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Artaud e o Teatro Sagrado

A realização desta pesquisa foi possível graças à bolsa de estudos do


Programa de Demanda Social da CAPES, nos anos de 2002-2004, junto ao
PPGT/UDESC.
O desenvolvimento do projeto gráfico contou com o trabalho de aluna-
bolsita do Projeto de Extensão Universitária OCO, aprovado pelo edital
02/2020 – PROREC – UTFPR, com bolsa PIBEX – Fundação Araucária.
A impressão do livro contou com o apoio da Direção Geral do Campus
Curitiba, da UTFPR.
Esta publicação é parte do projeto de extensão institucional TUT – Teatro
da UTFPR.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Universidade Tecnológica


Federal do Paraná - UTFPR.

Contato:
Ismael Scheffler
Universidade Tecnológica Federal do Paraná – Campus Curitiba
Av. Sete de Setembro, 3165 - Rebouças CEP 80.230-901 – Curitiba – PR
E-mail: scheffler@utfpr.edu.br
Site: https://tut.ct.utfpr.edu.br/
2021

Revisão: Simone Petry


Projeto gráfico: Rafaela Angelon
Artaud e o Teatro Sagrado

Ismael Scheffler
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

S316a Scheffler, Ismael


Artaud e o teatro sagrado / Ismael Scheffler. -- 1. ed.--
Curitiba, PR : Arte Final, 2021.
136 p. ; 21 cm.

ISBN: 978-65-993780-5-8
Inclui bibliografia
Originalmente apresentado como dissertação de mestrado na
Universidade do Estado de Santa Catarina, 2004

1. Teatro francês - Crítica e interpretação. 2. Artaud, Antonin,


1896-1948 - Crítica e interpretação. 3. O Sagrado - Teatro - Crítica
e interpretação. 4. Teatro francês - Filosofia. 5. Durand, Gilbert,
1921-2012 - Crítica e interpretação. 6. Eliade, Mircea, 1907-1986 -
Crítica e interpretação. I. Título.

CDD: Ed. 23 -- 842.42

Biblioteca Central da UTFPR, Câmpus Curitiba


Bibliotecário: Adriano Lopes CRB-9/1429
Para Aline.
Sumário

Notas do autor 9
Abertura 11
1. Sobre termos, conceitos e por onde vamos 15
2. Escritos de Artaud 21
3. O herói mitificado, o santo martirizado 23
4. A alma arraigada no universo simbólico 27
5. Imagens indestrutíveis que falem diretamente ao espírito 35
6. Um teatro político 61
7. Mito no teatro de Artaud 67
8. Caos 75
9. Rito e teatro 79
10. Espaço sagrado 93
11. Teatro, metamorfose e mutação: um exercício de devaneio 105
Considerações finais 117
Referências 121
Mapeamento bibliográfico 127
Notas 133
Sobre o autor 135
Notas do autor

Este livro apresenta uma parte de minha pesquisa no mestrado,


Características do sagrado nas propostas teatrais de Antonin Artaud
e Jerzy Grotowski, realizada junto ao Programa de Pós-Graduação
em Teatro, da Universidade do Estado de Santa Catarina – Udesc,
sob a orientação do professor Dr. Antônio Carlos Vargas Sant’anna,
defendida em abril de 2004.
Por isso, agradeço especialmente a meu orientador bem
como à banca composta pela professora Dra. Ana Maria Bulhões
de Carvalho Edelweiss (Unirio) e pelo professor Dr. André Luiz
Antunes Netto Carreira (Udesc).
Nas primeiras páginas da dissertação, expresso outros vários
agradecimentos, mas gostaria de ressaltar aqui dois teólogos com
quem tive importantes interlocuções na época da pesquisa, ambos,
naquele momento, estavam em doutoramento, lidando com temas
ligados à cultura, ao cinema e à liturgia: Joe Marçal Gonçalves dos
Santos e Júlio César Adam.
Contar com olhares externos após a escrita é sempre muito
enriquecedor. Agradeço ao biólogo Guilherme Schühli, por sua
leitura do texto Teatro, metamorfose e mutação e pelas questões
provocativas que me trouxe. Também às contribuições de revisão, em
diferentes momentos, de Marcos Davi e Tati Maranhão, e do olhar
sensível de Simone Petry para esta versão em livro.
Importante lembrar que este livro pôde ser realizado graças
ao apoio constante dado ao TUT pela diretora-geral do campus
Curitiba, professora Dra. Rossana Aparecida Finau.
Vários dos textos aqui apresentados já tiveram publicações em
periódicos, recebendo para esta versão uma nova revisão. O capítulo

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Ismael Scheffler

O herói mitificado, o santo martirizado foi publicado nos Anais do


V Fórum de Pesquisa Científica em Arte, da Escola de Música e
Belas Artes do Paraná (Scheffler, 2006a). Imagens indestrutíveis que
falem diretamente ao espírito teve uma versão mais curta publicada
na Revista Folhetim com o título As “imagens indestrutíveis” do
teatro sagrado de Artaud (Scheffler, 2006b). Um teatro político foi
publicado na Revista Espaço Acadêmico com o título O teatro político
de Artaud, mas não está mais disponível na internet (Scheffler, 2003).
O capítulo Rito foi publicado na Revista Urdimento com o título
Considerações sobre rito e teatro em Artaud (Scheffler, 2010). Espaço
sagrado foi publicado na Revista Científica/FAP com o título Um
“espaço-árvore” no teatro de Artaud (Scheffler, 2008a).
Por fim, as citações de livros escritos em línguas estrangeiras
foram traduzidas pelo autor para esta publicação.

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Abertura

As motivações para esta publicação, neste momento, são muitas. Há


vários anos, na realidade desde a escritura deste texto, tenho o desejo
de disponibilizar as reflexões de minha pesquisa de mestrado como
livro, assim como fazem inúmeros pesquisadores, tornando a pesquisa
mais difundida e acessível ao público em geral – afinal, toda pesquisa
realizada nas universidades precisa ser mais ampla e facilmente
distribuída ao público em geral. Já houve iniciativas anteriores com
este fim, mas elas sucumbiram ao fluxo de novos trabalhos docentes e
artísticos bem como a novas pesquisas que acabaram recebendo mais
da minha atenção.
Um desses novos projetos culminou com a publicação do
livro oco: memórias e olhares (Arte Final, 2021). Livro em que
desempenhei também o papel de organizador e diretor editorial,
e que trata sobre o processo de criação do espetáculo teatral oco,
produzido pelo tut – projeto de extensão institucional de teatro
que coordeno junto à Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(campus Curitiba). Esse processo se desenvolveu durante o ano de
2019, quando nos empenhamos na produção de um espetáculo
universitário que teve excelente repercussão em sua temporada.
Como parte do projeto, desenvolvemos esse livro no qual os diversos
agentes criativos e alguns espectadores compartilham suas escolhas
artísticas e suas experiências criativas e humanas. Em um dos meus
textos, Entendendo contextos anteriores a oco, aponto algumas
contaminações de Antonin Artaud sobre minha ação criativa como
encenador-dramaturgo do espetáculo. Em alguns eventos abertos,
em que nos encontramos com pessoas interessadas em debater sobre
teatro e sobre o processo criativo de oco, surgiu recorrentemente um

11
Ismael Scheffler

interesse pelas ideias de Artaud. Com isto, o desejo de disponibilizar


esta pesquisa, que é um dos fundamentos do espetáculo oco, ganhou
força e encontra, finalmente, seu espaço em forma de livro.
Influências artaudianas já marcaram vários espetáculos por
mim dirigidos desde a realização deste estudo, aspectos que foram
instigantes e repercutiram em minha produção artística. Com o
tut, por exemplo, podemos mencionar o espetáculo de 2013, Babel,
que também escrevi, e, de 2008, a produção do espetáculo Ubu Rei,
texto de Alfred Jarry. A influência de Artaud, sem dúvidas, esteve
também no espetáculo de 2006, O ovo, também de minha autoria,
realizado com a Cia. do Teatro Submerso. Duas publicações relativas
a esses espetáculos talvez possam interessar aos leitores e leitoras deste
livro: Babel: o processo de criação do espetáculo teatral [catálogo da
exposição] (Scheffler, 2013) e o artigo A cena se fez ovo e habitou entre
nós (Scheffler, 2008b).
Passeando por algumas das pesquisas realizadas no Brasil,
desde a defesa de meu mestrado – ver no final deste livro o item
Mapeamento bibliográfico: dissertações e teses brasileiras sobre Antonin
Artaud –, percebo ainda ineditismo e contribuições que minha
pesquisa pode trazer diante de tão variada bibliografia que toma
Artaud como tema. Vencemos aqui, com este livro, o não simples
processo de uma pesquisa acadêmica (e de publicação de artigos
dispersos) tornar-se livro para ganhar um novo espaço de distribuição
e acesso.
É preciso lembrar, também, o momento em que este livro
é lançado. Vivemos dias de morte, de desintegração de corpos, de
crueldades, de peste, com a pandemia da Covid-19 que assola o
mundo, com pessoas isoladas em seus lares e com o teatro perguntando
sobre seu lugar entre o mundo virtual e o real. As palavras de Artaud
são as mesmas dispostas no papel e, embora alguns textos sejam quase
centenários, ainda soam como novos em nosso país. Mas, mesmo
o Artaud já lido, ao ser relido, hoje, é perpassado pelas lentes da
pandemia que cobrem nossos olhos. Pensar atualmente sobre a peste
ou sobre a ação do teatro nos corpos dos espectadores tem outro

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Artaud e o Teatro Sagrado

sentido para nós. Talvez as reflexões deste livro possam nos ajudar
a pensar sobre nossa existência, e sobre a sociedade e a arte nesta
transição pela qual o mundo e o teatro passam.
Por fim, é importante referir a outra metade de minha
dissertação, que trata sobre o encenador polonês Jerzy Grotowski.
Desta, publiquei o artigo Elos de uma mesma cadeia: diferentes
períodos no transcurso de Jerzy Grotowski (2005), nos Anais do III
Fórum de Pesquisa Científica em Arte da Escola de Música e Belas
Artes do Paraná – o texto esteve disponibilizado por vários anos na
Revista Espaço Acadêmico, indisponível atualmente, servindo de
referência na página de Grotowski no site Wikipédia/Português.
Publiquei também o capítulo “O espectador nas encenações de
Jerzy Grotowski” (2009), no livro A interatividade, o controle da
cena e o público como agente compositor, organizado por Margarida
Gandara Rauen. A dissertação integral, Características do sagrado
nas propostas teatrais de Antonin Artaud e Jerzy Grotowski (2004),
encontra-se disponível em pdf na Biblioteca Universitária da Udesc, e
nela pode ser encontrado um desdobramento e um aprofundamento
de conceitos da Hermenêutica Simbólica correlacionados ao teatro
grotowskiano.

Nos capítulos que seguem, desenvolvo uma leitura sobre as propostas


do teatrista francês Antonin Artaud (1896-1948) correlacionando-a
aos conceitos de sagrado, símbolo, mito e rito, conforme
compreendidos por alguns estudiosos que integraram o Círculo de
Eranos, especialmente Mircea Eliade, cientista da religião, de origem
romena, e o antropólogo francês Gilbert Durand. A partir desses
conceitos-chave, estabeleço um olhar para questões sobre o espaço e
o tempo, a política, entre outros temas.
Apresento uma leitura de alguns conceitos de Antonin
Artaud articulados com sua compreensão de teatro e de vida (uma
fusão indissociável) através da epistemologia da Hermenêutica
Simbólica, buscando contribuir com um entendimento de aspectos
relacionados a ideia de teatro sagrado.

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Ismael Scheffler

Isto implica, também, trazer à pauta a questão de certa


mitificação com que Antonin Artaud por vezes foi estudado ou é
ainda tratado, envolvendo-o em uma aura enaltecedora que acaba
impedindo, às vezes, uma abordagem mais crítica de suas propostas.
A questão mítica extrapola as concepções teatrais artaudianas e
impregna tanto a descrição de sua biografia feita por pesquisadores,
quanto a maneira com que eles lidam com escritos deste autor.
Este estudo é uma tentativa de compreender, antes de
explicar, pensamentos sobre o teatro e suas possibilidades. Passados
vários anos da conclusão do meu mestrado, tenho plena certeza
de que a epistemologia aqui explorada me trouxe benefícios e se
mostrou adequada como lastro para minha imersão em um universo
tão subjetivo como o de Antonin Artaud, não apenas me auxiliando
a compreendê-lo conceitualmente, mas também me influenciando
na prática, como encenador, ator e professor.
Sempre mantive o alerta sugerido por Peter Brook (1970),
“Artaud explicado é Artaud traído: traído porque é sempre apenas
uma porção de seu pensamento que é explorada” (p. 53), e me
resignei a este ponto: compreender uma porção, visto a totalidade de
seu universo interior ser bastante complexa.

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1.
Sobre termos, conceitos e
por onde vamos

A expressão teatro sagrado pode ser empregada para fazer referência a


diferentes contextos em que o teatro esteve associado à religiosidade,
seja em celebrações dionisíacas na Grécia Antiga, ou medievais
cristãs, ou mesmo em formas espetaculares orientais ou ritualísticas.
Essa expressão, no entanto, quando empregada por Antonin Artaud,
em 1936, nos textos Um atletismo afetivo e O teatro de Séraphin, que
integram seu livro O teatro e seu duplo, introduziu no vocabulário
teatral outra referência na relação do teatro com a dimensão
sagrado-simbólica, que, embora dotada de estruturas ritualísticas e
significativamente influenciada pelo teatro oriental, distingue-se dela
e ganha características próprias.
Christopher Innes, autor do livro Holy Theatre Ritual and
the Avant Garde (publicado em 1984, pela Cambridge University
Press, e traduzido ao espanhol em 1992 como El teatro sagrado: el
ritual y la vanguardia, ainda inédito em português), desenvolve um
estudo em que defende o teatro sagrado como uma das vanguardas
artísticas europeias do século XX. As características de vanguarda, ele
afirma, estão sujeitas a dois elementos que levam ao reconhecimento
de características comuns: propostas artísticas e propostas políticas
de renovação.
Innes agrupa por afinidades filosóficas diferentes estilos
teatrais e temas, reconhecendo uma grande diversidade e até mesmo
antagonismos dentre o recorte de seu estudo, mas apontando, em
linhas gerais, aspectos semelhantes em aspirações. Seu objetivo
consiste em analisar princípios gerais de vários projetos teatrais,

15
Ismael Scheffler

estabelecendo uma pauta para que se possa considerar ainda outras


pesquisas não mencionadas por ele.
Em seu livro, o autor destaca que alguns fundamentos
que compõem o teatro sagrado já estão presentes em movimentos
artísticos antecedentes. Desde o romantismo, passando pelo
simbolismo, pelo expressionismo e pelo surrealismo, o desejo
progressivo pela abstração, pelo simbólico, por elementos interiores e
noturnos, resultando nesta “aspiração à transcendência, ao espiritual
em seu sentido mais vasto.” (Innes, 1992, p. 12).
Esse movimento artístico possui, segundo Innes, um precursor:
Alfred Jarry. Ele faz esse apontamento considerando as diversas
montagens da peça Ubu Rei, de Jarry – como as de Jean-Louis Barrault,
Peter Brook, Joe Chaikin e dos Beck –, mas também reconhece essa
influência pelo fato de vários teatros levarem o nome do dramaturgo,
como o teatro fundado, em 1926, por Artaud e Roger Vitrac.
Innes destaca, como referência máxima do teatro sagrado,
os escritos de Antonin Artaud e o trabalho de encenadores como
Jean-Louis Barrault, Peter Brook, Jerzy Grotowski, Eugenio
Barba, Richard Schechner, Joe Chaikin, o grupo Living Theatre,
incluindo também dramaturgos como Jean Genet, Eugène Ionesco,
Samuel Beckett, entre outros. Em comum, Innes aponta o interesse
predominante no irracional e no primitivo com “duas facetas básicas
e complementares: a exploração de estados oníricos ou os níveis
instintivo e subconsciente da psiquê, e um enfoque quase religioso
no mito e na magia, a experimentação com pautas rituais e ritualistas
de atuação.” (Innes, 1992, p. 11). O autor também chama a atenção
para o interesse em modelos dramáticos arcaicos e a presença “de obras
imagéticas e quase religiosas ou psicodramas: obras que representam
arquétipos ou sonhos e empregam estruturas ritualísticas, substituem
a comunicação verbal por símbolos visuais e pautas de som, ou
dependem de uma extrema participação do público numa tentativa
de despertar respostas subliminares, baseando-se no subconsciente”
(Innes, 1992, p. 13-14), rechaçando a linguagem e a lógica verbal
como elemento fundamental do teatro.

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Artaud e o Teatro Sagrado

Este “retornar às raízes do homem” (Innes, 1992, p. 11)


conduz à investigação do primitivo, com um olhar mais antropológico
sobre o fazer teatral e sobre diversas manifestações cênicas que
propõem uma percepção diferente da realidade imediata.
As aspirações heroicas de transformação artística e social,
presentes em todos os movimentos das vanguardas europeias do
século XX, também aparecem nesse agrupamento. Innes afirma
que esses artistas buscavam meios de descobrir as fontes do instinto
poético, tendo objetivos politicamente radicais.
Pode-se reconhecer, frequentemente, a existência de certa
hostilidade contra a civilização contemporânea, um desprezo à
organização social e às convenções artísticas, aos valores estéticos, aos
ideais materialistas, à estrutura e lógica burguesas. Innes (1992, p.
18) defende que existe uma concepção errônea de que a proposta seja
apolítica. Ele ressalta que a busca pelo primitivismo não se configura
por um escapismo. Tampouco o valor atribuído ao subconsciente é
uma fuga da realidade. O teatro ritualístico e mítico não está num
polo oposto ao do teatro político. A insistência numa revolução
espiritual justamente pretende “uma mudança fundamental da
natureza humana como requisito para a alteração social.” (Innes,
1992, p. 18). O homem necessita ser sacudido para uma visão nova,
despertado para a vida. Mudando-se o indivíduo se acredita na
possibilidade de transformação do social.
Para se compreender o significado de sagrado é preciso tomar
o termo sob uma perspectiva diferente da cristã contemporânea. O
cientista da religião Mircea Eliade (2001) já destacou que “para o
mundo moderno, a religião como forma de vida e concepção do mundo
confunde-se com o cristianismo” (p. 133), alertando para a necessidade
de se compreender o termo sagrado em um sentido mais amplo.
Artaud tinha uma compreensão de que a dimensão
sagrada é muito mais ampla do que a associação imediata que
o Ocidente faz com o cristianismo. Foi Artaud mesmo quem
definiu sua concepção, em 1932: “eu tenho do teatro uma ideia
religiosa e metafísica, porém no sentido de uma ação mágica, real,

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Ismael Scheffler

absolutamente efetiva. E é preciso entender que tomo as palavras


‘religioso’ e ‘metafísico’ em um sentido que não tem nada a ver
com a religião ou com a metafísica, da maneira que são entendidas
habitualmente.” (Artaud, 1995 p. 79).
Esse aspecto artaudiano também é destacado pelo
pesquisador brasileiro Cassiano Sydow Quilici:

[...] nos textos específicos sobre a cultura mexicana, Artaud


transita com grande liberdade por uma pluralidade de
referências tradicionais, que abrangem diferentes épocas e
regiões do mundo. Ele ancora-se na convicção de que existiria
uma unidade profunda, subjacente a elas, pelo menos no que
diz respeito aos seus princípios essenciais: [...] “Quem não vê
que todos esses esoterismos são um só, e querem em espírito dizer
a mesma coisa?”1 (Quilici, 2003, p. 62).

Innes (1992) afirma que “ao mesmo tempo, e junto com


o materialismo e a política radical, o cristianismo é frequentemente
rechaçado como órgão oficial do establishment social, sendo que a
‘santidade’ deste teatro é irreconhecível a partir das normas religiosas
convencionais, ou melhor, onde mais próximos são os nexos com
a religião, resulta sacrílego.” (p. 12). O sagrado, como apresentado
por Innes, diz respeito a um sentido mais amplo e abrangente, mais
antropológico.
Para uma melhor compreensão dos conceitos empregados
por essa proposta teatral, parece-me pertinente estabelecer uma
correlação com a Hermenêutica Simbólica, uma vez que ambas não
apenas possuem termos comuns, mas, principalmente, os utilizam
num mesmo viés de entendimento. É importante ressaltar que termos
como “símbolo” e “mito”, por exemplo, são usualmente empregados
com diferentes significações, algumas vezes até mesmo contraditórias
entre si, sendo, portanto, importante estar atento.
É na primeira metade do século XX que o universo simbólico
começa a ser estudado no Ocidente, após vários séculos de rejeição.

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Artaud e o Teatro Sagrado

Gilbert Durand – que se denomina um discípulo continuador


de Gaston Bachelard, e que integrou o Círculo de Eranos de 1964
até 1988, quando o grupo acabou, sendo apontado como um dos
principais nomes da última fase –, em A imaginação simbólica (1988),
identifica três momentos na história ocidental que rejeitaram o
símbolo como compreendido pela Hermenêutica Simbólica: o
cartesianismo e o cientificismo, o conceptualismo aristotélico e o
dogmatismo religioso. Ele identifica a oposição gradativa ao símbolo
em um período correspondente aos últimos seis ou sete séculos.
O estudioso afirma que à presença epifânica da transcendência, as
igrejas opuseram dogmas e clericalismos; ao pensamento indireto, os
pragmatismos opuseram o pensamento direto, o concepto (diferente
de percepto); e à imaginação abrangente (taxada de “senhora dos
erros” e de falsidade) a ciência construiu as correntes racionalistas da
semiologia, apoiada na explicação positivista. Para Durand (1988),
“esses famosos três estados sucessivos do triunfo da explicação
positivista são os três estados da extinção do símbolo” (p. 24), sendo
o progresso da consciência um aniquilamento do simbólico.
Conforme Durand, essa tradição provocou descrença e
redução na consideração do símbolo, que, por sua vez, foi sendo
resgatado ao longo do século XX. A Hermenêutica Simbólica,
campo de estudos da antropologia filosófica, apresentou importante
contribuições neste sentido.
O Círculo de Eranos, grupo que congregou pesquisadores
de diversas áreas (antropólogos, psicólogos, fenomenólogos,
mitólogos, orientalistas, entre outros), provindos de diversos países,
especialmente europeus, articulava-se em Ascona, na Suíça, numa
composição interdisciplinar de caráter filosófico-científico.
Cada pesquisador trabalhava a partir de uma perspectiva
específica sobre questões comuns previamente propostas, todos
seguindo correntes paralelas de investigação. Esse grupo foi composto
por várias gerações de estudiosos que, de 1933 a 1988, realizaram
conferências anuais, publicando 57 volumes sobre esses encontros:
os Eranos-Jahrbücher (anuários).

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Ismael Scheffler

Especialmente na primeira fase, o grupo funcionou


fortemente influenciado pelos pensamentos de Carl Gustav Jung.
Na origem do Círculo de Eranos, encontram-se três personalidades
que conferiram uma tridimensionalidade cultural aos estudos
da Hermenêutica Simbólica, o que nos ajuda a compreender os
fundamentos teóricos das pesquisas do grupo: a) a fundadora, Olga
Fröbe-Kapteyn, a “grande mãe”, que, instigada por estudos místicos
orientais, pretendia estabelecer um diálogo entre a cultura ocidental
e a cultura oriental; b) Rudolf Otto, autor do livro O sagrado:
aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional,
de 1917, considerado o padrinho do grupo, nunca participou das
conferências mas o influenciou, não apenas batizando-o como Eranos
(palavra grega que significa “comida em comum”), como também
emprestando a ele seu método hermenêutico-compreensivo, que
se baseia na interpretação empática da essência vivida – enquanto
fenomenologista da religião, deu importante contribuição para a
elaboração do Círculo; c) Carl G. Jung, considerado o inspirador
do grupo, contrapunha seus estudos de psicologia arquetipal à
fenomenologia de Rudolf Otto, trazendo assim a hermenêutica das
profundidades (Ortiz-Osés, 1994).
É interessante observar que, no mesmo período em que o
grupo se articulava, nos idos da década de 1930, Antonin Artaud, na
França, escrevia seus manifestos e suas propostas teatrais. Tanto os
integrantes do Eranos quanto Artaud foram atraídos pela psicologia
e pelas manifestações culturais do Oriente, o que os levou a elaborar
pensamentos extremamente significativos para a cultura ocidental.
Conforme o pesquisador espanhol Andrés Ortiz-Osés
(1994), Eranos buscava uma aproximação “cultural” com o Oriente,
considerando-o como um outro complementar. Compreendendo
que a razão não possibilita um entendimento integral do ser
humano, Eranos se propunha a compensar a unilateralidade da razão,
confrontando-a com a questão simbólica, na tentativa de confluir o
mito e a razão para chegar a uma visão intermediária e complementar.
A questão do sentido ocupava lugar central em Eranos: o sentido da

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Artaud e o Teatro Sagrado

vida e da existência, a morte, a pergunta pelo divino, a razão em suas


capacidades e limites.
Diante de várias afinidades entre os conceitos da
Hermenêutica Simbólica e os conceitos desenvolvidos por Artaud,
proponho, na sequência, um confronto entre esses pensamentos,
buscando ampliar a compreensão sobre o teatro.

21
22
2.
Escritos de Artaud

Antonin Artaud escreveu muito ao longo de toda sua vida. Aliás, foi
seu desejo de fazer carreira literária que o levou a Paris, em 1920, após
sucessivas passagens por diversos sanatórios e estações de repouso.
Martin Esslin (1978), que publicou uma biografia e cronologia
bastante detalhada, refere que, em 1915, Artaud teve uma crise
de depressão que o levou ao primeiro internamento, tendo ele 18
anos. Em 1916, convocado pelo serviço militar, foi dispensado nove
meses depois por problemas de saúde. Artaud passou por sucessivos
internamentos entre 1916 e 1920, quando chegou a Paris.
Na capital francesa, Artaud iniciou sua carreira como ator de
teatro e cinema, tornando-se o teatro o centro de seu interesse. Seus
escritos são sua principal produção. São manifestos, conferências,
poesias, cartas, projetos de encenação, críticas, reflexões, cadernos,
relatos etc. Com relação ao teatro, nunca chegou a realizar totalmente
aquilo que propunha, fator que contribui para a formação de um
mito artaudiano, uma vez que instiga e atrai, suscitando muitas
questões de debates.
Os textos de Artaud não foram planejados por ele como
um todo linear, de forma a apresentar ordenadamente suas ideias e
conceitos. Segundo o pesquisador mexicano Felipe Reyes Palacios
(1991), em seu livro Artaud y Grotowski: ¿el teatro dionisiaco de
nuestro tiempo, “Artaud não é um teórico sistemático, e por isso
maneja livremente toda sorte de influências.” (p. 56-57). Seus escritos
são a produção de uma vida, e, embora Artaud tivesse interesse na
publicação em jornais, revistas e mesmo livros, em poucas ocasiões
pôde organizá-los como uma unidade para esse fim – exceção, por

23
Ismael Scheffler

exemplo, de O teatro e seu duplo, publicado pela primeira vez em 1938.


Nesse livro, o mais conhecido, reuniu diversos textos, alguns antes
publicados e outros ainda inéditos, estabelecendo uma organização
dos textos e conceitos para o leitor. Vários outros textos, aos quais
temos acesso, sequer foram escritos para o público em geral, como as
suas cartas, ou mesmo os Cadernos de Rodez, que escreveu em meio
a delírios enquanto interno em um sanatório na cidade de Rodez.
Artaud escrevia a partir de si. Em 1923, tentou publicar
alguns de seus poemas na Nouvelle Revue Française (nrf), a revista
mais influente sobre a elite intelectual francesa, mas eles foram
rejeitados pelo diretor Jacques Rivière. A partir daí, Artaud e Rivière
trocaram diversas cartas nas quais, entre outras coisas, discutiram
sobre a luta que era, para Artaud, expressar-se:

Sofro de uma terrível doença do espírito. Meu pensamento


foge-me de todas as maneiras possíveis, do simples fato
do pensamento em si mesmo ao fato externo de sua
materialização em palavras. As palavras, a conformação das
frases, o fio interior dos pensamentos, as simples reações
da mente – estou sempre em busca de meu ser intelectual.
Quando, por isso, ocorre apoderar-me de uma forma,
embora imperfeita, anoto-a, receoso de vir a perder toda a
ideia. (Artaud2 apud Esslin, 1978, p. 25).

Essas cartas geraram vários frutos: a publicação dessa discussão


na nrf de setembro de 1924, por sugestão do próprio Rivière, e
posteriormente em livro intitulado Correspondência com Jacques
Rivière (publicado em tradução no Brasil pela Editora Moinhos, em
2020). A partir daí, o nome de Artaud se tornou conhecido no meio
intelectual, e ele passou também a colaborar na nrf.
Martin Esslin (1978) afirma que Artaud

[...] encontrava finalmente um assunto para escrever:


Seu caso pessoal, sua incapacidade como paradigma do
problema da própria arte. A rejeição de Rivière provocara-o
ao exame de seu próprio problema e à compreensão de que

24
Artaud e o Teatro Sagrado

tal contrariedade era de importância e significações gerais.


[...] A correspondência com Rivière revelou Artaud a si
mesmo: pela primeira vez deparava com um tema próprio.
[...] O novo tema encontrado era ele próprio, seu caso
particular. (p. 26-27).

Algumas semanas após essa publicação, Artaud ingressou


no Movimento Surrealista, que, segundo Esslin (1978), pode ser
considerado “como consequência direta e lógica de sua rejeição da
noção convencional de ‘literatura’.” (p. 27).
Artaud escreveu sobre teatro, cinema, poesia, suicídio,
psiquiatria, cultura e sociedade, política e sobre uma diversidade de
temas. Partiu de suas experiências, de suas dores, de sua falta de clareza
e lucidez para questionar inúmeras estruturas e funcionamentos
da sociedade. O teatro é apenas um destes elementos, de grande
destaque.
No que tange ao teatro, ele desenvolveu uma grande reflexão,
elaborando não uma técnica ou metodologia para o ator ou para o
encenador, mas princípios e críticas que puseram em xeque o teatro de
sua época. Podemos estimar algumas fases: seus primeiros escritos, os
da fase surrealista (1924-1926), os do período do Teatro Jarry (1926),
os do Teatro da Crueldade (1932-1933), e mesmo seus escritos sobre
o México (1936) ou aqueles do internamento e pós-internamento
(últimos anos de sua vida), por exemplo. Mas independentemente
da tentativa de estabelecer uma divisão de fases da vida de Artaud
e procurar diferentes enfoques, existe no universo dos escritos deste
autor certa unicidade que se desdobra e se remaneja, uma visão da
vida e do teatro (se é que poderiam ser mencionados como elementos
separados) que a perpassa, acompanhando Artaud por sua vida.
Certas questões que, muitas vezes, não ficaram exatamente claras
para o próprio Artaud, quer por incapacidade ou por falta de outros
referenciais que o ajudassem a esclarecer aquilo que ele vislumbrava,
ele apenas sentia, cria, intuía, imaginava.

25
26
3.
O herói mitificado, o santo martirizado

Parece ser impossível aprofundar uma leitura sobre Artaud sem


identificar um forte teor de mitificação sobre ele. “‘Profeta’, ‘mago’,
‘visionário’, ‘xamã’, ‘herói trágico’: estes são termos recorrentes para
descrevê-lo.” (Innes, 1992, p. 71). Até mesmo autores que indicam
a existência dessa tendência, como Alain Virmaux (2000), incorrem
em uma idolatria ao homem Artaud (o que se pode perceber no
tom da argumentação), o qual, não se pode realmente negar, passou
por pesarosos sofrimentos físicos, psicológicos, afetivos, sociais e
econômicos.
Artaud, ainda em vida, foi exaltado, atribuindo-se a sua
vida e seus escritos uma sacralização: ou se o adora, ou se blasfema
contra ele. Para Martin Esslin (1978), “Antonin Artaud foi um ator
e um profeta, imagem na tela tremeluzente e santo martirizado”
(p. 14, grifo do autor). O pesquisador ainda acrescenta: “qualquer
tentativa de apresentar ou compreender Artaud deve ter como ponto
de partida a sua vida. Ele é o verdadeiro herói existencial: o que fez,
o que lhe aconteceu, o que sofreu e o que foi são infinitamente mais
importantes do que tudo quanto tenha dito ou escrito.” (Esslin,
1978, p. 14, grifo do autor). Aqui, ao que me parece, não se trata
de reconhecer o valor de uma vida humana, considerando-a mais
importante do que sua produção, mas de sobressaltar a existência
de Artaud a um patamar superior, maior do que seria concedido a
uma pessoa comum. Para Esslin (1978), “Artaud, encarnação de
uma multidão de ideias e experiências, é um dos heróis, arquétipos,
míticos – ou vítimas sacrificiais – de nossa época.” (p. 16).
Alain Virmaux (2000) aponta alguns aspectos que
contribuíram para esse processo de mitificação: “Logo após a morte de

27
Ismael Scheffler

Artaud, ocorreu um estranho fenômeno: o desencadear de homenagens,


polêmicas, folhetos, comitês, discussões e processos” (p. 3). Mas, na
realidade, como já ressaltei, Artaud foi celebrado ainda em vida.
Em 1944, O teatro e seu duplo teve sua segunda edição e, após a
libertação de Paris da ocupação alemã na II Guerra, Artaud passou
a circular novamente entre os literários, sendo descoberto por “uma
geração nova para a qual ele se havia tornado uma figura legendária
e martirizada.” (Esslin, 1978, p. 55). A saída dele do internamento
no sanatório da cidade de Rodez, em 1946, aconteceu graças à
intervenção de amigos e artistas, que se mobilizaram e arrecadaram
fundos para seu sustento mediante um leilão de obras artísticas
envolvendo a elite social e intelectual que também se reunia em
torno do autor. A realização de leituras públicas de sua obra, os
inúmeros convites para conferências, a publicação imediata de seus
textos recém escritos, até o recebimento de um dos mais importantes
prêmios literários – Artaud recebeu, em 1947, o prêmio Sainte-
Beuve, na época o principal prêmio literário da França, pelo texto
Van Gogh: o suicidado pela sociedade –, indicam, conforme Cláudio
Willer (1986), a vivência de “uma espécie de consagração.” (p. 131).
Ainda em vida, já havia certo culto em torno de sua figura e de suas
palavras, fato que, após sua morte, em 1948, só tendeu a crescer.
Quando lemos relatos sobre a vida de Artaud, quer numa
sequência biográfica progressiva, como fez Martin Esslin, ou em
episódios eventuais, como fizeram Teixeira Coelho e Alain Virmaux,
podemos identificar o destaque de determinados aspectos e uma
valorização de certos fatos que, como qualquer relato, evidenciam
valores – pela seleção das passagens da vida, pela escolha das palavras
na descrição ou nos adjetivos agregados. Quando sobrepomos estes
relatos aos estudos que Joseph Campbell (que integrou o Círculo de
Eranos nos anos de 1957 e 1959) realizou sobre o percurso padrão da
aventura mitológica do herói, como aparece no livro O herói de mil
faces (1997), percebemos que a composição da biografia artaudiana
se encaixa em todos os estágios da estrutura arquetípica do herói
mítico. Realmente, é grande o número de fatos da vida deste autor

28
Artaud e o Teatro Sagrado

que são passíveis de serem facilmente associados ao heroísmo em suas


múltiplas variantes.
A aventura do herói, segundo Campbell (1997), costuma
seguir três estágios: um afastamento do mundo, uma separação ou
partida; uma penetração em alguma fonte de poder na qual o herói
é submetido a provas de iniciação; e um retorno e reintegração à
sociedade trazendo benefícios a seus semelhantes. Gostaria de, na
sequência, destacar apenas alguns aspectos dessa trajetória heroica,
presente em relatos biográficos de Artaud.
Conforme Campbell (1997), o chamado do herói provém de
um arauto que anuncia a aventura, “costuma ser sombrio, repugnante ou
aterrorizador, considerado maléfico pelo mundo.” (p. 62). Esse chamado
significa que o destino convocou o herói. Pode ser mediante um erro,
aparentemente um mero acaso, sendo, contudo, uma “manifestação
preliminar dos poderes que estão entrando em jogo.” (Campbell,
1997, p. 60). Equivale a um momento de passagem espiritual, a uma
morte seguida de um nascimento, como aparece a seguir: “Aos cinco
anos Artaud adoeceu gravemente. Diz-se que teve meningite e que
o mal deixou-lhe uma incapacidade nervosa que o acompanhou
toda a vida.” (Esslin, 1978, p. 19). A imprecisão do dado, “diz-se”,
parece atender a uma necessidade de encontrar uma explicação, um
marco inicial, que indicaria, de certa maneira, um chamado à dor que
acompanhou Artaud em sua vida.
O herói pode, conforme Campbell, recusar ao chamado, o
que leva a uma contraparte negativa. Neste caso, o sujeito perde

[...] o poder da ação afirmativa dotada de significado e se


transforma numa vítima a ser salva. Seu mundo florescente
torna-se um deserto cheio de pedras e sua vida dá uma
impressão de falta de sentido. [...] tudo o que ele pode fazer
é criar novos problemas para si próprio e aguardar a gradual
aproximação de sua desintegração. (Campbell, 1997, p. 66-67).

Parece ter sido essa a postura de Artaud, uma espécie de


negação. Mas de negação a qual chamado? Que tarefa Artaud

29
Ismael Scheffler

teria sido eleito a cumprir? O pesquisador inglês Martin Esslin


(1978), salienta que, “Embora referisse ter sofrido dores de cabeça
e câimbras faciais desde entre seis e oito anos de idade, datou da
puberdade o início de sua debilidade nervosa. Em 1914, aos dezoito
anos, mergulhou em uma funda depressão durante a qual destruiu
todos seus escritos juvenis.” (p. 19). A importância dada por esse
pesquisador à destruição dos textos parece ser, na sua interpretação,
uma espécie de recusa de Artaud a sua missão: escrever.
Essa crise o levou ao primeiro internamento. Passou,
então, por uma sucessão de “mortes” e “ressurreições” até se voltar
definitivamente para seu “chamado”. A série de vários internamentos
entre 1916 e 1920, passando por casas de repouso e sanatórios, poderia
ser vista como decorrente da não aceitação de sua tarefa. O hospício
é o local do desconhecido, local de aniquilação e de renovação, um
“útero” em que Artaud entra para nascer de novo, um “ventre de
baleia”, como o do profeta bíblico Jonas. A primeira sequência de
internações seria uma sucessão de “abortos” até o nascimento, em
1920, quando partiu para Paris.
Esslin, ao citar o último sanatório em que Artaud esteve, no
período de 1918 a 1920, em Le Chenet, na Suíça, menciona o nome
do médico, Dr. Dardel, que o acompanhou naquele período. A figura
do médico acompanhou Artaud ao longo de toda a sua vida, quer
fossem os médicos dos períodos de internamento, quer fossem os
responsáveis por reintroduzi-lo na sociedade nas suas readaptações,
como quando foi a Paris, em 1920, sob os cuidados do Dr. Toulouse.
A figura do psiquiatra corresponderia, com base na estrutura
da viagem mítica do herói de Campbell, à figura do ogro, do guardião
do limiar, personagem responsável pela proteção, estabelecedor
dos limites. Esse personagem reúne características opostas, sendo,
ao mesmo tempo, destruidor e distribuidor de poder mágico. É
“somente ultrapassando esses limites, provocando o outro aspecto,
destrutivo, dessa mesma força, [que] o indivíduo passa, em vida ou na
morte, para uma nova região da experiência.” (Campbell, 1997, p. 85).
Artaud estabeleceu relações de grande amizade com seus médicos, ao

30
Artaud e o Teatro Sagrado

mesmo tempo em que dirigiu severas acusações a eles, especialmente


ao seu último médico em Rodez, Dr. Gaston Ferdière. O tradutor
Aníbal Fernandes, em nota no livro Eu, Antonin Artaud, expõe
alguns aspectos dessa relação:

Numa revista de 1971, o Dr. Ferdière, diretor do asilo


de Rodez, reivindicava para si um papel catalisador da
“recuperação” de Artaud: “Eu tinha à minha frente um
ser absolutamente excepcional, que nesse momento me
aterrorizava por não produzir nada, e nós encorajávamo-lo
por todas as formas, pedíamos-lhe para escrever aos amigos,
mas ele não respondia às cartas; era preciso ensinar-lhe a
escrever. [...] então Artaud começou a escrever de novo [...]
Dei-lhe a traduzir Southwelle, e depois agarrei na tradução
e mandei-a ao Seghers, que a publicou no número seguinte
da Poesia 44. [...] Desde esse dia transformou-se; voltava a
ocupar o seu lugar no mundo do pensamento”. De Ferdière e
do seu comportamento dá, porém, Artaud outra versão. Em
cartas, nos testemunhos de quem o visitou, transparece uma
verdade diferente (ou compreendida de forma diferente) do
que foi o seu internamento em Rodez. (Artaud, 1988, p. 54).

Esse último período de internamento de Artaud, ao final de


sua vida, representaria a decisória morte e renascimento. Campbell
fala que o herói também recebe dos deuses, antes de regressar,
um elixir, uma valiosa beberragem. Dr. Ferdière, em 1943 e 1944,
concedeu a Artaud o tratamento com eletrochoques. Esse “elixir”
dado a Artaud seguiu junto dele após seu regresso ao mundo, e foi
a partir dessa experiência que, desde interno e após sua liberação,
ele passou a escrever sobre e a denunciar esse tipo de tratamento,
atraindo a atenção de diversos grupos sobre o assunto, como expressa
neste texto de 1943, primeiro ano em que esteve em Rodez:

Cada aplicação de eletrochoques me deixou mergulhado


num terror de várias horas. E sempre que eu via aproximar-
se outra sessão não podia furtar-me ao desespero, por não
ignorar que iria uma vez mais perder a consciência e ver-
me um dia inteiro sufocado no meio de mim próprio sem

31
Ismael Scheffler

conseguir reconhecer-me, sabendo muito bem que estava


num sítio qualquer, mas só o diabo podia dizer qual, e como
morto. (Artaud, 1985, p. 27).

A nova fase que se iniciou em 1920, com a chegada a


Paris, corresponde ao caminho de provas às quais o herói, segundo
Campbell, deve sobreviver. Aqui, o herói Artaud, tendo superado
os primeiros limiares, seguiu sob os cuidados do Dr. Toulouse (novo
guardião), e passou a cumprir seu chamado a escrever. O médico
ofereceu novas oportunidades a Artaud, apresentando-o inclusive a
Lugné Poe, que abriu as portas para ele no teatro. Campbell (1997)
afirma que “o herói é auxiliado, de forma encoberta, pelo conselho,
pelos amuletos e pelos agentes secretos do auxiliar do sobrenatural
que havia encontrado antes de penetrar nessa região.” (p. 102). Como
agentes secretos auxiliadores, poderiam ser indicados: Lugné Poe; o ator
Firmin Gémier, que o apresentou ao diretor teatral Charles Dullin
(em 1921); seus amigos Jean-Louis Barrault e Jean-Marie Conty; e
seu tio Louis Nalpas, que o inseriu no cinema (em 1924) O láudano
(e outras drogas) poderia ser definido como o amuleto herdado, pois,
segundo relato de Artaud, ele começou a tomá-lo sob os cuidados
do Dr. Dardel, aspecto sublinhado por Martin Esslin (1978): “Essa
data, maio de 1919, assinala outro marco miliário na vida de Artaud:
o começo de sua escravização às drogas.” (p. 20). Apesar de inúmeras
tentativas de interromper o vício e de se desintoxicar, as drogas
acompanharam o autor até sua morte.
Como alguns exemplos deste período de provações,
poderíamos destacar a troca de correspondências dele com Rivière,
seus conflitos com os artistas surrealistas, em 1926, suas dificuldades
financeiras, suas viagens ao México, em 1936, e à Irlanda, em 1937,
e o desafio de tentar executar seu teatro idealizado. Outro aspecto
que poderíamos agregar a esses exemplos é a grande relevância dada
ao fato de Artaud ser um artista de muitas artes (Virmaux [2000]
ressalta esse aspecto), e não apenas de teatro, cinema e poesia, mas
também no desenho, na pintura, como figurinista etc.

32
Artaud e o Teatro Sagrado

O fechamento da aventura heroica, como descrita por


Campbell, ocorre com o retorno, sendo uma das formas de regresso
o resgate com ajuda exterior, por exemplo, o episódio que sucede a
Artaud quando seus amigos tomam a iniciativa de arrecadar fundos
para seu sustento e intercedem junto ao Dr. Ferdière, em 1946. Ele,
então, regressou ao mundo, onde passou a comunicar às pessoas
sua experiência, como na importante conferência que teve lugar no
Teatro do Velho Pombal [Vieux-Colombier], em 1947. Ele ressurgiu,
inclusive, com um novo corpo, extremamente envelhecido e sofrido
(os eletrochoques também incorreram em perda de dentes), e como
o portador de um novo saber.

O discípulo foi abençoado pela visão que transcende o


alcance do destino humano normal, equivalente a um
vislumbre da natureza essencial do cosmo. Não seu destino
pessoal, mas o da humanidade, da vida como um todo, do
átomo e de todos os sistemas solares, foi posto diante dos
seus olhos; e em termos passíveis de apreensão humana,
isto é, em termos de uma visão antropomórfica: o Homem
Cósmico. (Campbell, 1997, p. 229).

Seu renascimento permitia que ele partilhasse os


conhecimentos trazidos por meio de seu martírio. Ele possuía, então,
a liberdade de ir e vir entre os dois mundos, o mundo comum e
aquele acessível somente a algumas pessoas eleitas.
Não é por acaso que Artaud é mitificado, visto que sua
história é contada se exaltando, frequentemente, aspectos que
podemos reconhecer como presentes na estrutura arquetípica do
herói. Isso também implica determinadas posturas, como a ideia da
necessidade de continuação do legado artaudiano, da sua missão, um
chamado que implica uma fidelidade que obriga ao prolongamento
contínuo de seu trabalho, aspecto que Teixeira Coelho evoca em seu
livro Antonin Artaud: posição da carne (1982).
Conforme Cláudio Willer (1986), Artaud “não era um
conservador, não estava interessado na restauração de alguma cultura

33
Ismael Scheffler

tradicional. Tanto sua fascinação pelo hinduísmo, pela Cabala,


pelas práticas xamânicas, o que o interessa é o confronto com nossa
civilização, o efeito que tudo isso possa ter para alterar nossa percepção
e nossa consciência.” (p. 96). Acredito que, nesse mesmo sentido, seria
mais “fiel” a Artaud visitar seus escritos sem a pretensão de querer
restaurar ou continuar suas ideias, mas justamente confrontar seus
escritos com nossa cultura. Sua contribuição já está dada, restando
para nós, nos dias atuais, compreendê-la na medida do possível. A
tendência de querer dar continuidade à “missão” de Artaud também
é um aspecto que atribui a sua existência uma notoriedade, como que
reivindicando que todo seu sofrimento não deva ser desperdiçado.

34
4.
A alma arraigada no universo simbólico

A imagem simbólica permeava e envolvia Artaud em todos os níveis


de sua vida de maneira intensa, nas mais variadas formas: na arte, na
religião, no sonho, no delírio. A imaginação simbólica possui uma
função fundamental para Gilbert Durand, que é a de equilibrar o
ser humano. Ele afirma que o pensamento simbólico se manifesta
fundamentalmente em quatro setores: o vital, o psicossocial, o
antropológico e o cósmico (Garagalza, 1990).
Para Durand, o ser humano, diante da inevitabilidade da
morte, usa eufemismos para ela, não com um sentido negativo de
fuga, mas como um poder de melhorar o mundo, de renová-lo,
transformando a realidade da morte, exorcizando-a, adquirindo
uma dose de esperança. A morte, em Artaud, de certa forma era
constante, cravada em sua carne, especialmente presente nas dores
de cabeça que sentia, nas reações de dependência e abstinência das
drogas, mas também pairando sobre sua lucidez e na obtenção de
seus objetivos, muitas vezes frustrados devido aos eletrochoques que
o faziam perder totalmente a consciência, neutralizando seu corpo e
mente. A presença do mal o cercava: “O mal, o mal, a dor e o mal.
O ‘Mal poderia não ter existido. Existiu’3. E Artaud está envolvido
por ele. Um mal não menos vago – por isso, absoluto – do que a
dor.” (Teixeira Coelho, 1982, p. 41).
Nessa presença constante da morte, tudo se confronta com
ela: o corpo e o pensamento. Por meio de um jogo de inclusões e
exclusões, de acréscimos e perdas de vida, Artaud cunha suas opiniões,
estabelece seu pensamento. Ele questiona valores estabelecidos em
prol dos menos favorecidos, dos “menos vivos”, dos ameaçados de

35
Ismael Scheffler

morte. “Em vários níveis, temos sempre o mesmo confronto do


dominado contra o dominador: os povos periféricos e colonizados
contra a metrópole; o indivíduo contra o poder opressor do Pai,
da sociedade patriarcal; o corpo, o lado sombrio da sexualidade, o
inconsciente, os instintos, contra o ‘cogito’ cartesiano [...].” (Willer,
1986, p. 96). O debater-se entre duas formas/forças – vivo e morto –
conforma a existência e as profundezas de Artaud.
Artaud passa por um desequilíbrio – como podemos
constatar em seu próprio depoimento, por exemplo, nas cartas
escritas durante o internamento em Rodez – que o leva a submergir
em um universo imaginário permeado de fantasias e alucinações, de
cuja realidade ele estava definitivamente convencido. Sua viagem à
Irlanda, em setembro de 1937, ocorreu por que ele estava certo de
que o destino o chamava a um acontecimento cósmico (Esslin, 1978),
e acreditava receber sinais mágicos. Acreditava que a bengala que
tinha recebido em janeiro havia pertencido a São Patrício, e que ela
deveria ser devolvida a seu dono durante o acontecimento cósmico.
Em razão de vários episódios ocorridos em Dublin, Artaud foi preso
e repatriado, permanecendo por oito anos internado em diferentes
instituições. Ele dizia ouvir vozes, falava de pessoas que sequer haviam
existido, além de crer numa grande conspiração universal e cósmica
contra si. A pesquisadora francesa Odette Aslan, em O ator no século
XX (1974), refere o diagnóstico de esquizofrenia, feito pelo Dr. J.-L.
Armand-Laroche – que não conheceu Artaud pessoalmente, mas
mergulhou em seu caso a posteriori, a partir de seus textos e de
testemunhos de contemporâneos do autor.
Teixeira Coelho (1982, cap. 3) levanta uma série de
questionamentos sobre a existência de fato de um desajuste na
sanidade mental do autor, elaborados a partir da análise sobre a
loucura feita pelo próprio Artaud, em 1947, no texto Van Gogh: o
suicidado pela sociedade:

E o que é um autêntico louco? É um homem que preferiu


ficar louco, no sentido socialmente aceito, em vez de trair
uma determinada ideia superior de honra humana. Assim,

36
Artaud e o Teatro Sagrado

a sociedade mandou estrangular nos seus manicômios todos


aqueles dos quais queria desembaraçar-se ou defender-
se porque se recusavam a ser seus cúmplices em algumas
imensas sujeiras. Pois o louco é o homem que a sociedade
não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades
intoleráveis. Neste caso, a reclusão não é sua única arma e
a conspiração dos homens tem outros meios para triunfar
sobre as vontades que deseja esmagar. (Artaud4 apud Willer,
1986, p. 133).

Neste texto, Artaud advoga em favor de Van Gogh (e


de si mesmo), negando a sua loucura e atribuindo à sociedade a
responsabilidade por esta não saber lidar com a extrema lucidez (e
não loucura) que seguia além da obra artística do pintor holandês.
Ele defendia: “Van Gogh era uma dessas naturezas dotadas de
lucidez superior, o que lhes permite, em qualquer circunstância, ver
mais além, infinita e perigosamente mais além que o real imediato e
aparente dos fatos.” (Artaud5 apud Willer, 1986, p. 140).
O que, de fato, é indiscutível, é que Artaud assumiu como
realidade um grupo de imagens presentes em sua mente, o que
constituiu parte do universo simbólico no qual ele circulava de uma
forma ou de outra, e com tal amplitude que interferiu não apenas no
seu mundo interior como também nas suas relações exteriores, nas
suas amizades, nos seus relacionamentos afetivos, profissionais e com
pessoas desconhecidas.
Um dos mecanismos de equilíbrio que o ser humano possui
no universo simbólico se dá através dos sonhos, tema recorrente na
obra de Artaud, e no reconhecimento do “alcance poético profundo”
(Artaud, 1993, p. 88) que eles possuem. A partir do contato com o
movimento Surrealista, ao qual aderiu no ano do seu surgimento, em
1924, e permaneceu até ser expulso, em novembro de 1926, Artaud
passou a refletir sobre as forças inconscientes atuantes por meio dos
sonhos, chamando a atenção para a linguagem onírica.
Os surrealistas combatiam o reino da lógica em nome de
uma existência mais poética, aspirando a liberdade. Eles queriam
explorar o funcionamento do pensamento e formas de associações

37
Ismael Scheffler

presente nos sonhos, mas desprezadas até então. Com isso pretendiam
a “ampliação de seus horizontes para além do campo das associações
lógicas, incluindo as zonas limites do inconsciente (e seus correlatos, da
magia à loucura, passando pela atividade onírica).” (Garcia, 1997, p. 63).
Martin Esslin (1978) destaca a influência dos estudos
freudianos sobre Artaud, no que concerne ao mal-estar da civilização
ocidental devido à repressão da vida instintiva, impulsiva e
subconsciente. “Em boa parte, a ideologia surrealista baseava-se nos
conceitos freudianos, e Artaud sofreu nítida influência de Freud,
especialmente de sua obra A interpretação dos sonhos. Tinha sido
Freud a mostrar como a linguagem no sonho é transposta para
imagens que podem, então, ser lidas como a grafia pictórica, os
hieróglifos.” (p. 101). Vera Lúcia Felício (1996) atesta a compreensão
do sonho, proposta por Freud e adotada inicialmente por Artaud,
de que “no sonho a linguagem é cifrada e que, portanto, o que está
sendo manifesto esconde o que efetivamente está sendo expresso; é o
lado secreto e mágico do sonho; é o falso necessário para o verdadeiro;
é o duplo exigido pelo sonho e pelo teatro.” (p. 101, grifos da autora).
No Manifesto por um Teatro Abortado, publicado em 1927,
podemos perceber a importância do sonho para as propostas cênicas
de Artaud:

[...] nós não visamos a nada menos que remontar às fontes


humanas ou inumanas do teatro e a ressuscitá-lo totalmente.
Tudo o que pertence à ilegibilidade, à fascinação magnética
dos sonhos, tudo isto, estas camadas sombrias da consciência
que são tudo o que nos preocupa no espírito, nós queremos
vê-lo radiar e triunfar em um palco, prontos a nos perder a
nós mesmos e a nos expor ao ridículo de um colossal fracasso.
(Artaud, 1995, p. 38).

Esta influência freudiana pode ser claramente identificada


em uma declaração do próprio Artaud: “Proponho restabelecer
no teatro essa ideia mágica elementar, retomada pela psicanálise
moderna, que consiste em fazer com que o doente assuma a atitude

38
Artaud e o Teatro Sagrado

exterior do estado ao qual desejaria conduzi-lo, para assim obter a sua


cura.” (Artaud6 apud Virmaux, 2000, p. 16).
Gilbert Durand, em suas pesquisas sobre o imaginário,
reconhece que Freud trouxe importante contribuição para o estudo
dos símbolos, alertando, porém, que ele não ampliou suas pesquisas
por toda a dimensão do tema. Conforme esse autor, no Ocidente
(eurocêntrico), ao longo dos séculos, estabeleceu-se uma tradição
iconoclasta que provocou descrença e, por consequência, uma
redução do símbolo, que ainda se reflete no século XX em teorias
que reconhecem um pouco de sua importância, mas que, por suas
reduções, têm uma compreensão limitada sobre ele. Durand chama
essas teorias de hermenêuticas redutoras. Nesse grupo de teorias,
ele situa a psicanálise de Freud, o funcionalismo do historiador da
religião Georges Dumézil e o estruturalismo do antropólogo Claude
Lévi-Strauss. Segundo Durand (1988), “essas doutrinas só descobrem
a imaginação simbólica para tentar integrá-la na sistemática
intelectualista estabelecida, apenas para tentar reduzir a simbolização
a um simbolizado sem mistério. São esses processos de redução – do
simbolizado a dados científicos e do símbolo ao signo.” (p. 41-42). Esse
autor defende que o problema maior da psicanálise freudiana foi “ter
combinado um determinismo rígido, que faz do símbolo um simples
‘efeito-signo’, com uma causalidade única: a libido imperialista. A
partir daí, o sistema de explicação é apenas um sistema unívoco, onde
um signo remete a um signo.” (Durand, 1988, p. 45).
Em complemento a essas teorias, o autor aborda as
hermenêuticas instauradoras, que se caracterizam por reconhecer
no símbolo outros aspectos negligenciados pelas hermenêuticas
redutoras. Ernest Cassirer, Carl G. Jung e Gaston Bachelard são
citados como ampliadores do conceito de símbolo, mantendo,
ainda assim, resquícios racionalistas, e não reconhecendo toda a
potencialidade do símbolo. Durand, porém, reconhece a importância
e complementaridade destes dois grupos de hermenêuticas, uma vez
que identificam no símbolo diferentes atributos.

39
Ismael Scheffler

O professor basco-espanhol Luis Garagalza, ao desenvolver seu


estudo sobre a linguagem teorizada por Durand, em La interpretación
de los símbolos: hermenéutica y lenguaje en la filosofía actual, afirma
que ele pretendia “devolver à imaginação a dignidade gnoseológica e
ontológica de que havia sido privada [no Ocidente].” (Garagalza, 1990,
p. 56, grifo do autor). Esse objetivo também estava, em certa medida,
presente em Artaud, como ele expressou justificando sua viagem ao
México: “A cultura racionalista da Europa já faliu e eu vim à terra
mexicana para procurar as bases de uma cultura mágica que ainda pode
brotar das forças do solo índio.” (Artaud7 apud Willer, 1986, p. 94).
Durand formulou uma teoria geral do imaginário na qual
afirma a primazia do símbolo sobre o conceito, uma vez que o
conceito é estabelecido depois da experiência, da vivência figurada,
convertendo-se primeiro em imagem com sentido, ou seja, um
símbolo. Sendo assim, para esse autor, “toda apreensão da realidade
se encontra marcada pelo metaforismo, pela interpretação ou pela
simbolização.” (Garagalza, 1990, p. 58, grifo do autor). O mundo
objetivo existe, então, na medida em que algo entra em contato com
o eu, fazendo parte de meu mundo, ganha, portanto, um sentido
antropológico. É a possibilidade de transitar pelo subjetivo que
permite ao homem se distanciar da experiência objetiva do cotidiano.
O espírito humano interpreta as imagens que encontra produzindo
nelas seus significados. O Imaginário é compreendido como uma
característica consubstancial humana, não inferior, mas anterior,
fundadora da linguagem e da razão.
Durand afirma que a apreensão humana da realidade é
marcada pela simbolização da vivência, e que os aspectos simbólicos
e míticos do homem não são, de forma alguma, inferiores ao
pensamento racionalizado e à linguagem, justamente porque estão
na sua origem, sendo anteriores a eles. Em diversos pontos, parece ter
sido nesse âmbito que Artaud se interessava em pensar o espetáculo
teatral.
O autor francês vai além do interesse inspirado pela aparição
de temáticas e símbolos arcaicos em sonhos e delírios de pacientes,

40
Artaud e o Teatro Sagrado

tal qual Freud e Jung, não restringindo seus estudos a um caráter


terapêutico. Ele conecta “a consciência simbólica criadora da arte
e da religião com a consciência simbólica que cria os fantasmas do
delírio e da enfermidade.” (Garagalza, 1990, p. 26). A área predileta
do simbolismo é, para Durand, o não-visível em todas as suas formas
– inconsciente, metafísica e sobrenatural: “Essas ‘coisas ausentes ou
impossíveis de se perceber’ por definição acabarão sendo, de maneira
privilegiada, os próprios assuntos da metafísica, da arte, da religião,
da magia.” (Durand, 1988, p. 15). Os estudos sobre o simbólico e
suas influências, realizados ao longo de diversas décadas pelo Círculo
de Eranos, ampliam, portanto, o conceito de símbolo.
Artaud, na extensão surrealista, descobriu o universo de
imagens a partir dos sonhos, mas, como percebemos, o ampliou para
outras referências místicas e culturais. É o que também atesta Innes
(1992), afirmando que “com Artaud, o enfoque nos sonhos e nos
níveis primitivos da psiquê se estendem para incluir raízes selvagens
e culturas primitivas.” (p. 69). Logo, no âmbito do imaginário, é
preciso que se trabalhe com uma referência conceitual mais ampla
do que são os princípios de Freud, não nos detendo apenas nas
influências dos sonhos e do inconsciente.
Artaud se voltou para culturas diferentes da europeia, como
as orientais e a mexicana, sobressaltando-as inclusive sobre a francesa.
Ele deslumbrou-se com o teatro de Bali (que assistiu em 1931),
estudou Cabala e Tarô, viajou à terra dos índios Tarahumaras no
México, conheceu o Livro dos Mortos egípcio, questionou os padrões
de normalidade e a esquizofrenia da sociedade “civilizada”. “Artaud foi
o primeiro a procurar formas teatrais que não só fossem não europeias,
mas especificamente, ‘incivilizadas’.” (Innes, 1992, 69). Ao denunciar
o racionalismo preponderante na cultura europeia, ele colaborou para
o encaminhamento de certo equilíbrio antropológico destronizando
(ou quem sabe até invertendo) uma hierarquização cultural, que pode
conduzir a uma existência social e pessoal de outra ordem.
Na arte, especialmente no que concernia ao teatro, Artaud
denunciou o que acreditava ser um esvaziamento e empobrecimento

41
Ismael Scheffler

que o transformava em um produto de consumo fortuito. Para ele,


era preciso salvar a sociedade que se corrompia, reestabelecendo o
potencial da arte. “E a questão que agora se coloca”, finaliza Artaud
no texto O Teatro e a peste, em 1933, “é saber se neste mundo em
declínio, que está se suicidando sem perceber, haverá um núcleo
de homens capazes de impor essa noção superior do teatro, que
devolverá a todos nós o equivalente natural e mágico dos dogmas
em que não acreditamos mais.” (p. 26). A arte assume, no ideal desse
autor, o sentido de não ser mais uma obra, mas um âmbito no qual
se pode mostrar o espírito para apossar-se de si próprio. Artaud se
insurge contra a arte desgastada e propõe a destruição da arte para
tocar a vida – a nova vida. Nisto, compreende-se que seus princípios
não se restringem a uma reforma estética. Para ele,

o teatro não é mais uma arte; ou é uma arte inútil. É sob


todos os pontos conforme à ideia ocidental de arte. Estamos
fartos de sentimentos decorativos e inúteis, de atividades sem
objetivo, unicamente devotadas ao agradável e pitoresco;
queremos um teatro que aja, mas justamente num plano a
ser definido. Precisamos de uma ação verdadeira, mas sem
consequência prática. Não é no plano social que a ação
do teatro se desenvolve. E menos ainda no plano moral
e psicológico. [...] Ninguém até aqui abordou o próprio
princípio do teatro, que é metafísico. (Artaud, 1993, p. 113).

Se Artaud parte do reconhecimento simbólico dos sonhos,


ele gradualmente vai percebendo a presença deste, através de imagens,
em outras culturas e religiões. E não há como não reconhecer este
outro campo em que o símbolo está presente, e que é abundante
na vida deste autor: a questão divina e mística. Seus escritos são
marcados de forma significativa por esse tema, evidenciando buscas
constantes e instabilidade. Artaud possuía uma relação inquieta em
relação ao transcendente.
Nas cartas de Rodez, podemos encontrar um momento
muito intenso em que essa questão está em pauta, durante seu
internamento. Ali, é possível perceber uma radical mudança de

42
Artaud e o Teatro Sagrado

Artaud para com o Deus católico-cristão, na forma como ele o


compreende. Em uma carta de 30 de janeiro de 1945, escreve:
“em setembro de 1937, em Dublin, retornei à fé cristã de minha
infância [quando queria devolver a São Patrício uma bengala que
acreditava ter pertencido ao santo] e encontrei neste asilo uma capela
e um confessionário que me permitem cumprir todos meus deveres
religiosos.” (Artaud, 1986, p. 32). Ele chega a lamentar ter escrito
alguns textos, como O Teatro e seu duplo:

[...] e me alegraria muito te enviar um, se este livro


representasse atualmente minhas ideias. Mas não vejo as
coisas do mesmo modo [...]. Talvez este livro não contenha
nada que seja muito especificamente anti-religioso, mas foi
escrito em uma época de incredulidade e de distanciamento
de Deus e isto se pode perceber em mais de uma passagem.
(Artaud, 1986, p. 32-33).

Mais radicalmente, com relação a seu texto Heliogábalo ou o


anarquista coroado, de 1934, escreve em uma carta de 07 de janeiro
de 1945: “um livro que atualmente desprezo porque é anticristão, é
Heliogábalo, e desde 1937, data em que fui a Dublin onde retornei à
fé cristã de minha infância, não cesso de lhe dar às costas.” (Artaud,
1986, p. 18). E ainda retoma em outra carta de 16 de fevereiro: “há um
livro que não posso permitir que reapareça entre minhas obras: se trata
de Heliogábalo que me enfurece cada vez que o releio porque penso que
seu enfoque é absolutamente equivocado e revela um estado espiritual
extremamente falso, mentiroso e errôneo.” (Artaud, 1986, p. 42).
No entanto, apenas alguns meses depois no mesmo ano,
seu discurso muda absolutamente. Ele mesmo comenta a respeito
dessa mudança, escrevendo em 26 de junho: “Talvez tenham lhe
dito que em um dado momento fui recuperado pelo ritual cristão;
mas já faz dois ou três meses que me dei conta de que, ao fazer isto,
estava obedecendo somente a um desejo de captar as forças de meu
eu, conduzindo-as a essa estúpida ideia do ser chamado deus pelos
seres, na qual jamais cri, que recebe o nome de cristo, Jeová ou

43
Ismael Scheffler

Brama.” (Artaud, 1986, p. 81-82). A partir de então, passa a escrever


“deus”, “cristo” e outras figuras como “virgem”, “espírito santo” etc,
propositadamente sem a inicial maiúscula. Conforme seu tradutor
Aníbal Fernandes, “Artaud quis escorraçar de si todos os vestígios
de religiosidade [cristã].” (in Artaud, 1985, p. 113). Artaud tenta
regressar a um referencial “comum” de religião (católica e francesa),
que se apresenta novamente insuficiente, e incoerente com a sua
compreensão.
Conforme o pesquisador Mircea Eliade, em seu livro O
sagrado e o profano (2001), a experiência com o sagrado se dá no
íntimo, de forma profunda, e é ela que atribui um sentido à vida,
e assim permite que a vida possa ser organizada. Artaud reconhece
a religião como parte da vida e tenta encontrar um sentido que, no
entanto, não o atinge. Talvez seja por isso que o período da “retomada
da fé cristã de sua infância” pôde se dissolver tão rapidamente, pois
não havia de fato acontecido, isto é, não se deu de forma profunda,
agregando sentido existencial.
“É preciso não esquecer”, defende Eliade (2001), “que, para
o homem religioso, o ‘sobrenatural’ está indissoluvelmente ligado
ao ‘natural’; que a Natureza sempre exprime algo que a transcende.”
(p. 100). No manifesto do Teatro da Crueldade, Artaud (1993, p. 83) já
destaca que “não se separa o corpo do espírito”, o que também aponta
no Teatro e a Peste. Ele possui uma compreensão do Universo como
um todo, não distinguindo matéria física do metafísico, o corpo da
alma. Nisto se aproxima de um primitivismo, em uma visão integral
que unifica o imanente e o transcendente, ou melhor, não os separa.
A “religião” de Artaud está ligada à sua existência. Não
está à parte, como um outro alheio, dicotomizado. Em uma de suas
cartas, de 10 de setembro de 1945, ele afirma: “as ideias que tenho,
invento sofrendo-as eu mesmo, passo a passo e pé ante pé; não escrevo
mais do que tenho sofrido medida por medida do meu corpo, e ponto
a ponto de todo meu corpo; o que escrevo, encontro sempre através das
angústias, das angústias da moral de meu corpo.” (Artaud, 1986, p. 93).
Por isso essa religiosidade católica de seu contato não lhe serve, pois é
despregada da vida, é demasiadamente abstrata e ocidental.

44
Artaud e o Teatro Sagrado

A divindade que se manifesta na matéria, se manifesta


também em seu próprio corpo, em sua carne que é doente, que
morre a cada instante. Seu corpo é enfermo, sua mente se perde, seu
corpo sofre eletrochoques, é dopado, está encarcerado, depositado.
“O mal é a lei permanente, e o que é bem é um esforço.” (Artaud,
1993, p. 102). Mircea Eliade ressalta que a manifestação do sagrado
ocorre somente pela vivência, pela experiência.
Uma percepção de um deus que se manifesta pela doença
e sofrimento leva Artaud a se debater entre o desejo de crer e
transcender e a realidade dura e imutável – lembremos que, em 1945,
Artaud já estava internado há cerca de oito anos e não vislumbrava
perspectiva de alta. Sua obra-vida é então marcada por lutas contra
as figuras centrais do catolicismo. Em várias cartas e nos Cadernos de
Rodez, em seu último texto Para acabar com o juízo de Deus (1947),
sua luta chega ao limite máximo, quando o escatológico e o divino se
mesclam como uma reação à revolta, mas talvez mais, como forma
de materializar o divino no próprio corpo, naquilo que sente que é
consoante. Teixeira Coelho se refere a esse período como “fase dita
mística”:

A quase totalidade dos Cadernos de Rodez, de fevereiro


a junho de 1945, está coberta por um texto contínuo
sobre o espírito religioso, Deus, deus e Jesus-cristo. Às
vezes é um texto-encantação atravessado por glossolalias:
“Migan Targun Eberti / Ligan Targa Epstaira”. Em certos
momentos, é como uma oração; em outros, um quase plágio
e uma paródia dos textos chamados sagrados. A Vontade,
Maria, a Santidade, Satã, povoam essas páginas. E Jesus-
cristo. Jesus-cristo Antonin Artaud forma um corpo contra a
própria imagem ideal de Jesus-cristo Eterno, porque ele, Artaud,
se situa no tempo. (Teixeira Coelho, 1982, p. 40, grifos do autor).

A dor, como seu modo de ser e ler o mundo, é também a


forma de se chegar a Deus. Artaud (1986), falando sobre a doença de
Parkinson, por exemplo, afirma não saber a origem da doença, mas
diz que crê “que a padecemos em nosso ser porque o homem fez cair
a deus. É uma privação de deus por que os homens desprezaram a

45
Ismael Scheffler

tortura sobre as almas fiéis a deus, afim de separá-las de deus.” (p. 96).
Diante de tais visões, que alternativas Artaud encontra? “Pularei no
Mal e contra ele, porque o Bem não conseguiu me aliviar.” (Artaud
apud Teixeira Coelho, 1982, p. 41).
Eliade (2001) afirma que, na experiência religiosa, o homem
experimenta um “afastamento do divino” (p. 106), que faz com
que o homem se interesse cada vez mais por descobrir o sagrado em
experiências mais “concretas”, mais carnais, até mesmo orgiásticas.
O ser, afastando-se do Deus celeste, parte para uma experiência
religiosa mais intimamente misturada com a Vida. Parece ser isso que
Artaud persegue nesse momento, surgindo então um paradoxo: se
“viver é perder o corpo” (Artaud, 1986, p. 91) e a experiência divina
se vive na matéria, então, a experiência divina para ele não apresenta
perspectivas positivas.
Se, de fato, o que Teixeira Coelho (1982) escreve é
verdadeiro, de que a “religião, para Artaud, é essa operação mais
básica e vital: o ato de tentar religar as coisas entre si e a ele, à própria
pessoa; o procedimento de religar a pessoa à pessoa que ela perdeu,
a ela mesma, àquela que a sociedade tirou dela através disso que
se chama de alienação, no sentido político, quer dizer, no sentido
existencial” (p. 63), poderíamos dizer que, também nesse aspecto,
Artaud se embrenhou numa busca alucinada e inatingida. Seus
textos profanadores não simbolizam apenas uma oposição aos
valores da sociedade na qual estava inserido, mas uma dimensão
de atribuição de sentido existencial que não se articulou com
eficácia. Na medida em que nega e blasfema, ele também está
reconhecendo a existência e a presença, mantendo vivo algo que
não consegue resolver.
Mircea Eliade (2001) afirma que o sagrado revela o verdadeiro
real, e é essa realidade que faz com que o homem se instale no mundo
com um sentido: “o sagrado é o real por excelência, ao mesmo tempo
poder, eficiência, fonte de vida e fecundidade.” (p. 21, grifo do autor).
O mundo, então, não é mudo, opaco ou inerte, nem sem objetivo ou
significado. Ele é dotado de forças que antecedem a existência, pois em

46
Artaud e o Teatro Sagrado

razão dela foram criadas. A própria existência do mundo quer dizer


alguma coisa. Como administrar, então, uma existência marcada pelo
sofrimento, dor, desprezo e perda da consciência? Como compreender
um Deus que não retira do mundo a inércia e a opacidade? Como não
atribuir a Ele o que se percebe na matéria-corpo?
Sua estadia entre os índios Tarahumaras no México e suas
vivências lá, foram profundamente significativas para Artaud. Ele
escreveu sobre essas experiências ao longo de vários anos – desde
sua estadia no México, em 1936, após seu regresso, alguns anos
depois, ainda internado, e após sua saída de Rodez. Seus escritos a
esse respeito estabelecem correlações com o cristianismo e, em outros
momentos, ele se desdiz (a partir de sua negação de Deus, em 1945).
Essa contradição também aparece ao explicar sua busca, como se
vê no Suplemento à Viagem à Terra dos Tarahumaras, de janeiro
de 1944: “Por isto que abrindo caminho para Deus encontrei os
Tarahumaras.” (Artaud, 1985, p. 80). Posteriormente, em carta de
setembro de 1945, pede que se releve o Suplemento por seu conteúdo
e diz: “às altitudes mexicanas só fui para me livrar de Jesus Cristo
como tenciono ir ao Tibete um dia para me esvaziar de deus e do seu
espírito santo.” (Artaud, 1985, p. 48).
No México, ele pôde participar do ritual do peiote, um pó
alucinógeno utilizado pelos índios em suas celebrações, experiência
pela qual ansiava: “Também lhe disse que eu não estava de visita
aos Tarahumaras como curioso, mas interessado em encontrar uma
Verdade que escapa ao mundo da Europa e a sua Raça tinha sabido
conservar.” (Artaud, 1985, p. 22). Artaud ansiava por um canal de acesso
à compreensão do sagrado, pois sabia que, conforme apresenta Mircea
Eliade (2001), “o único meio de compreender um universo mental
alheio é situar-se dentro dele, no seu próprio centro, para alcançar, a
partir daí, todos os valores que esse universo comanda.” (p. 135, grifo
do autor). A experiência xamânica teve um impacto profundo
sobre Artaud (1985): “Alegria não tinha eu sabido nunca o que era,
nunca na vida eu tinha tido sensação que não fosse de angústia ou
irremissível desespero; não sabia de outro estado que não fosse esta

47
Ismael Scheffler

dor fendilhada que todas as noites me perseguia.” (p. 38). O que ele
almejava para si aparece de maneira muito clara: “eu vivia os três dias
mais felizes de minha vida. Não mais me sentia aborrecido na busca de
uma razão para minha existência, e o corpo já não me pesava. Percebia
que inventava a vida, que esta era a minha função e minha raison d’être
[razão de ser], que ficava entediado quando já não tinha imaginação e
que o peiote me dava imaginação.” (Artaud8 apud Esslin, 1978, p. 44).
Não nos cabe tentar definir com exatidão os movimentos
do que de fato se passou nas relações de Artaud com o divino. O
que é pertinente destacar, aqui, é que ele intuía, dentro de seu
universo vivencial, uma espiritualidade mais significativa do que as
que encontrou, ao menos para uma vivência continuada, à qual ele
pudesse se mesclar e se sentir parte.
Assim, mergulha e transita por todos os meios no universo
simbólico, buscando-o de maneiras voluntárias e involuntárias: arte,
sonhos, delírios e religião. Em todos os escritos de Artaud podemos
identificar a presença e evocação constante dessas diferentes aparições
do símbolo. Poderíamos afirmar, então, que esse universo é por
excelência o universo de Artaud? É sobre suas experiências pessoais que
ele constrói suas propostas de teatro, expressas em seu livro O teatro e
seu duplo, todos os seus escritos, e mais, toda sua vida.
Ao considerarmos que o domínio conceitual sobre o simbólico
ainda estava se estabelecendo, com as teorias da psicanálise freudiana
sendo divulgadas, com a exploração artística das dimensões oníricas,
com a mobilização de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento
humanístico dentro do Círculo de Eranos, entre outros, poderíamos
supor que Artaud estava interagindo com o espírito de sua época,
atribuindo significativa importância, à sua maneira, a novas percepções
que ainda estavam sendo escrutinadas em conceitos e se chocavam
com muitos valores vigentes. Um conhecimento mais aprofundado dos
conceitos relativos ao sagrado e ao simbólico pode ajudar, nos dias
de hoje, a compreender melhoras propostas de Artaud.

48
5.
Imagens indestrutíveis que falem
diretamente ao espírito

Mircea Eliade (2001) se refere ao ser humano como homo religiosus,


afirmando que é intrínseco ao homem a busca pelo transcendente,
sendo o sagrado, em oposição ao profano, uma das modalidades de
se ser no mundo.
Eliade defende que as relações com o sagrado ainda são
presentes no ser humano, justamente por serem inerentes a ele, mesmo
que ele se diga a-religioso. De uma maneira ou de outra, subsistem
recordações e nostalgias dos comportamentos abolidos: “De certo
ponto de vista, quase se poderia dizer que, entre os modernos que se
proclamam a-religiosos, a religião e a mitologia estão ‘ocultas’ nas trevas
de seu inconsciente – o que significa também que as possibilidades de
reintegrar uma experiência religiosa da vida jazem, nesses seres, muito
profundamente neles próprios.” (Eliade, 2001, p. 173).
Para esse autor, a cada crise existencial que uma pessoa
experimenta, entra em pauta de novo a questão da realidade e
do sentido de sua existência no mundo, sendo a crise existencial,
portanto, religiosa.
O sagrado, conforme o pesquisador, irrompe o mundo
profano e manifesta ao homem uma instância superior, que está
além da transitoriedade cotidiana. A manifestação do sagrado, a
hierofania ou epifania, produz uma ruptura e revela um sentido à
vida humana, instituindo a verdadeira realidade. Artaud acreditava
ser possível entrar em contato com instâncias que potencializam a
vida atribuindo ao ser humano um valor diferenciado, e encarava
o teatro como um caminho possível para que isso acontecesse. Ao

49
Ismael Scheffler

evocar os manas existentes na cultura mexicana, no prefácio de O


teatro e seu duplo, ele está se referindo a forças presentes, a potências
latentes na natureza, uma forma de compreensão do sagrado.
Ao pretender que o ser humano retome à misticidade, Artaud
denuncia o sufocamento das dimensões míticas dentro da sociedade à
qual pertencia. Há uma cisão no homem que o impede de ser.
Ele propõe, no texto Acabar com as obras-primas, um
retorno a “uma ideia religiosa do teatro, isto é, sem mediação, sem
contemplação inútil, sem sonhos esparsos, de chegar a uma tomada
de consciência e, também, de posse de certas forças dominantes, de
certas noções que tudo dirigem; [...] capazes de reencontrar em nós
essas energias que afinal criam a ordem e fazem aumentar os índices
da vida.” (Artaud, 1993, p. 76-77). Desta maneira, a vida deixa de ser
banal e torna-se significativa.
O sagrado é uma dimensão sobre-humana que compõe a
realidade. Quando Artaud (1993) afirma: “com respeito ao humano
tanto quanto ao sobre-humano os orientais estão à nossa frente em
matéria de realidade” (p. 50), ele está reconhecendo que a dimensão
do sagrado se configura como parte da realidade, e não como uma
projeção imaginária abstrata e fugaz; está denunciando a perda dessa
percepção em seu mundo, constatando e apontando a existência
dessa tônica entre as sociedades orientais.
Para Mircea Eliade, o sagrado nunca é apreendido em sua
totalidade e jamais consegue ser explicado, porque ao mesmo tempo
em que se mostra, ele mantém uma dimensão oculta, misteriosa, pois
excede em amplitude. A manifestação do sagrado ocorre somente
pela vivência pessoal, pela experiência, que é única e não passível
de repetição, continuando sempre nova a cada manifestação. Esta
experiência com o sagrado se dá no íntimo da alma, de forma intensa.
Artaud pretendia um teatro que agisse profundamente no
espectador, de maneira significativa:

Creio que a finalidade do verdadeiro teatro é nos reconciliar


com uma certa ideia de ação, da eficácia imediata que [...] deve
procurar alcançar as regiões mais profundas do indivíduo e
criar nele próprio uma espécie de alteração real, ainda que

50
Artaud e o Teatro Sagrado

escondida, e da qual só serão percebidas as consequências


mais tarde. Isso significa colocar o teatro no plano da magia,
o que nos aproxima de certos ritos, de certas operações
da Grécia antiga e da Índia em todos os tempos. [...] não é
preciso acreditar que o teatro [...] seja reservado a uma elite de
espíritos religiosos, místicos e iniciados. (Artaud, 1995, p. 92).

A experiência que ele pretendia para o público deveria ser


despojada de exigências prévias, não seletiva, importando de fato
uma alteração no ser, em qualquer ser, mesmo que essa alteração não
fosse diagnosticável.
Ao longo de seus escritos, Artaud apresenta, com variação
de amplitude, essas “alterações profundas” a que se refere. Ele parte
de referências sobre o inconsciente, numa dimensão psicossocial, e
amplia para referências místicas, ao perceber a presença do universo
simbólico em outros meios, como na religião e na magia, e em outras
culturas, ampliando, assim, a sua compreensão. Logo, ao estudarmos
Artaud, é preciso que se trabalhe com uma referência conceitual
abrangente. Ele se vale de termos não muito claros para definir seu
pensamento e situar o destino desta “ação mágica”, cujo objetivo
algumas vezes parece ser o de atuar sobre a inteligência, outras vezes
sobre o espírito, ou o sentimento, o que dificulta, em alguma medida,
a compreensão de suas propostas.
No Manifesto por um Teatro Abortado, pode-se perceber
o acento sobre a questão psicológica, diferente de seus textos
posteriores, da década de 1930, nos quais enfatiza uma relação maior
com a magia: “nós não nos dirigimos aos olhos, nem à emoção direta
da alma; o que nós procuramos criar é uma certa emoção psicológica
onde as molas mais secretas do coração serão postas a nu.” (Artaud,
1995, p. 38, grifo do autor).
Não obstante, se olharmos atentamente para seus diversos
escritos, veremos que Artaud sempre enfatiza a necessidade de uma
operação mais profunda do que a racionalização ou emoção efêmera.
Segundo a Hermenêutica Simbólica, o homem identifica
a manifestação do sagrado no símbolo, sendo este seu veículo, sua
materialização. O símbolo ocorre com uma determinada forma, por

51
Ismael Scheffler

meio de uma imagem concreta, em um tempo e espaço específicos,


em uma consciência ou cultura determinada. No pretendido
teatro artaudiano, a imagem assume o lugar central porque o autor
reconhece uma capacidade distinta da imagem em relação às palavras.
Por isso, Artaud (1995) quer “fazer aparecer ante os olhares um certo
número de quadros, e imagens indestrutíveis, inegáveis, que falarão
ao espírito diretamente.” (p. 38).
Como experiência vivida, Gilbert Durand destaca que o
símbolo se fixa no profundo do ser, tendo um poder de ressonância
que torna sua experiência mais duradoura, presente, pois foi
significativa e transformadora. Artaud (1993), neste mesmo sentido,
pretende: “[...] um teatro grave que, abalando todas as nossas
representações, insufle-nos o magnetismo ardente das imagens
e acabe por agir sobre nós a exemplo de uma terapia da alma cuja
passagem não se deixará mais esquecer.” (p. 81). O que ele busca
não é apenas momentâneo. Ele quer usar imagens dotadas de um
“poder de abalar e de encantar, que são uma contínua excitação
para o espírito.” (Artaud, 1993, p. 69). Muitos anos depois dele, o
encenador Peter Brook (1970) também atestou essa capacidade de
arrebatamento que a dimensão sagrada pode exercer, afirmando que
“não chegaremos a lugar nenhum se esperamos que elas [as imagens]
nos sejam explicadas, entretanto cada uma tem uma relação conosco
que não podemos negar. Se aceitarmos o símbolo, ele nos provoca
uma grande e pensativa exclamação.” (p. 57).
Essa relação entre imagem e seu conteúdo simbólico é
expressa por Durand (1988) como “uma representação concreta
através de um sentido para sempre abstrato.” (p. 15). É a isso que
Artaud (1993) parece se referir quando defende que “a linguagem das
palavras deve dar lugar à linguagem por signos, cujo aspecto objetivo
é o que mais nos atinge de imediato.” (p. 105). O termo objetivo, que
Artaud utiliza aqui, não deve ser compreendido como entendimento
direto, racional, mas sim como concreto, figurado, material. Não se
apreende totalmente o significado do símbolo, segundo Durand, mas
se percebe o símbolo em sua materialidade que é palpável, de contato
direto com o ser humano.

52
Artaud e o Teatro Sagrado

Artaud afirma que todas as coisas possuem um

[...] aspecto físico, ativo, exterior, que se traduz por gestos,


sonoridades, imagens, harmonias preciosas. Este lado físico é
endereçado diretamente à sensibilidade do espectador, isto é,
a seus nervos. Ele possui faculdades hipnóticas. Ele prepara
o espírito através dos nervos para receber ideias místicas ou
metafísicas que constituem o aspecto interior de um rito, do
qual estas harmonias ou estes gestos são apenas o invólucro.
(Artaud, 1995, p. 82).

Observa-se, aqui, que o lado físico é considerado como um


invólucro dotado de faculdades hipnóticas, que atraem e envolvem
fixamente os nervos (o corpo) abrindo caminho para a metafísica.
Durand também enfatiza que o símbolo atribui a um objeto
ou ação um novo valor, algo parecido com o que Artaud (1995) dizia
em relação à poesia: “a poesia é uma força dissociadora e anárquica,
que, por analogias, associações, imagens, vive apenas de uma
subversão de relações conhecidas.” (p. 83). A poesia é subversiva
porque ela, utilizando-se da palavra, distorce ou substitui o significado
atribuindo-lhe outro, rompendo com os padrões e valores de uma
racionalidade de sentido direto: “Compreende-se assim que a poesia
é anárquica na medida em que põe em questão todas as relações
entre os objetos e entre as formas e suas significações. É anárquica
também na medida em que seu aparecimento é a consequência de
uma desordem que nos aproxima do caos.” (Artaud, 1993, p. 36). A
poesia se aproveita das palavras e faz com que elas digam algo que de
outra forma não poderiam dizer.
As palavras possuem uma marca original e é possível
identificar a natureza delas, embora dotadas de uma carga nova.
A natureza da poesia, da arte e do símbolo é subversiva. O objeto
simbólico se distingue dos demais pois indica a presença de algo a
mais que não pode ser percebido de maneira imediata. Esse algo a
mais necessita da imagem, do figurado, por não encontrar um meio
completo para se manifestar. O símbolo possui um significante
concreto e um significado indizível.

53
Ismael Scheffler

Não há como separar a imagem simbólica de seu conteúdo,


pois os dois estão tão amplamente fundidos durante a manifestação
do sagrado que é impossível dissociá-los. Para Artaud (1993), “o
teatro deve tornar-se uma espécie de demonstração experimental da
identidade profunda entre o concreto e o abstrato.” (p. 106). Não
sendo possível separar um do outro, pois isso significaria a aniquilação
do símbolo. O símbolo não tem valor para si próprio, mas por si mesmo.
Na Hermenêutica Simbólica compreende-se que qualquer
objeto é passível de ser ressignificado, sendo tomado como um
símbolo. O argentino Raúl Fernando Nader, estudioso de Mircea
Eliade, sintetiza:

O símbolo, então, pode se valer de objetos, ações, situações,


gestos, sem por isso desvirtuar ou negar esse objeto ou
situação [...], o símbolo lhes acrescenta uma qualidade nova,
um sentido e uma referência que antes não tinham. Desta
maneira se diferenciam do resto porque fazem menção a
outra coisa que não são eles mesmos. Portanto, os objetos e
ações não têm valor como símbolos pelo que são em si mesmos,
mas pela realidade a que se referem. (Nader, 1997, p. 187).

Isto ajuda a compreender a necessidade que Artaud tem de


se valer de uma linguagem física, plástica, espacial, na qual todos os
elementos em cena ajam sobre o espectador. Até mesmo a palavra, que
passa a ser aceita na medida em que seja manipulada como “um objeto
sólido” (Artaud, 1993, p. 69), logo, um símbolo concreto. Para além
do sentido semântico, importa explorar a forma de dizer a palavra, suas
alternativas sonoras portadoras de outras referências e imagens, suas
possibilidades de encantamento pelas vibrações e qualidades de voz,
de ritmo, de entonação, que, para Artaud (1993), “devem constituir
uma espécie de equilíbrio harmônico, de deformações secundárias da
palavra.” (p. 90). A palavra é estabelecida do mesmo modo como, por
exemplo, um gesto sonoro e as glossolalias ganham importância para
ele. Esse aspecto já havia sido explorado anteriormente por outros
artistas do futurismo e do Movimento Dadá, que desvinculavam o
sentido semântico das palavras de sua enunciação fonética.

54
Artaud e o Teatro Sagrado

O símbolo, como materialização do sobre-humano


manifestado fisicamente, revela o divino e pode aniquilar “todos os
conflitos produzidos pelo antagonismo entre a matéria e o espírito,
a ideia e a forma, o concreto e o abstrato, [fundindo] todas as
aparências em uma expressão única que deveria ser semelhante ao ouro
espiritualizado.” (Artaud, 1993, p. 47). Essa alquimia que transforma
a matéria, depura-a de suas formas insuficientes realizando uma “fusão
inextrincável e única do abstrato e do concreto.” (Artaud, 1993, p. 47).
Artaud também compara o teatro à alquimia para expressar
a necessidade de primeiro transformar a crença no poder do teatro
para, então, conseguir realizar essa manifestação material. “A analogia
entre a Alquimia e o Teatro da Crueldade permite a Artaud abalar o
corte tradicional entre o abstrato e o concreto” (Felício, 2000, p. 146),
criando uma interdependência entre eles. Esperar, pela manifestação
do sagrado, o adensamento de uma “ideia” na matéria, querer a
epifania, é estar aberto ao transcendente, conseguir reconhecê-lo e
sentir suas influências.
O símbolo, para Gilbert Durand, tem a capacidade de
expressar múltiplos sentidos, sendo inesgotável em sua interpretação.
Ele não pode ser reduzido, delimitado, pois transborda em
significação, possui certa autonomia, não é domesticado, é amplo,
autônomo das restrições humanas. O símbolo nunca é compreendido
em sua totalidade absoluta, isso porque “pela própria natureza do
significado, é inacessível, é epifania, ou seja, aparição do indizível,
pelo e no significante.” (Durand, 1988, p. 14). O símbolo é portador
de numerosos sentidos, de aspectos misteriosos, ocultos e paradoxais,
que não é possível classificar apenas em um plano lógico ou conceitual
(Nader, 1997). Essa amplitude do símbolo é tratada também por
Artaud, que não quer se deter nos aspectos exteriores das coisas
num único plano: “No teatro oriental de tendências metafísicas,
oposto ao teatro ocidental de tendências psicológicas, as formas
apoderam-se de seu sentido e de suas significações em todos os
planos possíveis; ou, se quisermos, suas consequências vibratórias
não são tiradas num único plano, mas em todos os planos do
espírito ao mesmo tempo.” (Artaud, 1993, p. 69).

55
Ismael Scheffler

Conforme Gilbert Durand, o símbolo é sempre um modo


de conhecimento jamais adequado, porque qualquer imagem
é sempre insuficiente para conter o conteúdo transcendente.
Para Artaud (1995), “nenhuma expressão atua, a não ser graças
a uma força no fundo intraduzível e na qual todo signo, gesto
ou imagem existe apenas em estado de convocação, de imaginação
ideológica dessa força, e é feita [a expressão] apenas para invocar
o seu sentido.” (p. 100). Essa invocação alude ao fato de que a
amplitude do intraduzível é muito maior do que se poderia
abarcar.
Vista assim, a linguagem indireta, embora não possua a
clareza da palavra e mesmo que não seja totalmente apreensível,
mantém uma significação profunda para o espírito, algo que também
vislumbramos nas teorias de Artaud, que afirma que “existe no
domínio do pensamento e da inteligência atitudes que as palavras [são]
incapazes de tomar e que os gestos e tudo o que participa da linguagem
no espaço atingem com mais precisão do que elas.” (Artaud, 1993, p. 68).
Artaud se interessa por uma linguagem mais poética, mais
física no sentido das imagens concretas, menos verbal do que forma
como o teatro ocidental tratava a palavra, e ele reconhecia limites
nesse uso. Devido à insuficiência da palavra é que ele propõe deslocar
a centralidade do texto teatral para algo mais amplo: “Trata-se de
substituir a linguagem articulada por uma linguagem de natureza
diferente, cujas possibilidades expressivas equivalerão à linguagem
das palavras, mas cuja fonte será buscada num ponto mais recôndito
e mais recuado do pensamento.” (Artaud, 1993, p. 108). Para o autor,
há a necessidade de se reconhecer o teatro independente da palavra
escrita, da literatura, de forma que essa linguagem teatral própria possa
“levar o espírito a assumir atitudes profundas e eficazes [unindo] o
homem e as potencias que o ultrapassam.” (Artaud, 1993, p. 66).
Artaud combate a supremacia do texto: “A palavra é apontada
desde cedo (1931) por Artaud como a principal responsável pela
degenerescência do Teatro do Ocidente.” (Virmaux, 2000, p. 86).
Ele, porém, não pretende a exclusão total da palavra e sim que ela

56
Artaud e o Teatro Sagrado

seja colocada em uma dimensão mais simbólica, como nos sonhos:


“Não se trata de suprimir a palavra do teatro, mas de fazê-la mudar
sua destinação, e sobretudo de reduzir seu lugar, de considerá-
la como algo que não um meio de conduzir caracteres humanos a
seus fins exteriores.” (Artaud, 1993, p. 69). Isso corresponde, para
o pesquisador Alain Virmaux (2000), a uma elevação da palavra,
agregando uma força mágica para além de um uso simplório,
ganhando potência.
Luis Garagalza (1990) destaca que “Durand propõe uma
concepção hermenêutica da linguagem, baseada na revalorização
e reconhecimento dos aspectos materiais ou de conteúdos, assim
como na recuperação de um certo ‘materialismo energético’.” (p.
27, grifo do autor). Para Durand, conforme aponta Garagalza, a
palavra adquire um valor enquanto vivificada dentro de um discurso,
sendo uma figuração, simbolização de um sentido não objetivo,
mas subjetivo, podendo, portanto, ser dita de múltiplas maneiras,
encarnando-se em inúmeras formas. Ele também destaca que entre a
forma fonético-sintática (forma manifesta) e a significação (estrutura
profunda, latente) há uma ruptura de nível. O que está em jogo não
é uma leitura lógico-científica, mas uma interpretação simbólica
que passa pelo contexto vivenciado. Durand destaca que existem,
então, dois eixos metalinguísticos: a (meta)linguagem científica de
comunicação operativa e a (proto)linguagem simbólica, sendo que
a primeira é passível de verificação objetiva e a segunda consiste na
apreensão/interpretação intersubjetiva.
Para Eliade (1998), quanto mais rica a capacidade simbólica,
mais rica e dinâmica é a cultura, mais possibilidades o homem tem
de perceber outras formas de se instalar no mundo, de se aproximar
de outras culturas, o que permite a comunicação entre os homens.
O símbolo não apenas atua num nível subjetivo e psicológico, mas
também interfere e constitui as relações culturais e sociais.
Como forma de auxiliar sua expressão sobre o simbólico,
Artaud passou a explorar hieróglifos egípcios, ideogramas chineses e
pictogramas mexicanos, identificando um valor imaginativo:

57
Ismael Scheffler

Nesta nova linguagem, os gestos têm o valor das palavras, as


atitudes têm um sentido simbólico profundo, são capturadas em
estado de hieróglifos, e o espetáculo todo, em vez de ter em vista o
efeito e o charme, será para o espírito um meio de reconhecimento,
de vertigem e de revelação. (Artaud, 1995, p. 83).

O hieroglífico, seja na forma de gestos ou de atitudes,


assume essa característica de uma ação/imagem que se abre para
além de si mesma. O professor argentino Jorge Dubatti, afirma que
o sentido do teatro hieroglífico, longe de ser tautológico, promove o
desvelamento do mundo e sua revitalização – é um acontecimento
que se propõe a abrir uma nova forma de percepção. “O teatro
hieroglífico como signo de outra realidade, que amplia as fronteiras
do mundo material, objetivo e pragmático, assim como a dimensão
do tempo: o teatro como ponte e como habitat em si da realidade
outra do sagrado [...].” (Dubatti, 2002. p. 31, grifo do autor).
O termo hieróglifo, nos escritos de Artaud, às vezes é
empregado com “uma espécie de alfabeto”, outras vezes como uma
imagem evocativa. Ele usa de forma imprecisa alguns termos-chave, o
que dificulta a compreensão de algumas de suas ideias. Não é incomum
verificarmos o emprego de um mesmo termo com sentidos muitas
vezes contrastantes. Parte disto também ocorre porque ele modifica
seus conceitos ao longo de sua obra, ampliando-os. É pertinente
lembrarmos que os estudos sobre linguagem, sobre imagem e
conceitos como signo e símbolo foram sendo desenvolvidos ao longo
do século XX, não estando finamente elaborados por Artaud e nem
sistematizados por outros estudiosos no período de escrita do autor,
o que poderia tê-lo ajudado a dirimir suas dificuldades de expressar
suas ideias. Acredito que se assumimos os conceitos hermenêutico-
simbólicos e nos apoiamos neles como um corpus conceitual, torna-
se mais fácil acompanhar os conceitos por trás das palavras.
Conforme Durand (1988), o símbolo, que jamais é preciso,
carrega na imagem imanente uma transcendência jamais explícita,
sempre ambígua e frequentemente redundante. Essa redundância
simbólica não é de forma alguma agente de esgotamento ou

58
Artaud e o Teatro Sagrado

esterilização, mas, pelo contrário, auxilia no esclarecimento dos


símbolos, acrescentando-lhes um “poder” a mais, permitindo inclusive
uma classificação do universo simbólico. O autor acrescenta que a
redundância significante dos gestos constitui os símbolos rituais, no
contexto dos quais os gestos conferem uma atitude significativa aos
corpos e aos objetos. A redundância das relações linguísticas forma o
mito, no qual as repetições de certas relações lógicas e linguísticas entre
ideias ou imagens são expressas verbalmente. As imagens pintadas e
esculpidas que formam os símbolos iconográficos, estabelecem, por suas
cópias redundantes, os ícones instauradores de sentidos. Para Gilbert
Durand, as redundâncias míticas, rituais e iconográficas corrigem e
completam inesgotavelmente a inadequação do símbolo.

59
60
6.
Um teatro político

É possível falar em um teatro político de Artaud? Teatro metafísico,


teatro alquímico, teatro da crueldade, são definições que o próprio
autor propõe, na tentativa de definir e fazer entender suas propostas.
Mas, teatro político?
Artaud quer uma revolução, quer mudanças sociais
radicais. O teatro, para ele, é um meio para que essas mudanças
aconteçam. Erroneamente, suas propostas são muitas vezes
entendidas desconectadas de sua visão social e política. O autor,
todavia, não tem em vista uma revolução imediatista, nem propostas
político-partidárias. Aliás, esse foi um dos principais motivos de seu
rompimento com o Surrealismo, quando os surrealistas aderiram
ao comunismo (Arantes, 1988). Em uma conferência realizada no
México, em 1936, Artaud afirmou:

Será que Artaud pouco se importa com a revolução?,


perguntaram-me. Pouco me importo com a de vocês, não
com a minha – respondi, abandonando o surrealismo, pois
o Surrealismo também havia se transformado num partido.
Esta revolta pelo surrealismo, que a revolução surrealista
pretendia, nada tinha a ver com uma revolução que pretende
já conhecer o homem e o torna prisioneiro no quadro das
suas mais grosseiras necessidades. Os pontos de vista do
Surrealismo e do marxismo eram irreconciliáveis. (Artaud 9
apud Willer, 1986, p. 91).

Conforme Felício (1996), Artaud “tem consciência dos


problemas suscitados pela reificação dos homens e da nítida situação
de exploração reproduzida, dia após dia pela máquina capitalista.

61
Ismael Scheffler

Tem consciência dos problemas sociais-políticos e econômicos


de seu tempo.” (p. 115). Ele não mergulha em uma busca mística
desconectado da realidade que o cerca. Durante sua viagem ao
México, em 1936, publicou artigos e proferiu palestras publicadas
posteriormente como Mensagens Revolucionárias, “onde fala das
relações entre o materialismo histórico e o racionalismo europeu,
da presença do instinto de morte nesse racionalismo, da ausência de
uma revolução ao nível do sujeito.” (Teixeira Coelho, 1982, p. 76).
Em determinado momento afirmou ter ido ao México “em busca de
homens políticos, não de artistas.” (Willer, 1986, p. 84).
Analisando o capitalismo, Artaud reconhece que este não
consiste apenas em um modo de produção material, “mas em um
modo de produzir a vida.” (Arantes, 1988, p. 76). Por outro lado,
posiciona-se contra o comunismo e o critica porque acredita que este
se ocupa das mesmas questões que o capitalismo, apenas propondo
a transferência do poder da burguesia para o proletariado, atendo-
se à produção material, ao desenvolvimento técnico com fins de
melhoria das condições materiais da vida, atingindo assim “apenas as
aparências superficiais”. No Manifesto por um Teatro Abortado diz:

Para mim há muitas maneiras de entender a Revolução e


dentre estas maneiras, a Comunista me parece de longe a
pior, a mais reduzida. Uma revolução de preguiçosos. Não
me importa absolutamente, eu o proclamo bem alto, que o
poder passe das mãos da burguesia para as do proletariado.
Para mim a Revolução não está aí. Ela não será em uma
simples transmissão de poderes. Uma Revolução que pôs
na primeira fileira de suas preocupações as necessidades da
produção e que devido a este fato se obstina em apoiar-
se no maquinismo como um meio de facilitar a condição
dos operários é para mim uma revolução de castrados. E eu
não me alimento desta erva aí. Eu acho, ao contrário, que
uma das razões principais do mal de que sofremos reside na
exteriorização desenfreada e na multiplicação prolongada
ao infinito da força; ela reside também em uma facilidade
anormal introduzida nas trocas de homem para homem e
que não deixa mais ao pensamento o tempo de retomar raiz

62
Artaud e o Teatro Sagrado

nele mesmo. [...] Limitar-me-ei em dizer que a Revolução


mais urgente a realizar está em uma espécie de regressão no
tempo. Que nós voltemos à mentalidade ou simplesmente
aos hábitos de vida da Idade Média, mas realmente e por
uma via de metamorfose nas essências, e julgarei então
que teremos efetuado a única revolução de que vale a pena
que se fale. (Artaud, 1995, p. 39).

A pretendida revolução artaudiana queria explodir os


fundamentos do mundo moderno e “descentrar o fundamento atual
das coisas.” (Artaud10 apud Arantes, 1988, p. 77). O que pretendia
não era de fato um regresso ao medievalismo, quando imperava
a dominação de ideologias através da Igreja Católica. Ele queria
era eliminar a alienação do ser humano para com a vida cotidiana,
propondo uma volta a um “estado de vivência mítica”. Constatando
a decadência da sociedade ocidental em suas ideias, costumes e
valores, propôs uma “revolução inútil”, que não atingisse o imediato,
mas que trabalhasse no âmbito virtual, questionando e minando
os valores reinantes. Vera Lúcia Felício destaca isso ao afirmar que:
“Se o teatro é o meio escolhido por Artaud, é porque ele crê ser o
único meio que age diretamente sobre a consciência das pessoas,
portanto, um instrumento ativo e enérgico, capaz de revolucionar a
ordem social existente. [...] O Teatro da Crueldade só pode crer numa
revolução que atinja destrutivamente a ordem e a hierarquia dos valores
tradicionalmente aceitos como absolutos.” (Felício, 1996, p. 113). A
subversão desses valores é fundamental para Artaud. Ele reconhece
que a confusão e a ruptura fragmentam o indivíduo e a sociedade.
Por isso, acredita que a revolução precisa ocorrer “pela cultura, na
cultura”, na busca de uma revolução integral.
No prefácio de O teatro e seu duplo, reflete sobre a cultura
contrapondo duas diferentes formas de compreendê-la. Uma,
dominante na sociedade ocidental, coloca a cultura como algo
separado da vida, como um sistema de conhecimentos, informações,
instrução. Essa visão de cultura traz consigo uma noção elitista e
dualista – o culto e o inculto –, a ideia da “aquisição” de cultura que

63
Ismael Scheffler

remete a uma desconexão. “Como se de um lado estivesse a cultura


e do outro a vida; e como se a verdadeira cultura não fosse um meio
refinado de compreender e exercer a vida.” (Artaud, 1993, p. 4). Em
oposição a essa “idolatria da cultura”, ele apresenta a ideia da “cultura
em ação”, que se torna no homem como que um novo órgão, uma
espécie de segundo espírito que rege as ações mais sutis, o espírito
presente nas coisas. Artaud acredita na existência de forças latentes
capazes de se manifestarem pelo totemismo que o Ocidente não
mais considera. Essa cultura é a autêntica, segundo ele, e as relaciona
com os manas (que surgem pela identificação mágica). A cultura se
funde com a vida e a vida com a cultura, promovendo a integração
do ser humano. Assim, a dicotomia corpo e espírito do Ocidente,
presente na primeira definição de cultura, não encontra espaço na
segunda, porque não distingue as forças da natureza, das divindades
e do ímpeto humano que dá sentido à vida: “A verdadeira cultura
pressupõe uma modificação integral, mágica, do ser no homem,
numa união entre corpo e espírito, em que este último é cultivado no
corpo que, por sua vez, trabalha o espírito.” (Felício, 1996, p. 121).
A revolução aspirada por Artaud, passa de dicotômica a
fusional por meio de uma transformação na maneira da sociedade
compreender a vida. Ele possuía uma “fé revolucionária no plano mais
elevado e mais decisivo possível.” (Artaud, 1995, p. 108). O idealismo
artaudiano pretendia transformações nas estruturas mais profundas
da sociedade, na forma de viver suas relações, não como indivíduos
isolados, mas como um ser integrado ao social. Nesse sentido, queria
uma recuperação das raízes pré-modernas, quando a vida não podia
ser compreendida separada da religião. Dessa mesma forma, não há
para ele separação da arte e da vida, pois estão envolvidas pela mesma
força metafísica. A arte não se encontra como algo a ser apreciado,
mas como algo a ser vivido.
Artaud (1993) afirma que “no ponto de desgaste a que
chegou nossa sensibilidade, certamente precisamos, antes de mais
nada, de um teatro que nos desperte: nervos e coração.” (p. 81).
Através do teatro, ele pretendia abalar sensorial e espiritualmente o

64
Artaud e o Teatro Sagrado

espectador, “questionar organicamente o homem, suas ideias sobre


a realidade e seu lugar poético na realidade” (Artaud, 1993, p. 88),
desenvolver sua sensibilidade, colocá-lo em um estado de percepção
mais apurado para transformar a consciência. Artaud (1995, p. 108)
mesmo afirma que “a grande mudança que se prepara no domínio
social deve vir de cima. São as bases espirituais sobre as quais nós
vivemos e que devemos retomar completamente”. Os nervos e o
coração não estão dissociados, mas são veículo um para o outro.
“Não se separa o corpo do espírito, nem os sentidos da inteligência”
(Artaud, 1993, p. 83), logo, trata-se de uma revolução integral.
Felício, em seus estudos sobre o autor, destaca a existência destes dois
aspectos no Teatro da Crueldade: um físico, exterior (gesto, imagens,
sons), que é direcionado ao impacto pela sensibilidade do público,
e outro religioso ou filosófico, interior, constituído pelas ideias
metafísicas.
Artaud apontou várias formas objetivas para que o teatro
atingisse os nervos do público, mas sublinhou veementemente
que, caso haja estabelecimento de uma linguagem teatral fixa,
esta arruinaria o teatro, pois a cristalização de uma forma consiste,
segundo ele, no impedimento do movimento da cultura, do espírito.
É o rompimento da linguagem que pode tocar a vida e impedir a
idolatria.
O espaço é uma exigência do teatro, não apenas porque
reúne todas as linguagens, mas por ser um fator que age sobre a
sensibilidade nervosa. Artaud não o compreende apenas fisicamente
em suas dimensões, mas pretende utilizar seus “subterrâneos”. O
espaço é que permite o encontro e o acordo entre os homens. É nele
que a cultura, na forma compreendida pelo autor, ocorre, sendo
um impulsionador dos deslocamentos e movimentos culturais.
A linguagem espacial assume a função idêntica de transgredir o
mundo já estabelecido – também por isso o espaço teatral para
Artaud assume uma composição diferente dos espaços teatrais
convencionais. Ele, abandonando a literatura, se propõe a mergulhar
na “cultura corpórea-gestual-musical” (Felício, 1996, p. 121), ou

65
Ismael Scheffler

seja, mergulhar na cena, que é realmente a atividade e acontecimento


teatral – manifestação da cultura. O teatro artaudiano quer fazer o
espaço e fazê-lo falar, criando poesia no espaço através de imagens
materiais, simbólicas.
Embora parecessem utópicas as pretensões de Artaud para
transformar a sociedade, seus escritos tiveram grande influência no
trabalho e nas experimentações de inúmeros grupos e encenadores,
muitos com desejos semelhantes de revolução social, como os
estudantes revolucionários de 1968. Tanto Martin Esslin (1978)
quanto Teixeira Coelho (1982) destacam a influência do pensamento
artaudiano nas manifestações estudantis deste período.
Fato é que não há como pensar o teatro de Artaud sem
levar em conta a cultura e a organização da sociedade e de seus
valores, pois elas são motivações para a imersão no universo mítico
pretendido por ele e para a sua compreensão da função social do
teatro. Ele realmente difere de alguns encenadores e reformadores
do teatro no início do século XX, que ambicionavam interferências
políticas mais diretas. Artaud pretendia realizar sua revolução
considerando sua própria época, o contexto no qual estava imerso
e suas experiências pessoais, propondo uma nova ordem, ou talvez
seja melhor dizer, retomando uma antiga ordem mítica, ontológica.

66
7.
Mito no teatro de Artaud

O termo “mito” pode compreender vários significados, inclusive


contraditórios e inconciliáveis. Para alguns, mito tem o sentido de
conto, de lenda, entendido como ficção, uma inverdade. Outros
compreendem o mito como uma etapa pré-científica do homem,
como uma etapa na evolução humana (Nader, 1997), algo antecedente
à filosofia e à ciência. Desta maneira, supõe-se que o mito tenha tido
seu valor em um determinado momento e que, posteriormente, tenha
sido superado por outras formas mais evoluídas de pensamento.
Para a Hermenêutica Simbólica, o mito é o relato da irrupção
da ação do sagrado: “O mito é uma ‘história sagrada’, é também um
‘elemento da estrutura da consciência’ e não um estágio na história da
consciência humana.” (Nader, 1997, p. 147). O mito é uma narrativa
dramática ou histórica, na qual imagens arquetípicas ou simbólicas se
ligam umas às outras, formando um relato que possui características
do sagrado.
Artaud fez referência ao mito em vários momentos.
Criticava o teatro de sua época dizendo que ele não criava mais
mitos. O mito, segundo Mircea Eliade, é uma história verdadeira,
um relato do verdadeiramente real, que afeta a existência do
homem e lhe atribui um sentido. E parece ser por esse caminho que
seguia a crítica severa de Artaud, pois para ele, o objetivo do teatro
“não é resolver conflitos sociais ou psicológicos e servir de campo
de batalha para paixões morais, mas expressar objetivamente
verdades secretas, trazer à luz do dia através de gestos ativos a
parte de verdade refugiada sob as formas em seus encontros
com o Devir.” (Artaud, 1993, p. 66). O mito, tanto para Artaud

67
Ismael Scheffler

quanto para Eliade, cria oportunidade para se experimentar uma


realidade mais plena:

Criar Mitos, esse é o verdadeiro objetivo do teatro, traduzir


a vida sob seu aspecto universal, imenso, e extrair dessa vida
imagens em que gostaríamos de nos reencontrar. E com isso
chegar a uma espécie de similitude geral e tão poderosa que
produza instantaneamente seu efeito. Que ela nos libere, a nós,
num Mito que tenha sacrificado nossa pequena individualidade
humana, como Personagens vindas do Passado, com forças
reencontradas no Passado. (Artaud, 1993, p. 114).

O mito, segundo a proposta artaudiana, está no âmbito


do coletivo, integrando a humanidade em um único espírito, que,
por isso, é dotado de uma força poderosa. O mito não consiste,
portanto, em uma experiência de fuga introspectiva individualista,
mas em uma experiência de âmbito universal e de coletivização.
“O teatro deve igualar-se à vida, não à vida individual, ao aspecto
individual da vida em que triunfam as personalidades, mas uma
espécie de vida liberada, que varre a individualidade humana e em
que o homem nada mais é que um reflexo.” (Artaud, 1993, p. 114,
grifo do autor). Através do mito, o ser humano pode experimentar
a irrupção do sagrado, que faz do homem um ser aberto, e não
estritamente limitado a seu próprio modo de ser. O homem se
abre a si mesmo e ao transpessoal: ao outro e ao transcendente. “A
relação com o ‘outro’, com o ‘transcendente’, possibilita ao homem
sair da mera particularidade, do contingente, sair do isolamento,
para ascender ao universal e significativo.” (Nader, 1997, p. 93). Na
vivência com o mito, o homem se faz menos egocêntrico.
O homem que percebe que existe uma separação entre ele
e o todo, pode, por meio do mito, integrar-se à unidade do universo,
conferindo-lhe sentido. “O conhecimento mítico permite ao ser
humano não se perder na imensidão do universo, possibilita não apenas a
atribuição de um sentido à existência, mas fundamentalmente possibilita
a própria existência humana.” (Nader, 1997, p. 163). O mito orienta

68
Artaud e o Teatro Sagrado

e explica o mundo, os procedimentos, as existências, e proporciona


diferentes modelos de ação e formas de ser no mundo.
O mito, conforme Mircea Eliade e Gilbert Durand, permite
um retorno, um regresso libertador que é igualmente atemporal. A
compreensão do mito perpassa pela existência de denominadores
comuns entre o passado e o presente. Este denominador comum
não se constrói pela História, mas antecede-a. Existe como uma
herança, um fundo antropológico que reconcilia o homem através
do tempo, um referencial sincrônico próprio da espécie humana que
é composto pelas imagens arquetípicas. O mito cria uma rotura no
tempo histórico. Reinaugura o tempo original, abolindo o passado. É
eternamente presente, inesgotável. O mito reverte o tempo, permite
repeti-lo, recuperá-lo, regenerá-lo. O tempo se torna circular, o que
Eliade (2001) chama de “mito do eterno retorno”, em que o tempo
se regenera criando-se de novo. Esta fissura no tempo o aproxima
do transcendente, do princípio, saciando a “saudade do paraíso
perdido”.
No teatro de Artaud, não se trata de tentar compreender
os textos e as narrativas do passado realizando uma reconstrução
arqueológica de seu contexto para descobrir o “sentido originário”.
É contra isso que ele se revolta em relação ao teatro que zela pelas
obras-primas. A relação com o mito não consiste em “ressuscitar”
uma narrativa antiga, expondo seus segredos e seu sentido no
contexto em que surgiu. Não é meramente repetir ou ilustrar, mas
transmitir de maneira vivencial (pois a compreensão do mito vem
somente pela vivência). O mito hoje é possível pela experimentação
que o torna real, que atribua significado e funde a vida no presente.
Para se compreender um mito é preciso que ele seja vivido na
união com o todo, com o acontecimento original, como experiência
com o sagrado. O mito nunca é totalmente apreendido enquanto apenas
um conhecimento exterior conceitual. Gilbert Durand (1989) afirma
que “o mito nunca é uma notação que se traduza ou se decodifique,
mas é assim, [uma] presença semântica [que], formado de símbolos,
contém compreensivelmente o seu próprio sentido.” (p. 244). Ele ainda

69
Ismael Scheffler

diz que o mito não é traduzível pela lógica, pois isso implicaria em um
empobrecimento, uma passagem do semântico ao semiológico, que
reduziria o conteúdo apreendido pela vivência. É a compreensão segura
de algo que não se entende.
Em seu teatro idealizado, Artaud (1993) pretendia trabalhar
com temas “cósmicos, universais, interpretados segundo os textos
mais antigos, tirados das velhas cosmogonias mexicana, hindu,
judaica, iraniana etc” (p. 121), bem como com temas conhecidos,
populares ou sagrados. Ele oferece algumas indicações de programa,
citando autores e peças dramatúrgicas que forneceriam o eixo
narrativo do espetáculo que, por sua vez, seria inventado diretamente
no palco: “Woyzeck, de Büchner e várias outras obras, tiradas
de dramaturgos elisabetanos: A tragédia do Vingador, de Cyril
Tourneur; A duquesa de Amalfi e O Demônio branco, de Webster;
algumas obras de Ford etc.” (Artaud, 1995, p. 80). Também explicita
um programa no Primeiro Manifesto da Crueldade: adaptação de
Shakespeare, mesmo sendo um apócrifo, peça de Leon-Paul Fargue,
algo de Zohar (A história de Rabi-Simeão), Barba Azul, Tomada de
Jerusalém, segundo a Bíblia e a História, um conto do Marquês de
Sade, melodramas românticos, Woyzeck de Büchner, obras do teatro
elisabetano.
O que Artaud identifica em textos e relatos antigos que o faz
crer em seus teores míticos? Poderíamos empreender um estudo dos
textos referidos por Artaud tomando-os como mitos, para realizar um
estudo conforme as propostas da mitocrítica e mitoanálise de Gilbert
Durand (1993), observando o desenvolvimento diacrônico dos
relatos, e também as redundâncias dos mitemas (unidades mínimas de
sentido em que se pode decompor um mito), numa análise sincrônica,
estabelecendo-se uma correlação entre uma narrativa e outra para
identificar as convergências simbólicas e perceber as repetições e as
constelações estruturais entre um mito e outro. Uma análise de tal
natureza poderia revelar arquétipos e símbolos julgados, por Artaud,
necessários a serem trabalhados em seu Teatro da Crueldade. Mas
também poderíamos questionar a validade de tal estudo, uma vez

70
Artaud e o Teatro Sagrado

que o próprio Artaud, realmente, não tomou para si os textos das


peças mencionadas, os quais provavelmente sofreriam significativas
modificações, pois, como ele enfatiza, os textos seriam pré-textos que
se materializariam na cena (daí que ele poderia eliminar ou agregar
simbolismos e mitemas, ou ainda, até mesmo subverter os textos).
Felipe Reyes Palacios, em Artaud y Grotowski: ¿el teatro
dionisiaco de nuestro tiempo? (1991), ao estabelecer um paralelismo
entre o estudo de Nietzsche sobre os aspectos dionisíacos e apolíneos
presentes na tragédia grega e as propostas artaudianas, afirma
que o mito de Dionísio serve de instrumento mediador para que
Nietzsche elabore seu pensamento, sua especulação metafísica, ao
passo que Artaud careceria de um “mito reitor”, um modelo sobre
o qual apoiar seu pensamento. Palacios destaca que Artaud evoca
teoricamente diferentes referências (totemismo mexicano, teatro de
Bali, cabala, acupuntura chinesa), não encontrando “um mito reitor
que corresponda plenamente a sua concepção, ou ao menos um
grupo de mitos afins a partir dos quais finalmente pudesse deduzir
algo semelhante a um modelo.” (Palacios, 1991, p. 64). Essa falta
de um suporte condutor acarretou dificuldades ao próprio autor,
como, por exemplo, para “configurar e elaborar um método atoral
idôneo.” (Palacios, 1991, p. 67). Se tomamos os escritos de Artaud
de forma geral, poderíamos apontar a Cosmogonia, a necessidade
de destruição e recriação do Mundo, como temática mítica sempre
presente. Vera Lúcia Felício (1996, p.80) indica que “há, pois, um duplo
movimento inseparável: de um lado, a destruição da Existência e, de
outro, a reconstrução corporal de um novo homem, indo até o ‘sopro’
primordial da Vida.” No entanto, essa é a base de toda relação sagrada
– a irrupção do sagrado é sempre renovadora do mundo. Seja como for,
Artaud não toma o mito cosmogônico como mito reitor, da forma como
Nietzsche faz com Dionísio em A origem da tragédia (1999).
A proposta de Artaud é de encenar sem levar o texto em
consideração, ou seja, mantendo-se a essência, o núcleo, o argumento
sem estar preso à letra, à palavra, independente da escrita. Gilbert
Durand (1993) lembra que o mito é oral antes de ser escrito. É neste

71
Ismael Scheffler

estágio anterior ao texto que Artaud parece estar se colocando, ou


melhor, num estágio ainda anterior a esse: Durand considera que
a primeira dimensão simbólica é mecânica. A raiz da figuração
simbólica, a primeira linguagem, ocorre na expressão corporal, na
ação primeira: “A mímica, a dança, o gesto – o que Husserl chama
‘pré-reflexivo’ – estão antes que a palavra, e com maior motivo antes
que a escritura.” (Durand, 1993, p. 20). É nesse retroceder, nesse
primitivismo, que Artaud parece pretender localizar seu teatro,
um âmbito original e, por isso mesmo, profundo: a comunicação
humana que perpassa pela experiência sensorial. Talvez por isso, ele
queria “ligar o teatro à possibilidade da expressão pelas formas, e por
tudo o que for gestos, ruídos, cores, plasticidade, etc., devolvê-lo à sua
destinação primitiva, recolocá-lo em seu aspecto religioso e metafísico
com o universo.” (Artaud, 1993, p. 67). Se pudéssemos, partindo dessas
considerações, estabelecer uma “categorização” mítica, colocaríamos
em primeiro momento o gesto, depois a oralidade, e só então o texto.
A experiência com o sagrado pode ser tanto positiva quanto
negativa, de prazer ou de imensurável pavor. Rudolf Otto (1992),
precursor no estudo sobre o sagrado e um dos idealizadores de Eranos,
forjou o termo “numinoso”, referindo-se ao transcendente que pode
ser tremendo e pavoroso ao mesmo tempo. Esse aspecto é de suma
importância, pois as manifestações do sagrado podem ser tanto de
êxtase espiritual quanto de um pavor demoníaco. Raúl Fernando
Nader se refere ao numinoso como: “esta experiência misteriosa e
terrível que se pode sentir diante da manifestação da força infinita
e sobre-humana do ‘outro’, mostra a incomensurabilidade entre a
finitude, a precariedade, e os limites humanos, com o que está mais
além, com o transcendente, desbordante e também não humano do
poder do sagrado.” (Nader, 1997, p. 110). Essa força infinita que
chega ao finito humano revela, pelo contraste de suas extensões,
condições opostas que tanto podem impulsionar quanto eliminar
aspectos da vida humana.
A noção de crueldade apresentada por Artaud, de rigorosidade
cósmica, também se estende à abordagem tanto de crimes atrozes

72
Artaud e o Teatro Sagrado

quanto de afetos sobre-humanos, buscando extrair deles as forças


latentes que se agitam (Artaud, 1993, p. 82), assumindo o “reservatório
de energias que constituem os mitos.” (Artaud, 1995, p. 127). A
vertigem que o teatro pode provocar, o abscesso que pode ser vazado,
em nada se contradiz a um teatro que ressignifique a vida. Daí que, ao
se constatar uma variedade de temas propostos por Artaud, passando
pela violência, o pânico e o erotismo às cosmogonias arcaicas,
podemos compreender que a noção metafísica não está condicionada
a determinadas estéticas ou restrita a um número limitado de temas.
Existe, sim, uma variação de carga simbólica que pode funcionar em
diferentes níveis como “chaves profundas do pensamento e da ação”
(Artaud, 1993, p. 89), mas isso não condiciona a um determinado
“clima” preponderante, ao menos na forma como Artaud propunha.
A seriedade e o humor são quistos pelo encenador com seus diferentes
aspectos e contribuições.
Artaud (1993) também pretendia, em seu programa do
Teatro da Crueldade, encenar “um ou vários melodramas românticos
em que a inverossimilhança se tornará um elemento ativo e concreto
de poesia.” (p. 97). Ele não apresenta os melodramas com um
interesse apenas em sua temática, em sua narrativa, mas destaca um
interesse no estilo do gênero. Innes (1992) estabelece uma análise,
defendendo que, entre as propostas do Teatro da Crueldade e do
melodrama, existem pontos em comum, especialmente em relação
à interpretação. O melodrama possui um estilo de atuação que
poderia ser considerado “antinaturalista”, com gestos exagerados, de
“extremas manifestações físicas de emoção” e fórmulas repetitivas,
também subordinando a palavra à ação. O autor ainda acrescenta que

[...] o melodrama gótico, quase religioso, que empregava


demônios, fantasmas e toda a maquinaria do sobrenatural,
que encarnava uma visão metafísica da vida no conflito entre
a virtude e o vício absolutos e sublinhava fatos às custas da
caracterização, se justificando apenas por provocar a participação
emocional de sua audiência, compartilha muitas das qualidades
do teatro da crueldade de Artaud. (Innes, 1992, p. 103)

73
Ismael Scheffler

Viver o mito implica numa ruptura no tempo e no espaço


cotidianos, uma saída do banal, do comum, das coisas estratificadas
e imperceptíveis: um movimento do profano ao âmbito sagrado.
“O relato de um mito, por seu conteúdo sagrado e exemplar, deve
ser realizado sob condições especiais, distintas daquelas em que se
relata outro tipo de histórias. Necessita determinado tempo e um
determinado lugar.” (Nader, 1997, p. 155). Logo, necessita de um
rito que o instaure e dê as condições para que o mito seja revivido.

74
8.
Caos

Artaud recorre com certa frequência aos termos caos e cosmos. Ele
compreende estes termos num sentido genérico, como ordem e
desordem. Mas em meio a suas concepções podemos ir além, num
estudo que aborde caos e cosmos de forma mais profunda.
Mircea Eliade, importante cientista das religiões, em seu
livro O Sagrado e o Profano (2001), destacou estas duas formas,
sagrado e profano, como distintas formas de experiência, como duas
situações existenciais que expressam diferentes maneiras de ser no
Mundo. Essas duas formas existenciais nos permitem compreender as
distinções entre Caos e Cosmos, e a negação ou afirmação de Artaud
sobre essas situações. Na experiência profana, afirma Eliade, espaço
e tempo são homogêneos e neutros, não havendo neles nenhuma
rotura que indique diferenças de qualidade entre as partes. No tempo
e no espaço profano não existe referência ou orientação, inexistindo
estruturas ou consistência, sendo ambos, portanto, amorfos.
Por outro lado, Eliade afirma que, na dimensão sagrada, o
espaço e o tempo são heterogêneos: eles apresentam roturas, quebras,
existindo porções qualitativamente diferentes umas das outras.
Há, portanto, um espaço e um tempo “fortes”, significativos, que
estabelecem, pela experiência vivida, o único mundo que realmente
existe. Essa diferença de “força” se define a partir da manifestação do
sagrado, a epifania. Conforme Eliade, é a manifestação do sagrado que
funda ontologicamente o mundo, atribuindo-lhe forma e sentido.
É na quebra do espaço e do tempo profanos que se torna
possível a constituição do Mundo/Cosmos, pois é a manifestação do
sagrado que santifica e recorta uma determinada zona desse espaço e
tempo profanos.

75
Ismael Scheffler

O Cosmos é justamente o Mundo fundado, carregado


de conteúdo e significação, orientado, organizado, possuído e
consagrado previamente, que fixa os limites e estabelece a ordem
cósmica. O Cosmos surge a partir do Caos mediante uma epifania
que transfigura o lugar desta irrupção do sagrado. Ou seja, o mundo
se torna Mundo/Cosmos e à medida que o transcendente se revela.
A recriação do mundo renova a vida, a existência. Para Eliade (2001),
“uma criação implica superabundância de realidade, ou, em outras
palavras, uma irrupção do sagrado no mundo.” (p. 44).
É no mundo fundado e orientado que o ser humano pode
se instalar. E é nesse ato de transformação do Caos em Cosmo que se
repete a cosmogonia. “O que deve tornar-se ‘o nosso mundo’, deve
ser ‘criado’ previamente, e toda criação tem um modelo exemplar:
a Criação do Universo pelos deuses.” (Eliade, 2001, p. 34). O Caos
consiste, então, da ausência de sentido, de significação, de identidade
– pois é o Mundo, pela manifestação transcendente, que fornece a
orientação.
Todo ser humano, por mais que se declare descrente de um
poder transcendente, vivência experiências cosmogônicas, ou seja,
experiências de renascimento, com maior ou menor intensidade,
como experiências significativas que vivenciou, que lhe inspiram e
reanimam, como algum lugar nostálgico da infância, ou uma música
marcante. Pois, conforme Eliade (2001), “não se pode viver sem uma
‘abertura’ para o transcendente, em outras palavras, não se pode
viver no ‘Caos’. Uma vez perdido o contato com o transcendente, a
existência no mundo já não é possível.” (p. 36).
Ao olharmos para as propostas artaudianas, podemos
reconhecer que o teatro para Artaud tem a função de transformar o
caos em cosmos. Ele, por sua vez, vê a vida em sua atualidade como
caótica, num estado de degenerescência, um período angustiante
e catastrófico que precisa ser recriado através de um “turbilhão
de vida que devore as trevas”. Logo, poderíamos dizer que seu
mundo se encontra em Caos e a isso ele dá grande atenção. O
teatro tem para ele a função de transformação: deve sacudir o

76
Artaud e o Teatro Sagrado

homem para que reencontre uma vida apaixonada, inteira, para


ser um homem total.
Porém o autor, a princípio, não nega o Caos. Pelo contrário,
quer evidenciá-lo, e isso está presente em seus escritos constantemente,
através das imagens que evoca, como a peste, a destruição, a violência,
a convulsão, a anarquia, o crime, o abscesso, a perturbação, bem
como nas propostas que apresenta para a cena, no uso de ruídos
insuportáveis, objetos com formas e destinação desconhecidos, gestos
impulsivos, a sobreposição de imagens.
O Caos, além de ser onde o mundo se encontra, é para
Artaud também a possibilidade de solução. “Se o teatro, como a
peste, é uma epidemia, esta é salvadora, na medida em que provoca
uma crise nas coletividades que só podem reencontrar seu equilíbrio
após uma destruição.” (Felício, 1996, p. 88). O teatro é buscado e
assumido como o caminho fundamental para a instalação do Cosmos.
Questionar a linguagem e a realidade é se dedicar à desestruturação,
é propor um conflito que desestabilize o mundo e remeta a outro
distante e esquecido, desorganizado segundo os padrões da razão –
uma dimensão que considera o irracional como elemento central.
Transgredir os limites é evocar o Caos.
Se o mundo é caótico, poderíamos afirmar que, para Artaud,
é preciso criar o Caos dentro do Caos, para que nele possa haver a
morte e o renascimento. É preciso desestruturar a desestrutura,
matar a morte. Pois “a cada final, a cada escatologia segue sempre
uma cosmogonia.” (Nader, 1997, p. 181). Apregoar o Caos é, assim,
uma exigência para o Cosmos, como afirma Eliade, em seu livro Mito
e realidade:

Para que algo de verdadeiramente novo possa ter início,


é preciso que os restos e as ruínas do velho ciclo sejam
completamente destruídos. Em outros termos, para a
obtenção de um começo absoluto, o fim do Mundo deve
ser radical. A escatologia é apenas a prefiguração de uma
cosmogonia do futuro. Mas toda escatologia insiste em um
fato: que a Nova Criação não pode ter lugar antes que este

77
Ismael Scheffler

mundo seja definitivamente abolido. Não se trata mais


de regenerar o que degenerou – mas de destruir o velho
mundo a fim de poder recriá-lo in toto. A obsessão da
beatitude dos primórdios exige a aniquilação de tudo o
que existiu e que, portanto, degenerou após a criação do
Mundo: é a única possibilidade de restaurar a perfeição
inicial. (Eliade, 1998, p. 51).

Artaud não fixa os limites, não estabelece metodologias e


técnicas. Artaud não funda um mundo teatral próprio, não realiza, de
fato, materialmente a criação – ele permanece na desordem cósmica,
com propostas caóticas, mas que visam a instalação de um novo
Mundo. Como afirmou a pesquisadora Vera Lúcia Felício (1996):
“O Teatro da Crueldade é um teatro da ‘ambivalência’: a ilusão aí é
verdadeira, há uma destruição construtiva e uma desordem ordenada.
Rigor e anarquia misturados fazem do Teatro da Crueldade a ‘gênese
da criação’, o espaço onde se dão as antinomias, fontes da vida.” (p. 86).

78
9.
Rito e teatro

Ao escrever sobre o Teatro de Bali, Artaud faz várias referências


aos gestos rituais e aspectos ritualísticos deste. O autor destaca
certa mecanização gestual dos atores-bailarinos, a precisão fixada,
bem como o desempenho com certa solenidade. Apesar dessas
indicações sobre os gestos e a atitude dos atores, não é meramente o
cumprimento de ações rígidas pré-existentes que caracteriza o rito. A
realização daquelas ações corresponderia à utilização de gestos, sons
e objetos de forma pouco significativa. Felipe Reyes Palacios (1991)
adverte que muitos trabalhos contemporâneos inspirados em Artaud
incorrem no erro de se apropriarem de imagens “sagradas”, em uma
“idolatria das formas”, questão também destacada por Peter Brook,
em O teatro e seu espaço (1970). Muitos artistas do teatro ocidental,
interessados em um teatro sagrado, acabam se preocupando com
a forma ou o aspecto ritual; acreditam que se tomarem formas
cerimoniais de alguma tradição religiosa ou esotérica consideradas
sagradas, porão o público em comunhão com o metafísico só por
se tratar de meios rituais “de eficácia comprovada” em sociedades
arcaicas ou tradicionais, como se somente a forma dos elementos
cênicos fosse suficiente para isso (Palacios, 1991).
Artaud considerava fundamental uma renovação formal,
distanciando-se do naturalismo em voga. Quando escreve sobre a
restituição dos aspectos religiosos e metafísicos, não se refere a uma mera
apropriação. De fato, por não ter realizado suas propostas e por não ter
elaborado sistematicamente suas ideias, Artaud parece abrir margem
a essa distorção, ideia também partilhada pelo pesquisador brasileiro
Cassiano Syndow Quilici (2004) que, apropriadamente, relembra que

79
Ismael Scheffler

“a ausência de método e a linguagem cifrada dos escritos artaudianos


teriam aberto espaço para esse tipo de apropriação.” (p. 137).
Porém, Artaud (1993) afirma que “há toda uma profusão
de gestos rituais cuja chave não temos e que parecem obedecer a
determinações musicais extremamente precisas, com alguma coisa
a mais que não pertence em geral à música e que parece destinada
a envolver o pensamento, a persegui-lo, a conduzi-lo através de uma
malha inextrincável e certa.” (p. 53, grifos meus). Estes gestos, como
o rito, possuem algo de envolvente, não perceptível de imediato.
Como atesta Raúl Fernando Nader (1997), “as ações rituais estão
destinadas em primeiro lugar a preparar o homem para poder
ascender ao sagrado” (p. 278).
Conforme Eliade, o sagrado é uma das modalidades de ser
no mundo. O sagrado irrompe no mundo profano, regenerando-o,
fazendo com que, por meio de uma epifania, o universo e o homem
sejam renascidos. O sagrado revela uma instância superior além da
transitoriedade da vida, atribuindo a ela um valor diferenciado.
Artaud prevê uma série de recursos e efeitos cênicos para
o teatro a fim de envolver, ampliar as experiências, e impactar o
público. Alguns destes meios são apresentados de forma inovadora,
algumas de suas propostas apareceram também em outros
encenadores e em outras pesquisas. Christopher Innes salienta
que se pode estabelecer relações das propostas de Artaud com a
Bauhaus, onde se realizavam experiências tomando o teatro como
arte espacial empregando sequências rítmicas criteriosamente
marcadas (Ballet Triádico). O questionamento da centralidade do
texto também não era exclusividade de Artaud. Roubine (1998)
aponta Edward Gordon Craig, Vsevolod Meyerhold e Gastón
Baty, além de Artaud, como precursores nesse ponto.
É importante destacar que a multiplicidade de formas
de expressão que Artaud propõe para seu teatro não possui um
fim em si mesma, antes ele pretende conduzir o espectador para
algo além, para outras dimensões da experiência, ampliando as
relações com o real. Ele vislumbra novas possibilidades para a

80
Artaud e o Teatro Sagrado

encenação através da utilização de ecos, reflexos, manequins,


“escorregaduras”, “cortes” (Artaud, 1995, p. 54),

gritos, lamentações, aparições, surpresas, golpes teatrais de


todo tipo, beleza mágica das roupas feitas segundo certos
modelos rituais, deslumbramento da luz, beleza encantatória
das vozes, encanto da harmonia, raras notas musicais, cor
dos objetos, ritmo físico dos movimentos cujo crescendo
e decrescendo acompanhará a pulsação de movimentos
familiares a todos, aparições concretas de objetos novos
e surpreendentes, máscaras, bonecos de vários metros,
mudanças bruscas da luz, ação física da luz que desperta o
calor e o frio etc. (Artaud, 1993, p. 89).

Esses recursos, além de dinamizarem, enriquecem o leque de


imagens passíveis de serem utilizadas, podendo conduzir a diferentes
vivências e sensações, a experiências distintas do cotidiano, do teatro
e da linguagem logocêntrica, sendo potencialmente evocadores. Para
Quilici (2004), Artaud propõe “[...] uma linguagem que, mais do
que representar, pretende ser um modo de agir e afetar.” (p. 32).
Para a Hermenêutica Simbólica, o rito é uma das maneiras
de o homem participar do sagrado. O rito não é apenas uma forma ou
uma sucessão de ações repetitivas por hábito ou por pertencerem à
determinada situação, como ações exteriores. O encontro do homem
com o sagrado é o motivo central do rito, no qual ambos deixam de
ser realidades separadas e se fundem em uma unidade (Nader, 1997),
uma vez que a manifestação do sagrado ocorre somente pela vivência
pessoal, pela experiência.
Artaud, no Manifesto por um Teatro Abortado, esboça esta
ideia de operação no espírito, transformando não apenas palavras,
ações ou objetos, mas alterando o âmago da vida:

Não é ao espírito ou aos sentidos dos espectadores que nos


dirigimos, mas a toda sua existência, a deles e a nossa. [...]
Uma parcela de nossa vida profunda está engajada aí dentro
[...]. O espectador que vem ver-nos sabe que vem oferecer-se

81
Ismael Scheffler

a uma operação verdadeira, onde não somente seu espírito,


mas também seus sentidos e sua carne estão em jogo. Ele
irá doravante ao teatro como vai ao cirurgião e ao dentista.
No mesmo estado de espírito, pensando, evidentemente,
que não morrerá, mas que é grave e que não sairá de dentro
inato. (Artaud, 1995, p. 31).

O rito é um espaço de ação, para realizá-la e para sofrê-la, lugar


de acontecimento, lugar de epifania. O rito se distingue de manifesto
teológico, pois nesse âmbito trabalharia para a elaboração de um
produto, a apresentação de uma ideia, de um conceito, de um conjunto
de dogmas, de um espetáculo, e deixaria de ser um espaço aberto de
produção, podendo ser simplesmente consumido pelo espectador. Seria
o que Urias Corrêa Arantes, em Artaud: teatro e cultura (1998), chama
de “palco teológico”, dominado pela palavra que governaria a cena de
fora. O rito não é um produto apreciável, observável – é um encontro,
“a chave de acesso ao mundo sobrenatural e verdadeiro.” (Nader,
1997, p. 277). Ele restabelece as forças do mundo e o reconstrói por
meio da celebração mítica.
Artaud trabalha com a palavra repetição aplicando-a em
dois sentidos diferentes. O primeiro, uma repetição da forma vazia,
automática, sem vida. Na citação a seguir ele emprega o termo “rito”
no sentido de simples repetição de ações, desprovido de um sentido
maior: “um espetáculo que se repete todas as noites segundo os
mesmos ritos, sempre idênticos a si próprios, não pode conquistar
nossa adesão. Temos necessidade de que o espetáculo ao qual assistimos
seja único, que ele nos dê a impressão de ser imprevisto e tão incapaz
de se repetir quanto qualquer ato da vida, qualquer acontecimento
trazido pelas circunstâncias.” (Artaud, 1995, p. 33-4).
Em contrapartida, deslumbra-se com os gestos do Teatro de
Bali e aspira que seu Teatro da Crueldade seja marcado do começo ao
fim, o que impediria movimentos perdidos (Artaud, 1993), ocorrendo
a repetição precisa. Isso é reforçado quando ele menciona que os
espetáculos “serão rigorosamente elaborados e pré-estabelecidos
definitivamente antes de serem encenados.” (Artaud, 1995, p. 83).

82
Artaud e o Teatro Sagrado

A repetição está relacionada diretamente ao tempo, que, nestes dois


casos, é também distinto: a repetição estéril se situa dentro de um
tempo que nada envolve, qualitativamente igual, um tempo profano; a
repetição com sentido, está no âmbito do sagrado, algo relacionado ao
que afirma Nader (1997): “quando a ação [ritual] termina, o homem
sai renovado e integrado a um cosmos pleno de sentido e significação.”
(p. 282). A pessoa tem acesso, pelo rito, a essa supra realidade que
transfigura a si e ao seu esquema de vida.
O rito atualiza um evento sagrado dos primórdios, que
está colocado em um mito. A vivência deste mito, por meio do rito,
provoca uma saída da duração temporal ordinária, uma parada
periódica na duração temporal profana, criando um tempo sagrado
que não se esgota. Esse tempo é “circular, reversível e recuperável,
espécie de eterno presente mítico que o homem reintegra
periodicamente pela linguagem dos ritos.” (Eliade, 2001, p. 64). No
rito, tudo é regenerado, criado de novo, renovado no que se gastou.
E nisso o homem se identifica com o ato cosmogônico de destruição
e recriação do Mundo.
O rito cosmogônico é terapêutico, pois a partir dele a
existência começa outra vez. “É graças a este eterno retorno às fontes
do sagrado e do real que a existência humana parece salvar-se do nada
e da morte.” (Eliade, 2001, p. 94). A vida não pode ser reparada, mas
somente recriada pela repetição simbólica da cosmogonia. Encontrar
um tempo sagrado não é desejar apenas o contato com os deuses,
mas é recuperar o mundo puro, que atende a uma nostalgia do Ser.
Mircea Eliade (2001) declara que “é preciso retornar à ‘página branca’
da existência, ao começo absoluto, quando nada se encontrava ainda
maculado, quando nada estava ainda estragado.” (p. 59). Parece ser
nesse sentido que a repetição para Artaud tem razão de ser, na medida
em que propicia ao homem reatar com a Vida e não se separar dela. O
ato teatral como ato ritual não o é pela aparência, mas pela finalidade:

Não se trata de levar ao palco temáticas religiosas, que seriam


representadas de forma mais ou menos convencional. O
teatro sagrado não é aquele que necessariamente trabalha

83
Ismael Scheffler

com “temas religiosos”. Mais do que falar sobre, o que se


pretende é proporcionar uma experiência do sagrado. O rito,
portanto, não deve ser compreendido como expressão formal de
um conteúdo religioso. Ele deve possuir um poder operatório,
desencadeando uma vivência de natureza singular, “mítica”,
mas num sentido arcaico e primitivo. (Quilici, 2004, p. 38).

Um fator característico dos ritos é o seu sentido de


coletividade. Conforme Nader (1997), mesmo que um rito seja
individual, está respaldado pela aprovação de um grupo social, e todo
grupo se expressa através dele. Palacios (1991) destaca que “os ritos
surgem no seio dos grupos reunidos e derivam sua legalidade das
necessidades sociais que satisfazem, por isso a forma que assumem é
eminentemente coletiva.” (p. 90). Na medida em que Artaud pretende
um teatro ritual, poderíamos perguntar quem é o coletivo que o cria
e mantém sua existência. Haveria como identificar uma unidade
social que partilhasse das mesmas necessidades espirituais com fins a
reviver experiências de renovação comuns? Se considerarmos que as
sociedades ocidentais são multifacetadas, poderíamos supor, então,
que um teatro sagrado implicaria numa formação ou afirmação
de “redutos” ou segmentos. No entanto, a arte em geral, embora
proclamada a se destinar a todos, não acaba por fim se restringindo
a “redutos” que percebem que, de alguma forma, a arte, aquela arte
lhe é necessária?
No primeiro manifesto do Teatro da Crueldade, Artaud
estabelece vários tópicos sobre os quais discorre a respeito de
sua proposta de espetáculo (como linguagem de cena, roupas, a
sala, entre outros). Ao tratar sobre o público, diz simplesmente:
“Primeiro, é preciso que haja esse teatro.” (Artaud, 1993, p. 98).
Com essa declaração, parece se esgueirar da questão, ou crer que, ao
ser realizado, o público se reuniria por se identificar com a proposta,
como se a existência do espetáculo da crueldade fizesse com que as
pessoas percebessem sua própria necessidade latente. Christopher
Innes elabora críticas afirmando que Artaud “trabalhou em busca
de efeitos psicossociais sem considerar exatamente a quem afetariam.

84
Artaud e o Teatro Sagrado

Para que seu estilo fosse apropriado a suas metas, Artaud teria que
considerar as pautas de conduta estabelecidas dos espectadores, já
que só assim poderia predizer acertadamente as respostas e selecionar
sequências de imagens para obter reações precisas.” (Innes, 1992, p. 110).
Essa questão, no entanto, não foi desenvolvida significativamente nos
escritos de Artaud.
Outro aspecto relacionado ao público é abordado por Jorge
Dubatti, quando ele lembra que, na proposta de Artaud, o público
“perde a distância de observador do acontecimento teatral e se fusiona
de tal maneira que deixa de ser espectador para se transformar em
participante-oficiante” (Dubatti, 2002, p. 35) da cerimônia mágica.
Dessa maneira, não existiria mais uma simples recepção estética de
um objeto artístico por parte do espectador. Artaud, contudo, não
define o que seria essa participação que parece implicar ação. Para
Bernard Dort, este seria o grande defeito do O teatro e seu duplo:
“sonhar com um teatro sem pensar num público; preconizar um
grande teatro de participação sem se interrogar sobre a natureza e o
papel dessa participação.” (Dort11 apud Virmaux, 2000, p. 200). Vale
lembrar, no entanto, que nos ritos xamânicos nem todos os que o
assistem necessariamente fazem parte da ação – alguém faz por eles
e eles compactuam com o que está sendo feito. Participam porque
atestam e partilham, aprovam e fazem parte:

[...] ritos não operam com a divisão palco-platéia, mas com


diferentes níveis de participação num acontecimento. Se há
aqueles que conduzem o desencadeamento das ações, em
função de um saber que os diferencia, os demais não estarão
ali apenas para ver, ouvir ou “ler” o que lhes será apresentado.
Deverá haver uma predisposição outra de “coparticipação”,
uma mobilização corporal mais intensa, uma predisposição
ao risco. (Quilici, 2004, p. 194).

Artaud acreditava no teatro como atividade social, coletiva,


com potencial de transformação da cultura. Por outro lado,
parece idealizar um rito que permanece unicamente dentro de si,
composto por múltiplas fontes de diversas culturas, sem interação

85
Ismael Scheffler

com pesquisas teóricas sistematizadas (mas sendo teorizador),


elaborado principalmente por sua intuição, como reflexo de um
anseio pessoal, uma necessidade interna. As referências que Artaud
lidou corresponderiam, assim, a subsídios que o inspiraram em sua
elucubração.
Também com relação ao desempenho do diretor e dos atores,
Artaud não aprofundou muito, esboçando ideias sem delinear com
precisão metodologias de trabalho. Ele propõe a unificação da figura
do diretor e do autor como o criador absoluto desse universo, “uma
espécie de ordenador mágico, um mestre de cerimônias sagradas.”
(Artaud, 1993, p. 56). E define o ator tomando-o “ao mesmo tempo
[como] um elemento de primeira importância, pois é da eficácia de
sua interpretação que depende o sucesso do espetáculo, e [como]
uma espécie de elemento passivo e neutro, pois toda iniciativa pessoal
lhe é rigorosamente recusada.” (Artaud, 1993, p. 95). Essa descrição
se aproxima da definição de xamã, que, sendo o centro do rito, age
segundo um poder superior recebido que se apossa do homem e se
manifesta através dele, levando-o à nulidade do seu eu para dar lugar
à força sobrenatural, uma possessão, um transe.
Essa ideia de transe poderia ser compreendida como um
delírio anárquico, desregrado, uma histeria descontrolada; Alain
Virmaux, porém, em Artaud e o teatro (2000), desenvolve uma
abordagem bastante esclarecedora sobre esse aspecto, lembrando
que os transes sempre ocorrem dentro de um momento previsto nas
liturgias dos ritos, e que Artaud pretende o transe através de métodos
calculados e não enlouquecidos. Podemos concordar com Virmaux
no sentido de que, para Artaud (2000), “trata-se na verdade de mudar
de pele, de se deixar habitar pelas forças mágicas” (p. 49), tanto para os
atores quanto para os espectadores. Entrar em contato com o sagrado
pelo transe provoca uma fusão entre o homem e a força sagrada,
transformando essas duas realidades distintas em uma unidade que
é extremamente significativa, visto que o sagrado se revela e se deixa
conhecer, atribuindo ao homem que o experimenta um novo valor,
sendo partícipe da santidade. A perda do próprio corpo, e a possessão

86
Artaud e o Teatro Sagrado

dele novamente, implica num processo de “cosmização”, destruição


e recriação do Mundo-corpo, pois, como destaca Eliade (2001),
existe uma correspondência entre o corpo e o Cosmos. Entregar-se
ao divino e deixar que ele o habite é experimentar a passagem de um
corpo condicionado a um corpo não-condicionado, totalmente livre,
aberto, entregue, renascido. A ideia do corpo sem órgãos perpassa
pelo desejo de um ser humano liberto dos condicionamentos e
automatismos físicos e mentais.
Innes lança um olhar para os espetáculos realizados por
Artaud no período do Teatro Alfred Jarry (1926 a 1929), e destaca,
nessas produções, aspectos presentes nas propostas subsequentes
de Artaud. Esse pesquisador enfatiza a pouca exploração desses
espetáculos como forma de se compreender Artaud. No entanto, é
necessário também reconhecer que o próprio Artaud não os utiliza
significativamente como referência para seus escritos posteriores
sobre o Teatro da Crueldade.
O que poderíamos tomar como modelo teatral mais próximo
à concretização das propostas de Artaud seria seu espetáculo Os Cenci,
apresentado em 1935, poucos meses depois de publicados seus
manifestos do Teatro da Crueldade (o que gerou grande expectativa
na época).
Artaud trabalhou com uma adaptação da história da família
italiana Cenci, baseado nos textos de Stendhal e Percy Shelley.
O encenador via na história aspectos potenciais míticos (do pai
destruidor).

De maneira geral, a história de Les Cenci gira em torno da


personagem do conde Francisco Cenci. As fontes históricas
trabalhadas por Stendhal nos falam de um homem muito
rico nascido em 1526, filho do tesoureiro do Papa Pio V.
Tornou-se célebre por sua violência e pelos inúmeros casos
extraconjugais que lhe valeram diversos processos, dos
quais se livrava através de subornos. Afirmava o ateísmo
numa época caracterizada pela perseguição às heresias e
pelo trabalho da Inquisição. Tinha sete filhos, entre os
quais a jovem Beatriz, célebre por sua beleza, retratada em

87
Ismael Scheffler

diversos quadros da época. [...] Beatriz tinha então dezesseis


anos. [...] Na primeira cena da peça de Artaud, Francisco
Cenci recusa-se a se arrepender de suas faltas diante de um
representante do Papa (Camilo). Promete, ao invés disso,
uma sucessão de crimes, atingindo sua própria família,
reservando os requintes de crueldade para sua filha. Na cena
3 do primeiro ato, promove um banquete orgiástico com
membros da Igreja e do Estado, bebendo simbolicamente o
sangue dos próprios filhos. Na sequência da trama, violenta
Beatriz, que não confia mais na possibilidade de seu pai ser
julgado e condenado pelas instituições. A filha resolve então
fazer justiça por conta própria: contrata dois criados para
assassinar o pai. O crime é descoberto e Beatriz acaba sendo
presa pela Igreja e obrigada a assinar sua confissão. Na versão
de Artaud, ao invés da guilhotina, Beatriz é condenada
a morrer torturada numa roda, instrumento típico da
Inquisição. (Quilici, 2004, p. 148-149).

O espetáculo, que escreveu, dirigiu e atuou, marca a


despedida de Artaud dos palcos. O espetáculo ficou muito aquém
do ideal artaudiano, recebendo inúmeras críticas desfavoráveis, o
que faz com que os estudiosos de Artaud se empenhem por tentar
compreender os motivos de tal frustração.
Para Palacios (1991), a encenação de Os Cenci “não obteve
os frutos apetecidos, entre outras razões, por não ter conseguido
estabelecer uma forma precisa de relação entre diretor e ator,
uma técnica, um método susceptível de progresso, verificação e
retificação.” (p. 97).
Martin Esslin (1978) destaca que, além de Artaud ter
escolhido para Os Cenci um local que contradisse suas propostas
(Teatro Folie-Wagran), ele se deparou com muitas dificuldades com
os atores que não entendiam suas ideias, o que o deixava nervoso, e
isso era transmitido a eles.
Innes, no capítulo dedicado a Artaud, concede especial
atenção ao espetáculo Os Cenci, e destaca que, longe da ideia
de um teatro anárquico, Artaud tinha para com esta encenação
uma preocupação com os detalhes e as marcações, pretendendo

88
Artaud e o Teatro Sagrado

“uma mecanização organizada que Artaud comparou com o


funcionamento das engrenagens de um relógio” (Innes, 1992, p.
80), com utilizações geométricas do espaço, pautas vocais e uso de
manequins, utilizando-se também de posturas exaltadas que lembram
gestos típicos do cinema expressionista.
Mesmo que Artaud tivesse esboçado algumas questões,
como a técnica de respiração apresentada em Um atletismo afetivo, e a
necessidade de encontrar no corpo, à semelhança da medicina chinesa,
pontos de apoio nos quais o ator possa “aumentar a densidade interior
e o volume de seu sentimento” (Artaud, 1993, p. 135), ele não elabora
uma técnica atoral para testar suas teorias, como Jerzy Grotowski
também sublinhou. Em Em Busca de um Teatro Pobre (1971),
Grotowski afirma que Artaud fez uma interpretação errônea dos
textos orientais ao estabelecer sua proposta de respirações. Em seus
textos, O Teatro de Seraphin e Um Atletismo Afetivo, Artaud abordou
algumas questões sobre atuação, mas não elaborou nem forneceu
indicações sistemáticas, apenas esboçou alguns princípios gerais que,
a despeito disso, não há como negar, estimularam a criatividade e
o desejo pelo encontro de novas técnicas para o teatro ao longo do
século XX.
Christopher Innes defende a ideia de que essa distância
entre a idealização artaudiana e sua prática se deve a uma tendência
de “entusiasmos” que Artaud projetava além suas próprias opiniões:

Se os ensaios de Artaud eclipsaram suas realizações práticas


é algo que se deve, tanto como qualquer outra coisa, a que
prometem algo muito mais grandioso do que jamais poderia
atingir na prática. Artaud tinha o hábito de exagerar em grau
extremo. Ele mesmo tinha consciência disto como defeito,
e em uma reveladora nota de uma carta, em que pedia a
Jean Paulhan não publicar uma de suas críticas teatrais, pois
o que havia escrito tinha muita pouca relação com o que
tinha visto, fazia este comentário: “Não posso escrever sem
entusiasmo e sempre vou muito longe.” 12 Isto, mais que a
falta de apoio econômico, é a razão da lacuna existente entre
a teoria de Artaud e sua prática; e um bom exemplo desta

89
Ismael Scheffler

lacuna é sua insistência no drama como “processo”, como


produto não terminado, no que comumente se considera “o
teatro artaudiano”. (Innes, 1992, p. 74-75).

Palacios ressalta que é importante, para desvendar o que


seria o rito no teatro artaudiano, identificar o mito a ser celebrado,
pois todo rito é a celebração de um mito, e, consequentemente, os
modelos que se pretendem repetir no presente. “Em uma primeira
tentativa de identificar o tipo de rito a que corresponderia a concepção
teatral de Artaud, haveria que se levar em conta primeiramente esse
conceito reitor.” (Palacios, 1991, p. 65). Se o rito é o mito em ação,
qual é o mito que Artaud quer reviver? O que deveria ser renovado,
restaurado, instituído, celebrado pelo rito?
Como já mencionado, pode-se perceber a reincidência
de destruição e reconstrução para se encontrar uma existência
significativa. A ação profunda, para Artaud, perpassa por uma
cura do ser humano como um todo – cura que ele ansiava
desesperadamente para si: cura do corpo, cura da alma, cura do
espírito, cura social, cura cósmica, na qual homem e universo se
reencontram não se concentrando apenas numa única dimensão
“espiritual”. Então, podemos concluir com Palacios (1991) que “é
esta parte da experiência ritual em que se concentra o interesse de
Artaud: a crise que ‘o retorno’ está destinado a provocar de maneira
implacável.” (p. 32).
Interessante, porém, é a relação de Artaud com o teatro, pois
como ressalta Teixeira Coelho (1982), “Artaud não chegou a pedir o
fim do espetáculo e o fim do espectador, não chegou a ir até a essência
alquímica do teatro, ao teatro radical.” (p. 100). Ele continuou
buscando, por um lado o teatro, a expressão artística, e por outro as
experiências e referências em culturas diversas, como entre os índios
mexicanos Tarahumaras (poucos meses depois de Os Cenci, partiu
em viagem ao México). Segundo Quilici (2004), “Artaud fez do teatro
não só um campo de atuação e expressão cultural, mas uma forma de
engajamento num processo radical de reconstrução de si mesmo.” (p. 21).

90
Artaud e o Teatro Sagrado

Artaud se mantém e insiste em se manter relacionado ao teatro.


Urias Corrêa Arantes, porém, afirma que o que Artaud
propõe não é mais espetáculo, mas uma transgressão dos “limites
das interdições ético-metafísicas.” (Arantes, 1998, p.196). Artaud dá
características de espetáculo a sua vida, funde vida e arte e pretende
um teatro que também o faça, deixando em aberto a viabilidade de
sua realização. Permanece o questionamento, levado de fato às vias
finais, se Artaud ainda estaria desenvolvendo “arte”.
No Manifesto por um Teatro Abortado, de 1927, antes
portanto de seus escritos do Teatro da Crueldade, da década de 1930,
Artaud escreve:

Rumo a este teatro ideal, nós avançamos nós mesmos como


cegos. Nós sabemos parcialmente o que queremos fazer
e como poderíamos realizá-lo materialmente, mas temos
fé em um acaso, em um milagre que se produzirá para
nos revelar tudo o que ignoramos ainda e que dará toda a
sua vida superior profunda a esta pobre matéria que nós
encarniçamos em amassar. Fora, portanto, da maior ou
menor consecução de nossos espetáculos, os que vierem a
nós compreenderão que participam de uma tentativa mística
[...] (Artaud, 1995, p. 38-39).

A tentativa mística, ideal, permaneceu nas intenções de


Artaud ao longo de sua vida e sobre elas ainda muitos permanecem
inspirados.

91
92
10.
Espaço sagrado

O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem função
mas de vontade
e árvore de vontade que anda,
voltará.
Existiu, e voltará.
Porque a grande mentira foi fazer do homem organismo,
ingestão, assimilação,
incubação, excreção,
o que existia criou toda uma ordem de funções latentes
e que escapam ao domínio da vontade
decisora,
a vontade que em cada instante decide de si; porque assim era a árvore humana
que anda, uma vontade que decide a cada instante de si, sem funções ocultas,
subjacentes, que o inconsciente rege.
Do que somos e queremos na verdade pouco resta
[...]

Trecho de O homem-árvore – carta a Pierre Loeb (Artaud, 1988, p. 105-110)

Esse texto foi escrito em 23 de abril de 1947, para ser lido por Artaud
no ato inaugural da exposição de seus retratos e desenhos na Galeria
Pierre, em 19 de julho de 1947. Pierre Loeb era o proprietário da
galeria e, também, um dos nove membros do Comitê dos Amigos
de Antonin Artaud, que reuniu os recursos necessários para garantir
o pagamento da casa de saúde de Irvy, onde Artaud esteve internado
depois de sair de Rodez.

93
Ismael Scheffler

Em uma leitura atenta deste texto, veremos que Artaud faz


distinção em diferentes situações existenciais: o homem-árvore e o
homem nato. O homem-árvore poderia ser comparado ao homem
original, não corrompido, possuidor de um absoluto: a vontade
que decide sobre si, onde ser e querer regem absolutos num estado
humano de paraíso, num corpo sem órgãos ou função.
A mesma ideia do corpo sem órgãos aparece no texto Para
acabar com o julgamento de Deus, cuja gravação radiofônica foi
realizada em 28 de novembro, também de 1947: “não existe coisa
mais inútil que um órgão. Quando tiverem conseguido um corpo sem
órgãos,/ então o terão libertado dos seus automatismos/ e devolvido
sua verdadeira liberdade./ Então poderão ensiná-lo a dançar às
avessas/ como no delírio dos bailes populares/ e esse avesso será/ seu
verdadeiro lugar.” (Artaud apud Willer, 1986, p. 161-162). Gilles
Deleuze e Félix Guattari (1996) desenvolvem um estudo a partir do
conceito de corpo sem órgãos, que posteriormente foi revisado por
Daniel Lins em Antonin Artaud: o artesão do corpo sem órgãos (1999).
No homem nato, que gostaria de referir como homem-
organismo (para estabelecer uma relação com a questão dos órgãos),
é a inconsciência que rege, uma vez que as funções orgânicas escapam
da vontade. O homem-organismo vive na produção automática e não
mais na produção mágica. Esse organismo animal leva à corrupção
da árvore-corpo, logo, da vontade que agora escapa ao homem. Esse
“estado-operário” (produtivo) bloqueia o homem-árvore que continua
existente, embora oculto, sobrevivendo na “digestividade” humana.
Dominar sobre o que lhe foge, eis o grande desafio da vida de
Artaud. Em suas cartas lemos seus depoimentos contando sobre sua
dificuldade de se fiar em seu pensamento, necessitando algo palpável
que lhe ajudasse a desenvolver suas ideias: “Existe dentro desta luta
terrível entre eu e as analogias que pressinto, e em minha impotência
de petrificá-las em termos, para me tornar fisicamente dono da
totalidade do meu tema [...].” (Artaud, 1995, p. 112).
É a vontade pura, autônoma, que se torna para Artaud a fonte
mais primeira do humano: ser ativo e soberano sobre tudo aquilo que

94
Artaud e o Teatro Sagrado

aniquila e anula a decisão ativa, ser “uma vontade que decide a cada
instante de si”. Ser humano para ele não está sobre a funcionalidade
que empreende a manutenção dos sistemas/organismos, sejam
corporais ou sociais, na sobrevivência, mas está sobre o arbítrio. Os
animais defecam, comem e dormem como o humano, mas somente
o humano possui uma dimensão mágica, a capacidade de poetizar e
significar a vida.
O que Artaud parece ter ambicionado a vida toda, é essa
volta a um estado primeiro puro de humanidade e à qual, neste texto,
ele profetiza um regresso. Talvez também seja a isto que as propostas
artaudianas para o teatro estariam inclinadas, quando ele escreve no
prefácio de O teatro e seu duplo: “é preciso acreditar num sentido de
vida renovado pelo teatro, onde o homem impavidamente torna-se o
senhor daquilo que ainda não é, e o faz nascer [...] Do mesmo modo,
quando pronunciamos a palavra vida, deve-se entender que não se trata
da vida reconhecida pelo exterior dos fatos, mas dessa espécie de centro
frágil e turbulento que as formas não alcançam.” (Artaud, 1993, p. 7).
Quando olhamos para a definição de sagrado e profano
desenvolvida por Mircea Eliade, podemos identificar uma correlação
conceitual com as concepções de homem-árvore e de homem-organismo.
O sagrado e o profano são duas situações existenciais que expressam
duas formas distintas de experiência e maneiras de ser no Mundo,
conforme define Eliade.
Ao tratarmos sobre o espaço sagrado, pode-se melhor
compreendê-lo se o estudarmos em comparação ao espaço profano.
“Para a experiência profana”, afirma Eliade (2001), “o espaço é
homogêneo e neutro: nenhuma rotura diferencia qualitativamente
as diversas partes de sua massa.” (p. 26). Ele é, portanto, homogêneo,
não apresenta nenhuma diferenciação qualitativa, nenhuma
referência ou orientação. Nesse tipo de espaço inexistem estruturas e
consistência; ele é amorfo, igual por inteiro.
Por outro lado, “para o homem religioso, o espaço não
é homogêneo: o espaço apresenta rotura, quebras; há porções de
espaço qualitativamente diferentes das outras. [...] Há, portanto,

95
Ismael Scheffler

um espaço sagrado, e por consequência, ‘forte’, significativo.”


(Eliade, 2001, p. 25). O espaço sagrado é suscetível à comunicação
com o transcendente. É um espaço existencial que ocorre somente
pela vivência, pela experiência, estabelecendo o único Mundo que
realmente existe. “A manifestação do sagrado funda ontologicamente
o mundo” (Eliade, 2001, p. 26), lhe atribui forma e sentido.
É na quebra do espaço profano que se torna possível a
constituição do mundo, o Cosmos. “A manifestação do sagrado
santifica e recorta ontologicamente uma determinada zona do
espaço profano.” (Nader, 1997, p. 260). O espaço sagrado está unido
profundamente ao tempo sagrado, uma vez que este espaço existe na
duração do tempo da manifestação.
O homem-árvore parece possuir, em semelhança ao homem
religioso, a aspiração de viver em um espaço e um tempo distintos
daqueles habitados pelo homem-organismo, que, por consequência,
poderia ser considerado, equivalente ao homem profano. Essa ideia
do “homem provisório e material” (Artaud, 1993, p. 36), limitado
ao pensamento cotidiano, aparece também no texto A encenação e a
metafísica com o nome de “homem-carcaça”.
Ambas as formas de se compreender a existência se articulam
em sistemas de contraposição, nos quais tanto o sagrado e o profano,
quanto o homem-árvore e o homem-organismo, podem ser mais bem
compreendidos à medida que se estabelecem as diferenças entre eles.
Seguindo pelo princípio de que os conceitos de homem
sagrado e profano permeiam o pensamento artaudiano, poderíamos
perguntar de que maneira o espaço pode ser entendido: há, pois, um
“espaço-árvore” oposto a um “espaço-organismo”?
Constantemente, Artaud faz referência ao espaço do teatro
no sentido de ele ser onde a poesia possa se concretizar, de maneira
que fale sua própria linguagem espacial que é a da cena, distinta do
espaço dialógico que prevalece no teatro franco-ocidental de então. É
em razão disso que Artaud prenuncia a necessidade de alteração
do lugar teatral, elaborando proposições que possam permitir
diferentes relações com o espetáculo, visando a atingir seu

96
Artaud e o Teatro Sagrado

objetivo maior. Não se trata apenas de alterações estéticas, mas de


proposições fundamentais.
As atribuições do diretor teatral ainda estavam se afirmando no
teatro na época em que Artaud vivia na França; basta lembrar que o ano
de 1887, ocasião em que André Antoine fundou o Théâtre-Libre, em
Paris, é tido como marco do início da modernização do teatro e do
surgimento da figura do diretor (Roubine, 1998). No período em que
escreveu os textos de O teatro e seu duplo, entre 1931 e 1936, Artaud
criticou reiteradas vezes a função do teatro, opondo-se radicalmente
ao naturalismo, e refletindo sobre as atribuições do diretor, propõe
ampliá-las para a ideia de um diretor-autor.
Quando Artaud (1993) afirma que “há uma ideia do
espetáculo integral que devemos fazer renascer. O problema é fazer
o espaço falar, alimentá-lo e mobiliá-lo” (p. 95), está apontando para
uma realidade da cena teatral que começou a se concretizar a partir do
final da década de 1950 e, de fato, nos anos de 1960. É nesse período
que inúmeras experimentações teatrais dissolveram verdadeiramente
os paradigmas do espaço cênico e ousaram realizar propostas
semeadas, inclusive e especialmente, por Artaud.
Com o questionamento sobre a centralidade do texto
dialogado e literário, o espaço passou a ser compreendido por Artaud
como o lugar por excelência do teatro, afirmando a fusão de teatro
com cena. Para Artaud, a realização do teatro pertence totalmente
ao domínio da cena. É à cena que corresponde a atividade e o
acontecimento teatral, sendo uma linguagem concreta, independente
da palavra, e destinada a passar diretamente pelos sentidos e não
pela racionalização. À poesia da palavra (texto), Artaud propunha
a substituição pela poesia no espaço (cena), que é visual, sonora,
cinética, que se vale de todos os recursos e possibilidades teatrais,
incluindo a palavra, mas numa dimensão semelhante a que a palavra
ocupa nos sonhos, importando muito para Artaud o tratamento
dado à palavra (Artaud, 1993).
O especificamente teatral, a linguagem teatral pura, consiste
na criação de imagens materiais, sonoras, plásticas e físicas, como

97
Ismael Scheffler

ideogramas ou hieróglifos: “É em torno da encenação, considerada


não como o simples grau de refração de um texto sobre a cena, mas
como o ponto de partida de toda criação teatral, que será constituída
a linguagem-tipo do teatro.” (Artaud, 1993, p. 106).
O espaço é, então, fator essencial no teatro de Artaud, não
porque reúne todas as linguagens, mas por ser em si a materialização da
encenação, a dimensão física e concreta da cena, agindo desta maneira
sobre a sensibilidade nervosa, sobre o ser e sobre as relações: “O teatro
é uma arte do espaço e é pesando sobre os quatro pontos do espaço
que ele arrisca-se a tocar na vida. É nesse espaço habitado pelo teatro
que as coisas encontram suas figuras, e sob as figuras, o rumor da vida.
[...] Ocupando o espaço, ele [o teatro] acua a vida e a força a sair de
seus refúgios.” (Artaud13 apud Virmaux, 2000, p. 318). É no espaço
que a cultura ocorre, na forma compreendida por Artaud, sendo
um impulsionador dos deslocamentos e movimentos culturais. A
linguagem espacial assume função idêntica àquela da poesia, que é de
transgredir o mundo estabelecido subvertendo-o, pois, “a verdadeira
cultura só pode ser aprendida no espaço, e que é uma cultura orientada,
como o teatro o é.” (Artaud apud Virmaux, 2000, p. 317).
Artaud escreve que “o espaço teatral será utilizado não
apenas em suas dimensões e em seu volume, mas, por assim dizer,
em seus subterrâneos”, sem visar meramente “o prazer exterior dos
olhos e dos ouvidos, mas para o prazer mais secreto e proveitoso do
espírito.” (Artaud, 1993, p. 123, grifo do autor). O subterrâneo, que
é o âmbito do não aparente, do oculto, carrega potencialmente um
sentido latente, presente, transcendente, metafísico. Há, portanto,
algo que ocorre numa dimensão de ação mais profunda do que uma
sucessão de ações e imagens diante dos olhos de quem vê.
É fundamental relembrar, conforme os estudiosos da
Hermenêutica Simbólica, que a experiência com o sagrado se dá
através da vivência, e somente desta forma. É a partir desta vivência
que se dá no universo interior e subjetivo, que o sagrado pode
estabelecer um lugar geográfico. Somente a partir do momento em
que o sagrado já tenha se manifestado (ou que tenha sido construído/

98
Artaud e o Teatro Sagrado

preparado para a celebração/irrupção, como é o caso de uma igreja)


é que se poderia entender o espaço teatral como um espaço sagrado,
ou seja, o lugar passa a ser sagrado se aquele que o adentra vive a
experiência de adentrar em um espaço no qual ele considera que
ocorre uma manifestação do sagrado. É nessa certeza que Artaud
espera um público que se dirija a um local de operação profunda. Para
Eliade (2001), “todo espaço sagrado implica uma hierofania, uma
irrupção do sagrado que tem como resultado destacar um território
do meio cósmico que o envolve e o toma qualitativamente diferente.”
(p. 30). Ele é carregado de conteúdo e significação. Constitui-se na
vivência arrebatadora que altera a forma de compreender o sentido
da existência.
O espaço sagrado está associado ao tempo sagrado, pois só
existe durante a epifania. O tempo, assim como o espaço, é vivido,
experimentado, não é uma ideia, um conceito ou uma categoria. O
tempo faz parte da experiência religiosa, da percepção da totalidade do
mundo. O tempo sagrado não se limita ao modo de ser do homem. Ele
é sobre-humano, o verdadeiramente real, forte, pleno de significações
e sentido. Por isso, ao se considerar a questão do espaço sagrado no
teatro é fundamental que se tenha esse aspecto claramente posto.
Por isso não podemos observar apenas a cenografia que é visível, que
continua existindo mesmo após o final do espetáculo e que é passível
de ser registrada. No espaço sagrado, o lugar geográfico se torna
qualitativamente diferente, um centro que orienta e reorienta todo o
Cosmos de quem o vivencia.
Não obstante, Mircea Eliade também acrescenta que o
homem pode provocar, evocar formas ou figuras sagradas para
poder receber uma orientação em meio à homogeneidade do espaço
enquanto pretende a construção de um templo ou de uma aldeia. O
autor identifica algumas técnicas de construção do espaço sagrado que
atribuem algumas características que podem auxiliar neste estudo.
O Cosmos/Mundo, dotado de sentido, é justamente aquele
que se estabelece a partir de uma epifania. E essa mesma “cosmização”
também ocorre em escala microcósmica, na construção de uma cidade

99
Ismael Scheffler

ou na edificação de um templo ou de uma casa. “Mas não devemos


acreditar que se trata de um trabalho humano, que é graças ao seu
esforço que o homem consegue consagrar um espaço. Na realidade,
o ritual pelo qual o homem constrói um espaço sagrado é eficiente à
medida que ele reproduz a obra dos deuses” (Eliade, 2001, p. 32), o
ato criador, sendo, em decorrência disso, um território consagrado
por estar em comunicação com o mundo dos deuses. Há uma
repetição da cosmogonia, uma réplica do Universo. Nesse sentido,
ele possui uma mesma estrutura cósmica.
Eliade identifica em seus estudos algo que chama de sistema
do Mundo das sociedades tradicionais que tem como características:
a) todo lugar sagrado constitui uma rotura na homogeneidade do
espaço; b) essa rotura é simbolizada por uma abertura, por onde se dá
a passagem entre as diferentes regiões cósmicas (Céu, terra e regiões
inferiores); c) a comunicação com o céu se dá através de imagens,
como pilar, escada, montanha, árvore, cipó, todas elas se referindo
ao Axis mundi (eixo do mundo); d) em torno deste eixo cósmico
estende-se o mundo.
Pode-se afirmar que estes lugares (templos, cidades, regiões)
possuem o imago mundi, uma santificação concedida pela obra dos
deuses. Uma das maneiras de transformar ritualmente a morada
(tanto o território como a casa) em Cosmos, conferindo-lhe o valor de
imago mundi, é justamente “assimilando-a ao Cosmos pela projeção
dos quatro horizontes a partir de um ponto central, quando se trate
de uma aldeia, ou pela instalação simbólica do Axis mundi quando se
trate da habitação familiar.” (Eliade, 2001, p. 50).
Quando lemos sobre as propostas de lugar cênico de Artaud,
tendo em mente esses conceitos escritos por Eliade, podemos
encontrar afinidades:

Assim, abandonando as salas de teatro existentes, usaremos


um galpão ou um celeiro qualquer, que reconstruiremos
segundo os procedimentos que resultam na arquitetura de
certos templos do Alto Tibete. No interior dessa construção
reinarão proporções particulares em altura e profundidade.

100
Artaud e o Teatro Sagrado

A sala será fechada por quatro paredes, sem qualquer espécie


de ornamento, e o público sentado no meio da sala, na parte
de baixo, em cadeiras móveis que lhe permitirão seguir o
espetáculo que se desenvolverá à sua volta. Com efeito, a
ausência de palco, no sentido comum da palavra, convidará
a ação a desenvolver-se nos quatro cantos da sala. Lugares
especiais serão reservados para os atores e para a ação, nos
quatro pontos cardeais da sala. As cenas serão representadas
diante de fundos de paredes pintadas a cal e destinadas a
absorver luz. Além disso, no alto correrão galerias por toda
a sala, como em certos quadros de Primitivos. Essas galerias
permitirão aos atores, toda vez que a ação exigir, caminhar de
um ponto a outro da sala, e também que a ação se desenrole
em todos os níveis e em todos os sentidos da perspectiva em
altura e profundidade. (Artaud, 1993, p. 93, grifos meus).

Encontramos aqui o conceito de centralidade, o axis mundi,


que se estende pelos quatro pontos cardeais, também a referência a
diferentes planos, ou regiões cósmicas, estando o público embaixo e
os atores circulando pelo alto, e o intuito de se atingir, por meio dessa
composição espacial, um estado de vida mais significativo.
O axis mundi corresponde a “um centro de manifestação da
sacralidade, um centro do mundo. É uma espécie de fonte inesgotável
de força sacra; o homem tem a possibilidade de ascender a este espaço
e participar dessa força.” (Nader, 1997, p. 260). Dele é que sai toda
a orientação e sentido para a vida; é nele que se manifesta de forma
mais intensa o sagrado. É justamente no centro que Artaud quer
situar os espectadores. Dessa maneira, a relação dos espectadores
com o espetáculo se torna mais intensa. Artaud quer perturbar o
repouso dos sentidos e liberar o inconsciente, provocar a vertigem,
desnortear o espectador. Envolvê-lo no espaço, cercando-o com a
ação ininterrupta que brote em todos os lados e níveis, é tido como
fundamental para atingi-lo, por que é pela sensibilidade que se pode
fazê-lo. Talvez possamos, assim, pensar na ideia de um “espaço-árvore”,
árvore como um eixo, como um axis mundi, que arrebata e recria
pela força que perpassa os sentidos e destrói órgãos, criando novos
seres, renovando todos os organismos, renovando o espectador.

101
Ismael Scheffler

Artaud (1993) escreve: “assim como não haverá intervalo,


nem lugar desocupado no espaço, não haverá intervalo nem lugar
vazio no espírito ou na sensibilidade do espectador. Isto é, entre
a vida e o teatro já não haverá uma separação nítida, já não haverá
solução de continuidade.” (p. 125). A forma circular e giratória
permitiria a ininterrupção da cena que, pela ocupação contínua,
impediria intervalos “no espírito e na sensibilidade do espectador”.
Artaud, ao propor no Manifesto do Teatro da Crueldade um espaço
cênico que tenha os espectadores situados ao centro, afirma que
quer justamente marcá-los e envolvê-los de uma forma mais intensa,
profunda e significativa. Ele também tinha a compreensão de que,
para atingir mais eficazmente o espectador, era necessário envolvê-
lo mais fisicamente. Daí também a importância creditada por ele à
diminuição da distância entre atores e espectadores, pela eliminação
do palco frontal, primeira grande fronteira a ser removida.
Mas será de fato necessário romper com a arquitetura
frontal para torná-la um lugar onde o invisível possa aparecer? O que
parece permear essa questão é o fato de o espaço frontal apresentar-
se também como uma forma já condicionada e condicionante, para
atores e espectadores, estes, colocados de forma cômoda, levados à
anulação de seu próprio corpo, onde importa ver e ouvir bem.
Ainda é importante mencionar que Artaud não nega a
separação física entre atores e espectadores, embora apregoe o
envolvimento dos espectadores e a diminuição das distâncias, como
visto neste texto: “o espetáculo, assim composto, assim construído, se
estenderá, por supressão do palco, à sala inteira do teatro e, a partir
do chão, alcançará as muralhas através de leves passarelas, envolverá
materialmente o espectador, mantendo-o num banho constante
de luz, imagens, movimentos.” (Artaud, 1993, p. 124). Este fator,
manter ambientes distintos para atores e espectadores, também
influenciou inúmeros grupos e encenadores que se inspiraram nos
escritos artaudianos ao longo das décadas que o sucederam.
Galpão, celeiro ou hangar, Artaud (1993) almeja a
transformação de uma arquitetura já existente, reconstruindo-a

102
Artaud e o Teatro Sagrado

segundo princípios da arquitetura de certas igrejas, certos lugares


sagrados, de certos templos do Alto Tibet. Há, nesses ambientes,
algo identificado por Artaud que atrai sua atenção. Há um modelo
arquitetônico a seguir – e não é o modelo do teatro vigente de sua
época.
Mircea Eliade (2001) afirma que a arquitetura possui uma
grande importância no processo de transformação do mundo: “é
graças ao Templo que o Mundo é re-santificado na sua totalidade”
(p. 56), como se a existência permanente mantivesse continuamente
no mundo um poder de santificação ativo, mantendo o mundo
em constante ligação com os deuses. O autor também afirma que
“os modelos transcendentes dos Templos gozam de uma existência
espiritual, incorruptível, celeste.” (Eliade, 2001, p. 56). Não seria isso
que Artaud também almejava: habitar em um local não corrompido
pelo teatro “idiota, louco, invertido, gramático, merceeiro, antipoeta,
positivista, isto é, o teatro ocidental” (Artaud, 1993, p. 35)? Sua
proposta de adotar outra arquitetura e conferir-lhe outra estrutura
reflete a aspiração à criação de um novo mundo, como afirma Eliade
(2001): “a instalação num território equivale à fundação de um
mundo.” (p. 46). Construir uma nova arquitetura é experimentar
uma nova cosmogonia, impondo o imago mundi do Cosmos.
Podemos vislumbrar uma correspondência dos estudos de
Mircea Eliade, ao refletir sobre o sagrado e os “subterrâneos” do
espaço, com a idealização da constituição do lugar teatral de Artaud,
que almejava uma cena que possibilitasse um tipo de religamento do
homem a um sentido renovado, intenso. Talvez possamos afirmar
que esse espaço quisesse alcançar um sentido de “espaço-árvore”,
como um axis mundi, que arrebatasse e recriasse pela força que
perpassa os sentidos e destrói órgãos, criando novos seres, renovando
todos os organismos, renovando o espectador.

103
104
11.
Teatro, metamorfose e mutação:
um exercício de devaneio

Artaud refere-se frequentemente à necessidade de uma


recriação, empregando alternadamente a imagem da metamorfose
e a da transmutação, como quando explora a ideia alquímica do
teatro: “onde as formas, os sentimentos, as palavras, compõem
a imagem de uma espécie de turbilhão vivo e sintético, no
meio do qual o espetáculo toma o aspecto de uma verdadeira
transmutação.” (Artaud, 1995, p. 83).
As metáforas de transformação possuem possibilidades de
sentido diferentes. Gostaria de tomar dois fenômenos biológicos para
refletir sobre as propostas artaudianas: a metamorfose e a mutação.
Para isto, assumo, neste capítulo, uma liberdade maior na escrita,
experimentando extrair, à inspiração de Artaud, uma intensidade
maior das palavras e das imagens. Tomar elementos naturais para
pensar sobre fenômenos culturais pode ser um pouco arriscado
se os tomamos como modelos absolutos ou como justificativa de
determinismos. Mas ao devaneio, nas imagens e pensamentos que
vagam, podem ser inspirações que ajudam a vislumbrar diferentes
aspectos.
O termo metamorfose, do grego metamórphosis, significa
mudança de forma, transformação. Na zoologia corresponde à
mudança de forma ou estrutura que sobrevém durante a vida de
certos animais, principalmente dos insetos e dos batráquios, em
fases que o adaptam a certas funções. A metamorfose é um processo
controlado, esperado, inerente ao ser, próprio de determinadas

105
Ismael Scheffler

espécies. Não surpreende, pois seu resultado pode ser previsto.


Tende a ser a passagem de uma forma jovem à adulta, a um estado
de maturidade. O crescimento do ser não se dá de maneira direta,
mas por um processo de transformação, de mudança na forma, no
corpo. A vida ocorre em diferentes fases. Na metamorfose completa
dos insetos, por exemplo, pode-se identificar claramente pelo menos
quatro estados bem distintos: ovo, larva, pupa ou crisálida e adulto.
Já a mutação, termo latino mutatione, corresponde a uma
alteração espontânea na estrutura do gene, durante a duplicação
cromossômica, sendo uma sendo uma alteração permanente do dna
que modifica o organismo. É um evento inesperado, imprevisível no
espaço e no tempo, representa transições abruptas, gera novos padrões
ao que só se mantém se a modificação conseguir se adaptar. Caso
contrário, o mutante e sua modificação genética serão eliminados.
Quanto mais bem adaptado a um determinado ambiente for o
ser mutante, maior é a probabilidade de ele sobreviver e de deixar
descendentes.
No processo biológico, as mutações constituem a única
hipótese potencialmente capaz de gerar uma característica nova.
Somos hoje resultado de alterações de dnas que foram selecionadas.
A mutação é a fonte primaria de variabilidade genética das
populações. A mutação provoca transformações profundas e não
possui um estágio final definido. Não prevê a melhoria, o progresso,
mas o deslocamento, a transformação libertária – não condiciona
para um determinado final específico.
Tanto a metamorfose quanto a mutação são imagens que
representam uma passagem, uma mudança de regime ontológico, uma
recriação. Mircea Elieade (2001) afirma que o homem das sociedades
primitivas não se considera “acabado”, mas deve morrer para esta vida
primeira e renascer para uma vida superior. O simbolismo da morte e
ressurreição/renascimento corresponde ao acesso à espiritualidade, à
superação da condição profana não santificada.
A metamorfose atende bem a esse simbolismo, visto, por
exemplo, o estado de pupa, quando o inseto se isola, afastando-se

106
Artaud e o Teatro Sagrado

do mundo exterior, parando até de se alimentar, e ressurgindo em


outra forma, adulta (matura), um “novo corpo”, dotado de outras
virtudes – que no caso da borboleta é considerado como virtudes
superiores, no senso comum. Eliade atesta que a “morte iniciática
reitera o retorno exemplar ao Caos para tornar possível a repetição
da cosmogonia, ou seja, para preparar o novo nascimento” (Eliade,
2001, p. 159). Esta morte simbólica estabelece uma separação entre
duas diferentes formas de existência. É a interrupção entre um mundo
e outro, a criação de um novo Cosmos, dotado de novos valores, de
nova organização. A metamorfose na arte poderia ser comparável
ao poder da arte de transformação que, no entanto, vislumbra um
determinado estágio a ser atingido; uma melhoria na pessoa ao tomar
contato com a arte. É cosmogônica esta ressurreição.
A metamorfose não é, contudo, o único simbolismo
possível. A mutação parece apresentar diferentes aspectos e valores,
que parecem ter a ver com as propostas de Artaud.
A mutação possui aspectos mais caóticos. De certa forma,
se considera culturalmente que a metamorfose conduz a uma vida
superior, assegura a chegada a uma perfeição. Apolo, como deus da
forma, do equilíbrio, da harmonia, da perfeição e da beleza, parece
corresponder ao mesmo espírito da metamorfose, a forma ideal. Nisso
Apolo se contrapõe, então, à mutação, que é em si a de-formação, um
desregramento, a materialização de uma força bruta, intempestiva,
um furor vital semelhante ao instinto dionisíaco – Artaud fala de
um “fogo da vida, apetite da vida, impulso irracional para a vida”
(Artaud, 1993, p. 101) – que transita justamente pela profundidade,
que poderíamos relacionar com a modificação do dna. Conforme
Nietzsche, Dionísio é uma “força despótica de renovação primaveril
[...] que vai atrair o indivíduo, para o obrigar a aniquilar-se no total
esquecimento de si mesmo.” (Nietzsche, 1999, p. 23). (Felício
e Virmaux realizam estudos comparativos entre as propostas
artaudianas e o estudo sobre o dionisíaco a partir de Nietzsche).
A mutação gera caos, uma desorganização maior nos
sistemas, mudanças mais drásticas que a metamorfose, uma vez que

107
Ismael Scheffler

ocorre no âmbito do genoma. Mas, como todo o caos, é só a partir dela


que surge a possibilidade de uma verdadeira revolução, da verdadeira
transformação, do surgimento de um novo ser de fato. Conforme
Artaud, “parece que onde reinam a simplicidade e a ordem não pode
haver nem drama nem teatro, o verdadeiro teatro nasce [...] de uma
anarquia que se organiza.” (Artaud, 1993, p. 46). Este caos nega o
princípio de perfeição e maturidade, que é na realidade inatingível,
pregada pela metamorfose. Esta, hierarquiza também estágios,
distingue superioridade de inferioridade, evoluídos de não evoluídos.
Arantes lembra que “a realidade não aparece, para Artaud, como um
complexo de planos organizados e hierarquizados indo do caos à ordem,
numa derivação contínua e lisa, onde o espaço virtual do teatro se situasse
em algum ponto entre os dois extremos.” (Arantes, 1998, p. 21).
Enquanto a metamorfose faz crer que a maturidade
humana, o “estágio ideal”, é possível, a mutação, que não tem como
garantir que o dna alterado trará benefícios, apresenta-se numa
espécie de sinceridade que não dá certezas de sucesso – cogita a
possibilidade de um renascimento sem a segurança de que será
benéfico. A metamorfose na vida humana não tem como garantir
perfeição, porque na vida humana não há perfeição – daí a vida ser
constantemente recriada, reconsagrada, purificada. A mutação não
tem a pretensão de oferecer perfeição – é um desprendimento, uma
abdicação de certa estabilidade, um risco de deterioração – é radical,
“tenta” uma evolução que só ocorrerá se houver uma adaptabilidade
com o ambiente.
A arte para a mutação opera no profundo da alma, na
estrutura mais íntima, no “dna” – ao falar sobre sua revolução,
Artaud diz que é preciso uma “metamorfose nas essências” (Artaud,
1995, p. 39). A mutação altera a estrutura de forma irreversível –
nunca mais se poderá ser como antes, lançando o ser humano num
processo profundo, radical, de liberdade apavorante.
O ser em mutação deixa de ser quem é, sem, contudo, deixar
totalmente de o ser. Ele possui uma marca original que permite
identificá-lo com a natureza que já não lhe pertence mais. É dotado

108
Artaud e o Teatro Sagrado

de uma benção/maldição que o diferencia dos demais, que o dissocia,


desagrega, colocando-o apartado de sua referência. Possui uma
carga nova, original.
A mutação interrompe o fluxo da vida constante,
qualitativamente igual. Esse fluxo, embora seja constantemente
subvertido, insiste em se afirmar como uma força que zela pela sua
manutenção, pela sua permanência. A seleção natural tenta eliminar
as alterações genéticas, esterilizar suas possibilidades de descendência.
Sobreviverão apenas poucos mutantes que se tornarem mais
eficientes, com alguma vantagem adaptativa. E este risco constrange
mutações mais profundas e radicais no ser – e na cultura.
A mutação é subversiva. Ela rompe as regras, desestrutura,
modifica os paradigmas e coloca o ser num processo inseguro, instável,
imprevisível. Provoca deslocamentos na essência do ser. “Tudo o que
age é uma crueldade.” (Artaud, 1993, p. 81). A mutação invade o
ser e modifica não apenas sua forma, mas sua estrutura como um
todo, em maior ou menor grau, para o “bem” ou para o “mal”.
Semelhantemente a peste, provoca desordens profundas no corpo
e no espírito. A peste é colocada por Artaud como figura virtual e
arbitrária de um mal que se assemelha ao teatro sendo profundamente
desorganizador, reunindo traços extremos de desordem reveladora.
“O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve pela morte ou pela
cura. E a peste é um mal superior porque é uma crise completa após
a qual resta apenas a morte ou uma extrema purificação. Também o
teatro é um mal porque é o equilíbrio supremo que não se adquire
sem destruição.” (Artaud, 1993, p. 26). A mutação partilha desse
radicalismo de morte ou cura.
A mutação também figura certa “fisionomia espiritual de um
mal que corrói o organismo e a vida até a ruptura e o espasmo.” (Artaud,
1993, p. 17). Irrompe com furor e leva às últimas consequências.
A mutação quebra com as regras dominantes. É perigosa porque
não define sua duração. E abre a possibilidades de ressignificar
toda a existência, tudo que está previamente existente, organizado,
domesticado, subordinado. Lança tudo no vazio. A mutação é risco

109
Ismael Scheffler

de fracasso, risco de defeito e anomalia, pois geralmente provoca


modificações prejudiciais, letais ou de desvantagem danificando a
saúde ou resistência. A mutação afirma o ser humano na fronteira
entre algo que é e algo que virá a ser, o Devir. Não petrifica, antes
afirma a volatilidade da vida, do mundo. A mutação também é risco
de evolução, de aprimoramento da espécie. Se a mutação ocorrer nas
células gênicas, o ser humano pode então se reproduzir, reproduzir
sua nova forma, seu novo dna. A mutação ressignifica toda existência,
atribui um sentido absolutamente novo, inédito, novas perspectivas
não imaginadas até então.
As mutações na biologia podem ocorrer tanto por causas
naturais (erro em sua duplicação) quanto por danos sofridos devido
à ação de agentes específicos, denominados agentes mutagênicos
(como raios x ou ultravioletas, por exemplo). Talvez possamos
apontar nesse sentido análogo de “mutação” na vida subjetiva
algumas causas naturais, como episódios e incidentes inesperados
da vida, alucinações e sonhos, assim como a epifania (uma vez que
ela é a irrupção do sagrado no mundo, a manifestação que irrompe
sem pedir permissão). E como agentes mutagênicos (compreendidos
como elementos com os quais tomamos contato por opção externa e/ou
intencional, regido por uma vontade que age sobre nós), a religião e a
arte de forma geral.
As células gênicas podem ser atingidas através da arte pelo
acaso transcendente, que encontra campo graças à investigação séria e
profunda na elaboração de agentes mutagênicos, ou seja, de linguagens
artísticas que se assemelham a “radiações” que atingem a sensibilidade
e os sentidos do corpo do espectador. A dose de acaso com a qual o
artista trabalha é aquela da qual Artaud fala, que não é a da negligência,
da falta de preparo e de dedicação à arte, ao público. O acaso está sobre
a esperança de que sua arte provoque a mutação. Requer confiança
no acaso. “Se não tivéssemos fé em um milagre possível, não nos
empenharíamos nesta via cheia de imprevistos. Mas um milagre só é
capaz de nos recompensar por nossos esforços e por nossa paciência. É
com este milagre que contamos.” (Artaud, 1995, p. 35).

110
Artaud e o Teatro Sagrado

A mudança na mutação independe, ao mesmo tempo que


depende, do artista. Não constrói, antes destrói pela subversão.
Desestabiliza, aniquila, rompe, fere, fragmenta, amputa, mata
e, talvez, e só talvez, cura. Por isso essa arte não pode edificar – ela
tem que matar. Antes de gerar um Cosmos ela tem que ser caótica.
A arte, no sentido em que parece pretender Artaud, não deve ser
edificante. Não no sentido que normalmente entendemos essa ideia,
de construir, de agregar, de acrescentar sentido positivo e otimista.
Antes, deve ser desestruturante, deve chacoalhar, pôr em estado de
alerta; não construtora, mas corruptora.
A arte para a mutação é inútil. A metamorfose produz um
produto final. A mutação não garante resultado nenhum; a radiação
pode não alterar o dna ou pode ser eliminada no processo adaptativo.
A arte para a mutação não dá certeza de produto final, garantias de
investimento. O produto da mutação é tão importante quanto o
processo, pois o processo é que conduz e define o ser. Não tem pressa
de chegar a lugar nenhum. Seu final é imprevisível – não cessa. Já o
produto da metamorfose é diferente de seu processo, consistindo em
etapas isoladas entre si.
A arte para mutação atua sobre a forma e o conteúdo, sobre
essência e existência, não privilegia especialmente determinados
aspectos da vida, mas invade a vida como um todo. É uma revolução
no ser integral, que parte do interior. Só existe quando for vivida,
transformadora de órgãos. A mutação não se detém apenas na
forma do corpo. A mutação vê “o ser”, uno, indivisível e irrompe
dessa mesma forma. A arte mutagênica conduz a uma imersão no
âmago do ser, na carne, na alma. A arte mutagênica atrai e atemoriza.
Seduz e apavora. “Dentre as inúmeras mutações que acontecem
nos indivíduos de uma dada espécie, apenas umas poucas serão
vantajosas. A grande maioria delas é prejudicial (ou deletéria) ao
indivíduo. É por esse motivo que os agentes mutagênicos constituem
um sério perigo para os seres vivos.” (Martho; Amabis, 1990, p. 369).
A mutação oferece o novo em profundidade radical – e o novo
amedronta. Ela alimenta e consome o ser. Gera uma nova vida,

111
Ismael Scheffler

mas exige em troca o que existe de mais próprio do ser, de mais


individual – seu dna.
Artaud compreende que o teatro deva agir com
arrebatamento: “o espectador que vem à nossa casa saberá que ele
vem se oferecer a uma operação verdadeira onde não somente seu
espírito, mas seus sentidos e sua carne estão em jogo. [...] Ele deve
estar persuadido de que somos capazes de fazê-lo gritar.” (Artaud,
1995, p. 34). É perigoso estar em mutação; nunca se sabe o que se
virará e isso apavora. A mutação é perigosa, por isto é rejeitada, por
isto muitos creem que é melhor não arriscar.
O teatro de Artaud não é apenas contra o mercantilismo,
a industrialização do teatro, a cabotinagem das vedetes. Também se
opõe ao teatro de arte, que é literário, “linguagem morta”. Ele nos
adverte de que a arte não deve se limitar a um sentimento agradável
ou a uma ideia, um conhecimento. Artaud quer atingir o espectador
sem que este possa dizer como isso acontece, em seu sentido pleno
“em seu sentido de deflagração e de emoção plena, de comunicação
religiosa, espasmódica, com a metafísica ativa, isto é, com o espírito
universal. Toda ação que não leve a isso, [...] é uma ação truncada e
embrionária, uma ação de eunuco e de fraco, de impotente, de castrado
admitido.” (Artaud, 1995, p. 108). Artaud ataca com ferocidade essa
tradição teatral e a considera como uma aberração e degradação, uma
“ideia desinteressada do teatro que quer que uma representação teatral
deixe o público intacto, sem que uma imagem lançada [que] provoque
qualquer abalo no organismo.” (Artaud, 1993, p. 73).
A arte para a mutação é um processo doloroso, penoso,
amargo para o agente e para quem muta. Quem toma contato com
a arte mutagênica corre o risco de sofrer interferências radioativas.
Quem a faz, experimenta a ingratidão de poucos possíveis resultados
de alteração de poucos dnas de alguns poucos seres. Destoa da cultura
de nossa sociedade que prega a quantidade, não atinge multidões, não
é vendável, não é contabilizável.
É uma arte de doação de quem faz e de quem vê – de doar o
melhor de si, para tornar-se um agente mutagênico ou um mutante. É

112
Artaud e o Teatro Sagrado

preciso ser virulento, contaminar, contagiar. É nociva e perigosa. É um


exercício cruel, tal qual fala Antonin Artaud, no qual se mata e se morre
ao matar, onde nos submetemos conscientemente a uma necessidade
rigorosa. O artista empenha-se em seu laboratório científico atrás
de agentes mutagênicos que exigem seu próprio sangue, pois “a
crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação
irreversível, absoluta.” (Artaud, 1993, p. 99). Cruel, não por envolver
sangue, não na violência ou crueldade exercida uns contra os outros,
despedaçando uns aos outros, “trata-se da crueldade muito mais
terrível e necessária que as coisas podem exercer contra nós. Não somos
livres. E o céu ainda pode desabar sobre nossas cabeças. E o teatro é
feito para, antes de mais nada, mostrar-nos isso” (Artaud, 1993, p. 76)
– a mutação não dá garantias. A arte mutagênica exige rigor para tentar
encontrar os meios de atingir o dna.
A mutação é cruel porque obriga a pessoa a desinstalar-se, a
mover-se, a sair do repouso. Para Artaud, “a criação e a própria vida se
definem por uma espécie de rigor, portanto de crueldade básica que
leva as coisas ao seu fim inelutável, seja a que preço for. O esforço é uma
crueldade, a existência pelo esforço é uma crueldade.” (Artaud, 1993,
p. 101). O artista acaba sendo, além de imolador, imolado. Suicida
obstinado que crê poder tocar na vida. Ele precisa, então, ser um atleta
do coração, que constrói um novo organismo, uma musculatura
que emita vibrações radioativas de penetração, encontrando “em seu
instinto o modo de captar e irradiar certas forças; mas essas forças, que
têm seu trajeto material de órgãos e nos órgãos.” (Artaud, 1993, p. 130,
grifo do autor). A mutação não é confortável, agradável, e poucas vezes
é esperada e quista. O que apavora em ser mutante é que cremos que
não sobreviveremos – e não sobreviveremos: “É nesta angústia humana
que o espectador deve sair de nosso teatro. Ele será sacudido e ficará
arrepiado com o dinamismo interior do espetáculo que se desenrolará
diante de seus olhos. E este dinamismo estará em relação direta com as
angústias e as preocupações de toda sua vida.” (Artaud, 1995, p. 34).
A mutação é prima da alquimia, num sentido homólogo
ao que Artaud (1993) confere ao teatro. A mutação transforma a

113
Ismael Scheffler

matéria em sua composição, realizando, de certa forma, uma fusão


entre o abstrato e o concreto. Para Artaud, teatro e alquimia atuam
subterraneamente no domínio espiritual e imaginário, com uma
eficácia análoga àquela capaz de, no plano físico, produzir ouro. São
meios de expansão para o espírito, evocações de “espécies de estados
de tão intensa acuidade, de uma argúcia tão absoluta, que é possível
sentir [...] as ameaças subterrâneas de um caos tão decisivo quanto
perigoso” (Artaud, 1993, p. 45) – por que não dizer, como a mutação.
A arte para a mutação abre um espaço para a ação do
transcendente que não é limitada ao controle humano. Exige um
desprendimento da autossuficiência. Requer uma dose de fé e
entrega – a obra não será se não ocorrer uma epifania. É uma garrafa
lançada ao mar. O acaso aqui não pode ser entendido como uma
aleatoriedade plena. É alheio ao nosso desejo humano, ao nosso
esforço, e dependente da interferência e condução de uma força
alheia, o sagrado. Negamos normalmente o perigo da intervenção
divina e intentamos afirmar nosso poderio cotidianamente. É uma
ação não determinista, porém determinadora. A transcendência não
limita sua força e não permite também ver onde sua manifestação
cessará. A epifania é subversiva, pois altera o fluxo normal da vida, do
tempo, do espaço. Ela quebra com o fluxo natural e desperta para a
percepção de que a vida não precisa seguir na objetividade cotidiana.
A transcendência é generosa ao permitir o caos como resultado final.
A teofania tem sido negada como subversiva, porque as
culturas ocidentais, especialmente as europeias, têm negado o poder
de subversão do sagrado. Elas têm sido condicionadas a receitas e
a reduções apreensíveis e controláveis pela razão humana. Por isso,
Artaud saiu em busca de manifestações e culturas nas quais pudesse
vislumbrar sua sobrevivência.
A arte precisa ser subversiva e cruel, revelando de forma
perigosa novos horizontes, propondo mutações anárquicas,
efervescendo de maneira virulenta a multidão. A arte abre o
ser humano para outras dimensões. “A revolução no teatro é a
provocação de um caos perigoso e decisivo, ao mesmo tempo,

114
Artaud e o Teatro Sagrado

condição indispensável da própria Existência de um teatro que nasce


de uma ‘anarquia que se organiza’.” (Felício, 1996, p. 89).
A ideia de que a arte deva produzir algo ou conduzir a um
estado elevado está intensamente impregnada em nossa cultura. É
preciso reconhecer que, mesmo Artaud, pretende reiteradamente
a reconstrução do corpo, da cultura e do teatro. O homo religiosus
parece ser muito presente.

115
116
Considerações finais

Meu objetivo ao ler Artaud é de tentar compreender algumas de suas


propostas para o teatro. A diversidade de referências com as quais
trabalhou em sua vida e na elaboração de seus escritos, visando a
uma cena renovada, ofereceu, e oferece, significativas provocações
e contribuições ao teatro ainda hoje. Porém, ler os escritos de
Artaud exige entender questões que estão por trás de alguns termos
que, muitas vezes, são imprecisos, ambíguos, dotados de sentidos
diferentes e, às vezes, opostos em seus usos. Acredito que parte da
imprecisão se dá pelo uso de uma linguagem mais figurada e, por isso
mesmo, mais aberta.
Artaud, pensando o teatro e a sociedade, caminhou um tanto
solitário, a meu ver, buscando construir definições que colaborassem
para expressar sua maneira de compreender a vida e a arte. Ao
observarmos os conceitos elaborados pelos estudiosos do Círculo de
Eranos e os correlacionar às propostas teatrais de Artaud, podemos
reconhecer uma afinidade conceitual, sendo de grande eficiência
adotar esse agrupamento epistemológico como instrumental
para análise e compreensão do teatro sagrado. A Hermenêutica
Simbólica e os estudos sobre o imaginário se apresentam como um
excelente recurso auxiliar à leitura de um entendimento da vida, que
inevitavelmente também se reflete no teatro de Artaud.
Alguns teóricos pertencentes ao Círculo de Eranos, tais
como Gilbert Durand, Mircea Eliade e Joseph Campbell, são
eventualmente utilizados em estudos teatrais, mas acredito que
o uso dessa epistemologia pode ser aplicado de maneira mais
extensiva. Tomando-se o agrupamento desses teóricos, podemos,
além de garantir uma coerência conceitual aos estudos, perceber
uma complementação. O fato de o Círculo de Eranos ter sido um

117
Ismael Scheffler

grupo interdisciplinar que contemplou abordagens por diferentes


áreas, oferece uma vasta amplitude de recortes para pesquisas por
meio de vieses mais míticos, ou psicológicos, ou antropológicos, ou
com outros enfoques. Muitos conceitos desenvolvidos ao longo deste
livro podem contribuir para uma compreensão mais generalizada
sobre o que pode ser considerado como teatro sagrado.
Podemos averiguar que muitas comparações já foram feitas
entre o trabalho do encenador polonês Jerzy Grotowski, da década
de 1960 em diante, e as concepções de Artaud, realizadas entre as
décadas de 1920 a 1940. Creio que essa correlação que se estabelece
entre eles influenciou, e influencia ainda hoje, a forma de entender
o trabalho do encenador polonês, como se, de certa forma, Artaud
tivesse preparado um terreno para ele questionando sistemas, fazendo
outras possibilidades cênicas serem percebidas. Isso é bem possível,
assim como parece que, pelo fato de Grotowski ter sistematizado
métodos efetivos de trabalho e posto em prática suas concepções,
Artaud foi igualmente agraciado, atribuindo-se uma maior
credibilidade a suas propostas, por ele ter mostrado que muitos dos
princípios do sagrado no teatro são possíveis. Ao se concretizarem
no teatro grotowskiano, as propostas de um teatro sagrado deixam
o plano idealizado e direcionam o pensamento para a cena de fato.
Assim, a sistematização das pesquisas em técnicas e a articulação
clara e coerente de princípios se constitui, consequentemente, uma
espécie de contraponto entre Grotowski e o pensamento de Artaud
– por vezes registrado com uma linguagem fugidia que nos instiga a
imaginação e conduz ao devaneio, enquanto Grotowski nos lembra
de que o teatro só existe, assim como a epifania, na vivência de
fato, e nos mostra alternativas testadas em diferentes práticas, com
diferentes objetivos.
Por existirem afinidades, muitas vezes Grotowski pode ser
considerado como um continuador, ou realizador, das propostas
artaudianas, o que é, como defendido pelo próprio dramaturgo
polonês, uma falsa leitura. A trajetória que seguiram coincide por
terem influências de teorias significativas, seja da psicologia, seja de

118
Artaud e o Teatro Sagrado

culturas não europeias, entre outras. Elaboração e sistematização


diferem significativamente entre eles.
Acredito que o esclarecimento de vários conceitos vistos
aqui abre possibilidade para estudar o trabalho de outros artistas
contemporâneos que tenham afinidade conceitual independente de
se referirem ou não a influências de Artaud, algo que poderia oferecer
ampliações sobre a dinâmica e as facetas do sagrado na cena teatral.

119
120
Referências

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Unicamp, 1988.
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Ismael Scheffler

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124
Artaud e o Teatro Sagrado

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e notas de Willer. Coleção Rebeldes & Malditos, v. 5. Porto Alegre:
L&PM, 1986.

125
126
Mapeamento bibliográfico:
dissertações, teses e outros textos brasileiros
sobre Antonin Artaud

Na França, os escritos de Artaud podem ser encontrados, de forma


completa, em 28 tomos publicados ao longo de vários anos pela
editora Gallimard. Em português, pode-se encontrar alguns de
seus textos na íntegra como O teatro e seu duplo (1993), outros em
publicações que compilam textos diversos (como manifestos, cartas,
ensaios), ou ainda, encontrar alguns de seus textos incluídos como
apêndices de livros que estudam esse autor, sendo que sua obra ainda
não está totalmente traduzida ao português.
Embora já fosse possível encontrar referências a Antonin
Artaud em publicações traduzidas ao português, como em O teatro
e seu espaço, de Peter Brook, publicado no Brasil em 1970, ou no Em
busca de um teatro pobre, de Jerzy Grotowski, em 1971, foi em 1978
que, no Brasil, a tradução e publicação de livros de pesquisadores
estrangeiros possibilitou maior acesso bibliográfico sobre esse autor.
Nesse ano, duas obras foram publicadas: Artaud e o teatro, de Alain
Virmaux, pela Perspectiva (sendo a segunda edição apenas em 2000),
incluindo, além de textos críticos, alguns textos do próprio Artaud;
e, de Martin Esslin, o pequeno livro Artaud, pela Editora Cultrix.
A década de 1980 iniciou com novidades. A publicação
da tradução de A linguagem da encenação teatral (1880 - 1980), do
francês Jean-Jacques Roubine (original de 1980), teve sua primeira
edição brasileira em 1982, pela Editora Jorge Zahar, e abordava
diferentes temas teatrais tendo como base as reflexões de Artaud
juntamente com Bertolt Brecht, Stanislavski, Gordon Craig, Jerzy
Grotowski, entre outros. Nesse mesmo ano, Teixeira Coelho publicou

127
Ismael Scheffler

de sua autoria Artaud: posição da carne, pela Editora Brasiliense. Foi


apenas em 1984 que O teatro e seu duplo, obra-chave do teatro de
Artaud, recebeu sua primeira edição traduzida no país, por Teixeira
Coelho, pela Editora Max Limonad.
Na segunda metade dessa década, Cláudio Willer publicou
Os escritos de Antonin Artaud, com textos e notas de sua autoria,
integrando a Coleção Rebeldes & Malditos, publicado pela Editora
l&pm em 1986. Em 1988, Urias Corrêa Arantes lançou Artaud:
teatro e cultura, pela Editora da Unicamp, pesquisa resultante de
seu mestrado em Filosofia, pela Universidade de São Paulo, com
dissertação defendida em 1981.
A tradução do livro de Odette Aslan, O ator no século XX:
evolução da técnica/ problema da ética (publicado na França em
1974), recebeu edição brasileira, pela Editora Perspectiva, apenas
em 1994, contendo também algumas reflexões sobre Artaud. Na
metade da década de 1990, novos textos de Artaud receberam
tradução de J. Guinsburg, Sílvia Fernandes Telesi e Antonio
Mercado Neto, compondo o livro Linguagem e Vida (1995),
publicado pela Editora Perspectiva.
A tradução e publicação, em 1996, de Mil platôs: capitalismo
e esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Féllix Guattari, pela Editora 34,
especialmente o texto 28 de novembro de 1947 – como criar para si
um corpo sem órgãos (volume 3), também trouxe Artaud para a pauta
brasileira. Nesse mesmo ano, foi publicado pela Editora Perspectiva
A procura da lucidez em Artaud, texto resultante da tese homônima
de Vera Lúcia Felício, defendida em 1980, na Universidade de São
Paulo, que só então ganhou maior alcance. A década se preparava
para seu fim, quando Daniel Lins, em 1999, publicou o livro Antonin
Artaud: o artesão do corpo sem órgãos, pela Editora Relume-Dumará.
Esses eram os livros disponíveis em português no Brasil, à
época de minha pesquisa no mestrado, entre 2002 e 2003, bibliografia
que pude complementar com algumas publicações estrangeiras, em
português de Portugal ou em espanhol, de textos de Artaud ou de
estudiosos como Felipe Reyes Palacios (Artaud y Grotowski: ¿el teatro

128
Artaud e o Teatro Sagrado

dionisiaco de nuestro tiempo?) e Christopher Innes (El teatro sagrado:


el ritual y la vanguardia).
De 2004 para cá, muitos artigos e outras tantas pesquisas
em mestrado e doutorado foram realizados. Em 2004, Cassiano
Sydow Quilici publicou o livro Antonin Artaud: teatro e ritual
(Annablume/Fapesp), sua tese, defendida em 2002 no Programa
de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Mesmo ano e instituição em
que Alexandre Galeno Araújo Dantas (Alex Galeno) defendeu sua
tese, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, com o
título Antonin Artaud: a revolta de um anjo terrível, publicada pela
Editora Sulina, em 2005.
Na sequência, outro livro lançado no Brasil, a partir do que
pude apurar, foi a da francesa Florence de Mèredieu: Eis Antonin
Artaud, em 2011, pela Editora Perspectiva. Em 2013, Wilson Coêlho
publicou Antonin Artaud: a linguagem na desintegração da palavra,
pela Editora Appris, livro resultante de sua pesquisa no Programa de
Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal do Espírito Santo,
com dissertação defendida em 2006. Em 2015, Maisy de Medeiros
Freitas publicou Antonin Artaud: por uma cultura da crueldade, pela
Editora Crv, sua dissertação, defendida em 2010 no Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte.
Ana Kiffer, por sua vez, publicou o livro Antonin Artaud
em 2016, pela Eduerj, tendo defendido sua tese, Antonin Artaud:
poética do pensamento, em 2002, no Programa de Pós-Graduação em
Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Kiffer também
organizou o livro A perda de si: Cartas de Antonin Artaud, no qual
fez uma seleção destes documentos inéditos no Brasil, publicado pela
Editora Rocco em 2017.
Fagner Torres de França publicou, em 2018, o livro Artaud e o
cinema da Crueldade, pela Editora crv, fruto de sua tese Para um cinema
da crueldade em Antonin Artaud (2016), no Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

129
Ismael Scheffler

Galeno e França, juntamente com Gustavo Castro,


organizaram o livro Antonin Artaud: Insolências, publicado também
em 2018, fruto do diálogo entre dois grupos de pesquisa, da ufrn e
da unb, que apresenta 18 ensaios de diversos autores. A publicação
foi realizada pela Editora Moinhos, a mesma que lançou em 2020
quatro livros com importantes textos de Artaud: Os Tarahumaras,
Textos surrealistas, Correspondência com Jacques Rivière e Para
acabar com o juízo de Deus e outros escritos, todos com tradução de
Olivier Dravet Xavier.
Outra publicação recente que também corresponde à
colaboração de diferentes pesquisadores, com seis artigos, é Antonin
Artaud e o Brasil (2021), organizada por Felipe Henrique Monteiro
Oliveira, livro publicado pela Paco Editorial.
Seguramente houve outras pesquisas acadêmicas realizadas
pelo país. Considerando a última década, podemos apontar como
exemplos: Um Artaud surrealista e internado em Rodez: pontos de
tensão entre teatro e poder, de Cassiane Tomilheiro Frias, dissertação
defendida em 2010, no Programa de Pós-Graduação em Artes
da Cena, do Instituto de Artes da Unicamp; Aventura Artaud -
crueldade como obra, gestos para uma linguagem no espaço, fratura
como fatura, de Francine Jallageas de Lima Cardoso, dissertação
defendida em 2011, no Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro;
Ritual em Artaud: considerações e reconsiderações por uma poética
da crueldade, de Edson Fernando Santos da Silva, dissertação
defendida em 2011, no Programa de Pós-Graduação em Artes,
da Universidade Federal do Pará; Escritas do suporte, de Ligia
Maria Winter, tese de 2012, realizada na Universidade Estadual
de Campinas, junto ao Programa de Pós-Graduação em Teoria e
História Literária, do Instituto de Estudos da Linguagem; A escrita
labiríntica e performática de Antonin Artaud, dissertação de 2013,
de Glenio Araújo Vilela, defendida no Programa de Pós-Graduação
em Estudos Literários, da Universidade Federal de Minas Gerais;
Antonin Artaud: a crueldade pelos desenhos e autorretratos, de

130
Artaud e o Teatro Sagrado

Gerlúzia de Oliveira Azevedo, tese de 2014, realizada no Programa


de Pós- Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte; O cruel e o trágico: o retorno do trágico no
teatro da crueldade de Antonin Artaud, de Luiz Henrique Carvalho
Penido, pesquisa de doutorado de 2014, na área de Teoria Literária e
Literatura Comparada, no Programa de Pós-Graduação em Letras/
Estudos Literários, da Universidade Federal de Minas Gerais; O
teatro e seu duplo de Antonin Artaud: uma outra cena do inconsciente,
de Cesar Augusto de Oliveira Shishido, dissertação de 2015, no
Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Literários e
Tradutológicos em Francês, da Usp; Artaud Fragmentário: Sonho e
Crueldade na Cena do Corpo, também de 2015, de Anderson Pinto
Arêas, pesquisa realizada junto ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Arte, da Universidade Federal Fluminense; e, por fim,
Rubens Corrêa é Artaud!: as manifestações (do) inconsciente/s no
trabalho do ator (uma busca pela atuação esquizofrênica rubeniana)
de 2018, dissertação de Guilherme Conrado Pereira Ríspolli, no
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, da Universidade
Federal de Uberlândia.

131
132
Notas

1
Artaud, Oeuvres Complètes, v. VIII. Paris: Gallimard, 1976, p. 159
2
Artaud. Oeuvres Complètes. v. 1. Paris: Gallimard, 1970, p. 30.
3
Artaud citado por Teixeira Coelho, sem referências.
4
Artaud. Van Gogh: o suicidado pela sociedade (trechos)
5
Artaud. Van Gogh: o suicidado pela sociedade (trechos).
6
Artaud. Oeuvres Complètes. v. 4. Paris: Gallimard, 1964. p. 96.
7
Artaud. Surrealismo e revolução: palestra pronunciada no México –1936.
8
Artaud. Oeuvres Complètes. v. 9. Paris: Gallimard, 1.ed.
9
Artaud. Surrealismo e revolução.
10
Artaud. Oeuvres Complètes. v. 1. Paris: Gallimard, 1976, p. 60.
11
“B. Dort. A vanguarda em suspenso. Théâtre populaire. n. 18,
1.5.1956; texto reproduzido (e ligeiramente modificado) em Théâtre
public, Seuil, 1967, p. 245.” (Virmaux, 2000, p. 200)
12
Artaud. Oeuvres Complètes, v. 3. 16 de outubro de 1934, p. 308.
13
Artaud. O teatro e os deuses. In: Artaud. Os Tarahumaras.
ed. L’Arbalète, Marc Barbezat, 1963. p. 196-208. (Conferência
pronunciada em 1936 na Universidade do México)

133
134
Sobre o autor

Ismael Scheffler é Doutor em Teatro pela Universidade do Estado


de Santa Catarina, tendo desenvolvido a tese O Laboratório de
Estudo do Movimento e o percurso de formação de Jacques Lecoq
(2013), e Mestre em Teatro, pela mesma instituição, com a pesquisa
Características do sagrado nas propostas teatrais de Antonin Artaud
e Jerzy Grotowski (2004). Também é Especialista em Teatro (2001)
e Bacharel em Artes Cênicas - Direção Teatral pela Faculdade de
Artes do Paraná (2000). Tem formação no Laboratório de Estudo
do Movimento da Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq,
em Paris, França (2011), e na Escola do Ator Cômico, em Curitiba
(2007). Realizou estágio doutoral na Universidade de Sorbonne
Nouvelle-Paris 3 (2012).
É professor e pesquisador na Universidade Tecnológica
Federal do Paraná - Campus Curitiba. Coordena o tut – Teatro da
utfpr – Curitiba, desde 2005, realizando diferentes ações e projetos
de extensão em teatro, cenografia, cinema e exposições. Dirige e
produz os espetáculos do tut, dentre eles: oco (2019), Babel (2013-
2014), A breve dança de Romeu e Julieta (2009), Ubu rei (2008-2009).
É professor nas graduações de Bacharelado em Design e
de Licenciatura em Letras/Português, ministrando, entre outras,
disciplinas como Espaço cenográfico, Corpo-forma-movimento e
Teoria do teatro e teatro brasileiro. Foi coordenador e professor do
Curso de Especialização em Cenografia e do Curso de Especialização
em Artes Híbridas; também foi professor nos Curso de Especialização
em Narrativas Visuais, Especialização em Literatura Dramática
e Teatro, e Especialização em Comunicação e Cultura, todos na
utfpr, e no Curso de Especialização em Atividades Acrobáticas no
Circo e na Ginástica (pucpr).

135
Ismael Scheffler

É coordenador do Grupo de Trabalho Poéticas Espaciais,


Visuais e Sonoras da Cena, da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-
Graduação em Artes Cênicas – abrace, a qual integra desde 2003.
Publicou diversos livros, capítulos de livro e artigos
científicos sobre história e processos de criação do tut, pedagogia
teatral, história do teatro curitibano, Antonin Artaud, Jacques Lecoq
e design cênico.
Dentre estes livros, destaca-se: oco: memórias e olhares
(org.) (Arte Final, 2021); Teorias da cena: teatro e visualidades
(InterSaberes, 2019); José Maria Santos: entrevistas e embates (org.)
(utfpr, 2017); Questões de cenografia II: cenografia no teatro e em
outros contextos (org.) (Arte Final, 2016); Questões de cenografia I
(org.) (Arte Final, 2014); Babel: o processo de criação do espetáculo
(utfpr, 2013); tut, tecefet, tetef: 35 anos de teatro na utfpr
(utfpr, 2008).
Publicou os seguintes capítulos de livro: À sombra do
vampiro: 25 anos de teatro de grupo em Curitiba (Walter Lima Torres
Neto [Org.], Kotter, 2018); The Routledge Companion to Jacques
Lecoq (Mark Evans; Rick Kemp. [Org.], Londres: Routledge, 2016);
Teatralidade e cidade (André Carreira. [Org.], udesc, 2011); A
Interatividade, o controle da cena e o público como agente compositor
(Margie Gandara Rauen [Org.], edufba, 2009), entre outros.
Diversos de seus artigos publicados em revistas especializadas
e anais de eventos científicos podem ser encontrados na plataforma:
Academia.edu (https://utfpr-br.academia.edu/IsmaelScheffler).
É ator, cenógrafo e diretor teatral.

136

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