. teve personalidade em suas convicções, adotando filme (à exceção de Lois Weber) a uma mulher até o Women. O sucesso foi tanto que no mesmo ano
Outro artista tem seu trabalho interferido por outra muitas vezes uma ideologia de cunho mais progres- ano de 1982xxv. Muitos filmes desta época, dirigidos ainda dirige Ten Modern Commandments e Get Your
pessoa?... Devemos perceber que o trabalho de um sista ao defender o controle de natalidade (mas não por mulheres, ainda são de difícil acesso mesmo Men, e, em 1928, Manhattan Cocktail, todos da fase
diretor de imagem, digno de um nome, é criativo”xxi. o aborto), e atacar a pena de morte. Abordou o tema para o público americano. Muitos estão perdidos do cinema mudo. Em 1929, foi convidada pela Para-
Destas declarações, bem como dos relatos de seu da pena capital, em The People vs. John Doe (1916), e outros aguardam processo de restauração. Já mont para filmar o primeiro filme sonoro do estúdio,
modo de trabalho, podemos inferir uma autora de contracepção e aborto, em Where Are My Children? existem diversos projetos de mapeamento, restauro estrelado por Clara Bow, The Wild Party (1929), cuja
personalidade, que controla (ou quer controlar) (1916), pobreza e desigualdade social, em Shoes e digitalização desse material, para lançamento em versão silenciosa havia editado anteriormente, e
todas as etapas de produção de seus filmes e que (1916), e a hipocrisia social das classes médias ame- DVD, que estão em fase de financiamento através de ainda Sarah and Son (1930) e Anybody’s Woman
sabe bem aonde quer chegar, como e por que. Desta ricanas, em Hypocrites (1915), entre outros temas fundos específicos e crowdfunding na internetxxvi. (1930), ambos com Ruth Chatterton e Honor Among
segunda fase no Universal Studios, Weber e Smalley “estabelecendo o poder do cinema para envolver Na segunda metade dos anos 20, grandes ban- Lovers (1931) com Claudette Colbert. Em The Wild
lançam Where are my Children (1916), Shoes (1916), questões de interesse para o público popular”xxiii. cos assumiram o controle das companhias de produ- Party, para que Clara Bow tivesse liberdade de
The Eye of God (1916), entre outros. Mentora de muitas mulheres na indústria, Weber ção Hollywoodiana, também os investimentos foram movimentação no set de filmagem, os técnicos de
Quando deixa a Universal, em 1917, para abrir logo conquistou um lugar nas primeiras organizações aumentando com a introdução do som nos filmes e, Arzner montaram um mecanismo de captação de
sua própria empresa, a Lois Weber Productions, sua profissionais, denunciando os papéis limitados dispo- em 1929, Hollywood acatou a lista de temas ‘tabus’ som com um microfone acoplado a uma vara de
influência na indústria cinematográfica americana já níveis para as mulheres no cinema dos anos 1920, e do cinema americano, que mais tarde chamou-se pescar, criando em essência o que viria ser o boom.
é enorme. Weber instala seu estúdio em Los Ange- protestando contra o crescente clima de hostilidade Código Hays. O ambiente foi ficando cada vez mais Apesar da diretora não ter patenteado a ideia, e de
les, e passa a negociar contratos de distribuição com em relação às diretoras.xxiv hostil para as mulheres e Dorothy Arzner foi a única um engenheiro da Fox o ter feito um ano depois, Do-
a Universal, tornando-se por um tempo o diretor Apesar da sua importância para Hollywood, cineasta que continuou dirigindo filmes durante a rothy sempre foi creditada por sua invençãoxxvii. Foi a
mais bem pago de Hollywoodxxii. Em seu estúdio, We- Weber e seu estúdio, assim como tantos outros, não época de ouro dos grandes estúdios Hollywoodianos primeira mulher a dirigir um filme sonoro e também
ber pode produzir filmes mais íntimos, voltados às fizeram bem a transição da década de 20 para a de (ao final dos anos 40, Ida Lupino, que funda uma a primeira a integrar a Directors Guild of America, um
experiências das mulheres, como em What do Men 30, com o advento do cinema sonoro. Seus filmes, companhia independente com o seu marido para importante sindicato de artistas e profissionais do
Whant? (1921), Two Wise Wifes (1921) e The Blot ainda mais do que os de Alice Guy, são de difícil aces- produzir e dirigir filmes de baixo orçamento, também entretenimento.
(1921), além de fazer experimentos em sua forma de so, existindo poucas cópias disponíveis e estas pou- seria uma exceção à regra por muitos anos). Suas personagens femininas possuem uma
produção como filmar mais em locações externas e cas de má qualidade. A cópia em melhor estado de Arzner foi a cineasta que mais realizou filmes capacidade de escolha e de ação pouco vistas no
em sequência narrativa. Após o fim do casamento de conservação disponível é do seu sucesso Suspense no cinema americano até os dias de hoje. São 21 período e, apesar do tom um pouco moralista
Weber e Smalley em 1922, a produção da empresa (1913). Alguns outros títulos podem ser encontrados produções como diretora, oito como montadora e para os dias atuais, sobretudo nos finais, suas
diminui consideravelmente, até acabar. Weber ainda no Youtube, todos sem legendas em português. seis como roteirista. Dorothy começou muito jovem protagonistas são mulheres livres e independentes,
escreve e dirige mais cinco produções até 1934, a escrever roteiros para a companhia que mais tarde com domínio de suas vidas sexuais e participantes
antes de parar definitivamente, que não tiveram se tornaria o Paramont Studio, no qual produziu de intrincados jogos amorosos que elas mesmas
o sucesso da época de ouro do casal, enquanto Smal- Dorothy Arzner grande parte dos seus filmes. Seu primeiro trabalho provocam, além de algumas possuírem carreiras
ley segue sua carreira apenas como ator. de sucesso foi como montadora do filme Blood and estabelecidas ou estudarem em universidades. Seus
Sobre suas posições políticas, apesar de Com o advento do cinema falado, o estrei- Sand (1922), de Fred Niblo, com Rodolph Valentino e filmes são exemplos do que era Hollywood nos três
possuir uma visão de mundo um tanto conservadora tamento das distinções das funções nas etapas de Lila Lee. Neste trabalho, economizou alguns milhares anos antes do Código Hays de Produçãoxxviii. Working
para os dias atuais, Weber tratou em seus filmes de realização dos filmes (que até então eram mais de dólares nas cenas com touros, misturando ima- Girls (1931) é um retrato amargo das mulheres em
temas controversos, utilizando a linguagem cinema- flexíveis), e o aumento da lucratividade da indústria, gens de arquivo e cenas filmadas, o que impressio- Nova Iorque nos anos da depressão, e, parece ter
tográfica nascente como plataforma para a discussão mais homens foram ocupando postos importantes nou muito o diretor James Cruze, com quem seguiu inspirado a diretora feminista Lizzie Borden, para, 55
de questões sociais e filosóficas importantes. Foi nos estúdios enquanto as mulheres foram ficando à colaborando por muitos anos. Após ameaçar deixar anos depois, ter usado o mesmo título em um filme
julgada por tratar destes temas quase como uma margem. A partir da década de 20, o Universal Studio o Paramont para se mudar-se para Columbia caso sobre a exploração cinematográfica das profissionais
24 | Artigo

do sexoxxix. Em 1932, Arzner deixa a Paramount para todo.”xxx Seus filmes inspiraram a primeira crítica tografia nos últimos anos, como uma retrospectiva primeiro objetivo era provar que era competente:
trabalhar de forma independente, dirigindo filmes feminista do cinema, como o ensaio de Claire no Festival de San Sebastian em 2014, sobretudo em “A competência era muito mais importante do que
para RKO, United Artists, Columbia e MGM. Durante Johnston, de 1975xxxi. Pode não ser possível (e nem mostras LGBT’s, como Stonewall Columbus LGBTFest, o brilho ou a originalidade para tornar sua carreira
esse tempo, fez Christopher Strong (1933) com desejável) localizar uma sensibilidade feminina no em 2016. possívelxxxiii. Essas são algumas das questões que têm
Katherine Hepburn, Craig’s Wife (1936) com Rosalind seu trabalho como diretora, mas podemos notar Situar seu trabalho na indústria nos ajuda a mantido a pesquisa em Arzner, e que podem ajudar
Russell e The Bride Wore Red (1937) com Joan a forte ênfase nas relações entre as mulheres nos entender não só a sua estratégia pessoal de sobrevi- a compreender como esta diretora fez tão bem a
Crawford. Em 1943, sem nenhum motivo registrado, filmes The Wild Party (1929), Working Girls (1931), e vência neste meio, mas também suas decisões cria- transição entre o cinema mudo e o cinema falado,
se afasta da indústria cinematográfica – desconfia-seDance, Girl, Dance (1940). Arzner também tem sido tivas em relação aos gays e lésbicas que trabalhavam enquanto outras cineastas mulheres não consegui-
de um conflito envolvendo Louis B. Mayer -, vindo fonte predileta de críticos e teóricos de filmes queer em Hollywood dos anos 20 aos anos 40. Assim, seu ram.
a produzir um programa de rádio, peças de teatro, que buscam encontrar em algumas de suas caracte- i
Universal Women: Filmmaking and Institucional Change in Early Hollywood, ucpress.edu/book.php?isbn=9780520284463
lecionar cinema no Pasadena Playhouse e dirigir uma rizações, como a personagem de Catherine Hepburn de Mark Garret Cooper. xvii
Split Screen, ou tela dividida, é uma técnica em que se divide o espaço
série de 50 comerciais para Pepsi, a convite de Joan em Cristopher Strong (1933), por exemplo, uma ii
Universal Women: Filmmaking and Institucional Change in Early Hollywood, da tela em duas mais seções para mostrar ações paralelas ou relacionar
de Mark Garret Cooper. imagens.
Crawdford. subversão relacionada ao seu lesbianismo. Arzner iii
https://en.wikipedia.org/wiki/Alice_Guy-Blach%C3%A9 xviii
National Women’s History Museu, “Women Behind the Camera: Womens
É uma das cineastas que mais tem recebido colecionou romances com atrizes hollywoodianas, iv
“La Fée Aux Choux” (1896) ou “A Fada dos Repolhos”, é um filme de 53 as Directors, em https://www.nwhm.org/html/exhibits/film/8.html
olhares de pesquisadoras do cinema feminista e das mais conhecidas às mais anônimas, mas viveu segundos que se refere a uma lenda sobre o nascimento dos bebês. No xix
Julia Crawford Ivers foi uma importante roteirista, diretora e produtora
filme, uma “fada” dança em um cenário bem construído, simulando uma americana da era do cinema mudo americano.
teóricos queer “tanto pelo seu trabalho como pelas grande parte de sua vida com a coreógrafa Marion plantação de repolhos, enquanto “colhe” bebês reais e bonecas das plantas. xx
Turner Classic Movies: The Blot, em http://www.tcm.com/this-month/
possibilidades críticas sugeridas pelas abordagens Morgan, com quem trabalhou em Dance, Girl, Dance Colocando as crianças em destaque em primeiro plano e as bonecas ao article/212812%7C0/The-Blot.html
fundo, Alice compõe uma mise-en scène bem elaborada para a época. Filme xxi
Antonhy Slide, Silent Feminists, p 38, em https://allangraysimagination.
feministas para a leitura do trabalho como um (1940). Apesar de ser uma das mulheres mais estu- disponível no Youtube. wordpress.com/2009/09/24/women-filmmakers-2/
dadas da indústria ameri- v
Todos os filmes citados da fase Gaumont estão disponíveis no Youtube. xxii
Site Women Film Pioneers Project, https://wfpp.cdrs.columbia.edu/
vi
O termo Sound-on-disc se refere a um tipo processo de filme sonoro que pioneer/ccp-lois-weber/
cana, tendo sua obra utiliza um “fonógrafo” ou outra faixa para gravar ou ainda um som playback xxiii
Apresentação do livro Lois Weber in Early Hollywood, no site http://www.
recuperada nos anos 70 em sincronia com as imagens em movimento. ucpress.edu/book.php?isbn=9780520284463
Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Sound-on-disc xiv
Apresentação do livro Lois Weber in Early Hollywood, no site http://www.
por intelectuais do movi- vii
Site oficial Alice Guy, catálogo de filmes Gaumont, em http://aliceguybla- ucpress.edu/book.php?isbn=9780520284463
mento feminista, numa che.com/sites/default/files/pdfs/Gaumont_Filmography.pdf xv
“Women’s Cinema as Counter-Cinema” in: Claire Johnston (ed.), Notes
tentativa de codificar ele-
viii
Está disponível no Youtube um trecho de seis minutos deste filme. on Women’s Cinema, London: Society for Education in Film and Television,
ix
Site Women Film Pioneers Project, https://wfpp.cdrs.columbia.edu/ reeditado in: Sue Thornham (ed.), Feminist Film Theory. A Reader, Edinburgh
mentos do que seria um pioneer/ccp-alice-guy-blache/ University Press 1999, pp. 31–40.
“olhar feminino” – ten- x
Este filme, assim como quase todos da Solax, não encontrei disponível para xvi
Pioneers First Movie Filmakers é um projeto da distribuidora nova iorquina
pesquisa. Os únicos filmes deste período existentes no Youtube são The Ma- Kino Lorber, para a restauração digital e o lançamento de caixas de Bluray’s
tativa que ao longo dos king of an American Citizen (1911), Canned Harmony (1912), Falling Leaves com filmes das pioneiras de Hollywood, que arrecadou outubro a novembro
anos mostrou-se ineficaz (1913) e Burstop Holmes’ Murder Case (1913). de 2016 quase 50 mil dólares no site Kickstarter: https://www.kickstarter.
xi
Site oficial Alice Guy, introdução da filmografia de Guy-Blaché por Alison com/projects/kinolorber/pioneers-first-women-filmmakers?ref=project_sha-
já que pressupõe que McMahan, em http://aliceguyblache.com/sites/default/files/pdfs/Featu- re
exista um padrão do que re_Films_of_Alice_Guy_Blache.pdf xvii
Do site Senses of Cinema, http://sensesofcinema.com/2003/great-direc-
xii
Está disponível no Youtube um compilado quatro minutos de cenas deste tors/arzner/
pode ser considerado filme. xviii
Código Hays foi um conjunto de regras de censura adotado a partir de
“de mulher” ou mesmo xiii
O filme trata sobre a filha de um estalajadeiro que, durante a Revolução 1930 com o objetivo de subordinar produções cinematográficas e teatrais a
“feminino”xxxii -, os filmes Americana, descobre um plano para assassinar George Washington, padrões morais da época.
enquanto ele vai ficar na pousada de seu pai. Weber também atua como a xxix
Do site Senses of Cinema, http://sensesofcinema.com/2003/great-direc-
de Dorothy são de difícil protagonista do curta-metragem. tors/arzner/
acesso e muitos em xiv
Anthony Slide trabalhou muitos anos como arquivista associado no xxx
Site Women Film Pioneers Project: https://wfpp.cdrs.columbia.edu/
American Film Institute e como historiador fílmico na Academy of Motion pioneer/ccp-dorothy-arzner/
péssimo estado de con- Pictures Arts and Science. Publicou diversos livros sobre o primeiro cinema xxxi
Site Women Film Pioneers Project: https://wfpp.cdrs.columbia.edu/
servação. Esta realidade americano e sobre a indústria cinematográfica de entretenimento e produziu pioneer/ccp-dorothy-arzner/
e dirigiu alguns documentários sobre estes temas, entre eles The Silent xxxii
Do site Senses of Cinema, http://sensesofcinema.com/2003/great-direc-
parece estar mudando Feminists: America’s First Women Directors (1993). tors/arzner/
a partir do interesse na xv
Lois Weber Film Collection, em http://www.gptx.org/city-government/ xxxiii
Site Women Film Pioneers Project: https://wfpp.cdrs.columbia.edu/
city-departments/library/lois-weber-film-collection pioneer/ccp-dorothy-arzner/
Fredric March e Clara Bow em “The Wild Party” (Dorothy Arzner, 1929) exibição da sua cinema- xvi
Apresentação do livro Lois Weber in Early Hollywood, no site http://www.
26 | Artigo

Safi Faye, Moufida Tlatli e Mati Diop da história africana, comumente transmitida por sendo explorado na capital e retorna a Fad’jal, quan-
tradição oral. Atuou em seu filme Petit à Petit (1970) do finalmente casa com Columba, reafirmando sua

A diversidade do cinema
e, em seguida, viajou a Paris para estudar etnologia e identificação com seu povo. O filme, dedicado ao avô
cinema, complementando sua formação em Berlim. de Safi Faye, que participa do filme e morre poucos
Graduada, retornou ao Senegal, pensando em pre- dias depois de sua finalização, é narrado em francês

africano realizado por mulheres


servar a África em seus filmes, principalmente a Áfri- por ela, mas todos os outros diálogos são em wolof,
ca da zona rural, da pequena aldeia de sua família. a língua africana falada no Senegal. O filme teve
Dedicamo-nos ao seu primeiro longa, Carta apoio francês, foi vencedor do prêmio da crítica no
Camponesa (1976), um filme epistolar, no qual Festival de Berlim, mas foi censurado em seu próprio

Por Carla Oliveira


escutamos Safi Faye, em voice over, narrando a um país.
amigo o cotidiano dos camponeses de Fad’jal, o Safi Faye voltará ao povoado de sua família em
povoado de origem serere de sua família. O filme seu segundo filme, o documentário Fad’jal (1979).
foi realizado na época das chuvas, que no ano em Sua última realização foi um longa-metragem de fic-
questão foram parcas, levando o povoado, depen- ção, Mossane (1996), apresentado em Cannes, onde
dente da agricultura, a uma crise econômica. Uma conta a história de uma menina que, aos 14 anos,
imponente árvore é ponto de encontro do povoado: atingiu a idade para casar.

O
cinema africano é múltiplo em sua negritude, engajada na luta pela independência de sob ela, as crianças brincam e imitam os mais velhos,
diversidade. Nos países de colonização países africanos, particularmente de Angola, merece os adultos discutem os efeitos da seca, criticando o
francesa, ele floresce após o processo também um justo papel de destaque como pioneira sistema neocolonial e a estrutura econômica que os Moufida Tlatli
de independência, que ocorreu em no cinema africano. afoga em impostos, e os
1956 na Tunísia e no Marrocos, em 1960 nos países Mesmo com tais características comuns, há anciãos passam seus co-
da África subsaariana francófona e em 1962, após grande pluralidade no cinema africano, como um nhecimentos através da
sangrentas lutas, na Argélia. O vínculo que a França reflexo do multiculturalismo do continente. Neste oralidade. O respeito aos
manteve com as ex-colônias por meio de suas polí- primeiro ano de Cineclube Academia das Musas, es- ancestrais e às crenças
ticas culturais e de apoio ao cinema foi importante tudamos a obra de três distintas cineastas africanas: africanas são registra-
para o desenvolvimento deste, o que não impediu Safi Faye, etnodocumentarista, representante da dos. Ela nos apresenta
que a crítica aos sistemas coloniais e neocoloniais e primeira geração de diretores senegaleses; Moufida a Ngor e Columba, um
às culturas patriarcais se tornasse uma característica Tlatli, premiada diretora tunisiana, que aborda o uni- casal de namorados que
marcante do cinema africano desde o seu início. verso feminino em seu país com marcada influência não pode se casar, pois
Nesse contexto, a representação da mulher tendeu islâmica; e Mati Diop, cineasta da diáspora africana, Ngor não tem dinheiro
a ser positiva. Encontramos personagens femininas que retorna ao Senegal de sua família em seus fil- para o dote que deve pa-
fortes tanto em filmes realizados por homens, como mes. Falemos um pouco mais sobre elas: gar à família de Colum-
em A Negra de... (1966), primeiro longa-metragem ba. Ele vai a Dakar com
realizado por um cineasta da África negra, o pio- a intenção de trabalhar
neiro Ousmane Sembene, quanto por mulheres. Safi Faye e conseguir o dinheiro
A aguerrida personagem Maria, de Sambizanga necessário. Diferenças
(1972), primeiro longa-metragem realizado na África Nasceu em 1943, em Dakar (Senegal). Conhe- entre a vida e os valores
por uma diretora mulher, Sarah Maldoror, é um ceu o cineasta e etnografista francês Jean Rouch no da cidade grande e da
exemplo. Sarah Maldoror, natural das Antilhas fran- Festival de Artes Negras de Dakar de 1966, evento pequena aldeia são
cesas, negra, marxista, promotora do movimento de no qual se destacou a importância da preservação destacadas. Ngor acaba “Os Silêncios do Palácio” (Moufida Tlatli, 1994)
28 | Artigo

A influência islâmica é muito grande nos dos príncipes, nasceu no andar de cima. Ao cresce- de vista da memória, abrindo espaço para os arre- uma fogueira, sob o céu africano, com o ruído das
países do norte da África que compõem a região do rem, as meninas se tornam amigas. Alia, bastarda e pendimentos. ondas do mar ao fundo. Eles discorrem sobre partir
Magrebe francófono: Argélia, Tunísia e Marrocos. sem perspectivas de sair do palácio, desvendando, Assistimos ao seu curta-metragem Atlânticos ou ficar na terra deles. Partir para tentar uma vida
A língua oficial nesses países é o árabe, que, na sua aos poucos, por trás das cortinas, os silêncios e se- (2009), em uma sessão seguida da apresentação do melhor na Europa, mesmo assombrados com o peso
forma coloquial, é a língua adotada pelo seu cinema. gredos do local. Sarra, em contraste, com um futuro filme 35 Doses de Rum (2008), de Claire Denis, no da clandestinidade e o medo de enfrentar o mar em
A tunisiana Moufida Tlatli (nascida em 1947) se mais promissor, embora Moufida Tlatli não deixe de qual Mati Diop atua. As similaridades e influências pequenos barcos fadados ao naufrágio. Ou a pos-
destaca dentro desse universo, abordando temas também direcionar o nosso olhar ao seu casamento observadas nos filmes dessas notáveis cineastas nos sibilidade de ficar no continente africano, onde há
relativos à condição feminina nesta sociedade. Ela é arranjado em plena adolescência e às decepções transporta para a situação de seus personagens, com fome e desemprego. O tom é de total desesperança.
uma das primeiras mulheres a trabalhar com cinema pelas quais passavam as mulheres da casta mais alta seus sentimentos de pertencimento ou não ao lugar A narrativa elíptica nos conduz a um cemitério, onde
no Magrebe, tendo começado em 1974, como da família. Cenas comoventes desse filme se passam onde estão. Em Atlânticos, Mati Diop nos apresenta uma mulher chora. Ao final, um farol. Qual caminho
editora, no filme Sejnane, de Abdellatif Ben Ammar. no andar de baixo, retratando o convívio entre as ser- um grupo de amigos, à noite, sentados em volta de ele ilumina?
A aclamada escritora argelina Assia Djebar, pouco vas. Suas angústias, gravidezes, abortos suportados
lembrada como cineasta, também merece ser citada conjuntamente. A frustração por não poderem trans-
por seu trabalho pioneiro e relevante dentro do ci- por os muros do palácio, enquanto, do lado de fora,
nema magrebino. Seu filme para a televisão argelina lutas pela independência tomavam as ruas de Túnis.
La Nouba des Femmes du Mont Chenoua (1979) já A situação atual de Alia, na Tunísia independente, é
buscava retratar o papel da mulher na sociedade contrastada com a da sua adolescência. Alia é uma
islâmica norte-africana. cantora frustrada, sofre preconceito por não ser
Moufida Tlatli, que estudou cinema na França, oficialmente casada, mas tem alguma possibilidade
trabalhou vinte anos como editora antes de realizar de fazer escolhas em sua vida.
seu primeiro longa-metragem: Os Silêncios do Pa- Moufida Tlatli dirigiu, posteriormente, Tempo
lácio (1994), premiado em Cannes e Londres e con- de Espera (2000) e Nadia e Sarra (2004), filmes que
siderado um dos dez melhores filmes daquele ano também tocam nos conflitos e diferenças entre gera-
pela Time. A esse filme, dedicamos nosso olhar. Ele ções de mulheres de uma mesma família, refletindo
narra a história de Alia, uma cantora grávida e pres- assim a evolução da sociedade tunisiana, do ponto
tes a fazer mais um aborto, que descobre que o prín- de vista feminino.
cipe a quem sua mãe servia morre. Resolve visitar o
decadente palácio onde viveu até a sua adolescência,
em busca da identidade do pai e de explicações para Mati Diop
a morte de sua mãe. Suas memórias de infância e
adolescência são mostradas em flashbacks, onde Mati Diop se destaca entre a atual geração
vemos a suntuosidade com que viviam os príncipes de cineastas da diáspora africana. Uma geração que
beis (turcos) e suas famílias nos derradeiros mo- busca novas formas narrativas, abordando as ques-
mentos de seu governo e do protetorado francês na tões de identidade e exílio. Nasceu na França, em
Tunísia. Mostra a opressão que sofriam as servas do 1982, mas retorna e retrata a África da sua família
palácio, que viviam em um regime de escravidão, em seus filmes. No premiado Mil Sois (2013), ela
inclusive sexual, pois os príncipes tinham o direito de busca o ator Magaye Niang, ator do clássico Touki
chamá-las aos seus aposentos à noite. Alia foi fruto Bouki (1973) do seu célebre tio, o cineasta Djibril
de uma destas noites e nasceu no andar de baixo do Diop-Mambéty, para documentar o dilema que os
palácio no mesmo dia em que Sarra, a filha de um africanos enfrentam entre o ficar e o partir do ponto
“Mil Sóis” (Mati Diop, 2013)
30 | Artigo

Sem teto nem lei e a


muitas vezes os filmes estão na fronteira entre esses
domínios, caracterizando-se por narrativas híbridas. “Como ninguém reclamou o corpo, ela
Seus longas de ficção mais conhecidos são: Cléo das foi para em uma vala comum. Ela teve morte

poética do impossível
5 às 7 (1961), As duas faces da felicidade (1964) e natural. Imagino se quem a conheceu quando
Sem teto, nem lei (1985). Entre os documentários, criança ainda pensa nela. Mas as pessoas
podemos citar: L’opéra Mouffe (1958), Jane B. par que ela tinha conhecido recentemente se
Agnès V. (1986), Os catadores e eu (2000), que lembravam dela. Essas testemunhas ajudaram-
recebeu vários prêmios. Seu ultimo filme, As praias me a contar as últimas semanas de seu último
de Agnès (2008) é uma espécie de autobiografia.
Por Tânia Cardoso de Cardoso
inverno. Ela conseguiu deixar nelas uma marca.
Sem teto nem lei (1985) é um filme marcante Eles falavam dela sem saber que tinha morrido.
por vários aspectos: pela forma de narrar a história Não disse nada para eles. Nem que o nome dela
de uma personagem que já sabemos desde o início era Mona Bergeron. Eu mesma sei pouco sobre
que está morta; por buscar compreender a condição ela, mas me parece que ela veio do mar”.
existencial de uma andarilha tentanto mapear a
trajetória de suas últimas semanas de vida a partir
de relatos de pessoas que cruzaram seu caminho. A partir dessa intromissão da narradora o filme

A
gnès Varda surge na cena cinematográfica primeiro filme. Varda fará parte do mesmo grupo Pelas escolhas estilísticas de Varda a estrutura da dá um salto para o passado, com a câmera passeando
nos anos 1950, quando, em 1954, seu que Alain Resnais, Chris Marker e Jacques Demy, que narrativa é fragmentada e circular, pois começa com pela areia da praia até vermos Mona saindo do mar.
longa-metragem La pointe Courte recebe o mais tarde será seu marido. O grupo era considerado o descobrimento do corpo da personagem em uma É nesse momento que a história da personagem
prêmio L’âge d’dor em Bruxelas e o Grande literário, excêntrico e de esquerda. vala e termina no exato momento de sua morte. passa a ser (re)construída. Uma observação se faz
Prêmio do Filme de Vanguarda em Paris. A cineasta Quando, em 1954, Varda realiza seu primeiro O filme se trata de uma ficção, mas, em diversos importante, pois a última frase da narradora dá o tom
belga (nascida em Bruxelas) já era conhecida como longa-metragem, Truffaut escreve seu primeiro momentos, temos a impressão de estar diante de um para todos os relatos sobre Mona, problematizando
fotógrafa, e trabalhava desde 1948 no TNP (Teatro artigo a ser publicado nos Cahiers, Uma certa documentário, quando determinados personagens inclusive o estatuto do narrador, pois suas
Nacional Popular de Paris), tornando-se a fotógrafa tendência do cinema francês, que é um divisor olham para a câmera e narram suas impressões, suas observações também são imprecisas e buscadas
oficial do Festival de Avignon. de águas na crítica francesa e no mundo, abrindo suposições sobre o que de fato havia acontecido. pelas imagens que se apresentam no instante em
Seu nome está ligado à Nouvelle Vague espaço para o surgimento de novos cinemas. Como Antes de a narrativa dar um salto para o que narra: “Eu mesma sei pouco sobre ela, mas me
francesa – ou cinema da nova onda – junto com ressalta Sarah Yakhni, (2014) a obra de Agnès Varda, passado, já temos um depoimento importante, parece que ela veio do mar”.
outros jovens cineastas do período, como François apesar de uma certa marginalidade, sintoniza-se quando uma das últimas pessoas que tiveram Como foi dito, a partir desse momento a
Truffaut, Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, Éric com o ideário da Nouvelle Vague de construção de contato com Mona declara: “Ela tinha um olhar vazio, narrativa passa a ser construída pelos depoimentos
Rohmer, entre outros. Tais cineastas iniciaram seu um novo momento e de novos paradigmas para como um mendigo. Da maneira que ela olhou para das pessoas que cruzaram pelo caminho de
trabalho como críticos de cinema, todos eles ligados o cinema, como a forma de narrar, a revelação do mim, achei que ela fosse... Isso é tudo o que posso Mona, embora, muitas vezes, o que é narrado e
aos Cahiers du cinema, que tinha André Bazin ponto de vista, a interferência do próprio realizador dizer”. Esse primeiro depoimento já nos indica de o que é mostrado não coincide, desconstruindo a
como editor, considerado o primeiro grande crítico ou a sua participação direta dentro da narrativa. que forma a história de Mona será reconstruída: de possibilidade de um relato objetivo. Isso porque os
de cinema. Varda, diferentemente do grupo que Ainda segundo Yakhni, o modo de produzir de Varda, relatos fragmentados e imprecisos. Até mesmo a relatos são dispersos, subjetivos, falam mais das
orbitava em torno dos Cahiers du Cinéma, não tinha geralmente ciscrunscrito à sua pequena produtora, narradora, uma voz em off feminina (provavelmente sensações que Mona provoca em cada um deles
o cinema como sua grande referência, mas a pintura, se manteve ao largo da produção mais comercial de Varda), quando apresenta a personagem, após do que de fatos precisos. A cada encontro, quase
a fotografia, o teatro e a literatura. A formação e industrial do cinema, e este fato lhe deu mais as primeras cenas, tem mais perguntas do que nada é revelado sobre ela, mas sim sobre a vida, os
de Varda não aconteceu nas cinematecas e nos liberdade para transitar entre formatos diferentes. respostas, e confessa que sabe pouco sobre a sonhos, os temores e as frustrações de cada um dos
cineclubes. Alain Resnais foi quem a introduziu no Com uma longa trajetória, a obra de Varda é personagem. personagens que têm contato com a personagem,
mundo do cinema, mas isso após a realização de seu dividida entre documentários e ficções, sendo que que pouco fala, mais escuta e foge de qualquer
32 | Artigo

possibilidade de apreensão. que desliza das situações e das pessoas que encontra nada. Vaguear é definhar. Ao provar que ela é inútil, passam juntas. Na mesa de bar, quando sentam uma
Mona parecer ser uma imagem-fantasma pelo caminho, a narrativa também. Mona, além de ela ajuda a um sistema que ela rejeita. Isso não é de frente para a outra, apenas com uma cerveja entre
vagando pela narrativa, assombrando a vida daqueles ser uma imagem-fantasma é também uma imagem vaguear. Isso é murchar”. Atenção para o termo elas. A câmera faz um close nas mãos das duas, que
que a encontram em sua errância. Ao mesmo tempo, vazia, que escapa de qualquer tentativa de definição, utilizado. Vaguear, como uma onda do mar. De onde estão na mesma posição, mas em lados opostos.
mesmo que a narradora afirme que eles falavam de preenchimento por aqueles que narram seus a narradora diz que Mona veio. Uma mão suja, escura e a outra limpa e pintada
dela sem saber que tinha morrido, a maioria dos últimos momentos. Ela serve a eles, com seus olhos O encontro com Mme. Landier, a acadêmica com esmalte vermelho. Outro diálogo importante
relatos, das observações indicam já a presença da muitas vezes opacos e perdidos no vazio, como uma que pesquisa a praga nos plátanos, também merece se passa entre Mme. Landier e seu assistente: “Tem
morte. “Ela tinha um olhar vazio”, disse o relato já espécie de espelho. Mona caminha, vaga na direção destaque. Parece haver entre elas uma relação uma garota estranha no meu carro”. Ao que um dos
mencionado. “Tudo está vazio”, diz o caminhoneiro. contrária de tudo que representa estabilidade, especial. Uma talvez seja o oposto da outra, ou o trabalhardores, interrompe o diálogo e diz: “Livre-se
Ao que Mona responde: “Eu estou aqui!”. “Ela parecia segurança, laços, comprometimentos. Ela desliza de seu duplo. Isso fica bastante evidente no tempo que deste tronco”. Ela volta a falar com o assistente: “Ela
um anjo”, diz o rapaz que a encontrou dormindo. cada situação em busca de movimento. Em cada um
Ou, também, quando o coveiro avisa à Mona que ela dos travellings (e no fime há muitos), observamos a
montou sua barraca no cemitério. Ou, ainda, quando personagem caminhar sempre no sentido contrário.
a personagem Yolanda declara encarando a câmera, Isso já fica claro quando ela pega carona com o
rompendo com a quarta parede, quando encontra caminhoneiro. Mesmo estando os dois personagens
Mona com outro andarilho, dormindo no castelo: “Se no caminhão, pela posição da câmera, eles parecem
estão mortos, são feios, pensei. Se estão dormindo, viajar para lados opostos.
são bonitos”. Até mesmo quando o ex-professor de Ela marca a vida daqueles quem têm contato
filosofia lhe diz: “Você não é o único marginal. Você com ela porque a sua liberdade, o seu vazio, coloca
não é marginal. Você está fora. Você não existe”. Eis em xeque a vida de cada um deles. Da personagem
como a presença da morte e do vazio estão em cada que quer ser livre, mas não pode porque cuida
uma das falas esparsas e pouco objetivas daqueles da mãe; da personagem Yolande que quer um
que têm contato com a andarilha. namorado companheiro que sonhe com ela; ou
Aliás, não apenas as falas dos personagens até mesmo do mecânico (um dos relatos mais
indicam uma suposta morte e o vazio da imagem, desconcertantes) que deixa escapar que gostaria de
mas também o cenário. Em cada plano, em cada ter mãos limpas. De todos os encontros, dois deles
sequência, vemos a terra seca, os galhos retorcidos, são os mais importantes. Quando Mona encontra
tratores enferrujados, castelos destruídos. Há a o ex-professor de filosofia, que também fez suas
contaminação dos plátanos, que morrem, que secam, renúncias para levar a vida atual, mas que não foi até
que caem. Há, até mesmo, no final do filme, quase o fim. “Você escolheu a liberdade total, mas você tem
um vale entre a vida e a morte, representado pela a solidão total. Sua hora irá chegar se continuar assim,
brincadeira do banho de vinho, com pessoas vestidas irá se destruir. Sua direção é a destruição. Se tiver que
de espantalhos, que aterrorizam Mona. viver, tem que parar. Meus amigos que ficaram na
A personagem, entre um encontro e outro, estrada estão mortos agora ou então se acabaram:
caminha em terra desolada, vazia, seca, em alcoólatras ou drogados. Porque a solidão acabou
demolição. Ela que abdicou de tudo, que abdicou com eles, no fim de tudo”, diz ele antecipando o fim
da própria existência em busca de algo sem nome, trágico de Mona. É também ele quem, quase no final
desconhecido, de uma liberdade total que não é do filme, completa: “Ela passou como um vento. Sem
apreensível nem nomeada. Assim como Mona, que planos, sem objetivos, sem desejos, sem vontades.
escapa de qualquer definição, de qualquer palavra, Sugerimos algumas coisas a ela que não quis fazer Sandrine Bonnaire em “Sem teto nem lei” (Agnès Varda, 1985)
34 | Artigo

Céline Sciamma e as
é uma garota estranha. Uma andarilha, selvagem e possibilidade. Assim como a personagem Mona que
suja. Criou raiz no meu carro”. Ao que ele responde: em nenhum momento disse que estava em busca de
“Devo demonstrar a ela como fazemos para algo.

Novas Representações
desenraizar árvores doentes?”. É para a acadêmica Sem teto nem lei nos conta a história de Mona,
que Mona responde uma das perguntas feitas a de uma andarilha que renuncia a tudo em busca do
ela, um das poucas que responde durante todo o desconhecido, da liberdade total, inclusive da vida.
filme. “Por que abandonou tudo?”, “Champagnhe Ao mesmo tempo é um filme autorreferente que, ao
na Estrada é melhor”, diz ela. Será também Mme. tentar contar a história de Mona, que escapa sempre,
Landier que, numa situação de quase morte, no também questiona a própria narrativa que estrutura
seu delírio, quando diz ter visto a vida passar na sua
frente, comenta que a moça apareceu várias vezes
o filme. Ela não nos fornece nenhuma resposta sobre
o que levou Mona a abrir mão de tudo para viver
Por Helena Lukianski
como uma espécie de reprovação. Quer buscá-la e na estrada, no incerto. Ao mesmo tempo o filme de
protegê-la. Enfim, seu duplo. Varda nos fala também dos limites da criação, da
A fotografia, como não poderia deixar de ser impossibilidade de um discurso lógico e racional dar
num filme de Varda, é um elemento extremamente conta de uma vida e do ato criativo. Varda nos fala
importante. Se em As duas faces da felicidade de sensações, daquilo que é inapreensível, talvez

O
(1964) as flores, os campos eram de uma cor forte de uma poética do impossível. Não esqueçamos cinema, como forma de reprodução a juventude em seu filme mais recente (Garotas),
e vibrante, de uma vivacidade intensa como a que Sem teto nem lei é dedicado à Natalie Sarraute, do imaginário social, possibilita desta vez retratando um grupo de mulheres
felicidade, em Sem teto nem lei, temos um quadro escritora dos fluxos de consciência, ligada ao Novo observar diferentes representações negras que enfrentam dificuldades relacionadas
de desolação. Campos secos, árvores mortas, Romance Francês. Para Sarraute, a poesia numa obra de identidades. Os caminhos que os com preconceitos e desigualdades sociais
cidades vazias e destruídas são constantes no filme. é o que faz aparecer o invisível. Ou, ainda, o título personagens escolhem e os desdobramentos de suas amplificadas pela condição feminina em uma
Muitas vezes, na grande maioria das vezes, a luz, as de um pequeno documentário de João Moreira ações são reveladores na tarefa de compreender a sociedade patriarcal. Moradoras da periferia
sombras, as árvores mortas e secas nos dizem muito Salles sobre a poeta Ana Cristina Cesar: Poesia é uma que parâmetros construídos socialmente indivíduos francesa, essas jovens se veem com poucas
mais sobre Mona do que os relatos. Nesse sentido, ou duas linhas e por trás uma imensa paisagem. É de diferentes meios estão subjugados. O imaginário possibilidades de ascensão social.
podemos dizer que Sem teto nem lei é um filme de Varda também que afirma, em seu último filme, do star system Hollywoodiano, estabelecido a partir Apesar de ser um país com expressiva
sensações. Nada em Mona é apreensível. A única As Praias de Agnès: “Se você abrir uma pessoa, irá da década de 1920, comumente apresentava papéis produção de cineastas mulheres, ainda assim,
coisa que sabemos da personagem é que ela vaga achar paisagens. Se me abrir, encontrará praias”. femininos que variavam entre a diva (femme fatale), na França, elas representam apenas 20% dos
errante pelas estradas e cidades, e que morreu. Lembremos novamente do que a narradora, a voz de mãe zelosa ou moça ingênua e virginal. realizadores (VEIGA; SILVA, 2014). Outras
Não sabemos nada sobre seu desejo, seus medos, Varda, diz sobre Mona: “Eu mesma sei pouco sobre Distanciando-se de estereótipos sobre o pesquisas também mostram uma participação
sua vida e seu passado. A narrativa construída a ela, mas me parece que ela veio do mar”. Podemos, universo feminino ainda muito reproduzidos na feminina consideravelmente menor em países
partir dos relatos não dá conta, ela falha, escorrega, entretanto, afirmar que Mona veio das praias de filmografia contemporânea, a diretora francesa de relevante realização cinematográfica: nos
desliza, assim como a personagem. E essa parece Agnès Varda. Céline Sciamma realizou três longas-metragens: EUA, um amplo estudo indicou que dos 250
ser a intenção de Varda. Mostrar justamente aquilo Lírios D´Água (2007), Tomboy (2011) e Garotas filmes de maior bilheteria de 2011, apenas 5%
que é inapreensível em alguém ou no discurso de (2014). Em seu primeiro filme, a personagem foram dirigidos por mulheres, uma situação que
alguém, sobretudo num filme que de alguma forma REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: principal é uma jovem que se apaixona por permanece semelhante desde 1998 (SMITH;
põe em questão o que é ser livre, o que é ser outra Sem teto nem lei (Sans toi ni loi, França, 1985, 105min), roteiro e direção de
outra adolescente, rompendo com padrões PIEPER; CHOUEITI, 2014).
Agnès Varda.
coisa, que foge à lógica da representação. Como heteronormativos; em Tomboy, a protagonista é A gradual conquista de direitos femininos
fazer um filme sobre aquilo que escapa? Seja sobre YAKHNI, Sarah. Cinensaios de Agnès Varda: o documentário como escrita uma criança que se identifica como um menino, - que possibilitou o aumento da autonomia
para além de si. Hucitec Editora: São Paulo. 2014.
uma personagem, seja sobre o conceito de algo VARDA, Agnès. Varda par Varda: et philmographie par Bernard Bastide. resultando em um conflito com sua família. das mulheres - foi fruto de um longo processo.
como liberdade. O filme se apresenta apenas como Editions Cahiers du Cinéma et Ciné-Tamaris, 1984. A diretora novamente volta seu olhar para Depois de conquistar direitos como o sufrágio
36 | Artigo

- na chamada “primeira onda do feminismo” o olhar masculino (1984, p.19)”. Nesse processo
(GAMBA, 2008), as mulheres ainda lutam para se de reconstrução, comumente ainda vemos que
estabelecer como sujeito independente, fugindo o percurso dos homens na ficção envolve muitas
de estereótipos que as objetificam ou limitam aventuras, enquanto o Bildungsroman feminino
seus caminhos. está mais relacionado à “infância da personagem,
A publicação do artigo Visual Pleasure and conflito de gerações, provincianismo ou limitação
Narrative Cinema em 1975, de Laura Mulvey, do meio de origem” (PINTO, p.4, 1990), da
trouxe visibilidade para a discussão do problema mesma forma em que podemos observar nas
da objetificação feminina no cinema. Ainda que personagens de Sciamma.
apresentasse algumas limitações, o texto foi No caso de Garotas (Bande de Filles),
um importante ponto de partida para que se primeiro filme exibido no Cineclube Academia
buscasse uma nova representação da mulher nas das Musas, as “garotas” enfrentam um meio
telas. Para a pesquisadora Teresa Lauretis (1984), hostil em virtude da condição social, mas
a questão não é destruir o prazer narrativo e também pelo fato de estarem submissas
visual, mas construir outro marco de referência, em relação aos homens. Essa posição de
“um em que a medida do desejo não seja mais inferioridade é evidenciada quando elas
Karidja Touré (atriz), Céline Sciamma e Assa Sylla (atriz)

Assa Sylla, Lindsay Karamoh, Karidja Touré e Mariétou


Touré em “Garotas” (Céline Sciamma, 2014)
tomam decisões relativas à sexualidade e são autodepreciativas como atar os próprios seios.
desvalorizadas: a perda da virgindade como tabu No entanto, há também uma forte mensagem
e/ou como motivo de conflitos familiares parece positiva sobre o conceito de sororidade,
longe de se tornar algo obsoleto. Além disso, o ressaltando a importância da união feminina
filme nos mostra que, na tentativa de renegar nas diversas cenas em que as jovens aparecem
características consideradas femininas e obter juntas.
aceitação, faz-se “necessário” tomar atitudes

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BLAY, Zeba BLAY. ‘Girlhood’ Is Now Streaming on Netflix. We Spoke to the SELLIER, Genevieve. “French New Wave Cinema and the legacy of male
Director About Race, Gender & the Universality of the Story. Disponível em: libertinage.” Cinema Journal 49.4 (2010): 152+. Academic OneFile. Web.
<http://blogs.indiewire.com/shadowandact/girlhood-is-now-streaming-on- 14 July 2015. Disponível em: <http://go.galegroup.com/ps/i.do?&id=GA-
-netflix-we-spoke-to-the-director-on-race-gender-the-universality-of-the-s- LE|A236163945&v=2.1&u=capes&it=r&p=AONE&sw=w&authCount=1>.
tory-20150519>. Acesso em: 4 jul. 2015 Acesso em 14 jul. 2015
GAMBA, Susana. Feminismo: historia y corrientes. Disponível em: <http:// SMITH, Stacy L.; PIEPER, Katherine, CHOUEITI, Marc. Exploring the Barriers
www.mujeresenred.net/spip.php?article1397> Acesso em: 16 set. 2015 and Opportunities for Independent Women Filmmakers Phase I and II Dispo-
LAURETIS, Teresa de. Alicia ya no. Universitat de València, 1984. nível em: <http://www.sundance.org/pdf/press-releases/Exploring-The-Bar-
MULVEY, Laura. Visual Pleasure and Narrative Cinema. Disponível em: riers.pdf > Acesso em: 27 set. 2015
<http://imlportfolio.usc.edu/ctcs505/mulveyVisualPleasureNarrativeCine- VEIGA, Ana Maria; SILVA, Alberto da. Estudos de gênero e o cinema
ma.pdf> Acesso em: 13 jun. 15 francês: entrevista com Geneviève Sellier. Rev. Estud. Fem. [online]. 2014,
PINTO, Cristina Ferreira. O Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasi- vol.22, n.1, pp. 343-359. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1590/S0104-
leiros. São Paulo: Perspectiva, 1990. 026X2014000100019 >. Acesso em 14 jul. 15
38 | Artigo

Embers
consequentemente a sua identidade - não por econômica nos Estados Unidos, lugares
acaso ela é a única personagem nomeada em abandonados têm sido bastante explorados no
Embers. cinema contemporâneo, podendo ser vistos
Entre essas duas histórias, temos a de em diferentes filmes como It Follows (David
“Embers” (Claire Carré, 2015) um menino que vaga sozinho encontrando Robert Mitchell, 2014) e Only Lovers Left Alive

Por Helena
outros sobreviventes, a de um acadêmico que (Jim Jarmusch, 2013). Na distopia de Carré,
estuda meios de recuperar a memória e a de a construção visual é primorosa e a narrativa

Lukianski
um homem revoltado que destrói tudo o que fragmentada se mostra um artifício eficiente
encontra pela frente. São diferentes maneiras para conferir multiplicidade de visões sobre
de lidar com o esquecimento em um cenário a temática da memória. Embers facilmente
que intensifica o sentimento de desolação, poderia ser apenas um exercício de estilo
construído (em parte) nas ruínas industriais do – outra tendência contemporânea – mas a
estado de Indiana (EUA). proposta do roteiro transcende a questão da
Após o recente período de recessão imagem.

O
gênero sci-fi
ressurgiu Greta Fernández em Embers (Claire Carré, 2015)
com força
nos últimos
tempos e parece ter atingido
o ápice de popularidade
com a série Stranger Things, acordando em um local parcialmente destruído.
lançada pela Netflix neste ano. Em seu filme Eles intuem que houve um passado em comum
de estreia (Embers, 2015), a diretora Claire em suas vidas (em parte pela fita azul que
Carré também parte de uma premissa de ficção ambos carregam), e tentam restabelecer esse
científica, porém, para além do segmento de laço esquecido. A importância da memória
entretenimento, a proposta é apresentar uma é destacada especialmente por meio desses
reflexão sobre a memória. personagens: sem nossas histórias pessoais,
As narrativas paralelas mostram um grupo estaríamos todos condenados a viver no
de pessoas que vivem em um local onde todos presente e impossibilitados de nos relacionar
estão afetados por uma espécie de doença que de forma mais profunda.
impede a retenção da memória. Duas dessas O pai e a filha, que preservam suas
histórias são aprofundadas e intercaladas com o lembranças, estão isolados e protegidos.
surgimento de outros personagens: o vínculo de Porém, a vida asséptica e tediosa traz cada vez
um homem e uma mulher que sempre acordam mais insatisfação para a jovem. A segurança
juntos em diferentes lugares e a relação de em detrimento da liberdade é uma questão
um pai e uma filha que se refugiaram em um filosófica inesgotável. Nesse caso, a angústia
bunker há nove anos. da filha é acentuada porque, se ela abandonar
O filme começa com uma cena do casal o local, corre o risco de perder sua memória e
40 | Artigo

Larisa Shepitko
adulto é bruto, ignorante. É um claro comentário joga com o tempo, fazendo uma narrativa mais
sobre a questão geracional na União Soviética abstrata sobre o fracasso, dessa vez centrada
nos anos 1960, mas também sobre a relação num médico que acabou tendo uma experiência
desequilibrada entre os espaços urbanos e a traumática. O último longa é o poderoso filme
parte rural, incluindo as consequências da tensão de guerra “Voskhozhdenie” (1977), vencedor do

Por Leonardo Bomfim masculina na vida das mulheres que também


trabalham lá.
Urso de Ouro em Berlim (e também do prêmio da
crítica, algo bem raro). No festival, ela concorreu
Lançado em 1966, Asas encontra uma com O Homem Que Amava as Mulheres, de
protagonista feminina: uma aviadora veterana de Truffaut; Tenda dos Milagres, de Nelson Pereira
guerra, uma heroína nacional cheia de prestígio, dos Santos; O Diabo, Provavelmente, de Robert
mas que também coleciona segredos, traumas Bresson.
e inseguranças. Com o filme, Shepitko consegue Ela morreu tragicamente em 1979, aos
rever a personagem heroica típica do período 40 anos, num acidente de carro. Preparava um
stalinista, numa abordagem política que encontra novo longa, “A despedida”, que acabou sendo
a aviadora distante da “mulher de mármore” realizado em 1983 pelo marido, Elem Klimov,
exigida pela cartilha do realismo socialista. outro nome célebre da nouvelle vague soviética,

S
e praticamente todos os países da cortina filmes pouco acessíveis. Shepitko radicaliza no filme seguinte, Você diretor do inesquecível Vá e Veja (1985), filme
de ferro tiveram suas “novas ondas”, Nascida na região da Ucrânia, Larisa e Eu (1971), já colorido, próximo das experiências que bebe muito na fonte de “Voskhozhdenie”,
mesmo sob os olhos atentos da União Shepitko estudou cinema na VGIK, escola bem psicodélicas de outras nouvelle vague do leste intensificando a experiência do horror durante a
Soviética, não é de se estranhar que os tradicional fundada logo após a revolução de europeu, como a da Tchecoslováquia. Aqui ela guerra.
russos também tenham conhecido uma nova 1917, considerada a mais antiga do mundo.
geração disposta a radicalizar os rumos mais Quase todos os grandes cineastas e teóricos
tradicionais do cinema local. É nesse período, soviéticos dos anos 1920 deram aula lá, entre “Asas” (Larisa Sheptiko, 1966)
entre o fim dos anos 1950 e o início dos 1960, eles Eisenstein, Pudovkin, Dovzhenko e Kuleshov.
que surgem dois dos nomes mais internacionais O grande mestre dela foi Alexander
do cinema moderno soviético, Andrei Tarkovsky Dovzhenko, diretor de Terra (1931). Por sinal,
e Sergei Parajanov – importante destacar que, a partir de 1939, ele passa a realizar filmes em
como a União Soviética era formada por várias parceria com a esposa, Yuliya Solntseva. Após a
repúblicas, nem todos os cineastas eram de morte dele, em 1956, ela passou a dirigir filmes
origem russa. Parajanov, por exemplo, nasceu na sozinha, incluindo o célebre A Epopéia dos Anos
região da Geórgia, mas também produziu filmes de Fogo (1961). É a grande pioneira da produção
sobre o folclore ucraniano ainda nos anos 1960. feminina do cinema russo, ao lado de Elizaveta
Nesses anos, com uma breve abertura Svilova, casada com o Dziga Vertov, que montou
política, muitos filmes experimentais puderam vários filmes nos anos 1920, mas só foi assinar a
ser realizados. Essa abertura também permitiu direção na década de 1940.
que as culturas locais fossem mais exploradas Larisa Shepitko se formou em 1963 e
no cinema, há grandes filmes da Ucrânia e da fez um filme de conclusão chamado “Znoy”
Geórgia, por exemplo – uma diretora georgiana (1963), uma história sobre a rivalidade entre
bem importante que começa a filmar nos anos dois agricultores, um adolescente e um adulto.
1960 é Lana Gogoberidze, infelizmente com O jovem vem da cidade, é inteligente, culto; o
42 | Artigo

Pai, vamos falar da


dita acaba escapando por outros atalhos: o filme As palavras se perdem diante das singularidades de
ganha corpo a partir das reflexões de Escobar, com cada experiência vivida, ninguém é capaz de resgatar
pensamentos inesperados (mas certeiros) sobre através da fala uma violência extrema com a mesma

tortura. Da cultura?
os rumos da nossa esquerda (como no achincalho dimensão do acontecimento. Mais tarde, Carlos
maravilhoso em Ferreira Gullar), a relação familiar ou Henrique Escobar até dá o seu testemunho, mas já
mesmo na retomada deliciosamente fantasiosa (“suas está claro para mim a fraqueza do recurso narrativo
perguntas objetivas me permitem que eu comece e a importância do filme no sentido de colocar o
com um certo nível de mentiras”, ele provoca) sobre testemunho no cinema, tão reverenciado como a

Por Leonardo Bomfim


passagens de sua vida. única forma de documentar o horror, em estado de
Mas se o cinema é um campo de batalha, a curto-circuito: diante de qualquer cena de testemunho
câmera poucas vezes separou dois territórios de forma sobre violência, a minha reação é a mesma: um mal-
tão enfática como aqui. O pai tenta, novamente com estar absoluto, até mesmo pela impotência diante do
a sabedoria dos gatos, dominar o outro lado com relato, as palavras são impiedosas, fugitivas (é possível
uma sutileza interrompida por rompantes verbais. tomar uma posição de poder em relação às imagens,
Maria Clara responde com firmeza, demonstrando com as palavras não). Mas é sempre o mesmo mal-
uma imprudência juvenil que intensifica o atrito. estar, o mesmo suor frio na sala escura, não importa

E
m Os Dias com Ele a jovem cineasta Maria mais constante, que “Os dias com ele” (2012) tenha o Nesse sentido, o grande momento do filme acontece se estou diante do testemunho de um sobrevivente
Clara Escobar quer desenterrar os silêncios semblante de um filme de guerra. quando, após uma ríspida discussão, ela invade o do Shoah ou dos porões do DOPS. Porque a palavra,
históricos – do país e de sua vida – a partir do Para além da revelação da procura, o território do pai, senta em sua cadeira e lê uma carta assim como a guerra, só diz respeito ao presente.
encontro com o pai ausente, Carlos Henrique movimento brusco do início também cai como um que, no seu projeto de filme ideal,
Escobar, filósofo, dramaturgo e professor, preso e golpe, mas um golpe que flagra o agressor numa deveria ser lida por ele. É uma cena
torturado durante a ditadura militar, vivendo hoje situação defensiva. Não é a câmera que se aproxima, extremamente forte, já que a invasão
isolado em confins portugueses – “há doze anos nesta é apenas a lente. Trata-se de um belo cartão de raramente é feita pelo derrotado.
cidade pequena de Portugal em absoluto anonimato. visitas da luta que veremos entre os dois ao longo do A arma mais poderosa de Maria
Não suporto pessoas”, diz o homem com alguma filme, num jogo de forças que transcende (e muito) Clara, parece claro, é a referência
mágoa mas com um tanto de tranquilidade. a questão pai e filha, mas que sempre carrega esse teórica de Claude Lanzmann – o
Mas não estamos diante de um filme amistoso, peso, de ser uma relação ardilosa entre um chefe de realizador de “Shoah” (1985) – sobre
longe disso. Tudo começa com um zoom brusco, o orquestra que se finge de morto, como os gatos que a importância do testemunho em
velho está na cadeira, distraído, a câmera já ansiosa ele tanto admira, e uma filha que deseja descobrir (ou relação a eventos que violentaram
para encontrar a imagem certa. Sinaliza, de cara, inventar) uma história. indivíduos mas que dizem respeito a
que o “Os dias com ele” (2012) assumirá o esboço, a O passado não vem: como em todo grande grandes traumas coletivos. É dessa
sujeira do movimento em direção ao que interessa: filme de guerra, tudo acontece no atrito do instante, forma que ela tenta convencer o pai a
que não esconderá a importância do ato de buscar. na ação imediata. É um filme no tempo presente, abrir a caixa de pandora dos horrores da
Mas buscar o quê? Um passado? Uma história? Um o que diferencia o cinema de Maria Clara Escobar tortura. A resposta do homem, tendo
testemunho? As certezas de Maria Clara em relação do caminhão de obras sobre memórias e traumas como aliado as ideias de Derrida, um
ao que deve ser o filme tornam-se trepidantes ao familiares que povoam hoje os painéis acadêmicos e contemporâneo de Lanzmann, o que
longo da obra. Quem é o homem que está a sua os cinemas do país. Se o que está no cerne do plano confere certa contemporaneidade no
frente? Ninguém sabe. E ao que parece, nem ela. de guerra entre a cineasta e seu pai é a necessidade embate, é simples: é impossível chegar
Talvez por isso, pela necessidade nervosa de encontrar de um testemunho sobre o período de prisão e à verdade a partir do testemunho.
Carlos Henrique Escobar em “Os dias com ele”
uma verdade aliada à impossibilidade de um diálogo tortura durante a Ditadura, a batalha propriamente (Maria Clara Escobar, 2012)
44 | Artigo

Um mergulho em queda livre no Amigomío (Jeanine


Mar de Rosas de Ana Carolina Meerapfel, 1995)
Por Luciana Tubello Por Isabel Waquil

M F
ar de Rosas (1978), primeiro longa- intensifica e Felicidade acaba agredindo ilha de pais judeus que fugiram da Löwenthal, descendente de alemães, sente
metragem de ficção de Ana Carolina, Sérgio com uma navalha. Acreditando que o Alemanha e reconheceram na Argentina falta da Argentina e não quer abandonar suas
é um daqueles filmes que nos põe marido esteja morto, Felicidade foge com a um novo lar, Jeanine Meerapfel nasceu raízes, enquanto o filho, Amigomío, abraça, ao
a pensar. Mas, por uma mania de filha adolescente, Betinha (Cristina Pereira), em Buenos Aires em 1943 e só retornou final do percurso, a nacionalidade equatoriana.
catalogação que o senso comum enseja, ficamos em direção a São Paulo. Mas, durante a fuga, à Europa nos anos 1960 para iniciar os estudos Tornam-se presentes os inevitáveis conflitos que
procurando escolas e estilos em que o filme possa é perseguida por Orlando (Otávio Augusto). em cinema na Hochschule für Gestaltung, em constituem o ato migratório. A própria biografia
se inscrever. Felizmente, tamanha sua potência No frenesi da fuga desenrolam-se situações Ulm. Desde então, apresenta, em boa parte de Meerapfel apresenta aspectos desta tensão
narrativa, nos abandonamos ao fluxo de suas imagens anárquicas, captadas por precisos movimentos de sua produção, um entrelace de narrativas – as raízes alemãs, a juventude na Argentina,
e diálogos vertiginosos – esquecendo da ordem de câmera. A personagem de Betinha é, ficcionais e elementos autobiográficos, por meio a volta para a Europa. Em função disso, muitas
daquilo que foi instituído. justamente, a personificação desse caos. Ela de temas como a pátria antiga, a pátria nova, vezes suas obras são compostas por detalhes
Não por acaso, no cinema de Ana Carolina, é uma força que precisa fluir, caso contrário os conflitos de identidade, os sentimentos e as de sua trajetória, seja por meio de um nome,
a câmera desnuda a desordem e histeria das devastará tudo ao seu redor. Talvez, por isso, o relações envolvidas nestes trânsitos. uma situação, uma cidade. Confere à trama suas
instituições sociais. Em Mar de Rosas temos a histeria filme termine no momento em que Betinha se Em Amigomío (1995), a migração é raízes sócio-históricas misturadas a criações
das relações familiares; em “Das tripas coração” liberta da leviandade dos adultos. retratada em uma jornada de pai e filho ficcionais, que sustentam o enredo construído.
(1982) – seu segundo longa-metragem – temos a Mar de Rosas não cabe em rótulos, pois é que inicia na Argentina ditatorial rumo ao Em O Amigo Alemão (2012), por exemplo,
desordem do aparato educacional; já em seu terceiro a desobediência da ordem. Equador. Nesse deslocamento pulverizado pela destina à protagonista Sulamit – personagem
longa-metragem de ficção, “Sonho de Valsa” (1987), diversidade das paisagens sul-americanas, os de origem judaica-alemã – uma situação que
Ana Carolina nos fala dos transtornos causados pela personagens também redescobrem a relação viveu na Argentina: quando recém-nascida,
idealização do amor romântico. entre eles, conferindo à narrativa um caráter os pais quiseram chamá-la de Jeanine, porém,
Mar de Rosas pode ser considerado um road político e sensível, além de humorado por no cartório, foram informados de que esse
movie, ele inicia com uma discussão entre o casal personagens inusitados e situações bizarras nome não existia em castelhano e que não
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Sérgio (Hugo Carvana) e Felicidade (Norma Bengell) que acontecem a cada parada do trajeto. O era permitido o registro de crianças com
durante uma viagem de automóvel. Ao chegarem em Luciana Tubello filme é contaminado por questionamentos nomes estrangeiros. Nos documentos, Jeanine
Título: Mar de Rosas; País: Brasil; Gênero: Comédia/Drama; Tempo: 100
um quarto de hotel, no Rio de Janeiro, a discussão se minutos; Ano: 1978; Direção: Ana Carolina. sobre identidade latino-americana: o pai, Carlos vira Juana. Na ficção, Sulamit vira Susana.
46 | Artigo

Para Minha Irmã


Questionada sobre a autobiografia em sua uma história não constitua um trabalho sério”.
produção, Meerapfel afirma que esse elemento No contexto de um fluxo migratório exponencial,
é, muitas vezes, menosprezado por uma torna-se cada vez mais pertinente a amplificação
questão de gênero: “A intenção no entorno de experiências no sentindo de refletir sobre a
da pergunta [Seu filme é autobiográfico?] atualização desses deslocamentos e sobre o quão

Por Camila Cardozo


não é necessariamente positiva. Assume-se híbridas as identidades vêm se consolidando
que as mulheres só podem narrar a partir da devido aos mais diversos catalisadores – fome,
experiência própria e que isso tem um valor guerra, intolerância, violência. Seja por meio
menor que o da fantasia pura e livre, que de produção cinematográfica, literária ou
supostamente só podem deter os verdadeiros plástica, transfigurar memórias e vivências com
cineastas. De maneira estranha, se desmerece a finalidade de uma narrativa artística serve ao
o componente autobiográfico que impregna a propósito de uma obra que busca enriquecer
própria obra. Como se o feito de dar forma às essas reflexões cada vez mais atuais.
vivências pessoais ou processá-las dentro de

Anaïs Reboux e Roxane


Mesquida em Para
minha irmã (Catherine
Breillat, 2001)
neasta Jeanine Meerapfel, fotografia de Gonzalo García
48 | Artigo

C O Porteiro da Noite
onhecida por abordar a sexualidade mais velha realiza seu desejo, embora não seja
em seus filmes, de modo bastante tão satisfatório quanto ela esperava, já que se
polêmico, a francesa Catherine Breillat trata de uma ilusão. A garota é persuadida por
dirigiu um filme idealizado a partir de Fernando a ter com ele relações sexuais como
uma notícia sobre um assassinato brutal: Para prova de amor, recebendo em troca as juras do

Por Camila Cardozo


Minha Irmã (2001). O filme é protagonizado rapaz, que lhe presenteia com um anel de família
por Anaïs (Anaïs Reboux) e sua irmã mais velha, para selar um compromisso. Fernando simula
Elena (Roxane Mesquida), duas adolescentes seus sentimentos enquanto Elena encena recato,
que passam as férias em família no litoral da assim ambos realizam um ritual de negociação
França. Elena é alta, magra e bela, totalmente o da preciosa virgindade da garota, que não
oposto de Anaïs, com estatura baixa, sobrepeso poderia ser entregue a qualquer um. Esta relação
e fisionomia ainda pueril. resulta na discussão entre as mães de Elena e
Ao passear pela cidade, as irmãs de Fernando e na ruptura do relacionamento.
conhecem Fernando, um garoto mais velho, A vontade da mais nova também é realizada,
italiano, estudante de direito. Anaïs se mostra de modo mais brutal que o esperado, no
razoavelmente receptiva à abordagem do garoto, percurso de volta das férias antecipado, devido à
mas é repreendida por Elena, que flerta com o descoberta pela mãe do relacionamento da filha.
universitário estrangeiro, com quem inicia um Há dois aspectos familiares notáveis
romance e, mais adiante, a garota tem suas no filme: a relação de cumplicidade entre as
primeiras relações sexuais. Anaïs presencia o mulheres da família e a relação hierárquica de
primeiro encontro íntimo do casal e, sob pressão autoridade, ou autoritarismo, e submissão. O pai
de Elena, acoberta-a, para que seus pais não não resolve os conflitos da família e sobrecarrega
tomem conhecimento do nível de envolvimento a esposa, que é rígida com as filhas. A mais velha
dos jovens. manipula a mais nova, fere o ego da menina. A
Enquanto Elena tem suas primeiras filha mais nova, mesmo contrariada, continua
experiências eróticas com o parceiro, Fernando, protegendo a irmã mais velha e, embora haja
Anaïs descobre a própria sexualidade quase desavenças entre elas, as duas são cúmplices,
sempre sozinha – examinando seu corpo, compartilham seus desejos íntimos e se
encenando uma sedução imaginária – à exceção preservam da rigidez dos pais. A mãe, quando
do momento de desfecho da narrativa. As duas descobre que Elena, a mais velha, recebeu um
irmãs alimentam expectativas diferentes sobre anel de Fernando, defende a filha das injúrias da
a iniciação à sexualidade. Elena deseja vivenciar mãe de Fernando, ainda que enfurecida com a
este momento com alguém com quem ela descoberta. Elena abriu mão de seu bem maior, Charlotte Rampling em “O porteiro da noite” (Liliana Cavani, 1974)
conheça o amor romântico. Anaïs distingue sexo a pureza do corpo, por uma mentira, falhou no

L
e amor, portanto quer que sua primeira vez seja cumprimento das regras sociais impostas sobre o iliana Cavani, italiana, nascida no ano de 1933, também por Além do Bem e do Mal (1977) e Interno
com alguém a quem ela seja indiferente. A irmã corpo da mulher. iniciou a carreira no cinema com a realização Berlinense (1985). O segundo filme da trilogia é
de documentários acerca da Segunda Guerra inspirado na vida de Nietzsche e seu livro homônimo,
Mundial, tema recorrente em sua obra. É o neste o filósofo protagoniza um triângulo amoroso. O
caso de seu trabalho mais conhecido, O Porteiro da último é uma história homoerótica entre a esposa de
Noite (1974), primeiro da trilogia alemã, composta um diplomata do Ministério de Relações Exteriores
50 | Artigo

O Inferno são Todos


da Alemanha e a filha do Embaixador do Japão, no artísticas, quando a corporalidade é mais explorada.
período da Segunda Guerra. O terror do nazismo algumas vezes se funde às cenas
O Porteiro da Noite é, entre todos os filmes de de espetáculos: a execução da Flauta Mágica de

os Outros
Cavani, o mais controverso (MARRONE, 2000). Em Mozart, simultânea a um flashback para momentos
1957, Lucia (Charlotte Rampling), sobrevivente de um de satisfação voyeurística e sadomasoquista no
campo de concentração nazista, hospeda-se em um campo de concentração; um balé apresentado para
hotel em Viena acompanhada do marido, um regente os oficiais e filmado por Max, pela única vítima a fazer
de orquestra em turnê. Ela reencontra Max (Dirk parte da gangue no hotel, um ex-bailarino clássico
Bogarde), ex-oficial nazista que agora trabalha como apaixonado pelo porteiro da noite; a performance de
porteiro noturno do hotel, cuja presença desperta
lembranças perturbadoras do tempo em que era
Lucia em trajes andrógenos, que canta em tom grave
e dança sensualmente, para depois receber de Max
Por Juliana Costa
prisioneira. De início, Lucia suplica ao marido para um presente grotesco: a cabeça de outro prisioneiro,
irem embora, sem explicar as razões de sua angústia. que a importunava. A relação de Max com os
O marido estranha o incômodo de Lucia, mas não prisioneiros o ilustra como um sedutor, visto que,
dá importância a seu pedido. O porteiro, por outro além de sua “garotinha”, Lucia, o bailarino também
lado, tenta protegê-la dos outros nazistas que vivem se sente envolvido por ele, talvez por Max ser o oficial

o
no hotel, que eliminam todas as testemunhas que menos agressivo – fisicamente, contudo ele submete ano de 2016 foi dela. Apesar de marca da inadaptação. Seja uma jovem professora
possam denunciá-los, encontradas pelo caminho. os presos à degradação moral na medida em que os ignorado pelo júri do Festival de interiorana tentando fazer amigos em uma nova
Quando finalmente a orquestra deve partir, jogos eróticos são impostos. Cannes, Toni Erdmann (2016) foi, sem cidade, como em Floresta para Árvores, seja um
ela decide ficar e dar continuidade à relação O filme, todavia, foi bem recebido por alguns dúvida, o seu grande destaque. Não casal descobrindo as bases de sua relação em
sadomasoquista vivida com Max no campo de críticos que consideraram a complexidade psicológica que Maren Ade fosse exatamente uma revelação, - Todos os Outros, culminando com a inadaptação
concentração, entretanto, a gangue de ex-soldados da trama. Marrone (2014) chama atenção para seu primeiro longa-metragem, Floresta para Árvores personificada, corporificada, de Toni Erdmann, o
passa a persegui-los. Max e Lucia se refugiam na casa a fotografia predominantemente expressionista, (2005) já havia ganhado prêmios em importantes sentimento patético de estar deslocado de um
do ex-soldado, que pede demissão do hotel, então inspirada em Klimt, Munch e Schiele. Os constantes festivais de cinema independente, como o prêmio contexto atinge o espectador em quase todas as
o casal retoma aquela relação passional, ao mesmo flashbacks dos protagonistas, principalmente, são especial do júri em Sundance, e o grande prêmio cenas que Ade constrói. Esse deslocamento está
tempo em que passa por dificuldades para se manter acinzentados, opacos. O único ambiente em que no IndieLisboa, e Todos os Outros (2009), melhor presente na forma como a diretora estabelece as
no novo cárcere, o apartamento de Max. Lucia e Max podem viver o romance é em um diretor no Bafici e Urso de Prata em Berlim – mas relações entre seus personagens, mas, sobretudo,
O filme repercutiu de forma negativa na época apartamento hermético e escuro, secreto como as com Toni Erdmann, Ade esteve no pódio em 9 em seus corpos. O cinema de Ade é um cinema
de seu lançamento, sendo considerado de mau gosto profundezas do inconsciente, no qual guardamos a cada 10 listas de melhores do ano, incluindo físico. É a reação em um corpo a um deslocamento
por erotizar o nazismo. O enredo se desenvolve na nossos desejos, nossos receios, nossas memórias, primeiro lugar nos rankings da Cahiers du Cinéma de contexto, e então a segunda característica
atmosfera densa das lembranças do passado trazidas tudo o que é irrealizável ou socialmente reprovável. e da Sigth&Sound. Além de uma carreira iniciante, marcante desses primeiros filmes da cineasta, o
à tona. Além do romance e dos fetiches sexuais de Trazer à superfície o que deve permanecer no porém sólida, na direção cinematográfica, Maren humor patético, desconfortável, de sorriso amarelo
Max e Lucia, o erotismo se apresenta por meio das inconsciente é perigoso, podendo ser até mesmo Ade é bastante prolixa no meio da produção, tendo (à exceção de Toni Erdmann, que leva a comédia às
artes, ou concomitantemente às manifestações autodestrutivo. co-produzido os filmes mais recentes de Miguel últimas consequências, mas ainda sem abrir mão
Gomes, Tabu (2012) e a trilogia As Mil e Uma Noites de uma graça desconcertante, de deixar no colo do
(2015). espectador a decisão de rir ou não de determinadas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Traçando pontos de contato entre seus três situações).
______. The Gaze and the Labyrinth: The Cinema of Liliana Cavani. Prince-
MARRONE, Gaetana. The Night Porter: Power, Spectacle, and Desire [in- ton: Princeton University Press, 2000. primeiros filmes, podemos começar a pensar em Estes deslocamentos do cinema de Ade
ternet]. Nova York: The Criterion Collection, 09 de dezembro de 2014. Dispo- O Porteiro da noite. Direção de Liliana Cavani. Distribuído por The Criterion algumas características do seu cinema. Inadaptados. são também geográficos. Todos os Outros narra
nível em: <https://www.criterion.com/current/posts/3393-the-night-porter- Collection. Itália, 1974. Filme (118min), 35mm, Mono, cor. Título original: Il
-power-spectacle-and-desire>. Acessado em: 15 de novembro de 2016. Portieri di Notte. Os personagens de Ade carregam em seus corpos a as férias de um casal berlinense, Gitti e Chris, na
52 | Artigo

Uma Mulher Solteira, um filme


casa da família de Chris na costa italiana (Berlim da coluna, na contenção de suas críticas sociais. O
e interior da Itália, símbolos contemporâneos do espectador torna-se um “voyeur” dessas pequenas,
progressismo e do conservadorismo europeu). mas violentas torturas a que o casal se submete,

polonês de Agnieszka Holland


Como diz a diretora em entrevista: “O filme é sobre tendo seu ápice na sequência da piscina que termina
um casal que ainda não conhece muito bem um com a segunda cena de sexo do filme.
ao outro”. Ao se afastarem da atmosfera jovem e Sob uma perspectiva, Todos os Outros é o
“segura” da noite de Berlim e se defrontarem com que acontece entre as duas cenas de sexo presentes
uma realidade padronizada na figura de um casal de no filme: na primeira, uma interação apaixonada

Por Carla Oliveira


amigos, a dupla, mas sobretudo Chris arrastado por e bem humorada do casal, a inversão dos papéis
sua insegurança profissional, começa a questionar tradicionais de gênero no ato sexual, uma câmera
o modelo de relação que vem estabelecendo, seus interessada nos corpos e no rosto de Gitti gozando.
lugares no mundo “adulto”, os papeis de gênero Na segunda, a imolação da personagem, que se
de cada um no jogo amoroso. E é com uma sutil e atira da janela da casa para chamar a atenção para
crescente violência que Chris e Gitti entram num a série de agressões psicológicas que seu corpo vem
jogo delicado de poder, no qual ele propõem e ela sofrendo, e o gozo solitário, quase comovente, de
se submete, a fim de adequar a relação a certos Chris em performance melancólica. É inquietante

A
padrões. É no corpo de Gitti que vemos as marcas presenciar estes momentos da forma transparente gnieszka Holland, a mais conhecida das poloneses Krzysztof Zanussi e Andrzej Wajda.
desse processo: na compra do vestido, na postura e sem excessos que Maren Ade propõem. Nem cineastas polonesas, é frequentemente Em 1979, realizou seu primeiro longa-metragem,
um tom de denúncia, nem uma “forçação de lembrada por sua premiada carreira Atores de Província, filme que, assim como Uma
barra” de roteiro, nada que nós espectadores internacional, na qual se destacam os Mulher Solteira, foi típico da corrente de cinema
não pudéssemos presenciar em qualquer filmes Colheita Amarga (1985), Filhos da Guerra polonês denominada de Cinema de Ansiedade
jantar de família, e, ao mesmo tempo, de uma (1990), Olivier, Olivier (1992), O Jardim Secreto Moral, da qual também fizeram parte: “Personel”
agressividade dilacerante. (1993) e Na Escuridão (2011). O raro Uma Mulher (1975) e “Sorte Cega” (1987) do Krzysztof Kieslowski
Importante também em Todos os Solteira (1981) foi a última obra realizada na (igualmente um parceiro criativo de Agnieszka
Outros é a relação entre o mundo externo, as Polônia antes da sua partida para o exílio, decidida Holland), “Mimetismo” (1977) do Zanussi e “O
condições sociais, e o mundo íntimo do casal, na iminência da declaração de lei marcial no país. homem de mármore” (1977) de Wajda. O Cinema
e é no final que Ade nos alenta com uma saída A conturbada história da Polônia, tantas vezes da Ansiedade (ou Angústia) Moral se destacou por
por esse segundo mundo. Isolados em seu retratada em seus filmes, determinou este e outros expor os aspectos psicológicos das pessoas comuns
idílico paraíso em que Gitti maquia Chris como caminhos percorridos na carreira desta realizadora vivendo sob o regime socialista totalitário.
uma boneca e o casal cultiva como mascote nascida na Varsóvia arrasada e sob influência Em Uma Mulher Solteira, Agnieszka
um gengibre falante, a comunicação flui entre stalinista do pós-guerra. Agnieszka estudou na Holland aborda os dilemas morais de Irena (Maria
desmaios fingidos e lágrimas teatrais. Em vez FAMU, a renomada escola de Praga, nos áureos Chwalibóg, atriz do aclamado “Madre Joana
de um beijo encantado, um golpe de cócegas anos em que seu cinema passava pelo movimento dos Anjos” (1961), realizado vinte anos antes
acorda a princesa da sua letargia. Essas duas da Nova Onda Tcheca, durante a Primavera de por Jerzy Kawalerowicz), uma sofrida mulher de
pessoas que, tentando se relacionar, criam Praga, sofrendo com a terrível repressão que se meia-idade, mãe de Bogus (Pawel Witczak), um
para si um universo particular facilmente seguiu a esta. Retornou à Polônia em 1971, em um menino em idade escolar, de cujo pai violento
abalado por agentes externos, ainda têm o momento em que o país passava por forte crise Irena se afastou. Eles moram na periferia da cidade
riso em comum. Mas as férias vão acabar. política e econômica. Em meio às adversidades, deu de Wroclaw, próximo aos trilhos do trem, em um
início a sua carreira, trabalhando como assistente de pequeno quarto destinado a eles pelo Partido,
Cineasta Maren Ade direção e roteirista junto aos grandes realizadores junto a vizinhos que a depreciam e a intimidam
54 | Artigo

por sua condição de mãe solteira. A vida dos dois das crianças nos pátios e calçadas. Irena também os entraves burocráticos e o preconceito que sofre diminuição de sua produtividade. O último fator
é árdua, frequentemente sofrem de falta de água enfrenta essas longas filas ao final de seu dia, antes complicam a transferência para um novo imóvel. Em a leva ao desespero, o que a faz tomar medidas
e de luz, as refeições são sempre frugais e o tempo de um retorno cansativo ao seu lar na periferia, uma modesta recepção promovida para celebrar a extremas, como roubar o dinheiro das pensões
compartilhado entre mãe e filho é exíguo, devido quando chega a cochilar, de pé, no transporte cerimônia religiosa da primeira comunhão de Bogus, que deveria entregar. Decidida a sair do país com
à extenuante rotina de trabalho de Irena. Ela é público. ela se queixa a respeito dessa dificuldade a seus Jacek, compram um carro e rumam à fronteira. Um
funcionária dos correios de Wroclaw e trabalha Há também uma velha tia doente, de quem convidados. Questiona se vale a pena pagar propina acidente interrompe seus planos e seu desfecho é
na rua, entregando cartas e valores de pensões a Irena ajuda a cuidar e espera receber alguma aos órgãos oficiais. Alguém sugere a possibilidade de trágico, conduzido pela insanidade que acomete
aposentados. Ao acompanhá-la em seu trabalho, herança. Nos cuidados com a tia e com o filho, procurar ajuda junto ao Sindicato Solidariedade, que Jacek depois de tantas frustrações. Bogus, em um
o cinegrafista Jacek Petrycki nos oferece lindas observamos a sua religiosidade, tão característica se tornava cada vez mais forte, mas Irena tem medo orfanato, fantasia um futuro melhor. Em meio à
imagens dos pátios, escadarias e apartamentos do povo polonês, e por conveniência tolerada pelo de ser demitida ou sofrer represália do Partido por consternação dos adultos, as crianças brincam,
dos velhos e sobreviventes prédios desta cidade, Partido Socialista. Mesmo marginal à prevalente buscar ajuda em um movimento sindical. Faz mais insubordinam-se e até ousam sonhar.
assim como de suas ruas, onde vemos longas filas sociedade conservadora, pela ausência de um uma tentativa de reivindicação junto aos órgãos Uma Mulher Solteira foi censurado e
de pessoas em busca da aquisição de suas cotas de marido, ela demonstra em sua fala o mesmo apreço oficiais e sofre outra desilusão. Ninguém a ajuda. banido pelo governo polonês. Só em 1987,
alimentos e produtos estabelecidas pelo governo. à religião, ao exército e ao heroísmo de guerra dos Em um dia de trabalho, Irena conhece quando uma abertura do bloco dos países do
A aparente apatia que os adultos demonstram nas que a excluem, manifestando um desejo de fazer Jacek (Boluslaw Linda, prestigiado ator polonês), leste europeu começou a ser vislumbrada, pode
filas, nas estações ferroviárias e nos trens contrasta de seu filho “um bom polonês”. Seu principal sonho um rapaz mais jovem do que ela, incapacitado ser lançado e apresentado em festivais. Agnieszka
com a movimentação e as brincadeiras constantes é conseguir uma moradia um pouco melhor, mas fisicamente em decorrência de um acidente na Holland retornou à Polônia para filmar em duas
mina de carvão na qual trabalhava, a quem ela foi oportunidades: nas obras Janosik (2009) e Na
encarregada de entregar o valor de sua pensão. Escuridão (2012). Janosik foi codirigido por sua filha,
“Uma mulher solteira” (Agnieszka Holland, 1981)
Os dois se identificam como pessoas à margem da Kasia Adamik, cineasta de mais uma nova geração
sociedade e se envolvem, melancolicamente. Irena do singular e centenário cinema polonês.
talvez já não busque amor, mas um
companheiro que a ajude a educar o
filho e a conseguir uma posição mais
confortável na sociedade. Jacek fala
repetidamente em sair da Polônia
em busca de uma vida melhor e
demonstra interesse na possível
herança de Irena, reforçando valores
de que um homem precisa ter um
carro e dinheiro para se posicionar
bem na sociedade. Segue, assim, a
trajetória de infortúnios de Irena: sua
tia morre deixando dívidas ao invés
de herança, Bogus tem problemas
na escola (as crianças brincam, mas
também se revoltam), continuam as
ameaças dos vizinhos, ela tem uma
desavença mais séria com Jacek e é,
Maria Chwalibóg em “Uma mulher solteira”
por fim, rebaixada no emprego por
(Agnieszka Holland, 1981)
56 | Artigo

India Song, Marguerite


Anne-Marie Stretter, após ter sido repelido por ela; e vezes de dança, dos personagens. Ao som de
a mendiga do Ganges, a que está fora dos jardins da seus acordes, a câmera passeia lentamente pelos
Embaixada, que acompanha Anne-Marie Stretter há objetos que compõem o ambiente doméstico dos

Duras
dez anos, desde o sudeste asiático, perdendo seus que detêm o poder na Índia colonial: espelhos,
filhos no caminho, e que, louca, canta, ri e grita o tecidos, joias, um piano, mesas com vasos de flores,
distante nome de Savannakhet (Laos). porta-retratos, cinzeiros onde ainda ardem cigarros,
Marguerite Duras, no entanto, disse que incensos, cálices, abajures. Já o canto da mendiga do
India Song jamais teria existido sem a sua obra Ganges, à distância, associado ao ruído dos animais
cinematográfica imediatamente anterior: A Mulher e do Ganges, nos lembra de paisagens distantes –
Por Carla Oliveira do Ganges (La Femme du Gange, 1974), na qual ela
introduz seu propósito de tornar as imagens sonoras
Savannakhet, Mandalay, Bangkok, o Mekong –, da
luz das monções, mas também do odor da lepra,
e visuais autônomas: “A Mulher do Ganges é, de da fome, da miséria existentes além da mansão da
alguma forma, dois filmes. Paralelamente ao filme Embaixada. Uma variação de Beethoven do tema de
das imagens, há o filme das vozes desacompanhadas Diabelli marcará uma inesquecível cena que mostra
de imagens. Para evitar o desprezo, gostaríamos a imobilidade (o tédio, o calor, o sofrimento) de
de informar ao espectador que as duas vozes off Anne-Marie Stretter deitada junto a seus amantes,

M
arguerite Duras (1914-1996) foi uma floresceu após maio de 68. Realizou vários filmes femininas não pertencem às personagens que assinalando a proximidade de sua morte sob os ecos
das escritoras e intelectuais mais ousados e originais, dentre os quais tem destaque: aparecem nas imagens. Podemos dizer também que dos acontecimentos que levariam à Segunda Guerra
influentes do século XX. Seu livro O Destruir, Disse Ela (1969), Nathalie Granger (1972), os personagens vistos nas imagens estão totalmente e à queda do Império Colonial.
Amante (adaptado ao cinema por A Mulher do Ganges (1974), India Song (1975), O inconscientes da existências das duas mulheres que As imagens, as vozes autônomas, a trilha
Jean-Jacques Annaud) foi agraciado com o Goncourt, Caminhão (1977), Agatha e as Leituras Ilimitadas se manifestam na história unicamente pelo diálogo sonora de India Song formam uma composição
o importante prêmio literário da França, de 1984. (1981) e As Crianças (1985), seu último filme. que mantém.” Esta disjunção das imagens sonora e singular. O auge, talvez, da sofisticação de
Além da literatura, dedicou-se ao cinema e ao teatro, Direcionamos nosso olhar a India Song – texto, visual é também uma das principais características Marguerite Duras.
e são brilhantes os entrelaçamentos feitos por ela teatro, filme –, escrito originalmente em 1972 por de India Song, que conta em seu elenco com vários
entre estes formatos artísticos, nos quais foi uma encomenda de Peter Hall, diretor do Teatro Nacional de seus parceiros artísticos. Anne-Marie Stretter é Cineasta, escritora e dramaturga Marguerite Duras
inovadora. de Londres. Em India Song, Marguerite Duras interpretada pela deslumbrante Delphine Seyrig,
Nascida na Indochina francesa, onde viveu retorna a seus personagens do livro O Vice-Cônsul o Vice-Cônsul por Michael Lonsdale, Michael
difíceis tempos de pobreza e sofrimento familiar, (1965): a enigmática Anne-Marie Stretter, esposa Richardson por Claude Mann. Eles, no entanto, não
mudou-se para Paris aos dezessete anos para do Embaixador francês nas Índias, nascida Guardi – falam. O grito desesperado do Vice-Cônsul e a voz da
estudar Matemática, Direito e Ciências Políticas. Foi nome que será gritado na Calcutá deserta –, e que mendiga do Ganges são escutados fora do campo da
membro da Resistência Francesa durante a Segunda já sabemos morta e enterrada no cemitério inglês imagem. As vozes que escutamos e que conversam
Guerra, filiada ao Partido Comunista Francês e no início da obra; seus amantes, tão entediados sobre as vidas, os amores, desejos e sobre o
ativa nos movimentos de maio de 68. Todos esses quanto ela no calor e na aparente imobilidade da desespero dos personagens do filme da imagem
episódios foram refletidos em sua obra, que muitas Índia branca da década de 30 (dentre os quais se são as vozes da própria Marguerite, de Nicole Hiss,
vezes teve cunho autobiográfico. destaca o preferido, Michael Richardson, que a de Monique Simonet, de Benoit Jacquot, de Dionys
Tratando-se de cinema, é frequentemente segue há anos, desde um inesquecível baile em S. Mascolo, entre outras – são os atores do filme das
lembrada pela escrita do roteiro de Hiroshima Thala); o Vice-Cônsul da França em Lahore, caído vozes.
Mon Amour (1959), clássico de Alain Resnais, pelo em desgraça depois de um crime (uma noite, atirou O tom de India Song, entretanto, é dado por
qual recebeu indicação ao Oscar de melhor roteiro de sua varanda sobre os leprosos de Shalimar), e sua música. A composição original do argentino
original. Sua própria obra cinematográfica, contudo, que gritará, em desespero, o nome veneziano de Carlos d’Alessio impulsiona o movimento, tantas
58 | Artigo

A teta assustada
sentido de fazer tudo o que se quer fazer a despeito
do que prega a religião. Outro tema é a fusão da
cultura peruana com a norte-americana. Em 2014,

(Claudia Llosa, 2009)


realizou Marcas do Passado, que conta a história de
uma mãe que encontra o filho abandonado há 20
anos.
Além dos longas, Claudia Llosa também
dirigiu os curtas metragens El niño Pepita
(2010) e Loxoro (2012), abordando os temas
Por Bruna Giuliatti do marketing alternativo e da relação de mãe e
filha, respectivamente. Nesse último, ambas as
personagens são transgêneros e vivem no Peru.
Magaly Solier em “A
teta assustada”
(Claudia Llosa, 2009)

Q
uando escreveu seu livro a partir a tristeza e o sofrimento dessas mães seriam
de sua experiência vivendo no Peru transmitidos aos filhos através do leite. Theidon
nos anos 90, a médica antropóloga denominou essa ideia de “teta assustada”, e a partir
Kimberly Theidon não imaginava que dessa expressão surgiu o título do filme.
suas pesquisas, observações e análises a respeito Fausta, a protagonista, é a personificação do
das violações sofridas pelas mulheres nas aldeias medo: uma garota tímida, quase muda, que tem
do Peru seriam lidas por alguém de fora do meio receio de caminhar sozinha e que, por medo de
acadêmico. Para sua grande surpresa e alegria, ser estuprada, enfia uma batata na própria vagina.
como declarou em entrevista ao site Periodismo Trata-se de uma metáfora utilizada pela diretora
Humano, alguém não só leu seu livro como também para representar as técnicas que as mulheres
escreveu um roteiro cinematográfico baseado nele. usavam para se protegerem de estupros. A ideia
Esse alguém foi Claudia Llosa, diretora e roteirista da batata dá um toque de realismo fantástico ao
peruana que decidiu dar voz a uma personagem filme. Após a morte de sua mãe, o objetivo da
cujo contexto de vida nunca havia antes sido personagem é fazer um enterro digno àquela que
retratado no cinema. tanto sofreu e que tem o seu amor mais profundo.
A Teta Assustada (2009) trata da história de Sendo ela e a família – e todo o resto da aldeia-
uma garota que vive as consequências da guerra muito pobres, ela busca uma forma de arranjar
civil que aterrorizou a população do Peru durante dinheiro para pagar o caixão e o enterro de sua mãe.
anos - sobretudo as mulheres, que passavam por O filme, que é o segundo longa da diretora,
diversos tipos de exploração, sendo a pior delas, rendeu um Urso de Ouro no festival de Berlim de
provavelmente, a sexual. O estupro se tornou o 2009. Seu primeiro longa é de 2006, chama-se
grande medo daquelas mulheres e dele originou-se Madeinusa e também é sobre um episódio na vida
o mito de que os filhos das mulheres violentadas de uma adolescente que vive em uma aldeia do
nasceriam sem alma e que, além disso, a dor, Peru. Nesse filme, porém, o tema é “pecado”, no
60 | Artigo

O mundo odeia-me acontecido com ele, pois os fatos são verídicos. É


interessante notar que o filme gira em torno dos três
personagens, mas alguns elementos inanimados
continuou atuando em alguns filmes, como No
Silêncio de uma Cidade (While the City Sleeps, 1956),
Cinzas que Queimam (On Dangerous Ground, 1951),

(Ida Lupino, 1953)


assumem papel central, como a arma em posse do A Grande Chantagem (The Big Knife, 1955), entre
personagem de Talman durante a maior parte da vários outros. Ela também filmou cenas de Cinzas
trama, que torna arriscada qualquer tentativa de que Queimam, mas não foi creditada. Dinheiro
fuga dos dois outros homens e ao redor da qual se Maldito (Private Hell 36, 1954), dirigido pelo Don
constrói grande parte da tensão. Siegel, foi escrito e atuado por ela, e também

Por Francielle Beria


É interessante notar também os temas produzido pela Filmakers. Em 1966 ela dirigiu seu
desses filmes: Not Wanted é sobre gravidez fora do último filme, Anjos Rebeldes (Trouble with Angels), e
casamento, O Mundo é Culpado é sobre estupro, faleceu em 1995.
O Bígamo é sobre relações extraconjugais. Após
os filmes, o contrato
com a RKO não foi
renovado e a Filmakers
foi dissolvida. Isso deu

I
da Lupino foi diretora, roteirista e atriz de Lupino dirigiu oficialmente. início à longa carreira de
Hollywood. Vinda de uma família de artistas, Os filmes não foram um sucesso, mas Lupino na televisão. Ela
teve seu primeiro papel em um filme aos 13 atraíram a atenção de Howard Hughes, da RKO. atuou, escreveu e dirigiu
anos, com The Love Race (1931). Aos 14 anos, Assim se iniciou uma parceria, cujo primeiro título episódios de Thriller,
conseguiu um papel maior em Her First Affaire foi O Mundo é Culpado (Outrage, 1950), e seguiu-se Além da Imaginação
(1932). A partir daí, começou a atuar em vários com Laços de Sangue (Hard, Fast and Beautiful, (The Twilight Zone),
filmes, como em Dentro da Noite (They Drive by 1951), O Mundo Odeia-me (The Hitch-Hiker, 1953) e Bewitched, Alfred
Night, 1940) e Seu Último Refúgio (High Sierra, O Bígamo (The Bigamist, 1953). Hitchcock Presents,
1941), ambos de Raoul Walsh. O Mundo Odeia-me é considerado o único Paladino do Oeste (Have
Em 1945, o seu interesse em dirigir foi filme noir dirigido por uma mulher. De baixo Gun – Will Travel), entre
aumentando, mas naquela época não havia orçamento, o filme trata sobre o sequestro de dois várias outras séries de
mulheres dirigindo em Hollywood. A última foi homens, que estavam numa viagem de carro, por TV. Em Twilight Zone
Dorothy Arzner, com o seu filme First Comes um psicopata, interpretado por William Talman. A ela é a única diretora da
Courage (1943). Essa situação se estendeu até 1949. história é baseada no caso verídico do serial killer série original, e também
Em 1948, Lupino criou com seu marido a Emerald Billy Cook, que foi entrevistado por Lupino para a a única pessoa a ter
Productions, uma produtora independente. No ano construção da obra, e na obra de Mainwaring, que atuado em um episódio
seguinte, foi renomeada como The Filmakers e teve na época era persona non grata da RKO e por isso e dirigido outro.
continuidade até 1953. A primeira produção foi não foi creditado. Lupino também
Not Wanted (1949), o qual ela escreveu o roteiro e O filme cria uma atmosfera de tensão durante
também dirigiu, após o diretor oficial ter sofrido um todos os seus 71 minutos, com um jogo de luzes
ataque cardíaco, mas não teve seu nome creditado. impressionante e um vilão incapaz de fechar os
Esse filme pode ser considerado, então, sua estreia olhos, até para dormir. Também, no seu início,
na direção. O próximo filme da The Filmakers foi apela ao espectador ao enfatizar o fato de que Cineasta Ida Lupino
Quem Ama não Teme (Never Fear, 1949), que a história que ele está prestes a ver poderia ter
62 | Artigo

História Mundana (Anocha Amer* (2009), Hélène


Suwichakornpong, 2009) Cattet e Bruno Forzani
Por Francielle Beria Por Francielle Beria

A H
nocha Suwichakornpong é uma diretora frequentes protestos e conflitos entre a população élène Cattet é uma diretora francesa volta para a mansão vazia de sua infância, na
tailandesa. História Mundana é o seu e o governo. Apesar disso, Anocha acredita que que nasceu em 1976. Em 1997, qual suas fantasias sexuais e a sua culpa tomam
primeiro longa e ganhou o Tiger Award no qualquer pessoa pode tirar uma mensagem do conheceu o seu marido (também a forma de um conflito violento que culmina
Festival de Rotterdam, além de ter sido filme independente de seu conhecimento sobre a cineasta), Bruno Forzani. Desde então, em um final assombroso. A inseparabilidade
muito bem-recebido pela crítica em geral. Antes situação do país, pois a reflexão de nosso lugar no eles têm uma parceria que resultou em co- entre desejo e culpa permeia toda a trama,
dele, lançou o curta Graceland (2006), sobre um universo. Os ciclos de vida e morte também são direção de todos os seus filmes. Tais filmes assim como a primazia da experiência sensorial
sósia de Elvis que viaja com uma desconhecida camadas da obra, como na cena do parto ao final do apresentam uma forte influência do giallo (refletida pelos poucos diálogos do início do
misteriosa sendo o primeiro curta tailandês a fazer filme ou a da explosão de uma supernova. Nele, a italiano. Amer é de 2009. Foi seu primeiro filme que até o final se tornam inexistentes), o
parte da seleção oficial de Cannes. O seu último trilha sonora também tem um espaço importante, longa, e teve grande repercussão internacional. que também acontece em outras obras do casal.
longa, By The Time It Gets Dark, estreou esse ano no refletindo a centralidade da música para a diretora. Algumas outras obras são o curta O is for Orgasm O filme funciona muito bem como uma
Festival de Locarno. (2012) e o longa A Estranha Cor das Lágrimas do homenagem ao gênero, incluindo a sua trilha
Seu Corpo (L’étrange couleur des larmes de ton sonora, tendo referências marcadas a Luis
História Mundana trata sobre um jovem Nota-se também o elenco corps, 2013). Buñuel, Mario Bava e Dario Argento, entre
que fica paralisado da cintura para baixo depois composto majoritariamente por O filme trata sobre três momentos da vida outros artistas, e também conta com uma base
de um acidente. Ele é cuidado por um enfermeiro homens – pensado justamente para da personagem Ana: a infância, a adolescência muito freudiana. A obra atinge o objetivo de
contratado por seu pai. Com o decorrer do filme, refletir a sociedade patriarcal em e a vida adulta. A primeira parte mostra Ana encontrar o ponto certo entre originalidade e a
a relação entre os personagens é explorada mais a que vivemos. No seu último filme, na mansão de sua família, assustada com a simples mistura de referências, com um enredo
fundo, não seguindo uma linha temporal clássica. o elenco já é mais feminino, mas a empregada que mais parece uma bruxa e que pode ser infinitamente debatido devido a
Pode parecer um drama familiar na superfície, pegada mais política e existencial ainda fascinada com o corpo do avô que está sendo suas diversas camadas.
mas ele é principalmente sobre a situação política está presente. Com apenas 40 anos mantido em um quarto da casa. Em meio disso,
na Tailândia, com a família atuando como um de idade, ainda teremos muito o que Ana também presencia seus pais transando. Na
microcosmo. A situação tumultuada na Tailândia esperar de Anocha Suwichakornpong. segunda parte, a adolescente começa a explorar
teve início com um golpe militar em 2006 e mais a sua sexualidade, mas é repreendida por
continuou após as eleições gerais de 2007, com uma mãe competitiva. Já na última parte, Ana *A obra foi lançada no Brasil com o título “Sofrido”.
64 | Artigo

Na Academia sob o Feitiço


estas linhas sobre a cultuada roteirista e diretora que seu cinema tem cunho político focado no
parisiense Claire Denis, cujos filmes retratam a indivíduo que busca um lugar seu em uma sociedade
periferia de Paris, um espaço muito diferente dos miscigenada culturalmente e sempre resistente à

da Musa Claire Denis


catalogados pontos turístico, onde se encontram integração.
um dos objetos de sua preocupação: o migrante. O gosto que me fica na hora sempre
Sim, esse ser humano sem pátria por não mais se representa melhor o impacto do espetáculo então,
encaixar no seu país de origem e também não se para que possam entender minha visão do cinema
encontrar no país de destino, nunca deixando de da Claire, reproduzo o texto que escrevi no meu blog

Por Daniel Strack


fazer parte dos dois. Talvez essa opção tenha sua após assistir um filme dela em meados deste ano de
origem e explicação no fato dela mesma ter passado 2016:
uma boa parte da infância em Camarões na África, Na Sala Redenção, neste início de agosto,
parece que acerto se eu sintetizo com a afirmação o meu primeiro encontro com a diretora Claire

T
ropecei com alegria em algumas frases como se pode encontrar o seu lugar em relação à
encantadoras da diretora Claire Denis ao ler produção”, referindo-se á transição de sua carreira
uma entrevista sua para Thierry Jousse para de assistente de direção dos consagrados Wim
Cahiers Du Cinéma 479-80 de maio de 1994 Wenders, Dusan Makavejev, Costa-Gavras e Jacques
no mesmo ano da liberação do filme Noites sem Rivette entre outros para a Direção de seus próprios
Dormir (18 de maio de 1994): filmes.
- “A tomada dos corpos é realmente a única - “Não gosto quando se compara os filmes,
coisa que me interessa”, ressaltava ela ao falar da quando se coloca uns acima dos outros”, é como se
sua preocupação estética nesse que, na época, era refere ao mercado de competição comprometido
seu mais recente filme. com a bilheteria sem deixar de admitir que, assim
- “Passei muito tempo olhando corpos como todos nós, vê uns filmes que lhe agradam e
esperando reconhecer o de Camille!”, também outros não lhe caem no gosto.
sobre a mesma película posicionando-se quanto à - “Não é por humildade. Há muitos dias,
opção de utilização de atores não profissionais para semanas e meses que passam para se fazer um
alguns de seus personagens protagonistas. filme, muitas dúvidas também.” ”Realização
- “Com os assassinatos, foi um trabalho é concreto”, esclarecendo sua preferência por
de encenação à parte, é preciso perguntar-se identificar-se como realizadora em lugar do
como se vai filmar a morte”, declara sobre as tradicional “dirigido por”.
sequências difíceis dos crimes do serial killer, sobre Não fugindo da briga, não sou crítico ou
as quais afirma ainda que devem ser filmadas pesquisador de cinema, apenas alguém que
preferencialmente em um único plano com gosta de viver o papel de espectador frente à tela
repetições frias não explicadas. grande, para mim suas afirmações nesta entrevista
- “De um momento pra outro, tive a sensação confrontadas com as suas realizações que me
de aprender, não a fazer filmes, mas a entender oportunizaram ver serviram de desafio para Cineasta Claire Denis
66 | Artigo

Um anjo em minha mesa


Denis no seu filme Noites sem Dormir (J’ai pas O outro protagonista, seu irmão mais novo,
Sommeil, França, 1993, 110min), posso resumir é gay cantor-dançarino de casa noturna focada no
como gratificante assistir sua reflexão forte sobre público de sua opção de gênero, involuntariamente

(Jane Campion, 1990)


o homem migrante. Por sinal, tema de grande enquadra-se simultaneamente em diversos guetos:
atualidade e importância no debate atual global no dos imigrantes, no dos homossexuais, no dos
da humanidade, película que não tem a pretensão negros, no dos artistas da noite dita marginal
de oferecer respostas e sim mostrar algumas das e no principal deles, que é o dos pobres. Sua
diferentes peças que compõe este quebra cabeças personalidade multifacetada ora é o ser carinhoso
de dificil solução, possibilita-nos navegar por da sua relação familiar, ora é o individuo de relação
caminhos diversos na análise do problema e possível
encontro de soluções.
apaixonada e conflitante com o namorado, ora
cumpre o papel de amistoso relacionamento com
Por Leandro Hard
Os guetos, como consequência resultante da a vizinhança e finalmente o do seu ganha-pão:
incomunicabilidade, mostram-se distribuídos por assassinato em série de velhinhas com finalidade
todo o filme. Migrantes do leste europeu, migrantes de roubo, o que faz com uma naturalidade
da África, seu isolamento social, suas dificuldades impressionante desprovida de qualquer emoção.
econômicas, sua vida em pequenos grupos e Uma loira jovem bonita, sozinha, vinda da
as diversas opções individuais frente à injusta Lituânia para Paris por uma promessa profissional
exploração da sociedade, sua vulnerabilidade social, feita na sua terra por um parisiense sedutor do
tudo isto nos é jogado na cara de maneira singela primeiro escalão que agora a adia para um futuro
real, crua e sem disfarce. amanhã inexistente, como Judas, ela denuncia
Nestas ilhas humanas os relacionamentos para a polícia o jovem e saqueia o dinheiro por ele
internos são ambientados no saudável carinho, roubado e segue seu caminho. O filme envolveu-
compartilhando a alegria do convívio através de me por inteiro e convida para posterior reflexão
intermináveis gestos de ajuda mútuos, sempre mesmo sendo uma situação de difícil entendimento
limitados pela situação econômica a que estão pela dificuldade de nos colocarmos no lugar dos
sujeitos, incapazes de abrir seus dilemas pessoais migrantes.
ao grupo. Vivem a solidariedade sem afastarem os Outros filmes que tive oportunidade de
fantasmas internos que os amedrontam, vemos ver neste ano, como “35 doses de Rum” (2008) e
então que só há alguma alegria em seus pequenos “Dane-se a Morte” (1990), dessa roteirista e diretora,
grupos de mais chegados, todo o entorno social fora também trabalham esses temas, permitindo atrever-
destes são relações sombrias com o mundo. me a posicionar o seu cinema como político não
Um dos protagonistas, o irmão mais velho, explícito engajado pela fotografia da vida cotidiana
negro violinista, dedica-se a montar móveis como a desvendar as pessoas em sua intimidade, nos
trabalhador ilegal para seu sustento, mergulhado na seus desejos, na sua sexualidade e, por que não,
solidão só quebrada pelo dia a dia vivido com o filho sua violência de apartados sociais, tendo como
pequeno e o contínuo acalento do seu sonho de ir palco quase sempre as periferias miscigenadas por
viver na natureza da África uma vida simplória com diferentes perfis de estrangeiros migrantes. Assim
a mulher, o filho amado, a terra banhada pelo mar finalizo estas linhas sem medo de errar ao deixar-
e seus frutos que por sinal o separa dos sonhos da lhes minha recomendação de que são filmes a serem
mulher branca presa à necessidade da Paris cidade. vistos na primeira oportunidade que aparecer.
Alexia Keogh em “Um Anjo em Minha Mesa” (Jane Campion, 1990)
A casa é escura (Forough
Farrokhzad, 1962)
Por Daniela Strack

“I am thinking that in a moment of neglect


I might fly from this silent prison,
laugh in the eyes of the man who is my jailer
Kevin J. Wilson e Jessie Mune em “Um Anjo em Minha Mesa” (Jane Campion, 1990) and beside you begin life anew.”
The Captive, Forough Farrokhzad1

E
m 1993, a neozelandesa Jane Campion pessoas amadas e os anos passados no temido

D
tornou-se a primeira mulher a vencer hospital psiquiátrico Seacliff, culminando na fase urante as três primeiras décadas do sexualidade e o papel da mulher na sociedade
a Palma de Ouro no Festival de Cinema adulta, onde Janet vive a alegria de ver as primeiras século XX a forma dominante de arte no persa do ponto de vista feminino. Seu papel como
de Cannes com seu filme “O piano” obras publicadas, viagens pela Europa e o começo Irã continuava sendo a escrita. Enquanto, artista transcendeu a poesia, atuando também
(1993), (ainda que tenha dividido o prêmio com da aclamação da crítica, dentre tantas outras no ocidente, as vanguardas europeias na pintura e na realização de filmes, como no
um homem, o chinês Chen Kaige) e até hoje é a desventuras. influenciavam toda a produção artística da época documentário A casa é escura (Khaneh Siah Ast,
única a ter conquistado a honraria. Mas poucos O filme foi dividido em três partes que se (cinema, literatura, pintura, entre outros), no Irã 1962), tornando-se o único caso em que o primeiro
lembram que a carreira da diretora foi revelada complementam como um todo em sua constante também havia um movimento de ruptura com a cineasta importante de um país foi uma mulher2 -
internacionalmente três anos antes com Um Anjo atmosfera de tom (simultaneamente) lírico e tradição cultural produzida no país durante o século até então, haviam filmes amadores acompanhando
em Minha Mesa (1990), a cinebiografia da escritora angustiante. Um triunfo artístico e técnico com XIX, mas esse era restrito à poesia, que a partir de as viagens do rei Mozaffar ad-Din Shah à Europa,
e poetisa neozelandesa Janet Frame. destaque para a direção de arte, reconstituindo então rompia com os poetas clássicos e “libertava” realizadas por Akkas Bashi, e alguns outros poucos
Terceiro longa-metragem de Jane após a de maneira formidável a Nova Zelândia e Espanha os novos escritores para fazerem experiências filmes entre as décadas de 30 e 60.
realização de Two Friends (1986) e Sweetie (1989), o dos anos 30 a 50, e a fotografia “chumbada” com a rima e a imagem a partir de experiências O filme, que narra o dia a dia de uma
retrato intenso da vida de Janet Frame acompanha (principalmente da primeira parte da história), que individuais. colônia de pessoas com lepra, amalgamado a um
uma infância feliz de grandes descobertas (literatura em nada deve ao filme mais aclamado da cineasta, É alguns anos mais tarde, nesse contexto comentário poético de Farrokhzad, passou a ser
e poesia) justapostas com as intempéries do tido por alguns (como este que vos fala) como a de efervescência literária, que surge Forough referência fundamental para o cinema iraniano,
núcleo familiar (a epilepsia do irmão), passando obra-prima de sua bela carreira. Um primor exibido Farrokhzad (1935-1967), considerada a mais influenciando diretores como Abbas Kiarostami,
por uma adolescência de aperfeiçoamento de seu no dia 9 de agosto de 2016 pelo grupo Academia importante poeta persa desse século. Farrokhzad Mohsen e Samira Makhmalbaf e até mesmo
trabalho e tragédias pessoais, como a perda de das Musas. foi a primeira mulher iraniana a abordar a o diretor italiano Bernardo Bertolucci, que a
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Talvez deserto, talvez


entrevistou3. desconfiar dessa interpretação. Desconfiança essa
“Não existe falta de feiura no mundo. Se o que só é reforçada ao desenrolar da narrativa.
homem fizesse vista grossa para isto, haveria mais As imagens – sonoras e visuais - parecem estar

universo
feiura ainda. Mas o homem é um solucionador sempre em crise: as cenas de “normalidade”, do
de problemas. Nesta tela aparecerá uma imagem cotidiano (crianças na escola, homens fazendo
de feiura, uma visão de dor onde pessoas com orações dentro de um templo, festas e alguns
compaixão não conseguirão ignorar. Com a poucos momentos de lazer) contrastam sempre
esperança de acabar com esta feiura e ajudar com a própria imagem que a câmera captura do
as vítimas é que os produtores deste filme o corpo disforme daquelas pessoas. Os textos do
realizaram.”4 É assim que começa o documentário
de Farrokhzad, com uma das poucas narrações
alcorão, quando declamados pela cineasta ou pelos
próprios personagens, idem. Esse descolamento
Por Marcela Bordin
em off que não são feitas com a voz da diretora, entre imagens, é reforçado pela montagem, que
enquanto observamos uma tela preta. Em seguida, embaralha esses momentos com cenas de cuidados
uma mulher com lepra se olha no espelho, e a médicos com os leprosos e textos sobre a doença.
câmera se aproxima de sua imagem refletida. Por trás das deformações dos corpos é
Desmembrando rapidamente essa breve possível compreender, então, qual é a violência

O
sequência que ocupa o minuto inicial do filme, sem real daquelas imagens: confinar os moradores filme inicia com imagens de muros são um espaço de trânsito e exceção, um nem
analisar os planos seguintes, é possível presumir da colônia a viverem excluídos do restante da protegidos por arames farpados e de bem aqui e nem bem lá. Mostrar os objetos e
que a imagem de feiura à qual o texto se refere sociedade, em situação de miséria, mesmo câmeras de segurança, a vigiar o que sua função, para, em seguida, lançá-los em uma
é pura e simplesmente a que vemos refletida sabendo que a doença é totalmente erradicada se passa. São apresentados, assim, pausa que não deixa criar sentido requer um
pelo espelho. Mas é o “olhar câmera”5dessa quando bem tratada. Partindo desse ponto, é esses objetos que funcionam como marcadores movimento, que se dá através do enquadramento
imagem, revelado apenas quando a objetiva atinge possível supor que a aproximação e o interesse da de uma separação e que estarão presentes, de e da montagem (casamento feliz que marca o
sua posição final, que provoca o espectador a cineasta por contar a história dessas pessoas, não formas distintas, até o fim de Talvez Deserto, fazer de uma dupla de realizadores cujo trabalho
está apenas na justiça social e na humanidade do Talvez Universo (2015), primeiro longa-metragem borra as linhas da direção convencional) e que
ato, mas no paralelo que podemos traçar entre realizado por Karen Akerman e Miguel Seabra abre um território de possibilidades, colocando o
Segundo plano do filme “A casa é escura” a condição desses personagens e da mulher na Lopes. Esses marcadores dividem, apartam e espectador em um posição sensível, ativa, que o
(Forough Farrokhzad, 1962) sociedade iraniana, que têm historicamente suas estabelecem o limite do que está dentro e do que obriga a formar conexões e a procurar saídas para o
liberdades cerceadas pelo simples fato de serem está fora. Ao mesmo tempo, porém, os planos que é mostrado.
quem são. fechados restringem a contextualização das Combinando perspectivas diversas, como
cenas introdutórias e suspendem a razão de ser que em um gesto cubista, um plano de múltiplas
desses marcadores, uma vez que não é possível telas instaura um espaço interno. Cada uma das
saber quem os muros e as câmeras estão ali para telas reproduz uma imagem diferente, capturada
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: proteger e do que: se é os que estão dentro dos por uma das muitas câmeras de segurança que
1
Trecho poema Asir, traduzido do farsi para o inglês. Disponível em: http:// que estão de fora, ou, ao contrário, se é os que monitoram, também, o interior do local. Fica
www.forughfarrokhzad.org/collectedworks/collectedworks.htm
2
COUSINS, Mark. História do Cinema – Dos clássicos mudos ao cinema
estão de fora dos que estão dentro. Os objetos são evidente que todos os ambientes ali estão sob
moderno. São Paulo: Martins Editora, 2013, pág. 314. evidenciados, assim, como o aparato obsessivo o domínio da vigilância. As imagens mostram
3
O material filmado por Bertolluci pode ser visto no documentário “The que representam. O céu é cortado por um avião, corredores e mais corredores, nos quais há pessoas
Mirror of the Soul” (Jaam-e jaan, 2002) dirigido por Nasser Saffarian.
4
Narração inicial do filme A casa é negra, em tradução livre pela autora a cujo som antecipa sua passagem com um barulho que circulam e outras que aguardam. De novo, os
partir das legendas em inglês presentes no DVD francês lançado pela revista intenso. Tal qual o cenário que nos é apresentado, espaços são indistintos e dizem nada ou pouco
Cinéma 07, em 2004.
5
DE BAECQUE, Antoine. L’historie-caméra, Paris: Gallimard, 2008. esses aviões também remetem a não-lugares: ao espectador. Em uma das telas um homem
72 | Artigo

sai por uma porta e caminha vagarosamente. A lado, encontrando a expressão desconfiada de um resposta de Nelson o “risco de desconhecimento”, ele, não interessa. O pensamento de Baldé não
imagem do mesmo homem desponta em outra senhor de idade. O senhor anda e a câmera segue conforme sugerido por Althusser, segundo o qual parece ser fundado por esse tipo de categorização
tela. Simultaneamente, através das imagens, ele os seus movimentos, em uma dança que toma o destinatário da interpelação não reconhece o na língua e o sujeito, literalmente, lhe escapa.
é duplicado. Tal como ele, outros personagens se lugar em um círculo ao redor do eixo da própria chamado, o que só pode acontecer porque o jogo O escapar e o voltar-se a si mesmo – alguns
movem entre as telas nesse espaço impossível câmera. Outra adição então se faz, quando uma social é permeado pelo domínio do imaginário. dos traços que a psiquiatria atribui negativamente
que se desconstrói em variados pontos de vista. voz do além, a voz de Miguel – estamos a ouvir Nelson escuta o chamado, mas ele cria para si uma ao esquizofrênico – despontam repetidamente, de
Apreende-se, assim, que as câmeras têm uma vozes! – se dirige ao senhor e pergunta quanto é interpretação que diverge daquela que quem o inúmeras formas (temática e formalmente), em
relação obsessiva com aqueles que transitam que ele tem. O senhor revira o bolso de seu casaco, chamou buscava. Ele não se reconhece naquele Talvez Deserto, Talvez Universo. O próprio título do
nesses espaços, são por eles que elas existem. de onde retira um montinho de papéis amassados. esforço interpelativo e, assim, escapa ao controle filme sugere esse duplo embate (a esquizofrenia é
E, de outro lado, são também por elas que eles “Só guardanapos”, diz ele, apontando os papéis ao normativo. Surge como parte da questão – não a total liberdade de sentir e ser, ou é a privação de
– como criminosos inimputáveis, detentos em diretor, para em seguida pedir-lhe uma moedinha. há surpresa aqui –, o processo do “tornar-se um vínculo com a sociedade?) e deixa a resposta
uma instituição psiquiátrica – existem. A relação Estabelece-se nesse momento uma relação que sujeito” – que parte de uma noção de sujeição, que, em aberto, utilizando-se de um marco variável:
de obsessão é intensificada ainda mais pela vai permear toda a duração do filme e que é, abraçada por aquele que é sujeitado, lhe concede talvez um, talvez o outro, talvez os dois ao mesmo
sobreposição de câmeras, mise-en-abîme: se nós, possivelmente, seu maior triunfo: diferente das um lugar no mundo, a liberdade de ser – que o tempo, já que é impossível ser um sem ser o outro
espectadores, podemos ver as imagens nessas câmeras de segurança, a câmera que nos conduz esquizofrênico não só elucida o funcionamento, na sociedade capitalista contemporânea, ou ainda,
telas, é porque ainda outra câmera as filmou. E pela instituição psiquiátrica e que trava o contato mas que ele parece mesmo conseguir desviar. Se a talvez não se limite só a essas duas opções. No
se o cinema se escora em uma espécie de cópia com os personagens serve a um desejo humano punição da não-sujeição é o ser abjeto, o que dizer filme, os limites (o que filma, o que é filmado; o
do real, o que dizer, então, de um cinema que se por interação. Ao invés de uma invasão impositiva, dessas pessoas que não reconhecem a situação que é criminoso, o que não é; o que é são, o que
utiliza de imagens resultantes de uma outra cópia se tem aqui uma troca. da abjeção? Resta-lhes a completa exclusão da é louco; o que é real, o que é imaginado) dessas
do real? É com essa distância, de duas câmeras, de Alguns instantes depois, quando o senhor sociedade e o estigma de separados da vida. linhas se borram através de sobreposições de
imagens duplicadas, que somos introduzidos aos idoso responde ao chamado de uma enfermeira Retomando a divisão com o mundo exterior, imagens e sons, que sugerem e que constroem,
personagens, ou aos fantasmas dos personagens. da instituição, descobrimos que ele é Pacheco. Não as cercas, o contato escasso que os internados têm em um sistema que ultrapassa a narrativa
Pois em um primeiro momento é assim que eles será a última vez que esse artifício – de deixar os com outras pessoas, e mesmo com as suas pessoas, convencional, deixando entrever que há algo
aparecem para nós, como fantasmas, apenas personagens serem nomeados por alguém que essa divisão ecoa de forma particularmente além, “algo de antimetafísico no cinema”, como
espectros de pessoas. Prostrados, encolhidos, se dirige a eles – vai se estabelecer na narrativa. impositiva, quando refletimos sobre o pensamento afirma Alain Badiou. Entre um limite e outro existe
reprimidos no universo que habitam, restringidos De fato, o mesmo se repete quando, depois de esquizoide como um fluxo que quebra com esses sempre uma fronteira, que permite a passagem e a
pelas cercas, dopados e impossibilitados de trocar sua toalha por um cigarro com um outro paradigmas. “(...) eu e não-eu, exterior e interior, circulação.
interagir com o restante do mundo, a não ser em interno, Nelson é interpelado. Chamam-lhe nada mais querem dizer”, diz Deleuze, ao descrever O tema das trocas, de fato, é bastante
raras ocasiões de saídas, de visitas de parentes, “Nelson” para, em seguida, repreendê-lo. Nelson o modelo do passeio do esquizofrênico. Na cena presente. Ao longo do filme, há diversas cenas
através dos funcionários que trabalham na quebrara as regras ao aceitar compartilhar sua em que Baldé, um dos internos, aprende sintaxe, o que giram ao redor das transações entre serviços
instituição, ou ainda, por intermédio da mediação toalha e é imediatamente advertido: ali dentro professor insiste que ele aponte o sujeito da frase e bens e entre bens e outros bens (o cigarro é, de
de aparelhos de telecomunicação, em uma troca não se compartilha, alertam-no. No entanto, “duas delicadas flores cresceram na planície”. “O longe, o mais requisitado deles), deixando claro
genuína pelo telefone, ou em um contato simulado, Nelson parece não entender o que se passa. “O que cresce na planície? Qual é o sujeito?”, insiste o que existe um sistema econômico sub-reptício que
pelo rádio e pela televisão. que é que ele disse?”, ele se dirige à câmera (ao professor. “A natureza”, responde Baldé. “Árvore”, não depende de nenhuma medida monetária. Não
A essa esterilidade que se constrói na porção Miguel) em dúvida. É possível traçar aqui um elo ele tenta outra vez. O professor corrige, “ninguém à toa, é perdida a limitação do possuir. As trocas
inicial do filme e que parece espelhar as condições entre esse curioso momento e o funcionamento falou em árvore”. “Tens o sujeito, o verbo e o são subjetivas, orgânicas e independem, enfim,
de regulação constante impostas aos internados da interpelação de Althusser, que se resume em complemento direto”, explica o professor. Baldé de índices fixos. Essa evasão dos limites e dos
na instituição, há uma resistência e também nomear e fazer existir dentro do nome escolhido não consegue se limitar a essa estrutura sintática. significados aparece, portanto, como uma força
uma resposta. Algo mágico acontece. A câmera aquele a quem o ato performativo do nomear Se ele pensa em flores, talvez lhe ocorra a natureza, do contexto, mas ela também é, possivelmente,
subitamente perde sua rigidez e se vira para o se dirige. Particularmente curioso é perceber na talvez lhe ocorram as árvores; o significado, para uma energia canalizada pela montagem. Existe
73 | Artigo

uma sequência particular onde esse potencial da mais do que sítio de um sentimento de unidade,
montagem é explorado ao seu máximo e que serve, o corpo do esquizofrênico parece ser atravessado
a meu ver, à comparação entre a internação de por intensidades, por um profundo sentir, onde
psicóticos em uma instituição e uma certa paranoia transitam pulsões e forças. Valente, o último dos
do mercado financeiro e da economia capitalista, personagens, é talvez quem fale mais abertamente
que navega entre ativos, cujo valor é apontado pela sobre seu passado e os motivos pelo quais está
criação de determinadas narrativas e especulações. internado. Ele descreve seu crime (dar três facadas
A sequência é a seguinte: sobre imagens genéricas no irmão), como decorrente de um “sentir no
das salas que compõem a instituição, sem se ater a corpo”. O irmão entretinha-se com um jogo no
nenhum personagem particular, como o plano de celular e Valente descreve ter sentido choques pelo
uma janela que mostra a rua, à noite, ouve-se em corpo, que ele julgou ser o irmão o responsável,
OFF uma discussão sobre a intervenção do Banco através de seu celular. Esse “sentir no corpo”
de Portugal na questão dos papéis comerciais pressupõe uma ligação íntima com a matéria e
do Banco Espírito Santo, situação essa a qual os com as possibilidades, uma abertura total aos
encarcerados na instituição psiquiátrica parecem impulsos e desejos que se nos suscitam em cada
estar completamente alheios. A montagem insinua um e que aprendemos – não sem uma participação
que, enquanto um tipo de experiência imaginária dos conceitos da psiquiatria – a direcionar e a
é carimbada como loucura e encarcerada pela reprimir, sob o domínio da família, da sociedade,
ameaça que representa, o outro tipo regula o do capitalismo. É possível, finalmente, sugerir Frames do filme
mercado de um país inteiro e ninguém parece uma ligação entre esse livre sentir e o cinema, “Talvez Deserto,
poder se opor – ao risco de se entrar no campo do entendido como uma instância criadora (no Talvez Universo“
(Karen Akerman e
ininteligível, do abjeto. domínio do imaginário), que, de fato, inaugurou um Miguel Seabra, 2015)
A possibilidade que a montagem espaço-tempo inteiramente outro e possibilitou a
cinematográfica proporciona de se equiparar existência material de uma dimensão projetada, de
ao pensamento esquizoide talvez se faça ainda uma realidade paralela e manipulável, ocasionando,
mais evidente em Confidente (2016), curta- assim, a criação de relações e de modos de
metragem que Karen e Miguel também assinam pensamento inéditos até o seu surgimento. Fica
juntos. Em uma contiguidade de imagens de a dúvida: e se a esquizofrenia, ao invés de invocar
arquivo, justapostas por força de uma conexão uma insalubre anormalidade e de ser o marco de
randômica (uma conexão que, no entanto, é real, um corpo abjeto, pudesse ser refletida como uma
uma vez que estabelecida) uma voz masculina maneira de tecer vínculos diferenciados e novos
em OFF repetidamente alterna entre “estou com o mundo, com a natureza, com o sentir? Como
sou eu”, “este é você”, “este é meu pai que se o cinema o faz.
foi”, etc. apontando, sem definição, onde o eu
acaba e onde o outro começa. Esse ritual de
performance que compulsivamente se repete
leva ao estabelecimento de uma identidade
fragmentária, que cria relações infinitas e é
constantemente reconstruída. O eu já não pode
ser localizado, ele é diluído. Deleuze propõe que,
Cineclube
Academia
das Musas
Revista Cineclube
Academia das Musas
Ano 1 | Edição 1 | nº 001
Distribuição gratuita

Ficha técnica:
Editoração: Juliana Costa e Helena Lukianski
Revisão de textos: Helena Lukianski, Tânia Cardoso, Daniela Strack e Luciana Tubello
Arte Gráfica e diagramação: Caroline Motta
Logotipo Academia das Musas: Eric Pedott

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