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DESINTEGRAÇÃO:
A DEGRADAÇÃO DO SISTEMA DE
RESERVA MONETÁRIA GLOBAL DOS EUA
Tradução livre do artigo de Lyn Alden por Rogerio DaSilva

2020

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Sumário

A desintegração...................................................................................... 9

A degradação do sistema de reserva monetária global dos EUA ��� 11

1. A Estrutura do Sistema Monetário Global................................... 15

Gold Standard (pré-1944).....................................................................................16


Sistema de Bretton Woods (1944-1971)............................................................18
Sistema Petrodólar (1974-presente)...................................................................22

2. O Grande Ciclo de Alta do Petrodólar......................................... 27

Causas do Ciclo........................................................................................................29
Ciclo do dólar dos anos 80....................................................................................33
Ciclo do dólar dos anos 1990/2000....................................................................33
Ciclo do dólar 2010/2020......................................................................................35
O dólar voltou a enfraquecer a partir daí, como esperado..........................36

3. A Degradação do Sistema Petrodólar........................................... 39

Um sistema sem um propósito.............................................................................41


Redução da Participação dos EUA no PIB Global.........................................42
Comércio internacional de várias moedas.......................................................44
China subvertendo o sistema de petrodólares.................................................46

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Comendo nossa própria comida.........................................................................51
Desvendando o Dilema de Triffin.......................................................................55

4. A Perspectiva de Prazo Intermediário......................................... 63

O dólar vs outras moedas......................................................................................64

5. A Perspectiva de Longo Prazo....................................................... 71

A Opção de Reestruturação Lenta.......................................................................71


A Opção de Reestruturação Rápida....................................................................73

6. Qual a aparência do próximo sistema.......................................... 77

Preços de energia descentralizada.......................................................................77


Digital Global Bancor.............................................................................................78
Bancos regionais digitais........................................................................................79
Padrão-ouro...............................................................................................................81
Bitcoin como ativo de reserva..............................................................................82

7. Resumindo os meus pensamentos................................................ 87

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Prólogo
A desintegração

Muito do que se discute em macro-economia depende da habilidade


da pessoa que está avaliando os inúmeros dados que estão a disposição de
todos. Em algumas oportunidades os dados são tão vastos, que fica pra-
ticamente impossível chegar a uma conclusão razoável se não tivermos
a capacidade de juntar todos eles e alinharmos um ponto central para
ligar os vários pontos e chegar a alguma conclusão que seja importante.
Geralmente chegamos a várias conclusões, e continuamos ligando esses
pontos para evoluir até outras idéias, como é feito por exemplo na me-
todologia científica, onde um bom trabalho sempre deixa dúvidas sobre
como deveremos abordar o problema no futuro em outros trabalhos.
Lyn Alden é uma dessas raras pessoas que consegue escrever bem
e alinhar esses pontos para que possamos pensar mais a respeito de um
determinado assunto econômico. Neste final de 2020 resolvi olhar mais
a fundo alguns trabalhos que ela publicou, e achei esse que aqui traduzo
um dos mais importantes para que o leitor consiga entender onde os EUA
chegaram nesse final de década.
O ano de 2020 não foi nada fácil para muita gente, para ajudou a
levantar um ponto importante na economia: até quando o dolar (e os
EUA por conseguinte) vai continuar sendo a baliza do mundo econômi-
co? Além disso, será que interessa para mais algum país pegar esse bas-
tão? Como vamos passar pelo Covid19 mais maduros e mais tranquilos,

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se nem os burocratas que cuidam do dinheiro nos bancos centrais pelo
mundo sabem o que fazer se tivermos uma nova crise?
Essas e outras questões me atormentaram e ainda me incomodam.
Você não vai ter a resposta clara, a todos essas questões, depois de ler as
55 páginas deste artigo. Mas te digo – sem medo de errar – que você vai
entender um pouco mais como chegamos até aqui. E porque o futuro
pode ser ainda mais perigoso do que o que vimos acontecer em 2020.
O mundo está num final de ciclo de dívida longa, e isso normalmente
vem junto com problemas sociais e econômicos, por vezes devastadores
(como aconteceu no final do ciclo de dominância do Reino Unido, que A degradação do sistema de reserva
culminou na Primeira Grande Guerra). Cada vez mais o intervencionis-
mo governamental acha que vai continuar resolvendo tudo imprimindo monetária global dos EUA
dinheiro, mas nós sabemos (e eles também sabem) que não é tão fácil
assim resolver um problema como o que tivemos neste ano.

Aproveitem a leitura Por Lyn Alden, publicado em 02 de dezembro de 2020


Grande abraço, já desejando um excelente Natal em 2020 e um gran- Tradução: DOC
dioso 2021 para todos.
DOC
(Rogerio Teixeira DaSilva) Desde o outono de 2019 estou pessimista em relação ao dólar, o que
significa que eu tenho uma perspectiva de longo prazo em relação a um
dólar mais fraco.
Essa visão começou a se formar quando o Federal Reserve cortou as
taxas de juros no verão de 2019 e, em seguida, a visão se solidificou com
um catalisador – o pico da taxa de recompra no overnight - em setembro
de 2019 - que forçou o Fed a começar a fornecer liquidez para a recompra.
Em meu artigo de 2 de outubro de 2019, “The Most Crowded Trade”,
eu disse que esperávamos um dólar mais fraco em 2020, e também afirmei
que o Fed provavelmente começaria a expandir seu balanço, comprando
títulos do Tesouro em 2020 ou talvez já naquele trimestre em 2019 devido
ao excesso de oferta.
Dias depois, o Fed de fato anunciou que começaria a comprar títu-
los do Tesouro e, no momento em que este artigo é escrito, bem mais de
um ano depois, eles não pararam ainda.

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Este é o índice do dólar desde meu artigo de outubro, caindo de Indo um pouco mais longe, as evidências mostram que o sistema
cerca de 99 para 92: monetário global, da forma como está estruturado, está gradualmente
se realinhando, e esse fato terá ramificações importantes para os investi-
mentos no longo prazo.
Este artigo explora alguns desses conceitos, que vão desde o desgaste
do sistema existente de petrodólares (para todos os seus acionistas, tanto
para os interesses dos Estados Unidos quanto para os interesses estran-
geiros), às moedas digitais dos bancos centrais, até a possibilidade de uma
reestruturação total do sistema monetário global.
É um assunto intrinsecamente desafiador, porque por décadas tem
havido muitas chamadas pouco sofisticadas para um «colapso do dólar»
que nunca se materializam.
No entanto, esta não é uma dessas chamadas; é um olhar quantita-
tivo para a história de quase 50 anos deste sistema monetário global atual
Fonte: StockChart estruturado desde o início dos anos 1970.
Este artigo enfatiza onde os gargalos e problemas estão se formando
no sistema, explica por que um dólar fraco continuado por um período
Ao longo dos próximos 3-5 anos ainda espero que muitas moedas, de 3 a 5 anos continua sendo meu caso básico e mostra por que algumas
incluindo o dólar, continuem a se desvalorizar em relação aos ativos tan- dessas dores de crescimento parecem estar levando a um nova reordena-
gíveis, e que o dólar provavelmente esteja entre as principais moedas mais ção do sistema monetário global nesta década.
fracas durante esse período (com altas ocasionais contra essa tendência,
como é natural é claro).
Embora possa ou não continuar a ser, até agora essa visão está cor-
reta. O índice do dólar está mais fraco agora do que em outubro de 2019,
mas ainda é um processo em andamento. Tínhamos uma curva fechada
para a perspectiva da pandemia no primeiro semestre de 2020, que tem-
porariamente disparou o dólar, mas que apenas acrescentou volatilidade
maciça às forças estruturais em ação, em vez de mudar sua direção.
Não tenho uma opinião firme sobre os próximos 3-6 meses, porque
há muitos problemas de solvência entre agora e quando as coisas podem
começar a se normalizar na primavera ou verão de 2021. E as posições
short no dolar estão aumentando, o que pode gerar uma corrida para
fechada de posições caso algum problema novo ocorra no mundo. Mas
conforme olhamos para o final de 2021 e 2022, continuo com uma pers-
pectiva de queda do dólar.

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1. A Estrutura do Sistema Monetário
Global

Em vez de ser uma bagunça ao acaso, o comércio internacional e


as taxas de câmbio possuem uma certa estrutura, construída e reforçada
pelos poderes hegemônicos existentes durante uma determinada época.
Em outras palavras, em qualquer momento, um império ou conjun-
to de países poderosos trabalham juntos para fazer cumprir uma ordem
global baseada em regras sobre como funciona o comércio internacional
e como ele é cobrado.
No entanto, existe inerentemente uma entropia econômica em
qualquer sistema, à medida que a ordem gradualmente se desintegra
em desordem. Os sistemas monetários globais podem ser duradouros,
mas não permanentes. À medida que o centro global de poder muda ao
longo do tempo e os gargalos e imperfeições do sistema crescem a níveis
insustentáveis, resultando em níveis crescentes de desordem, um sistema
é reordenado em outro sistema – quer seja de forma gradativa ou abrupta.
Ironicamente, muitas vezes não é uma ameaça externa que derru-
ba a ordem existente; são as falhas dentro do sistema que, se não forem
verificadas, eventualmente se expandem o suficiente para derrubá-lo e
exigir um reordenamento, seja do mesmo regime dominante ou de um
novo regime que o substitua.

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Ao longo do século passado, por exemplo, o mundo passou de um e as guerras dentro da Europa desempenharam um grande papel em sua
sistema padrão ouro para o sistema de Bretton Woods e para o sistema de eventual substituição.
petrodólares. Cada sistema se desenrolou principalmente de dentro, em vez
de ser derrubado externamente, e cada vez que um sistema fazia a tran- Sob esse sistema de padrão ouro, as taxas de câmbio entre as moedas
sição para outro, ocorria uma desvalorização significativa e generalizada ainda mudavam ao longo do tempo por várias razões, com o balanço de
da moeda. pagamentos sendo uma variável importante. Meu artigo “Por que os déficits
comerciais são importantes” detalha por que isso acontece.
O ponto crucial é que sempre que um país começava a importar
Gold Standard (pré-1944) persistentemente mais do que exportava, corria o risco de o ouro fluir
para fora do país e o risco de estagnação econômica dentro da pátria. No
final das contas, entretanto, esse estado normalmente seria autocorretivo,
Durante grande parte da existência humana, as economias foram porque uma recessão acabaria desvalorizando a moeda, o que tornaria suas
baseadas no comércio. De peles para ostras, azeite para especiarias, mão- exportações mais competitivas e as importações mais caras, e assim realin-
de-obra para o pão, etc. haria seu saldo de exportação e importação.
A mineração de metais preciosos como ouro e prata tornou isso mais Nos estágios posteriores desse sistema, todas as principais nações
simples, e esses metais são considerados dinheiro há milhares de anos. Com desvalorizaram suas moedas drasticamente e restauraram ou suspenderam
metais preciosos, você pode transformar uma mercadoria específica (como suas moedas de ouro.
peles) em uma mercadoria universal (como ouro e prata, que são raros,
duradouros e podem ser quebrados em pequenas unidades mensuráveis),
para comprar o que quiser em um data posterior.
A partir daí, papel-moeda e crédito foram adicionados como uma
forma mais conveniente ao ouro. O próprio ouro poderia ser mantido com
segurança em cofres, e papéis representando uma parte desse ouro pode-
riam ser usados ​​como meio de troca. Às vezes, eram emitidos por bancos
privados e, nos tempos modernos, geralmente eram emitidos por governos
soberanos. Nesse sentido, os governos emitem papel-moeda lastreado em
ouro mantido nos cofres do banco central.
A partir desse ponto, vimos o aumento das moedas de reserva global,
referindo-se a moedas de papel ou metais preciosos de impérios comerciais
ou militares que foram reconhecidas e aceitas em muitos países fora de sua
própria pátria. O Império Romano foi um exemplo antigo. Mais recente-
mente, o Império Holandês foi um exemplo notável, seguido pelo Reino
Unido e agora pelos Estados Unidos. Nos anos 1800 e no início dos anos Fonte: Bridgewater Associates
1900, o Reino Unido tinha o manto da moeda mais reconhecida mundial-
mente, embora existisse dentro de um sistema de muitas moedas lastreadas Os vencedores das guerras mundiais desvalorizaram suas moedas
em ouro. menos do que os perdedores, mas todos desvalorizaram. Isso se deveu em
parte às guerras, mas também ao final do ciclo da dívida de longo prazo.
Durante esses séculos, o centro do poder global repousou principal-
mente na Europa, com seu epicentro preciso mudando ao longo do tempo,

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Sistema de Bretton Woods (1944-1971) um bloqueio financeiro completo no mundo e, portanto, nunca foram
verdadeiras moedas de “reserva global”, mas apenas moedas “amplamente
A transferência mais recente do status de moeda de reserva global reconhecidas e dominantes”. Portanto, o status atual do dólar em 1944
começou gradualmente após a Primeira Guerra Mundial e foi finalizada como moeda de reserva global não é perfeitamente comparável aos
nos estágios posteriores da Segunda Guerra Mundial. Como resultado das períodos anteriores a 1944 de outras moedas de reserva global.
guerras e da ascensão da economia americana, o centro do poder global Em outras palavras, esse período foi bastante único. Foi a primeira
mudou da Europa (e particularmente do Reino Unido) para os Estados vez que a tecnologia permitiu que o mundo inteiro estivesse conectado o
Unidos. suficiente para que uma guerra verdadeiramente global acontecesse e um
Na década de 1930, o governo dos Estados Unidos tornou ilegal a sistema monetário verdadeiramente global viesse em sua esteira.
propriedade do ouro e forçou os cidadãos a vender seu ouro ao governo, No entanto, depois de apenas uma década, o sistema de Bretton
o que permitiu ao governo acumular enormes reservas de ouro. Então, Woods começou a se desgastar. Os Estados Unidos começaram a incorrer
para manter o ouro seguro durante a guerra, muitos países enviaram em grandes déficits fiscais e a experimentar níveis de inflação ligeiramente
seu ouro para os Estados Unidos. Portanto, os Estados Unidos tinham crescentes, primeiro para os programas domésticos do final da década de
seu próprio estoque maciço de ouro e também serviam como custodiante 1960 e, depois, para a Guerra do Vietnã. Os Estados Unidos começaram
global de ouro para muitos aliados. a ver suas reservas de ouro encolherem, à medida que outros países
Com o desenrolar da Segunda Guerra Mundial, enquanto a Europa e começaram a duvidar do apoio do dólar e, portanto, trocaram dólares por
o leste da Ásia foram devastados pela guerra, a pátria dos Estados Unidos ouro, em vez de segurá-los confortavelmente.
mal foi tocada e os EUA se tornaram a maior nação credora do mundo Este gráfico mostra as reservas de ouro dos EUA medidas em tonela-
no processo. Nesse ponto, o sistema de Bretton Woods foi estabelecido, por das métricas:
meio do qual os Estados Unidos garantiam seu dólar com ouro e dezenas
de outros países atrelavam suas moedas ao dólar e, portanto, também tin-
ham um padrão-ouro por associação. Muitos países mantinham títulos do
Tesouro dos EUA, como uma forma de garantia de reserva que era “boa
como ouro”. O dólar não era resgatável para os cidadãos americanos em
troca de ouro, mas era resgatável para governos estrangeiros em troca de
ouro.
Durante esse tempo, os Estados Unidos também começaram a lançar
as bases para sua aliança com a Arábia Saudita, que entraria em jogo com
o próximo sistema (petrodólares).
Este período também viu a ascensão do “mercado de eurodólar”,
referindo-se ao mercado de dólares que existe entre bancos e outras en-
tidades fora dos Estados Unidos e fora da jurisdição do Federal Reserve,
principalmente centrado na Europa, mas se estendendo por todo o mundo.
Com o sistema de Bretton Woods e o seguinte sistema de petrodólares,
os Estados Unidos obtiveram um bloqueio quase global no sistema mon-
Fonte: Bullionstar.com
etário internacional. As moedas do império anterior nunca obtiveram

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Na verdade, os números mostram que, desde o início, ele já estava O sistema tinha uma falha subjacente que, quando deixada sem
em um caminho instável. Os EUA começaram o sistema com mais ouro solução, o derrubava. Nunca foi verdadeiramente sustentável como pro-
do que passivos externos, mas essa lacuna começou a diminuir rapida- jetado. Não havia como os Estados Unidos conseguirem manter ouro
mente nos primeiros anos. suficiente para garantir todas as suas moedas para uso doméstico e, ao
mesmo tempo, moeda suficiente para expandir o uso global (que era a
No final da década de 1950, o passivo externo dos EUA ultrapassava parte resgatável).
as suas reservas em ouro. Em meados da década de 1960, o subconjunto
de passivos externos dos EUA devidos a estrangeiros excedia as reservas Alguns economistas, como Robert Triffin, alertaram explicitamente
de ouro, que foi o verdadeiro ponto de cruzamento onde o sistema se sobre esse problema ao Congresso e ao mundo dos negócios no que ficou
tornou problemático. E em 1971, o sistema quebrou e foi inadimplente conhecido como o dilema de Triffin. Em outras palavras, era um proble-
pelos Estados Unidos. ma previsível. A mesma coisa aconteceu com o Reino Unido no início de
1900, antes da Primeira Guerra Mundial
John Keynes também viu o problema com antecedência e propôs
um sistema alternativo chamado Bancor, em que uma unidade de conta
internacional baseada em ouro e uma cesta das principais moedas seria
usada para liquidar saldos comerciais e seria mantida como um banco
central ativo de reserva. Este seria um sistema inerentemente mais equil-
ibrado, com um mecanismo de liquidação neutro, em vez de centralizar
tudo na moeda de um país.
No entanto, a política muitas vezes vence a matemática, pelo menos
no início, e o sistema de Bretton Woods venceu outras ideias. Algo como a
ideia do Bancor foi promulgada pelo FMI também, com unidades chama-
das SDRs que são uma cesta das principais moedas e ainda são mantidas
pelos bancos centrais, mas nunca teve apoio suficiente para pegar de
maneira mais do que limitada.
Eventualmente, em agosto de 1971, a matemática voltou com uma
vingança sobre o sistema de Bretton Woods, e Richard Nixon encerrou
a conversibilidade dos dólares em ouro, encerrando assim o sistema de
Bretton Woods. O fechamento da conversibilidade do ouro foi proposto
para ser temporário na época, mas acabou se tornando permanente. Em
vez de mudar para outro país, no entanto, os Estados Unidos foram ca-
pazes de reordenar o sistema monetário global com eles próprios ainda
no centro, no sistema seguinte.
Em última análise, todas as principais moedas, incluindo o dólar,
Fonte: BIS Working Papers No 684 desvalorizaram radicalmente em relação ao ouro e outros ativos tangíveis
na década de 1970. Isso deu continuidade à tendência de grandes desval-
orizações da moeda sempre que o sistema monetário global é reordenado.

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Normalmente, as mesmas forças que quebram o sistema também a um acordo e, a partir daí, o mundo se fixou no sistema do petrodólar;
quebram a própria moeda. Quando isso acontece, a quantidade da oferta uma maneira inteligente de fazer um sistema global de moeda fiduciária
monetária ampla aumenta significativamente e o poder de compra das funcionar decentemente.
dívidas existentes é parcialmente inflado.
Achamos isso normal agora, mas este período de cinco décadas
de moeda fiduciária global é incomum e único no sentido histórico.
Imagine tentar arquitetar uma maneira de fazer um sistema monetário
Sistema Petrodólar (1974-presente) totalmente fiduciário funcionar no cenário global pela primeira vez na
história humana. Ao fazer isso, você precisa de alguma forma convencer
A partir de 1971, após o colapso do sistema de Bretton Woods, as ou forçar o mundo inteiro a negociar coisas valiosas por pedaços de papel
moedas em todo o mundo tornaram-se todas moedas fiduciárias e o siste- estrangeiros, sem nenhuma garantia dos governos emissores de que esses
ma monetário global tornou-se menos organizado. Foi a primeira vez na papéis valem alguma coisa em particular, em relação a uma quantidade
história da humanidade que isso aconteceu, onde todas as moedas do de ouro ou outros ativos tangíveis.
mundo ao mesmo tempo foram transformadas em papel sem fundo. Um Com o sistema de petrodólares, a Arábia Saudita (e outros países
“fiat” é um decreto absoluto de uma pessoa ou instituição no comando. da OPEP) vendem seu petróleo exclusivamente em dólares em troca da
A moeda fiduciária é um sistema monetário em que não há nada de proteção e cooperação dos Estados Unidos. Mesmo que a França que-
valor na própria moeda; é apenas papel, moedas de metal baratas ou bits ira comprar petróleo da Arábia Saudita, por exemplo, o faz em dólares.
digitais de informação. Tem valor porque o governo declara que tem valor Qualquer país que queira petróleo precisa ser capaz de obter dólares para
e que tem curso legal para pagar todas as coisas, incluindo impostos. pagar por ele, seja ganhando ou trocando sua moeda por eles. Assim, os
países não produtores de petróleo também vendem muitas de suas expor-
Um país pode impor o uso de uma moeda fiduciária como meio tações em dólares, embora o dólar seja um papel estrangeiro totalmente
de câmbio e unidade de conta em seu país, tornando todos os impostos fiduciário, de forma que eles possam obter dólares para comprar petróleo
pagáveis ​​apenas nessa moeda ou promulgando outras leis para aumentar dos países produtores. E, todos esses países armazenam dólares em excesso
a pegada ou, em alguns casos, proibir totalmente outros meios de troca como reservas em moeda estrangeira, que eles colocam em títulos do Te-
e unidades de contabilidade. Se a moeda deles apresentar um problema souro dos EUA para ganhar alguns juros.
grande o suficiente, como é o caso de muitos mercados emergentes, um Em troca, os Estados Unidos usam sua incomparável marinha de
mercado negro se desenvolverá para outros meios de câmbio, como moe- águas azuis para proteger as rotas marítimas globais e preservar o status
da estrangeira ou ativos tangíveis. quo geopolítico com ação militar ou ameaça disso, conforme necessário.
Uma moeda fiduciária pode enfrentar problemas específicos ao Além disso, os Estados Unidos basicamente precisam incorrer em déficits
tentar ser usada fora de seu país de origem. Por que empresas e governos comerciais persistentes com o resto do mundo para conseguir dólares su-
de outros países deveriam aceitar pedaços de papel, que podem ser im- ficientes para o sistema internacional.
pressos indefinidamente por um governo estrangeiro e não têm respaldo Muitos desses dólares, no entanto, são reciclados na compra de
firme, como forma de pagamento por seus valiosos bens e serviços? Sem títulos do Tesouro dos EUA e armazenados como reservas em moeda
um verdadeiro respaldo, quanto vale? Por que você venderia petróleo estrangeira, o que significa que uma grande parte dos déficits federais dos
para estrangeiros em troca de um papel sem valor real, por exemplo? EUA são financiados por governos estrangeiros em comparação com outras
nações desenvolvidas que dependem principalmente de financiamento
No início dos anos 1970, houve uma variedade de conflitos geo-
interno. Este artigo explica por que o financiamento estrangeiro pode ser
políticos, incluindo a Guerra do Yom Kippur e o embargo do petróleo da ótimo enquanto está acontecendo.
OPEP. Em 1974, porém, os Estados Unidos e a Arábia Saudita chegaram

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O sistema de petrodólares é criativo, pois foi uma das poucas maneiras
de fazer com que todos no mundo aceitassem papel estrangeiro como bens
e serviços tangíveis. Os produtores de petróleo obtêm proteção e ordem
em troca de precificar seu petróleo em dólares e colocar suas reservas em
títulos do Tesouro, e os produtores não petrolíferos precisam de petróleo e,
portanto, precisam de dólares para obter esse petróleo.
Isso leva a uma quantidade desproporcional de comércio global em
dólares em relação ao tamanho da economia dos EUA e, de certa forma,
significa que o dólar é lastreado pelo petróleo, sem estar explicitamente
atrelado ao petróleo em uma proporção definida. O sistema dá ao dólar
uma demanda global persistente de todo o mundo, enquanto outras moe-
das fiduciárias são usadas principalmente internamente em seus próprios
países.
Este gráfico tem dois anos, mas as coisas não mudaram muito desde
então. O que mostra é que, embora os Estados Unidos representassem ape- Fonte: TradingEconomics.com
nas cerca de 11% do comércio global e 24% do PIB global no início de 2018,
a participação do dólar na atividade econômica global era muito maior, Em vez de esgotar nossas reservas de ouro, no entanto, gradualmente
40-60%, dependendo de qual métrica você olhar , e essa lacuna representa diminuímos nossa base de manufatura doméstica e ela é substituída peça
seu status como moeda de reserva global e a moeda principal para o preço por peça em países estrangeiros (principalmente a China, nos dias de
global de energia. hoje).
Quando a maioria dos outros países apresentam déficits comerciais,
eles acabam tendo uma desvalorização da moeda grande o suficiente para
que suas exportações se tornem mais competitivas e as importações se
tornem mais caras, o que geralmente impede que extremos de várias dé-
cadas se acumulem. No entanto, como o sistema do petrodólar cria uma
demanda internacional persistente por dólar, isso significa que o déficit
comercial dos Estados Unidos nunca poderá se corrigir e se equilibrar.
O déficit comercial é mantido em aberto persistentemente pela estrutura
do sistema monetário global, que cria um desequilíbrio permanente, e
Fonte: Bloomberg é a falha que eventualmente, após um cronograma longo o suficiente,
derrubará o sistema.
A falha inerente ao sistema de petrodólares, bem como a falha
inerente ao sistema de Bretton Woods, é que, como mencionado ante- A outra falha do sistema é que ele incentiva o mercantilismo. Isso
riormente, os Estados Unidos precisam incorrer em déficits comerciais significa que incentiva vários parceiros comerciais a maximizar suas
persistentes e é outra versão do dilema de Triffin novamente. Isso pode exportações e minimizar suas importações, manipulando suas moedas
funcionar por décadas, mas não pode funcionar para sempre. a níveis fracos. Como as moedas em todo o mundo são fiduciárias com
taxas de câmbio flutuantes, muitos países tentam manter suas próprias
moedas fracas, para que tenham uma balança comercial positiva com os

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Estados Unidos e outros parceiros comerciais. Eles não querem que suas
próprias moedas sejam tão fracas que seus cidadãos não possam importar
coisas, mas eles querem que suas moedas sejam fracas o suficiente para
que suas exportações sejam muito competitivas e o poder de importação
não seja muito forte, para que eles possam geram superávits comerciais.
Isso permite que um país aumente rapidamente a produção industrial e
acumule dólares e reservas. Como moeda de reserva global, os Estados
Unidos estão basicamente excluídos desta opção, portanto, somos nós
que temos o saco de déficits comerciais persistentes.
Alguns de nós, principalmente perto do topo da escala de renda,
se beneficiam direta ou indiretamente desse sistema. Os americanos que
2. O Grande Ciclo de Alta do
trabalham com finanças, governo, saúde e tecnologia obtêm muitos
dos benefícios de viver no poder hegemônico, sem as desvantagens. Por
Petrodólar
outro lado, os americanos que fazem produtos físicos tendem a não
se beneficiar, porque perderam seus empregos ou tiveram sua renda
suprimida e, portanto, não se beneficiaram com os ganhos. E fora dos
Estados Unidos, os países exportadores se beneficiam do sistema, en-
quanto os países que não gostam de como o sistema monetário global é Como as taxas de câmbio estão flutuando livremente desde 1971
estruturado não têm muitos recursos para fazer nada a respeito, a menos dentro do sistema do petrodólar, o dólar pode se fortalecer ou enfraquecer
que se tornem grandes o suficiente como a Rússia e a China. significativamente em relação a outras moedas, e outros pares de moedas
podem se fortalecer ou enfraquecer em relação uns aos outros.
Sempre que o dólar começa a cair, recebemos uma série de artigos
superficiais da mídia financeira sobre a “perda potencial do status de
reserva global do dólar”, mas não é assim que funciona. Por outro lado,
se um analista como eu trouxer à tona que o dólar pode cair acentuada-
mente em relação a outras moedas importantes, um dos comentários ou
resposta que eles receberão é “mas os EUA são a moeda de reserva global”.
Precisamos tratar esses conceitos separadamente. O dólar de fato
teve duas grandes reduções no mercado baixista de mais de 40% contra
uma cesta de outras moedas importantes dentro do sistema monetário
existente, sem perder o status de moeda de reserva global. Ser um baixista
do dólar dentro do sistema de petrodólares existente (e não ter opinião
sobre o fim do sistema de petrodólares) não é idêntico a quem pensa que
o sistema de petrodólares como estruturado atualmente está chegando ao
fim.

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Este gráfico é o índice do dólar desde o início dos anos 1970, quando Causas do Ciclo
o sistema do petrodólar começou. O gráfico compara o dólar com uma
cesta das principais moedas e mostra os três principais ciclos pelos quais O ciclo do dólar é baseado em grandes mudanças na política mone-
passou (clique aqui para uma visão ampliada): tária e fiscal, bem como nos fluxos de capital resultantes para o dinheiro
global que deseja perseguir qualquer área do mundo que esteja indo bem.
Subjacente a tudo isso está o sistema monetário global como atualmente
estruturado, ou seja, o sistema do petrodólar.
Conforme discutido em meu artigo de fevereiro de 2020, “The
Global Dollar Short Squeeze” e em meu artigo de abril de 2020, “The $
40 Trillion Problem“, governos e empresas fora dos Estados Unidos têm
muitas dívidas denominadas em dólares ($ 13 trilhões em um mínimo
de acordo com o BIS), mas também têm ainda mais ativos denominados
em dólares (cerca de US $ 42 trilhões de acordo com o FMI e o BEA
dos EUA). Essas dívidas e ativos foram acumulados ao longo de décadas
devido ao superávit comercial desses países com os Estados Unidos e ao
Fonte: StockCharts.com uso do dólar na maioria dos negócios de financiamento globais, especial-
mente nos mercados emergentes.
O índice do dólar quebrou abaixo de sua média móvel de 50 meses
este ano, e a própria média móvel de 50 meses agora apresenta uma Essa dívida denominada em dólares representa uma fonte consis-
ligeira inclinação para baixo. Será que ele poderia ter mais uma daquelas tente de demanda por dólares para o serviço dessas dívidas. Portanto, se
pernas para baixo do dólar como teve depois dos dois principais ciclos ocorrerem recessões, ou o comércio global baseado em dólares desace-
anteriores? Certamente. lerar, pode haver uma corrida por dólares que podem estar em falta
fora dos Estados Unidos, causando uma alta internacional do dólar.
Então, vamos separar ser um dólar baixista de ser alguém que pensa Isso aconteceu em março de 2020, quando a pandemia diminuiu drasti-
que o sistema monetário global mudará estruturalmente. Os dois não camente o comércio global e os preços do petróleo despencaram.
andam necessariamente de mãos dadas, embora possam. É importante
tratar essas ideias de forma independente, porque embora eu tenha essas Nesse sentido, o sistema de petrodólares se reforçou ao longo do
duas visões em diferentes períodos de tempo, elas não são a mesma. tempo. No início, os países precisavam de dólares para obter petróleo.
Depois de décadas disso, com tanto financiamento internacional acon-
Da mesma forma, o dólar sendo a moeda de reserva mundial não o tecendo em dólares, agora os países precisam de dólares para poderem
protege necessariamente de grandes oscilações em relação a outras moe- pagar suas dívidas denominadas em dólares. Portanto, o dólar é apoiado
das. Na verdade, a profundidade com que o dólar está inserido no sistema por dívidas denominadas em dólares e petróleo, e é um efeito de rede au-
financeiro global provavelmente lhe dá oscilações maiores do que teria, to-reforçador muito forte. É importante ressaltar que a maioria dessas
tanto para o lado positivo quanto para o negativo. dívidas não são devidas aos Estados Unidos (apesar de serem denomi-
nadas em dólares), mas sim a outros países. Por exemplo, a China faz
muitos empréstimos em dólares para países em desenvolvimento, assim
como com a Europa e o Japão.

28 29
Quando o dólar se fortalece em relação às moedas locais dos países Este gráfico mostra o índice do dólar ponderado pelo comércio em
emergentes, isso atua como uma espécie de aperto quantitativo para esses azul (com um índice mais recente em vermelho colado nele, devido ao
países porque suas dívidas denominadas em dólares aumentam em termos fato de o índice de longa duração ter descontinuado no início de 2020),
de moeda local em relação a seus ativos e fluxos de caixa, o que pode ser e a porcentagem da dívida federal dos EUA detida pelo setor externo em
particularmente brutal durante recessões. Essa é uma das principais razões verde:
pelas quais os ativos e economias de mercados emergentes são mais arris-
cados e mais voláteis do que as economias de mercado desenvolvidas: seus
empréstimos denominados em dólares.
Por outro lado, o enfraquecimento do dólar pode ser como um alívio
quantitativo para eles, pois alivia a carga de sua dívida em relação aos flu-
xos de caixa e ativos em moeda local.
Da mesma forma, ativos denominados em dólares, especialmente
aqueles mantidos por governos estrangeiros e bancos centrais (adquiridos
em anos de comércio e superávits em conta corrente), representam garan-
tias com as quais esses países podem defender suas moedas, ou represen-
tam ativos que eles podem vender para obter dólares para suportar suas
obrigações, se necessário.
Durante um período de dólar fraco, geralmente há um boom econô-
mico global, e as nações ao redor do mundo, incluindo os Estados Unidos,
passam por um período de crescimento e prosperidade. Se as nações fo-
rem inteligentes, elas começarão a acumular grandes reservas em moeda
estrangeira com seus influxos de dólares. Dentro desse sistema de petrodó- Fonte: Fed St.Louis
lares, isso significou comprar títulos do Tesouro dos Estados Unidos. Os
países também costumam usar esse período para fazer empréstimos em Como mostra o gráfico, cada uma das três principais corridas de
dólares, que voltam para mordê-los só mais tarde no tempo. alta do índice do dólar foi acompanhada por uma redução acentuada
na porcentagem da dívida federal dos EUA detida pelo setor externo.
Durante um período de dólar forte, a economia global freqüente- Os Estados Unidos ainda emitiam dívidas, mas os estrangeiros não com-
mente desacelera e as nações são pressionadas por dívidas denominadas pravam muito.
em dólares. Eles compram muito menos títulos do Tesouro, se houver, e
podem até vender alguns para obter dólares para pagar dívidas denomi- Essa falta de compra por estrangeiros força os EUA a financiar seus
nadas em dólares ou administrar sua moeda. próprios déficits federais, o que significa que seu setor privado ou cada
vez mais o próprio Federal Reserve têm que comprar títulos do Tesouro,
Como resultado, vemos um padrão claro entre a força do dólar e o e isso acaba levando a uma mudança dovish na política monetária dos
percentual da dívida federal dos EUA detida pelo setor estrangeiro. Sempre EUA, que desempenha um papel na enfraquecendo o dólar e reiniciando
que o dólar entra em uma de suas grandes corridas de alta, os estrangeiros
o ciclo.
começam a ser pressionados, o crescimento global desacelera (incluindo o
crescimento dos EUA, devido à interconexão da economia global) e os es- Para um segundo gráfico, podemos comparar o índice do dólar com
trangeiros desaceleram ou interrompem suas compras de dívida dos EUA. os lucros corporativos dos EUA, o que mostra que os lucros corporativos

30 31
ficaram estagnados em termos de dólares por vários anos sempre que Ciclo do dólar dos anos 80
ocorreu uma das grandes corridas de alta do dólar:
O dólar estava fraco na década de 1970 após sair do padrão ouro,
e os Estados Unidos e muitos outros países experimentaram uma rápida
inflação dos preços ao consumidor. No início da década de 1980, o novo
presidente do Fed, Paul Volcker, aumentou as taxas de juros para cont-
er a inflação. Ao mesmo tempo, Ronald Reagan gerou grandes déficits
fiscais ao cortar impostos e aumentar os gastos, o que contribuiu para
um boom econômico. Essa combinação de política monetária restritiva e
política fiscal frouxa tende a ser forte para uma moeda enquanto ela dura.
A primeira metade da década de 1980 viu um rápido fortalecimen-
to do dólar. Isso contribuiu para a crise da dívida da América Latina; os
mercados emergentes da América Latina não conseguiram pagar as dívidas
denominadas em dólares, resultando em inadimplências, recessões e crises
cambiais.
As dívidas dentro dos Estados Unidos eram muito baixas, de modo
que as taxas de juros puderam ser mantidas altas por Volcker por muito
tempo, o que acrescentou muito combustível à corrida de alta do dólar. O
Fonte: Fed St.Louis dólar finalmente atingiu o ápice em 1985, quando os Estados Unidos e qua-
tro outros países importantes (Alemanha, Japão, Reino Unido e França)
Em outras palavras, como todos sabemos, a economia global está in- concordaram em enfraquecer deliberadamente o dólar em um evento
terligada. Os EUA geralmente enfrentam problemas econômicos quando chamado Plaza Accord para que as exportações americanas e europeias
o dólar se fortalece, assim como algumas outras partes do mundo. Em fossem mais competitivas em relação às exportações japonesas, que domi-
um ambiente de dólar forte, as exportações dos EUA tornam-se menos navam o comércio global na época.
competitivas e o ambiente de comércio global geral torna-se lento, re-
sultando em estagnação interna também nos EUA. Com a queda do dólar no final da década de 1980 e a valorização
acentuada do iene, o dinheiro inundou o Japão, o que, juntamente com sua
A alta do dólar na década de 1980 ocorreu em um ambiente com economia geral forte, levou à conhecida bolha imobiliária japonesa.
menos dívida global, portanto, foi necessária uma intervenção deliberada
para reverter. Os segundo e terceiro picos do dólar ocorreram em ambi-
entes com mais dívida nos EUA e em outros lugares, e, portanto, foram
mais autocorretivos sem coordenação global, por mudanças unilaterais na Ciclo do dólar dos anos 1990/2000
política monetária pelo Federal Reserve dos EUA para proteger o merca-
do do Tesouro dos EUA e estimular o mercado interno na sua economia. A União Soviética caiu em 1991, deixando os Estados Unidos como a
única superpotência mundial, e levou a um período de abertura de merca-
dos e rápida globalização. No início da década de 1990, os Estados Unidos
passaram por uma recessão e passaram por um período de queda das
taxas de juros, e o dólar estava fraco em geral. Os mercados emergentes
tiveram um período forte até meados da década de 1990.

32 33
Nesse ponto, a economia dos Estados Unidos começou a ir bem e au- Em 2000, a bolha de ações pontocom dos EUA começou a entrar em
mentou as taxas de juros, dando início à segunda alta do dólar. Além disso, colapso e o Fed cortou as taxas de juros. Nos anos que se seguiram ao longo
a geração baby boomer dos EUA atingiu seu pico de idade para trabalhar, da década de 2000, o dólar enfraqueceu notavelmente e os mercados emer-
resultando no mais alto nível de participação no mercado de trabalho da gentes tiveram um período de grande expansão. A sigla “BRIC” se popu-
história dos EUA: larizou, referindo-se à ideia de que Brasil, Rússia, Índia e China, devido a
grandes populações e taxas de crescimento massivas, se tornariam cada vez
mais importantes no cenário econômico global.

Ciclo do dólar 2010/2020


O dólar permaneceu fraco por um tempo, embora tenha apresentado
uma breve alta em torno da crise financeira global de 2008/2009, com a
queda dos preços do petróleo e a ocorrência de uma recessão global. O
Fed, em particular, fez três rodadas principais de flexibilização quantitativa
(QE), mas essas rodadas terminaram no final de 2014.
Entre 2014 e 2015, conforme o Fed mudou para uma política mon-
etária mais rígida, colocando um fim ao QE, o dólar se fortaleceu rap-
idamente, resultando na terceira grande corrida de alta do dólar. Vários
mercados emergentes subsequentemente encontraram uma recessão severa
de 2014-2016.
Fonte: Fed St.Louis
Em 2016, o dólar atingiu um pico e houve conversas sobre um Acordo
Na segunda metade da década de 1990, os Estados Unidos entraram secreto de Xangai para enfraquecer o dólar, em referência ao conhecido
em um período de boom / bolha tecnológica e o dólar disparou. Vários Plaza Accord de 1985. O dólar de fato enfraqueceu significativamente ao
mercados emergentes enfrentaram sérios problemas de dívidas denomi- longo de 2017, e o mundo encontrou “um crescimento global sincroniza-
nadas em dólares, resultando na crise financeira asiática de 1997 e na crise do” como foi chamado, onde os Estados Unidos, Europa, Japão e mercados
financeira russa de 1998. Os mercados emergentes, como um todo, sof- emergentes se deram muito bem juntos.
reram. Ele refletiu a crise da dívida latino-americana da década de 1980,
mas com epicentro no sudeste da Ásia. No início de 2018, o Fed deu início a um aperto quantitativo – o
chamado QT, quantitative tightening (reduzindo o tamanho de seu
A razão de alguns mercados emergentes sofrerem mais do que outros balanço patrimonial) e o dólar começou a se fortalecer novamente.
durante um determinado ciclo tem a ver com a quantidade de dívidas de- Do pico ao vale, o dólar teve apenas uma redução de 12% em relação
nominadas em dólares que possuem em relação à quantidade de reservas ao seu pico e nunca atingiu uma daquelas quedas massivas de 40% do
em moeda estrangeira que possuem. As nações mais vulneráveis ​​a uma dólar como nos dois ciclos anteriores. Em meados de 2018, o crescimento
crise financeira são os mercados emergentes que têm dívidas elevadas em global começou a desacelerar nos Estados Unidos e no resto do mundo.
dólares e baixas reservas em moeda estrangeira, enquanto aqueles com Em outras palavras, a fraqueza do dólar era um fingimento. Ainda foi um
a situação oposta de altas reservas e baixas dívidas estão bem fortificados. período de dólar forte.

34 35
A Argentina e a Turquia, em particular, começaram a experimentar obter dólares, fazendo com que o mercado do Tesouro se tornasse muito
crises monetárias. Eles eram os mais vulneráveis, com muitas dívidas ilíquido e “parasse de funcionar efetivamente”, como o Fed o descreveu.
denominadas em dólares e poucas reservas em moeda estrangeira. Em resposta a isso, o Fed cortou as taxas para zero e realizou uma flexi-
bilização quantitativa maciça, e o governo federal dos EUA realizou um
Por outro lado, os países que sofreram na corrida de alta do dólar estímulo fiscal significatico, nunca antes visto.
no final da década de 1990, como Tailândia, Coreia do Sul, Malásia e
Rússia, aprenderam a lição da última vez e entraram neste ciclo com uma O dólar começou a enfraquecer novamente e, a partir daí, resta sa-
tonelada de reservas em moeda estrangeira e menos dívidas em dólares, ber como será o próximo capítulo.
o que é o oposto da situação que todos viviam na década de 1990. Eles
foram fortificados contra um dólar forte desta vez.
No verão de 2019, o Fed começou a cortar as taxas de juros em
face da desaceleração do crescimento econômico. Em setembro de 2019,
a taxa de empréstimo overnight no sistema bancário dos EUA disparou,
levando o Fed a começar a fornecer liquidez para operações compromis-
sadas e, posteriormente, comprar letras do Tesouro (de curto prazo, as
chamadas T-Bills) e expandir seu balanço patrimonial, o que marcou o
fim do aperto quantitativo.
Esse foi um exemplo do sistema se corrigindo ou, mais especifica-
mente, forçando os formuladores de políticas dos EUA a corrigi-lo. Um
dólar forte contribuiu para desacelerar o crescimento do PIB global,
inclusive nos Estados Unidos, o que levou o Fed a cortar taxas. E, com
os estrangeiros não comprando títulos do Tesouro suficientes por anos,
devido ao dólar estar tão forte, os balanços domésticos dos EUA ficar-
am cada vez mais cheios de títulos do Tesouro e não podiam continuar
comprando mais, então o Fed teve que mudar de aperto quantitativo
para flexibilização quantitativa para começar a comprar uma tonelada de
títulos do Tesouro, o que inunda o sistema de liquidez.

O dólar voltou a enfraquecer a partir daí, como


esperado.
No entanto, a pandemia COVID-19 chegou no início de 2020, o
que interrompeu o comércio global e contribuiu (juntamente com um
problema de excesso de oferta estrutural de petróleo) para um colapso
nos preços do petróleo. O dólar disparou rapidamente, os estrangeiros
começaram a vender títulos do Tesouro e outros ativos dos EUA para

36 37
3. A Degradação do Sistema
Petrodólar

Como expliquei antes, cada sistema monetário global começa a


sofrer de uma forma de entropia, em que a ordem cai em desordem à
medida que falhas inerentes ao sistema se manifestam com o tempo.
Para o sistema de Bretton Woods, a falha era a redução persistente
das reservas de ouro dos Estados Unidos contra um montante crescente
de passivos externos, levando a uma eventual incapacidade de manter a
conversibilidade dos dólares em ouro.
Para o sistema de petrodólares, a falha são os persistentes déficits
comerciais que os EUA têm de administrar com o resto do mundo para
abastecer o mundo com dólares que devem ser usados ​​na precificação
de energia. Os EUA acabam terceirizando grandes porções de sua base
industrial e, no processo, acumulam um déficit maciço em sua posição de
investimento internacional líquido, já que o setor estrangeiro detém uma
parcela cada vez maior dos ativos americanos.
Em outras palavras, a falha no sistema de Bretton Woods era sobre
a conta de capital (balan’co patrimonial, por assim dizer) dos Estados
Unidos, enquanto a falha no sistema de petrodólares é sobre a conta
corrente ( fluxo de capital) dos Estados Unidos.

38 39
Um artigo detalhado de 2017 do BIS chamado “Triffin: dilema ou Mas o uso global do dólar pode representar dilemas para
mito?” examina a validade do dilema de Triffin de vários ângulos, concor- os Estados Unidos. Como o Federal Reserve deve respond-
da com aspectos e discorda de outros aspectos e o reafirma e reaplica em er à instabilidade nos mercados de US $ 10,7 trilhões em
vários cenários. Nesse artigo há um bom resumo do que este “dilema de dívidas em dólares de instituições não bancárias fora dos
Triffin da conta corrente” atualizado propõe: Estados Unidos ou em uma quantidade semelhante de
contratos a termo que exigem pagamentos em dólares? O
“ A versão mais comum de Triffin muda sua tese da conta banco central ignora tal instabilidade sob o risco de uma
de capital para a conta corrente. Ele postula que o país da possível turbulência nos mercados de dolar que não param
moeda de reserva deve ter (ou pelo menos se deixa levar na fronteira - mesmo que o índice de taxa flutuante para
por) déficits em conta corrente persistentes para fornecer dívidas em dólares seja trazido de Londres para Nova York.
ao resto do mundo reservas denominadas em sua moeda No entanto, o Federal Reserve responde a essa instabilidade
(Zhou (2009), Camdessus e Icard (2011), Paul Volcker em correndo o risco de parecer ultrapassar seu mandato.
Feldstein (2013), Prasad (2013)). “Ao fazer isso, ele se torna
mais endividado com os estrangeiros até que o ativo livre de Os problemas decorrentes do fato de um país fornecer a
risco deixe de ser livre de risco” (Financial Times Lexicon maior parte da moeda de reserva mundial não estão indo
(sem data)). embora.”
[…]
Conforme aplicado aos Estados Unidos, a versão da con- Um sistema sem um propósito
ta corrente do Triffin funciona da seguinte maneira. O
acúmulo global de reservas em dólares exige que os Estados
Unidos tenham um déficit em conta corrente. Como as res- Por um tempo, o sistema de petrodólares fez algum sentido, apesar
ervas desejadas aumentam com o PIB nominal mundial, de suas falhas na balança comercial. Incapazes de manter o ouro garantido
que está crescendo mais rápido do que o PIB nominal dos no sistema anterior, os legisladores conseguiram dar ordem a um sistema
EUA, o crescimento das reservas em dólares aumentará o totalmente fiduciário. Os Estados Unidos eram a maior economia do mun-
endividamento externo dos EUA de forma insustentável. do e o maior importador de commodities, então nossa moeda era a única
Ou os Estados Unidos não incorrerão nos déficits em conta “grande o suficiente” para ser usada no comércio global de petróleo.
corrente, levando a uma insuficiência das reservas globais. Além disso, como o macro analista Luke Gromen, que nos últimos
Ou o endividamento dos EUA aumentará sem limites, mi- anos se especializou em analisar o sistema do petrodólar e a situação fiscal
nando o valor do dólar e as reservas nele denominadas.” dos Estados Unidos, destacou que as duas primeiras décadas do siste-
Então, no final, o artigo conclui: ma do petrodólar coincidiram com a Guerra Fria. Portanto, o sistema
ajudou a fortalecer o poder hegemônico dos EUA em um mundo dividido.
“Embora haja muito a discutir com Triffin e aqueles que Ame ou odeie, as intenções geopolíticas dos arquitetos do sistema eram
invocam seu dilema, não há como discutir os dilemas im- claras.
postos por uma moeda nacional usada globalmente como
reserva de valor, unidade de conta e meio de pagamento. Da década de 1990 em diante, após a queda da União Soviética, como
“A moeda de reserva é um bem público global, fornecido Gromen e outros argumentaram, o sistema fez menos sentido e resultou
por um único país, os EUA, com base nas necessidades in- em mais envolvimento militar dos EUA do que o necessário (para dizer o
ternas” (Campanella (2010)). Padoa-Schioppa enfatiza a mínimo), já que os EUA indiretamente buscam defender sua hegemonia
estranheza do controle nacional de uma perspectiva global. no papel sem uma direção ou identidade clara.

40 41
Além disso, a China é agora o maior importador mundial de com- E esse é o PIB nominal (ou seja, cotado em dólares), por isso está
modities, ao invés dos Estados Unidos. É um desafio manter um sistema parcialmente ligado à força do dólar. Se o dólar tiver outro ciclo de baixa,
com todo o petróleo e a maioria das commodities sendo cotadas mun- isso cairia para talvez 20%. E com base na paridade do poder de compra
dialmente em dólares americanos se houver um maior parceiro comercial (que acompanha mais de perto o consumo de commodities), os EUA
global e importador de petróleo e commodities que os Estados Unidos Os representam apenas 15% do PIB global. Isso ainda é muito bom para
Estados Unidos ainda têm um alcance militar incomparável, mas suas out- um país com 4% da população mundial, mas realmente não o suficiente
ras justificativas para o sistema existente estão diminuindo. para manter o sistema de petrodólares indefinidamente.
O mercado global de energia, e mais amplamente o comércio inter-
nacional, agora é grande demais para ser precificado principalmente na
Redução da Participação dos EUA no PIB Global moeda de um país que representa essa pequena parcela do PIB global.

Apesar de tudo isso, a China não pode substituir os Estados Unidos Imagine se o mundo inteiro tentasse precificar a energia exclusiv-
como detentor da única moeda de reserva global. Não pode chegar nem amente em francos suíços; simplesmente não haveria o suficiente deles
perto disso. Aliás, nenhum país pode. E aqui está o porquê. para que isso funcionasse. A situação do petrodólar não é tão extrema,
é claro, já que os Estados Unidos são muito maiores que a Suíça, mas a
Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos representaram questão é que, como a economia dos EUA representa uma parcela cada
mais de 40% do PIB global. Quando o sistema de Bretton Woods ter- vez menor do PIB global ao longo do tempo, ela se torna cada vez mais
minou e o sistema de petrodólares começou, os Estados Unidos ainda incapaz de fornecer dólares suficientes para o mundo a precificar toda
representavam 35% do PIB global. Desde então, caiu para apenas 20-25% a energia em dólares.
do PIB global:
Não há país ou grupo monetário grande o suficiente para fazer isso
sozinho. Nem os Estados Unidos, nem a China, nem a União Europeia,
nem o Japão.
Os Estados Unidos foram capazes de fazê-lo de forma única durante
décadas, após a Segunda Guerra Mundial, quando a maioria das outras
nações foi dizimada e a participação dos EUA no PIB global tornou-se
anormalmente alta. No entanto, à medida que o mundo cresce e se torna
mais multipolar ao longo do tempo, sem nenhum país representando uma
parcela dominante do PIB global como os EUA costumavam representar,
o próprio sistema monetário global também requer mais descentralização
para funcionar adequadamente.
E estamos começando a ver isso acontecer.

Fonte: Lyn Alden

42 43
Comércio internacional de várias moedas
Como a Bloomberg relatou este ano, as exportações da Rússia para
a China desdolarizaram rapidamente nos últimos anos para uma cesta de
moedas mais diversificada:

Fonte: Bloomberg (Bank of Russia info)


Esta não é a primeira vez que esse tipo de coisa foi tentado. Em 2000,
Saddam Hussein começou a vender petróleo cotado no euro recém-cria-
do. Alguns anos depois, os Estados Unidos invadiram o Iraque e retiraram
Fonte: Bloomberg Hussein do poder com base em alegações de que o Iraque possuía armas
de destruição em massa. Essas alegações se revelaram falsas e o Iraque
Seis anos atrás, as exportações russas para a China eram mais de rapidamente voltou a vender petróleo em dólares.
98% em dólares. No início de 2020, era apenas 33% baseado em dólares,
50% baseado em euros e 17% com suas próprias moedas. E o mais im- Não há falta de ditadores malévolos no mundo, mas é com eles que
portante, as exportações da Rússia são significativamente baseadas em perdemos 4.500 vidas de soldados americanos e US$ 2 trilhões em fundos
energia (petróleo) e commodities, o que chega ao cerne do sistema do dos EUA , e isso sem entrar na destruição do lado iraquiano.
petrodólar.
No entanto, quando grandes potências como China, Rússia e Índia
Da mesma forma, o artigo mostra que as exportações russas para a começam a precificar coisas fora do sistema baseado no dólar e a usar
Europa também se tornaram cada vez mais baseadas no euro. Seis anos suas moedas para o comércio, incluindo para energia em alguns casos, os
atrás, as exportações russas para a Europa eram 69% baseadas em EUA não podem intervir militarmente de forma realista e, em vez disso,
dólares e 18% em euros. Agora eles são 44% baseados em dólares e 43% só podem intervir com sanções ou disputas comerciais e outras formas de
baseados em euros. pressão geopolítica.
Além disso, a Bloomberg relatou em 2019 que a Rússia tem alcança- O último ponto quente de discussão tem sido várias rodadas e
do resultados semelhantes com a Índia também, com uma queda notável ameaças de sanções dos EUA para as empresas envolvidas no gasoduto
de quase 100% das exportações para apenas 20% das exportações cotadas Nord Stream 2 da Rússia para a Alemanha, que se concluído iria fortalecer
em dólares: o sistema de fornecimento de gás da Rússia para a Europa.

44 45
Tanto o Poder Executivo quanto o Legislativo dos Estados Unidos os levou a se tornarem o próximo grande parceiro comercial e centro
têm se fixado bastante nesse projeto. Vários senadores dos EUA, por exem- de crescimento global. Eles pegaram o bastão e geraram grandes su-
plo, enviaram uma carta alertando sobre “sanções jurídicas e econômicas perávits comerciais com os Estados Unidos e, novamente, reinvestiram
esmagadoras e potencialmente fatais” contra a operadora portuária alemã esses dólares em títulos do Tesouro. Então, com a estagnação do Japão
envolvida no projeto. As autoridades alemãs reagiram, dizendo que tais e a ascensão da China, a China se tornou o maior parceiro comercial
sanções ameaçam a soberania europeia. dos Estados Unidos, teve grandes superávits comerciais com os Estados
Unidos e reinvestiu esses dólares em títulos do Tesouro.
Outro ponto crítico foram as sanções dos EUA contra o Irã. Europa,
Índia e China têm relações comerciais com o Irã e querem negociar com Tudo estava bem, exceto para os americanos que queriam fazer
eles, e todos eles são grandes importadores de energia, enquanto o Irã é coisas, ou qualquer pessoa, americana ou estrangeira, que estava do lado
um produtor de energia. errado das aventuras militares. As rodas do sistema petrodólar continu-
aram funcionando.
A Europa criou a INSTEX em 2019, um veículo para fins especiais
para evitar as sanções dos EUA ao Irã. O veículo facilita o comércio fora Mas então, a China quebrou essa corrente. Em 2013, a China de-
do sistema SWIFT e fora do sistema do dólar de forma mais ampla. Foi clarou que não era mais do seu interesse continuar acumulando títulos
testado com sucesso, mas quase não usado. Da mesma forma, a Índia do Tesouro do governo americano. Eles continuaram gerando enormes
há muito tem um comércio construtivo com o Irã, apesar das diferenças superávits comerciais com os Estados Unidos e ainda tinham dólares
religiosas / culturais que costumam causar problemas entre a Índia e seu entrando, mas não os reciclariam mais para financiar os déficits fiscais
vizinho Paquistão e disputas territoriais na Caxemira, mas a parceria dos EUA comprando títulos do Tesouro. De acordo com o artigo da
comercial Irã-Índia foi restringida em 2020 devido a uma combinação dos Bloomberg que linkamos aqui:
EUA sanções e COVID-19. A China também tem uma série de parcerias
estratégicas de energia e acordos comerciais com o Irã, mas as sanções “Não é mais favorável à China acumular reservas em
dos EUA junto com a COVID-19 também criaram um obstáculo em sua moeda estrangeira”, disse Yi Gang, vice-governador do
situação comercial. banco central, em um discurso organizado pelo China
Economists 50 Forum na Universidade Tsinghua ontem. A
autoridade monetária irá “basicamente” encerrar a inter-
venção normal no mercado de câmbio e ampliar a faixa
China subvertendo o sistema de petrodólares de negociação diária do yuan, escreveu o governador
Zhou Xiaochuan em um artigo em um guia explicando
Nos últimos sete anos, a China tem usado o sistema de petrodólares as reformas delineadas na semana passada após uma
contra os Estados Unidos. O sistema do petrodólar incentiva as nações reunião do Partido Comunista. Nem Yi nem Zhou deram
mercantilistas a incorrerem em déficits comerciais com os Estados Uni- um prazo para quaisquer mudanças.”
dos e reciclar esses dólares para a compra de títulos do Tesouro america-
Na verdade, a China agora detém menos títulos do Tesouro dos
no, mas depois de um tempo fazendo isso, a China começou a pegar seus
EUA do que há sete anos, embora continuasse aumentando seu superávit
excedentes em dólares e investir em outros ativos estrangeiros.
comercial com os Estados Unidos até 2018.
No início do sistema de petrodólares, a Europa e o Oriente Médio
Em vez disso, eles lançaram a iniciativa Belt and Road em 2013. A
eram os maiores parceiros comerciais e registravam superávits comerciais
China começou a emprestar agressivamente em dólares para projetos de
com os Estados Unidos. Eles acumularam muitos dólares e reinvestiram
infraestrutura para países em desenvolvimento na Ásia, África, América
esses dólares em títulos do Tesouro. Então, a rápida ascensão do Japão
Latina e Europa Oriental, e também fornecendo suas capacidades de

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construção de infraestrutura, porque infraestrutura tem sido uma das Há uma antiga citação de Charlie Munger que diz: “mostre-me
especialidades técnicas da China. os incentivos e eu mostrarei o resultado” (“show me the incentives and
I’ll show you the outcome.”). Por mais inteligente que fosse o projeto do
Muitos desses empréstimos estrangeiros, se inadimplentes, signifi- sistema de petrodólares na década de 1970, a subversão do sistema de
cam que a China ganha a propriedade da infraestrutura. Portanto, sejam petrodólares na China foi tão inteligente quanto. As falhas do sistema
os empréstimos bem-sucedidos ou não, a China obtém acesso a acordos basicamente pedem que isso aconteça eventualmente, e é a matemática e
de commodities, parceiros comerciais e ativos tangíveis em todo o mundo. o dilema de Triffin voltando para o poleiro.
Aqui está um mapa do financiamento chinês global (e aqui está uma Do ponto de vista geopolítico, podemos ver por que a China iria
visão ampliada). querer fazer isso. As potências ocidentais danificaram gravemente a
China nas Guerras do Ópio de 1800, que contribuíram em parte para os
próximos 150 anos de desestabilização e estagnação chinesa, e agora ten-
do recuperado um grau de organização e poder, a China não está jogando
bem com o sistema global estruturado por essas potências ocidentais.
As autoridades chinesas disseram em várias ocasiões que sua de-
pendência do sistema do dólar é um risco de segurança para eles. Tendo
ultrapassado os Estados Unidos como o maior parceiro comercial do
mundo e o maior importador mundial de commodities, a China tem cada
vez mais interesse em adquirir commodities e realizar comércio global
sem dólares, o que, como vemos com parceiros comerciais como a Rússia,
ou com o yuan chinês com base em contratos futuros de petróleo, eles são
cada vez mais capazes de executar pequenos passos de cada vez.
Ao mesmo tempo, os Estados Unidos enfrentam um populismo cres-
Fonte: Visual Capitalist cente em seu próprio país, à medida que o déficit comercial persistente se
torna uma questão cada vez mais política a ser consertada. Além disso,
Assim, os EUA têm grandes déficits comerciais com o resto do as autoridades americanas têm apontado rotineiramente o risco de se-
mundo (e especialmente com a China), mas agora, em vez de canalizar gurança de ter tantos suprimentos essenciais feitos fora do país, que se
esses superávits comerciais em dólar para financiar os déficits fiscais dos tornou ainda mais aparente durante o COVID-19.
EUA, a China usa seus dólares recebidos para financiar projetos de ativos
tangíveis em todo o mundo, e aumentar seu alcance global. A solução da armadilha passa pelos formuladores de políticas
dos EUA tentarem reduzir o déficit comercial fazendo com que outros
Neste estágio, em vez de apenas o trabalho de colarinho azul (blue países comprem mais produtos americanos, mas isso é como colocar um
colar jobs, como são chamados os empregos menos remunerados nos band-aid em um ferimento de bala. O problema mais profundo é que
EUA) na América ser prejudicado pelo sistema, as ambições geopolíti- o sistema monetário global, conforme estruturado atualmente, simples-
cas da hegemonia dos Estados Unidos também são subvertidas. Para os mente não funciona bem com esse objetivo; é inerentemente projetado
americanos, por mais de 40 anos o sistema de petrodólares costumava em seu núcleo para funcionar com déficits comerciais persistentes para
funcionar para a metade superior do espectro de renda, mas não real- liberar dólares para o mundo e impor preços globais de energia apenas
mente para a metade inferior, e agora não funciona particularmente para em dólares.
a metade superior nem para a inferior. Agora é um sistema sem propósito.

48 49
Em 2 de março de 2018, o presidente Trump tuitou que “guerras Comendo nossa própria comida
comerciais são boas e fáceis de vencer”. Desde então, o déficit comercial
dos EUA aumentou, em vez de diminuir. As guerras comerciais são muito A partir deste ano, o Federal Reserve dos EUA (linha azul) agora pos-
difíceis para os EUA vencerem dentro do sistema de petrodólares como sui mais títulos do Tesouro do que todos os bancos centrais estrangeiros
estruturado atualmente. Os EUA podem fechar seu déficit comercial ao combinados (linha laranja):
longo do tempo, mas não sem mudar o sistema monetário global de sua
estrutura atual.
Portanto, por um lado, os legisladores dos EUA fazem o que podem
com ações militares ou sanções contra aqueles que vendem energia em
uma moeda diferente do dólar e tentam manter o bloqueio do dólar nos
mercados globais de energia sempre que possível. Por outro lado, os EUA
querem consertar seu déficit comercial cada vez maior, embora esse défi-
cit comercial seja o que leva dólares ao mundo para serem usados ​​por
países para vender petróleo em dólares ou adquirir dólares para comprar
petróleo. É uma estratégia incoerente e está profundamente enraizada na
cultura política dos EUA, em vez de ligada a qualquer político.
Enquanto isso, a entropia dos déficits comerciais prejudica o sistema
existente por dentro, a China usa o sistema contra o dono do sistema, o
populismo aumenta nos EUA e em outros lugares, e países em toda a Eu-
rásia gradualmente constroem canais de pagamento diferentes do dólar.

Fonte: Bianco Reasearch


Não é exatamente assim que a moeda de “reserva global” deve fun-
cionar. É como um chef de restaurante comendo sua própria comida mais
do que seus clientes. Esta é a aparência de outros países com reservas
não globais. Em um ano, o Fed passou da posse da metade dos títulos do
Tesouro dos bancos centrais estrangeiros combinados para mais do que
eles combinados.
Conforme descrito anteriormente, os países só podem continuar
comprando títulos do Tesouro se as condições de liquidez do dólar global
forem boas. Um dólar forte interrompe a acumulação estrangeira de títu-
los do Tesouro. Além disso, qualquer impacto ao comércio, como uma
pandemia e paralisações econômicas associadas que afunda a demanda

50 51
de petróleo e os volumes de importação / exportação, ameaça todo o melhorou gradualmente durante o restante do período de
sistema. E a China não está reciclando dólares em títulos do Tesouro por inter-reunião, e os rendimentos do Tesouro tornaram-se
razões estratégicas mencionadas. menos voláteis. Embora a profundidade do mercado tenha
permanecido excepcionalmente baixa e os spreads bid-ask
No que se refere ao mercado de Treasuries, além de não comprar para títulos off-the-run e títulos de longo prazo tenham
muitos títulos do Tesouro nos últimos cinco anos nesse ambiente de dólar permanecido elevados, os spreads bid-ask para títulos on-
forte, alguns países começaram a vender títulos do Tesouro rapidamente the-run de curto prazo caíram perto dos níveis observados
em março e abril deste ano no auge do desligamento global e da crise de no início do ano.”
liquidez. Levando à pandemia, os títulos do Tesouro de longa duração
subiram à medida que os investidores se aglomeraram neles e reduziram
seus rendimentos, mas no pior ponto da crise de liquidez, quando o dólar
index atingiu 103, até mesmo os títulos do Tesouro foram drasticamente “ Vários participantes observaram que um programa de
vendidos. compras contínuas de títulos do Tesouro poderia ser usado
no futuro para manter baixos os rendimentos de longo
O Fed descreveu o problema na reunião de emergência de março e prazo. Alguns participantes também observaram que o
na reunião subsequente de abril. balanço patrimonial poderia ser usado para reforçar a
orientação futura do Comitê quanto à trajetória da taxa
Aqui o que disseram na reunião de março: de fundos federais ( fed fund rates) por meio das compras
“No mercado de Treasuries, após vários dias consecutivos de títulos do Tesouro pelo Federal Reserve em uma escala
de condições de deterioração, os participantes do mercado necessária para manter os rendimentos do Tesouro nos
relataram uma queda aguda na liquidez do mercado. vencimentos de curto a médio prazo limitados em níveis
Vários corretores primários (primary dealers) acharam especificados por um período de tempo.”
especialmente difícil criar mercados para títulos do Te- –Ata da Reunião do FOMC de abril de 2020
souro fora de circulação e relataram que esse segmento do
mercado havia deixado de funcionar de maneira eficaz.
Essa interrupção na intermediação foi atribuída, em par-
te, às vendas de títulos do Tesouro off-the-run e aos fluxos
de fuga para a qualidade para os títulos do Tesouro mais
líquidos e on-the-run.”
–Ata da Reunião do FOMC de março de 2020
E aqui estão dois trechos de abril:
“Os mercados do Tesouro experimentaram extrema vol-
atilidade em meados de março, e a liquidez do mercado
ficou substancialmente prejudicada porque os investidores
venderam grandes volumes de títulos do Tesouro de médio
e longo prazo. Após um período de compras extraordinari-
amente rápidas de títulos do Tesouro e MBS da agência
pelo Federal Reserve, a liquidez do mercado do Tesouro

52 53
E aqui está o que eles fizeram. A linha vermelha representa os rendi- em quantidade suficiente para o mundo. Os estrangeiros começam a
mentos do Tesouro de 10 anos. A linha azul é a taxa semanal de compras vender parte de seus US$ 42 trilhões em ativos denominados em dólares
de títulos do Tesouro pelo Fed. para obter dólares, e isso quebra os mercados dos EUA junto com tudo
o mais, o que força o Fed a intervir, imprimir dólares para comprar o
que eles vendem e abrir linhas de swap de dólares para o exterior bancos
centrais, até que a liquidez global em dólares seja restaurada.

Desvendando o Dilema de Triffin


Em última análise, isso volta à questão chave: se os Estados Unidos
deveriam mesmo querer tentar manter o sistema de petrodólares, se isso
fosse possível eternamente.
Como mostrado anteriormente, a balança comercial dos EUA está
uma bagunça:

Fonte: Fed St.Louis


Mais importante do que o próprio pico de rendimento em março
foi o fato de que o mercado do Tesouro se tornou ilíquido, com amplos
spreads de compra / venda. Não estava funcionando corretamente,
muito menos os rendimentos subindo.
Desde então, o Fed reduziu gradualmente seu programa de compra
de títulos do Tesouro a partir dessas altas extremas de US$ 75 bilhões
por dia, embora ainda esteja comprando a uma taxa que rivaliza com as
instâncias anteriores de QE, de US$ 80 bilhões em títulos do Tesouro por
mês. Em outras palavras, o Fed continua sendo o maior comprador dos
déficits fiscais dos EUA. O dólar enfraqueceu desde as altas de março,
mas ainda está em uma parte relativamente forte no ciclo histórico e, Fonte: Trading Economics
como tal, o setor estrangeiro não está reciclando muitos de seus dólares
para acumular títulos do Tesouro.
Isso é o que acontece quando há US$ 13 trilhões em dívidas denom-
inadas em dólares no mundo e muitas necessidades de financiamento em
dólares, enquanto os dólares simplesmente não estão sendo fornecidos

54 55
A posição de investimento internacional líquido dos EUA entrou em Isso é resultado dos déficits comerciais norte-americanos acumula-
colapso absoluto, com os EUA tendo passado de maior nação credora do dos (e, do outro lado, dos superávits comerciais acumulados pelo setor
mundo para a maior nação devedora do mundo: externo), e agora coloca os EUA em uma das posições mais fracas do
mundo em termos dessa métrica. Isso foi em 2019 e piorou desde então:

Fonte do gráfico: Ray Dalio


A posição de investimento internacional líquido de um país mede a
quantidade de ativos estrangeiros que ele possui, menos a quantidade de
seus ativos que os estrangeiros possuem dele, e o gráfico acima mostra
isso como uma porcentagem do PIB. A partir deste ano, os Estados Uni-
dos passaram a possuir US$ 29 trilhões em ativos estrangeiros, enquanto
os estrangeiros possuem US$ 42 trilhões em ativos americanos, incluin-
do títulos do governo dos Estados Unidos, títulos corporativos, ações e Fontes de dados: FMI e vários bancos centrais
imóveis.

56 57
A concentração de riqueza nos EUA agora é maior do que em Os Estados Unidos ocupam o 27º lugar no ranking mundial de mo-
qualquer outra nação desenvolvida: bilidade social, o que os coloca na faixa inferior dos países desenvolvidos.
Para os americanos, sua família de nascimento determina seu potencial
Concentração de riqueza monetária de reserva global econômico vitalício mais do que outros pares avançados. Com algumas
exceções, temos que ir aos mercados emergentes / em desenvolvimento
para encontrar pontuações de mobilidade social mais baixas do que as
dos Estados Unidos.
Os salários médios americanos desvincularam-se da produtividade
desde a década de 1970, e essa lacuna foi arbitrada por aqueles no topo
graças ao offshoring / automação:
Produtividade x salários

Fonte do gráfico: Relatório de riqueza do Credit Suisse 2020


O 1% superior tem tanto quanto os 90% inferiores, o que é muito
mais concentração do que 30-40 anos atrás:

Fonte do gráfico: EPI


Agora, o homem americano mediano tem problemas para arcar com
as despesas de uma família que ele poderia facilmente pagar décadas atrás.

Fonte do gráfico: St. Louis Fed

58 59
Ou uma renda acima da mediana é exigida, ou duas rendas são De acordo com o Relatório de Riqueza do Credit Suisse 2019, em-
necessárias, porque a renda mediana simplesmente não sustenta uma bora os Estados Unidos sejam ricos per capita, porque essa riqueza é tão
família como costumava: concentrada, o patrimônio líquido americano médio (que representa o
50º percentil - a pessoa do meio no espectro) é na verdade menor do que
Renda da crise do dólar vs despesas a mediana do patrimônio líquido da maioria dos outros países avançados.
Apertamos nossas classes média e trabalhadora com mais força do que a
maioria dos outros países:

Fonte: Credit Suisse 2019 Wealth Databook


Não é de admirar que o populismo esteja em alta, tanto da direita
quanto da esquerda. As pessoas sentem que algo não está funcionando,
mas divergem sobre o que pensam que são as causas e soluções.
Basicamente, o sistema de petrodólares e a política fiscal associada
estão se desgastando sob suas próprias falhas inerentes ao longo das déca-
das, o que novamente remete ao dilema de Triffin de que, para manter
uma moeda de reserva global, você precisa exportar uma quantidade
Fonte do gráfico: Washington Post, Oren Cass cada vez maior de seus valiosos ativos, como reservas de ouro ou sua
base industrial. Esse custo inerentemente torna esses tipos de sistemas
Enquanto isso, houve um rápido aumento na remuneração dos duradouros, mas não permanentes.
CEOs nas últimas quatro décadas. Os CEOs costumavam ganhar 20
vezes mais que o trabalhador médio em 1965, e essa proporção subiu A princípio, ter a moeda de reserva global é um privilégio exorbi-
para 59 vezes em 1989, 122 vezes em 1995 e, nas últimas décadas, foi tante, porque os benefícios do poder hegemônico superam os custos de
bem mais de 200 vezes maior do que o trabalhador médio. manutenção do sistema. Com o tempo, no entanto, os benefícios de alta

60 61
permanecem relativamente estáticos, enquanto os custos continuam au-
mentando com o tempo, até que os custos superem os benefícios.
E a partir daí, mensurar o valor do sistema depende de para quem
você pergunta. Pessoas que geralmente estão na extremidade mais alta
do espectro de renda que trabalharam em finanças, governo, saúde ou
tecnologia se beneficiaram desse sistema, uma vez que obtiveram muitos
dos benefícios da globalização e nenhuma das desvantagens. Pessoas que
muitas vezes estão na extremidade inferior do espectro de renda, especifi-
camente aquelas que fazem coisas físicas, são as que menos se beneficiam
e desistem, já que seus empregos foram terceirizados e automatizados
em um ritmo mais rápido do que em outros países desenvolvidos. Mas
4. A Perspectiva de Prazo
agora, com a China também minando a estrutura do sistema, até mesmo
os benefícios geopolíticos / hegemônicos para a classe política são sub-
Intermediário
vertidos também.
Conforme o sistema se desagrega, é fácil apontar as nações externas
como a causa desse enfraquecimento. Quando eles começam a precificar
coisas fora do sistema baseado em dólar, ou empregam políticas mon- Independentemente de haver mudanças importantes no sistema ou
etárias mercantilistas, ou constroem pipelines, ou decidem fazer algo com não, acho que as probabilidades levarão a um dólar enfraquecido nos
seus excedentes em dólares que não seja reinvesti-los em títulos do Tesou- próximos anos.
ro dos EUA, pode parecer que eles estão minando uma sistema outrora
favorável. Em outras palavras, outro ponto negativo neste gráfico do dólar,
mesmo que a estrutura geral do sistema não mude muito:
Na realidade, essas ações externas são um sintoma das falhas mais
subjacentes do sistema:
• o fato de os Estados Unidos não serem mais grandes o suficiente
como parcela do PIB global para fornecer dólares suficientes
para financiar os mercados globais de energia e o comércio
global,
• o fato que os Estados Unidos têm de incorrer em déficits comer-
ciais persistentes para colocar dólares no sistema,
• e o fato de que um sistema monetário global totalmente fi-
duciário incentiva a manipulação mercantilista da moeda por
muitos países, para gerar superávits comerciais contra os EUA
sempre que possível. Fonte: StockCharts.com

62 63
O dólar vs outras moedas Aqui está um gráfico que tive em meu boletim informativo de
novembro de 2020 sobre o déficit federal dos EUA, mostrando que é a
Algumas pessoas perguntam por que o dólar americano enfraquece- primeira vez na história moderna em que os Estados Unidos tiveram um
ria mais do que outras moedas importantes se todas elas estão imprimin- déficit crescente (tanto em termos absolutos quanto como porcentagem
do muito dinheiro. O que causa esses mercados em alta do dólar? do PIB) durante os últimos anos de uma expansão econômica:

Em outras palavras, só porque o Federal Reserve dos EUA se torna


dovish, fazendo bastante QE e mantendo as taxas de juros em zero, por
que o dólar estaria fraco em relação ao euro, iene, libra esterlina ou outros
países que estão agindo de forma semelhante dovish?
É fácil argumentar que deveria enfraquecer contra ativos tangíveis
(e de fato, essa é provavelmente a negociação mais fácil de longo prazo),
mas por que deveria enfraquecer em relação a outro fiat money?
A primeira resposta a essas perguntas tem a ver com magnitude.
Todos os principais países estão agindo de forma semelhante, mas não
na mesma magnitude. Os déficits fiscais dos EUA como porcentagem do
PIB eram maiores do que os da maioria dos pares desenvolvidos antes de
a pandemia surgir, e também são maiores do que a maioria dos seus pares
desenvolvidos durante esta pandemia.

Fonte: Fed St.Louis

64 65
Além disso, enquanto o Japão, a Europa e a China têm saldos comer- 7%? Devido à alta valorização e ao maior gap relativo em relação ao que foi
ciais e contas correntes positivos, os EUA enfrentam o dilema de Triffin precificado, a ação de crescimento sobrevalorizado tem muito mais a cair
já mencionado, a questão do comércio estrutural e dos déficits em conta nesse cenário do que a ação de valor.
corrente. Aqui está um gráfico que montei em 2019 usando dados do final
de 2018, mostrando que, antes da pandemia, os EUA tinham o maior O dólar está especificamente sustentado em um ciclo de alta devi-
do a toneladas de dívidas denominadas em dólares no exterior, escassez
déficit gêmeo entre os principais países desenvolvidos:
estrutural de dólares fora dos Estados Unidos para servir essas dívidas e
uma década de influxos de capital para os Estados Unidos. Agora, em um
ambiente onde todos os países, incluindo os EUA, criam liquidez maciça
e criam mais unidades monetárias, a moeda que foi especificamente so-
brevalorizada devido à escassez em relação à demanda necessária (o dólar)
é a que tem mais chance de cair, porque esse problema de escassez / liquidez
que o estava sustentando é encarado de frente.
Os déficits comerciais implicam uma moeda sobrevalorizada (mui-
to poder de importação, preços de exportação não competitivos) e os
superávits comerciais implicam uma moeda subvalorizada (muito pouco
poder de importação e preços de exportação excessivamente competitivos).
Os países mercantilistas podem manipular sua moeda para manter os
superávits comerciais abertos por um tempo, e a moeda de reserva global
pode passar décadas com déficits comerciais, mas quando a política mon-
etária para de empurrar contra essas forças comerciais inerentes, as taxas de
câmbio tendem a empurrar para o direção do comércio equilibrado.
Quando os EUA estão em um ciclo de dólar forte, têm um grande
déficit comercial e, em seguida, cortam as taxas de juros e passam do ap-
erto quantitativo (QT) para a flexibilização quantitativa (QE), o dólar
tem muito espaço para enfraquecer em comparação com as moedas dos
países desenvolvidos que já têm superávits comerciais (isto é, moedas
subvalorizadas), embora o dólar seja a moeda de reserva global. Vimos
Fonte: Trading Economics, várias fontes de bancos centrais isso acontecer este ano, então a questão é se vai continuar.
Portanto, quando a política monetária dos EUA também se tornar Além disso, as ações de empresas dos EUA são mais caras do que
dovish, como aconteceu em 2019, o dólar terá muito espaço para cair. muitas outras nações, mesmo quando ajustadas para diferenças setoriais.
Portanto, se os índices de ações dos EUA não puderem continuar seu perío-
A segunda resposta a essa pergunta tem a ver com avaliação. Suponha do de desempenho superior, o capital pode começar a fluir para outro lugar,
que uma ação em valor (value stock) tenha uma relação preço / lucro de o que também enfraquece a moeda.
10x e você espera um crescimento de 5% nos lucros este ano. E suponha
que uma ação em crescimento (growth stock) tenha uma relação preço / Normalmente, devido a avaliações de ações e mudanças na política,
lucro de 30x, e você espera um crescimento de 15% nos lucros este ano. O qualquer região de ações com desempenho superior em uma década tende
que acontecerá se, apesar das expectativas, a ação de valor apenas aumentar a não ser a mesma que supera na próxima década.
os lucros em 4% e a ação de crescimento somente aumentar os lucros em

66 67
Qualquer um desses resultados pode causar uma alta temporária do
dólar, semelhante à alta que ocorreu em março. Uma perspectiva pode ser
firme por razões estruturais, mas ainda precisa se adaptar conforme os
dados mudam. É por isso que escrevo boletins informativos e relatórios de
pesquisa regularmente; as coisas mudam constantemente.
Em termos de inevitabilidade, a eventual questão da dívida sober-
ana do sul da Europa deve causar muita preocupação aos investidores
no longo prazo. O euro tem questões estruturais próprias, com uma união
monetária, mas sem união fiscal, embora isso seja assunto para outro artigo.
O euro tem muitos problemas, mas estar sobrevalorizado não é um deles.
Neste período de dólar forte, a Europa obteve superávits comerciais e de
conta corrente persistentes:

Fonte: iShares
Dentro de uma perspectiva de vários anos, provavelmente haverá
contra-altas ocasionais em que o dólar supera outras moedas, ou mesmo
supera o ouro, apesar de estar dentro de uma tendência de queda. Portan-
to, é importante manter a clareza do horizonte de tempo.
Semelhante à forma como a pandemia foi uma guinada de 6 meses
em direção contrária à minha visão de um dólar mais fraco no primeiro
semestre de 2020, existem outros riscos de cauda que podem prejudicar Fonte: Trading Economics
temporariamente a perspectiva também:
• Uma desaceleração econômica neste inverno, antes que as vacinas
Um dólar mais fraco em relação ao euro, se isso acontecer, pode de
alcançassem ampla penetração e mudem o comportamento do fato reduzir o superávit comercial da Europa com os Estados Unidos. Mas
consumidor? o boom correspondente nos mercados emergentes, que provavelmente
viria junto com um dólar mais fraco, abriria outras vias de comércio para
• Uma dívida soberana ou crise bancária na Europa, centrada nos países eles também.
do sul da Europa principalmente?
• Fome na China?
• Uma crise cambial em um grande mercado emergente como o Brasil?
• Algum tipo de confronto militar inesperado entre grandes potências?

68 69
5. A Perspectiva de Longo Prazo

Quanto mais olhamos para fora, mais podemos pensar sobre uma
mudança estrutural do próprio sistema de petrodólares, em vez de apenas
mais um ciclo do dólar dentro do sistema.

A Opção de Reestruturação Lenta


Uma mudança estrutural poderia acontecer gradativamente, como
já está acontecendo. Se uma parcela cada vez maior do comércio global,
especialmente dentro da Eurásia e em relação à energia e commodities,
continuar mudando para euros, yuans e rublos e se afastando do dólar, o
sistema pode se tornar mais descentralizado com o tempo.

70 71
Na verdade, poderíamos argumentar que o sistema de petrodólares A Opção de Reestruturação Rápida
atingiu o pico em 2000, esteve em um estado estacionário nos últimos 20
anos e agora está potencialmente enfrentando um declínio. Este gráfico Por outro lado, uma mudança estrutural poderia acontecer com um
mostra as moedas mantidas como uma parcela das reservas totais do choque agudo e uma mudança em etapas, como o fim do sistema de Bret-
banco central: ton Woods visto no passado. Isso pode acontecer de algumas maneiras,
mas se torna mais provável se os Estados Unidos decidirem promover
ativamente uma mudança em vez de defender o status quo.
No lado legislativo, os Estados Unidos poderiam reverter algumas
políticas que descrevi em “The Big Tax Shift”, o que tornaria a mão de
obra onshore mais competitiva. Isso incluiria coisas como cortar impos-
tos sobre a folha de pagamento ou realizar medidas semelhantes e reorga-
nizar outras prioridades de gastos e tributação, para enfatizar algum grau
de onshoring industrial.
Do lado do Tesouro / Fed, a maneira mais fácil seria por meio de
reservas em moeda estrangeira.
Fonte: Ray Dalio (anotações em cor violeta = Lyn Alden) Os países administram suas moedas principalmente com suas reser-
vas em moeda estrangeira, que consistem em moedas estrangeiras na for-
Outra maneira de ver as coisas é que o pico foi atingido em 2013, ma de títulos soberanos e ouro. Em alguns casos, eles também possuem
quando os estrangeiros detinham um percentual recorde da dívida dos ações estrangeiras e outros ativos. Essas reservas em moeda estrangeira
Estados Unidos, e a China declarou que não era mais do seu interesse mantidas por bancos centrais em todo o mundo têm vários propósitos:
continuar acumulando títulos do Tesouro. Desde então, o percentual de
títulos do Tesouro pertencentes ao setor estrangeiro diminuiu. • eles agem como poupança; uma forma de um banco central
poder pagar obrigações externas, se necessário.
Como um caso base, espero que esse resultado gradual continue
acontecendo, quer os Estados Unidos participem ou não, à medida que • se a moeda de um país enfraquece (o que torna as importações
várias grandes potências continuam a aumentar seu uso de sistemas de mais caras e, em situações de crise, pode levar a uma grande
pagamento não em dólares ao longo do tempo, e uma porcentagem cres- desvalorização), seu banco central pode vender algumas de suas
cente da dívida federal dos EUA passa a ser detida pelo Federal Reserve e reservas em moeda estrangeira e comprar sua própria moeda.
pelo sistema bancário comercial dos EUA. Isso reduz a oferta e aumenta a demanda por sua própria moe-
da, fortalecendo-a. Quanto maiores as reservas em comparação
O novo acordo comercial RCEP entre muitas nações da Ásia-Pacíf- com a oferta monetária ou PIB do país, mais “munição” eles têm
ico, que cria o maior bloco comercial da história, poderia acelerar ainda para defender o valor de sua moeda, se necessário.
mais essa tendência, e novas tecnologias, incluindo blockchains e moedas
digitais emitidas pelo governo doméstico, abrem novas oportunidades • se a moeda de um país se fortalece muito (o que pode ser ruim
para novas redes de pagamento também. para países voltados para a exportação), seu banco central pode
imprimir unidades de sua própria moeda e usá-la para comprar
reservas em moeda estrangeira. Isso enfraquece sua moeda e
aumenta suas reservas para mais tarde.

72 73
Como o dólar é o axioma do sistema monetário global atual, os títulos Os EUA podem desvalorizar o dólar a qualquer momento que
do Tesouro são o maior componente das reservas cambiais da maioria dos quiser, imprimindo dólares para comprar ativos estrangeiros ou ouro,
países. Os próprios EUA não têm muitas reservas de moeda estrangeira. e construir reservas cambiais mais consideráveis ​​no processo, o que
Os mercados emergentes costumam ter as maiores reservas, uma vez que estaria em linha com outras nações semelhantes. Com um PIB nominal
são os que mais precisam delas, mas um punhado de nações desenvolvidas de mais de US$ 20 trilhões, para cada 5% das reservas cambiais como %
também tem enormes reservas, e quase todos os países têm mais reservas do PIB que desejam ter, os Estados Unidos precisariam imprimir e gastar
como porcentagem do PIB do que os Estados Unidos. mais de US$ 1 trilhão. Portanto, adicionar uma reserva de 10% do PIB
custaria mais de US$ 2 trilhões, especialmente à medida que o dólar se
Este gráfico mostra as reservas cambiais como porcentagem do PIB
para dezenas de países, na primavera deste ano (2020), quando o mon- desvaloriza no processo de construção dessa reserva.
tei. Em termos de magnitude comparativa para a maioria dos países, não Esse é um dos cenários finais de jogo em potencial, sobre como os
mudou muito desde então: Estados Unidos poderiam escolher encerrar abruptamente este sistema
conforme estruturado atualmente. Ele poderia decidir deixar de ser o
axioma do sistema monetário global e simplesmente passar a ser o maior
jogador individual no sistema, adquirindo reservas de moeda estrangeira,
desvalorizando sua moeda no processo, adotar várias mudanças fiscais
para promover on-shoring, e comece a promover, em vez de lutar, a
tendência de a energia e outras commodities serem vendidas em algumas
das principais moedas do mundo, em vez de apenas o dólar.
Ao fazer isso, ela sacrificaria parte de sua hegemonia internacional
em favor de mais competitividade industrial e maior vibração econômica
doméstica. O dólar ainda seria “uma” moeda de reserva, e ainda a maior
moeda individual, mas não seria “a” moeda de reserva como é agora.

Riscos para esta visão:


Grandes mudanças macro tendem a levar mais tempo para aconte-
cer do que a lógica sugere. Esse tipo de coisa não muda facilmente, então
Fonte dos dados: TradingEconomics.com (com informação de vários bancos prever uma mudança brusca para o sistema monetário global ao virar da
centrais) esquina sempre será improvável, mesmo se um dia, uma dessas coisas
Para os Estados Unidos, esse número inclui nossas reservas oficiais improváveis ​​acontecer.
de ouro aos preços do ouro deste ano, e o ouro de fato representa a grande Estou me concentrando em monitorar a opção lenta: o progresso
maioria das reservas dos EUA. contínuo ou retrocessos das exportações / importações fora do dólar
Para os países da zona do euro, o Banco Central Europeu também entre as grandes potências, particularmente em relação à energia e outras
tem outra camada de reservas, além das reservas de cada país no gráfico, commodities.
então os números no gráfico para os países da zona do euro subestimam
levemente o total de reservas diretas e indiretas em relação ao PIB do euro .
Eu prefiro apostas “ganha / ganha” para horizontes de longo prazo.

74 75
Ativos escassos, principalmente commodities industriais, são his-
toricamente baratos. Muitas ações de alta qualidade dentro e fora dos
Estados Unidos têm preços razoáveis. Alternativas como Bitcoin também
oferecem resultados assimétricos, mesmo com pequenas alocações.
Neste estágio do ciclo da dívida de longo prazo, a desvalorização
da moeda de algum tipo ou outro é provável na década de 2020, tanto
para o dólar quanto para outras moedas, portanto, ter exposição a ativos
escassos poderia ter um bom desempenho, independentemente do que
o sistema monetário global parece a qualquer momento com base nas
decisões dos formuladores de políticas. 6. Qual a aparência do próximo
sistema

Qual será a aparência do próximo sistema é uma questão em aberto.


Eu vi várias propostas.
Seja qual for a forma que assuma, será descentralizado no sentido de
que não estará completamente vinculado à moeda de nenhum país, já que
nenhum país é grande o suficiente para isso. Será baseado em ativos de
reserva neutros e / ou um modelo de reserva mais regional com base em
um punhado de moedas-chave do país, com uma variedade expandida de
canais de pagamento.

Preços de energia descentralizada


No cerne de todos esses sistemas estaria o fato de que o dólar não
seria mais a única moeda mundial para o preço da energia. O euro, o
yuan e talvez alguns outros, ou uma moeda de reserva neutra, poderiam
ser usados ​​em acordos comerciais para comprar petróleo, gás e várias
commodities, o que abre a perspectiva de mais comércio global e reservas
nessas moedas.

76 77
Mesmo sem uma grande mudança estrutural ou a adoção formal de “A influência do dólar nas condições financeiras globais
um novo sistema, isso já está emergindo gradualmente em toda a Eurásia, poderia diminuir de forma semelhante se uma arquitetu-
conforme mostrado anteriormente neste artigo, uma vez que outras gran- ra financeira se desenvolvesse em torno da nova [moeda
des moedas são cada vez mais usadas entre parceiros comerciais, inclu- digital] e deslocasse o domínio do dólar nos mercados de
sive para energia. E como eu descrevi anteriormente, os Estados Unidos, crédito. Ao reduzir a influência dos EUA no ciclo financeiro
se sentissem que o sistema atual não era mais de seu interesse, poderiam global, isso ajudaria a reduzir a volatilidade dos fluxos de
acelerar essa mudança a qualquer momento criando reservas de moeda capital para as economias de mercado emergentes.” - Mark
estrangeira e / ou apoiando outros sistemas de pagamento não em dólares Carney, ex-governador do BOE, 2019
para energia e commodities em vez de se opor a eles.
Nesse sentido, o mundo passa de uma “moeda de reserva global” Carney também mencionou a Libra em tons mais positivos do que
para um punhado de “moedas de reserva regionais”. Não requer nova muitos outros legisladores. O Facebook ganhou as manchetes no início
tecnologia ou novas unidades monetárias neutras para fazer isso, mas daquele ano com a proposta de Libra; uma moeda digital que consistiria
requer o desenvolvimento contínuo e o uso de sistemas de pagamento em uma cesta de várias moedas. A ideia do Libra é basicamente um Sta-
diferentes do dólar. Além disso, os bancos centrais podem manter mais blecoin Bancor emitido por uma grande corporação privada ao invés de
ouro como ativo de reserva (o que já vem fazendo nos últimos cinco uma entidade supra-governamental.
anos) neste cenário, uma vez que é uma moeda neutra.
Ironicamente, seria uma forma de descentralização centralizada.
Paralelamente a essa tendência, os países estão cada vez mais lan- Em outras palavras, é um acordo centralizado para criar e usar uma uni-
çando ou pesquisando versões digitais de suas próprias moedas fiduciá- dade de comércio que seja neutra e não vinculada à moeda de nenhum
rias, chamadas de moedas digitais do banco central “CBDCs” (Central país.
Bank Digital Currencies)
O problema com essa proposta de um Bancor digital global, como
Além dessa perspectiva básica, existem algumas camadas adicionais uma versão supra-governamental do Libra, em vez de uma versão privada,
que podem ser adicionadas na parte superior, descritas nas seções a seguir. é que requer muita cooperação internacional e acordo para usá-lo, algo
como um novo acordo de Bretton Woods. Portanto, embora seja certa-
mente possível, algo assim parece improvável em um sistema geopolítico
tão fraturado.
Digital Global Bancor
Vários formuladores de políticas ressuscitaram a ideia do Bancor
como uma moeda de reserva neutra para o comércio internacional, que Bancos regionais digitais
já existe de forma reduzida como o SDR do FMI.
Uma forma menos ambiciosa de uma ideia de Bancor digital global
Mark Carney, que era governador do Banco da Inglaterra na época, é um ou um conjunto de Bancors regionais.
ganhou as manchetes em 2019 quando disse no Simpósio de Jackson
Hole (nos Estados Unidos, bem na frente dos funcionários do Federal Em outras palavras, suponha que as 15 nações do novo acordo
Reserve) que o dólar é muito dominante, e que uma nova moeda digital comercial RCEP da Ásia-Pacífico concordem em criar e usar alguma
poderia ser usada para o comércio internacional para corrigir alguns dos moeda digital neutra entre si. Eles já estão em um bloco comercial, então
problemas no sistema existente. Vindo do chefe do banco central de um organizar algo assim é potencialmente mais realista do que organizar algo
dos aliados mais próximos dos Estados Unidos, isso era interessante. em uma escala global.

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E então talvez algumas outras nações como a Rússia estariam dis- Padrão-ouro
postas a aceitar o Bancor desse bloco comercial como pagamento pelo
petróleo, gás e outras commodities, como fazem com o euro. O maior Alguns investidores em ouro acreditam que os países retornarão a um
banco comercial da Rússia, o Sberbank, já experimentou a tecnologia sistema semelhante ao que existia antes de 1944, com os bancos centrais
blockchain e é um investidor ávido em empresas de tecnologia. armazenando grandes quantidades de ouro e garantindo suas moedas com
A tecnologia Blockchain cria novas opções para pagamentos inter- ele.
nacionais descentralizados, vinculados a uma moeda fiduciária específica Embora nenhum país esteja disposto a adotar o padrão ouro neste
ou cesta de moedas fiduciárias ponderadas por uma métrica específica. ponto (já que isso limita sua capacidade de incorrer em grandes déficits
Esta é a aplicação de software ao sistema bancário global relativamente e aumentar a oferta de moeda, e vai contra o incentivo atual de ter moe-
desatualizado; potencialmente um meio de comércio muito mais líquido. das fracas para serem competitivas no comércio global e gerar superávits
comerciais), alguns países poderiam recorrer a ele em tempos de crise para
Este ano, as maiores empresas de commodities do mundo, BHP,
estabilizar uma moeda durante um período de inflação, se algo quebrar.
Vale e Rio Tinto, todas concluíram as vendas em blockchain de minério
de ferro para empresas chinesas. Os bancos de Cingapura também No ano passado, o banco central holandês afirmou que o ouro
estiveram envolvidos nas transações. Cingapura também hospedou as poderia ser usado para colateralizar um sistema financeiro em colapso
contrapartes que testaram transações de blockchain com o Sberbank e começar de novo.
da Rússia. A tecnologia pode levar a todos os tipos de novos canais de
pagamento. “Ações, obrigações e outros valores mobiliários: há risco
para tudo. Se as coisas derem errado, os preços podem cair.
Referindo-se ao recente uso exponencial de stablecoins privados Mas, crise ou não, uma barra de ouro sempre tem valor.
existentes em trocas de criptografia, Nic Carter, o primeiro analista de Bancos centrais como o DNB têm tradicionalmente muito
criptografia da Fidelity, cofundador da empresa de análise de blockchain ouro em estoque. Afinal, o ouro é o ninho de ovos definitivo:
Coin Metrics, e que trabalha em um fundo de venture de blockchain, a âncora de confiança para o sistema financeiro. Se todo o
disse isso sobre a eficiência de stablecoin: sistema entrar em colapso, o suprimento de ouro fornecerá
garantia para recomeçar. O ouro dá confiança na solidez
“Por último, o capital existente em formato fiduciário to- do balanço do banco central. Isso dá uma sensação de segu-
kenizado tende a entrar na indústria de criptografia, mas rança.” - DNB, 2019, traduzido para o portugues
não a sair. Isso ocorre porque os trilhos criptográficos são
fundamentalmente mais convenientes, mais globalizados
e menos sobrecarregados do que os trilhos tradicionais de
pagamento e liquidação.” -Nic Carter De uma forma mais benigna, há alguns anos o banco central da Índia
começou a emitir SGB (títulos de ouro soberanos) em nome do governo
Adicionar governos à mistura para criar stablecoins regionais de da Índia. Esses são títulos do governo denominados em gramas de ouro.
várias moedas, ou seja, Bancors regionais para fins de comércio interna- Eles pagam taxas de juros mais baixas do que os títulos soberanos indianos
cional, poderia potencialmente fazer uso de tecnologia semelhante em normais, porque eliminam o risco cambial. O benefício do governo é que
uma escala maior. eles podem tomar empréstimos com um rendimento menor. O benefício
dos investidores é que eles obtêm um investimento mais conservador, vin-
culado aos preços do ouro em vez da moeda da Índia, e podem obter um
rendimento positivo na exposição ao ouro.

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Independentemente de as moedas voltarem a ser lastreadas em ouro Até agora, o Bitcoin desafiou a maioria das expectativas, crescendo
em sentido amplo, os bancos centrais podem reter ouro como um ativo de zero para um ativo digital de mais de $ 350 bilhões de valor de mer-
de reserva em qualquer tipo de sistema monetário global, como o sistema cado em pouco mais de uma década em um padrão de preço algorítmico
de preços de energia descentralizado mencionado acima ou ao lado de que rivaliza com a velocidade até mesmo das empresas de tecnologia mais
cestas de moedas digitais. bem-sucedidas:

Bitcoin como ativo de reserva


Rejeitado por muitos, há um grupo fervoroso de defensores da ideia
de que o efeito de rede do Bitcoin é muito forte para parar e que continu-
ará a se expandir exponencialmente até que consuma o sistema financeiro
global, ou seja, hiper-bitcoinização.
Como um projeto descentralizado e de código aberto, adotado por
muitos programadores e proponentes ao redor do mundo, muitas pessoas
inteligentes dedicaram suas carreiras ao Bitcoin. É difícil encontrar um
grupo de pessoas mais voraz do que os da comunidade Bitcoin e, cada vez
mais, com o tempo, o dinheiro de Wall Street também entra.

Fonte: Ycharts
Além disso, existem inúmeras empresas, como bolsas, credores, cus-
todiantes, soluções de segurança e muito mais que existem no ecossiste-
ma ao seu redor. Tecnologias adicionais envolveram o Bitcoin em outras
camadas de blockchain para uso como garantia em outros protocolos de
ativos digitais e aplicativos financeiros descentralizados também, ou para
aumentar o potencial de dimensionamento do Bitcoin.
Para usar uma analogia de Game of Thrones, quando os líderes dos
Sete Reinos brigam entre si para controlar o Trono de Ferro e, subsequen-
temente, governar toda Westeros, uma pequena, mas exponencialmente
crescente ameaça de desumanos Caminhantes Brancos silenciosamente
se constrói além da Parede fora dos castelos luxuosos, buscando suplantar
o sistema estabelecido e tornar discutíveis suas disputas humanas mes-
quinhas pelo trono.

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Bitcoin Night King Tutor Jones e Stanley Druckenmiller estão otimistas com isso. A Fidelity
começou a pesquisá-lo em 2014, começou a minerá-lo em 2015 e conti-
nua a desenvolver suas soluções de custódia e execução comercial de nível
institucional.
Existem também alguns usos emergentes baseados no estado para o
Bitcoin. Em 2019 e cada vez mais em 2020, o Irã se voltou para o Bitcoin
como uma ferramenta potencial para realizar o comércio internacional,
apesar de seu isolamento sancionado. O Bitcoin é verificável, compro-
vável, não requer confiança ou cooperação, exceto acordo entre as partes
para usá-lo, e funciona bem para grandes transações internacionais irre-
versíveis. O Irã pode subsidiar os mineradores iranianos de bitcoins com
recursos de eletricidade, comprar os bitcoins que eles geram e usar esses
bitcoins para o comércio internacional.
Mesmo que nunca alcance a escala que alguns proponentes do Bit-
coin acreditam que possa atingir, ele ainda pode ser usado como parte
de um sistema monetário global, seja como um ativo de reserva neutro
adicional, ou por pequenos países isolados que fazem uso de alguns de
seus recursos com relativamente pouca maneira de outras nações impe-
di-los de fazê-lo, como o Irã parece estar fazendo.
Em termos de ver para onde isso vai, só temos que ver se ele continua
adicionando zeros à sua capitalização de mercado ou se eventualmente
falha em ganhar valor de mercado durante um de seus ciclos de redução
pela metade e atinge um ponto de saturação em algum lugar.
Enquanto isso, a comunidade Bitcoin tem visões diferentes sobre o
que o ativo significa; não há uma visão unificada dentro da comunidade,
mas sim um conjunto de visões diferentes para o potencial de longo prazo
do protocolo. Alguns o veem como o dinheiro futuro do mundo, enquan-
to outros o veem como ouro digital, uma reserva de valor ou um banco
no ciberespaço que existirá ao lado de moedas emitidas por soberanos.
De volta ao presente, a adoção do Bitcoin como reserva de valor Por exemplo, Michael Saylor, o bilionário fundador e primeiro CEO
realmente se espalhou pelo mundo em um nicho. Os consumidores em de uma empresa pública em uma importante bolsa para investir fundos
muitos países em desenvolvimento com moeda fraca o usaram como corporativos em Bitcoin como seu ativo de reserva do tesouro (no valor
reserva de valor, e as pessoas em muitos países desenvolvidos o usaram de centenas de milhões de dólares), afirmou que não veja o Bitcoin como
como um ativo de crescimento especulativo. Ultimamente, empresas de uma moeda, mas sim como um banco de poupança digital:
capital aberto nas principais bolsas o compraram, o Square’s Cash App
permite que os usuários comprem, o Paypal permite que os usuários “Bitcoin não é uma moeda, nem é uma rede de pagamento.
comprem, e investidores de sucesso como Cathie Woods, Bill Miller, Paul É um banco no ciberespaço, administrado por software

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incorruptível, que oferece uma conta poupança global,
acessível, simples e segura para bilhões de pessoas que não
têm a opção ou o desejo de administrar seu próprio fundo
de hedge.
É por isso que o Bitcoin não deve ser uma moeda, nem
uma rede de pagamento. Os princípios de humildade e
harmonia ditam que devemos permitir que os parceiros de
tecnologia forneçam pagamentos e diferir aos governos em
questões de moeda. BTC é uma reserva de valor puramente
projetada.” - Michael Saylor, 12/11/2020 7. Resumindo os meus pensamentos

O mundo passa por períodos de ordem e desordem geopolítica, e


com isso, vem a construção e o consequente desgaste do sistema monetá-
rio global a cada vez.
Mais preocupante, a falha inerente de ter a moeda de reserva global,
em um tema que remonta ao economista Robert Triffin há mais de meio
século, é que, para manter a moeda de reserva global, o país deve fornecer
ao mundo sua moeda via déficits estruturais de uma forma ou de outra.
A princípio, os benefícios hegemônicos de ser a nação da moeda de
reserva superam os custos, mas como os benefícios permanecem relativa-
mente estáticos e os custos aumentam ao longo do tempo, eventualmente
os custos superam os benefícios e o sistema se torna insustentável.
Além disso, um sistema construído em torno do dólar americano
décadas atrás, quando os EUA representavam 35% do PIB global, não
funciona tão bem quando os EUA representam apenas, digamos, 20% do
PIB global. Não se trata de quão grande são os militares dos EUA para
manter seu status hegemônico; trata-se de saber se o sistema monetário
global, conforme estruturado atualmente, ainda é matematicamente viá-
vel e se ainda apóia os interesses dos Estados Unidos.
Simplificando, há uma entropia econômica natural para o status da
moeda de reserva global, porque as falhas inerentes ao sistema continuam
se agravando até atingirem um ponto de ruptura. O desafio, é claro, é

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identificar com antecedência onde está esse ponto de ruptura. Uma mu-
dança no sistema monetário global não significa necessariamente coisas
ruins para os Estados Unidos (na verdade, o Reino Unido teve um boom
econômico nos anos do pós-guerra depois de perder o status de moeda de
reserva), mas significa fazer uma troca entre os interesses internacionais e
os interesses domésticos, e realinhando o comércio conforme necessário
para obter o equilíbrio desejado.
Meu caso básico é que, ao longo dos próximos anos, a economia
global irá, muito provavelmente, encontrar o terceiro ciclo de queda do
dólar deste sistema atual de petrodólares. Nesse caso, ativos como ações
globais (de emergentes, por exemplo), imóveis residenciais de quali-
dade, metais preciosos, commodities industriais e alternativas como
Bitcoin provavelmente terão um bom desempenho.
A partir daí, o sistema monetário global está gradualmente se tor-
nando mais descentralizado, no sentido de que sistemas de pagamento
alternativos e liquidações de moeda alternada entre parceiros comerciais
estão crescendo em uso. Esta é de fato uma mudança mais estrutural em
direção a um novo sistema. Isso poderia acontecer lentamente, como já
está, ou poderia acelerar se os EUA também saíssem do sistema desgastado.
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