Você está na página 1de 2

2194 RESENHAS BOOK REVIEWS

bre os mecanismos sociais que contribuem para que ção de pesquisa na forma de publicações periódicas
ainda perdure no país a culpabilização das vítimas pe- seriadas. Parte dessa lacuna vem a ser preenchida pela
las causas dos acidentes que afetam ou interrompem edição desse livro, o qual reúne alguns dos principais
suas vidas. estudos apresentados no Grupo de Trabalho de Políti-
Tornar os acidentes invisíveis e culpar as vítimas cas Públicas da ANPOCS entre 2001 e 2006.
dos mesmos quando se tornam visíveis são processos Essa publicação traz ao leitor um panorama atu-
que se encontram relacionados no papel que o Brasil al das análises sobre políticas públicas realizadas nas
ocupa dentro do industrialismo como uma das di- últimas décadas, campo de estudo que se desenvolve
mensões da globalização. Como observa Giddens 1, a no país como, a um só tempo, reflexo e motivação do
expansão da divisão global do trabalho é um dos as- processo de redemocratização. Os professores Gilber-
pectos do industrialismo enquanto feixe organizacio- to Hochman, da Casa de Oswaldo Cruz, da Fundação
nal da modernidade, e que inclui diferenciações tanto Oswaldo Cruz (COC/FIOCRUZ), e Marta Arretche e
entre áreas mais e menos industrializadas do mundo Eduardo Marques, do Departamento de Ciência Polí-
no mundo, como no que se refere à especialização re- tica, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-
gional em termos de tipo de indústria, capacitações e manas, da Universidade de São Paulo (DCP/FFLCH/
a produção de matérias-primas. É esta divisão do tra- USP), reuniram e selecionaram as contribuições que
balho, que resulta em uma subseqüente divisão global posicionam o leitor quanto aos conceitos relevantes
dos riscos e dos custos humanos, que permite que o para acompanhar a discussão; informam-lhe sobre os
Brasil ainda não tenha vivido uma crise de renovação aspectos históricos da implementação de políticas se-
das intervenções de profissionais e de governos, pois toriais como as que envolvem as áreas da saúde e edu-
se a tivesse, não teríamos mais a possibilidade de sub- cação; e exploram analiticamente seus condicionantes,
notificações e também da culpabilização das vítimas. sua implementação, seus efeitos.
Em relação a essa segunda questão, basta lembrarmos Enriquece o projeto editorial a participação de um
como em todas as vezes que ocorre um acidente in- seleto grupo de profissionais ligados a importantes
dustrial, nos transportes (aviões e trens, por exemplo) instituições de diferentes estados brasileiros e do ex-
ou na busca de fontes de energias (plataformas de pe- terior. O leitor terá em mãos o ingresso de entrada ao
tróleo, por exemplo), antes mesmo de investigar suas ambiente vívido das reuniões da ANPOCS; transportar-
causas, profissionais e governos se apressam em culpar se-á para as mesas de debates e apresentação de traba-
os trabalhadores, procurando assim reafirmar que o lhos, tradicionalmente realizadas em Caxambu, Minas
industrialismo, enquanto organização social, vai bem e Gerais, Brasil; quase poderá erguer o braço no esforço
continuará operando de modo seguro. Perigosos são os por interagir e intensificar a reflexão. E, como nos con-
trabalhadores. gressos e reuniões científicas, em que selecionamos
Se este é o quadro atual, não podemos deixar de previamente no programa as sessões que serão acom-
ter a esperança que Tom Dwyer deposita no seu último panhadas a cada momento, o leitor poderá fazer sua
capítulo: “...a esperança de que os atores sociais e as re- própria agenda de leitura numa rayuela de capítulos,
lações sociais concretas passarão a ser considerados de a despeito do esforço dos organizadores em imprimir
maneira mais ampla como responsáveis pela produção uma consistente ordenação temática, dividindo os ca-
de acidentes...” (p. 28). Essa esperança não só transfor- pítulos em grupos de três, abordando respectivamente
maria os acidentes em eventos capazes de resultar em “conceitos”, “processos decisórios”, “condicionantes e
um aprendizado social, mas também em medidas de efeitos das políticas públicas” e “implementação e ava-
controle e prevenção mais contextualizadas e efetivas. liação”.
Meu jogo da amarelinha começa com a interes-
Carlos Machado de Freitas santíssima incursão histórica aos programas de erra-
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Os-
dicação da malária e da varíola no Brasil, instâncias
waldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil.
carlosmf@ensp.fiocruz.br privilegiadas de articulação entre políticas nacionais e
a agenda internacional de saúde. Judiciosamente apre-
1. Giddens A. As conseqüências da modernidade. sentado no final do volume, o estudo comparativo do
São Paulo: Editora Unesp; 1990. sucesso de uma e do fracasso da outra política pública
culmina o volume pontuando elementos conceituais
e analíticos perpassados nos capítulos anteriores. Gil-
POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL. Hochman G, berto Hochman, no melhor de sua forma de analista
Arretche M, Marques E, organizadores. Rio de da história e saúde, oferece argumentos e informações
Janeiro: Editora Fiocruz, 2007. 398 pp. que esclarecem o desenvolvimento institucional gera-
ISBN: 978-85-7541-124-7 do pelos dois programas de saúde. Em uma perspectiva
ainda mais abrangente, o autor nos situa quanto à con-
Acostumado à pujança dos congressos anuais da Asso- tribuição dos programas de saúde para o processo de
ciação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva formação do Estado brasileiro.
(ABRASCO), tidos internacionalmente como exemplo A predileção pela saúde e pela metodologia de pes-
de mobilização e integração de docentes, estudantes, quisa quantitativa atrai a leitura de Condicionantes Lo-
pesquisadores, técnicos e gestores dos serviços de saú- cais da Descentralização das Políticas de Saúde, capítu-
de, o leitor de Cadernos de Saúde Pública decerto não lo em que Marta Arretche e Eduardo Marques testam a
deixará de apreciar a função análoga dos encontros hipótese de que, ao concentrar no nível federal o poder
anuais da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Gra- de decisão para implementar políticas redistributivas,
duação em Ciências Sociais (ANPOCS) no meio da pes- o processo de descentralização do sistema de saúde
quisa social. Ao contrário da Saúde Coletiva, no entan- teria contribuído para reduzir diferenças regionais no
to, a área de Ciências Sociais não conta, no Brasil, com acesso a serviços. Para esse fim foram cotejados da-
um campo institucional tão dinâmico para a divulga- dos sócio-econômicos dos municípios e informações

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 24(9):2193-2196, set, 2008


RESENHAS BOOK REVIEWS 2195

sobre a atenção básica de saúde, atendimentos am- gente poderá motivar a reconstituição histórica do
bulatoriais e hospitalares. O cuidadoso procedimento pensamento aplicado aos estudos de políticas públicas
analítico conclui pela rejeição da hipótese. Apesar da no Brasil. A mesma curiosidade poderá suscitar o estu-
descentralização do sistema de saúde ter generalizado do do campo institucional em que os embates relativos
a alocação nos municípios da função de oferta de ser- à definição e implementação das políticas públicas são
viços básicos de saúde, o potencial efeito redistributivo travados no país. Embora os diferentes capítulos e mes-
da transferência de recursos federais não teria se con- mo a Introdução reúnam informações relevantes sobre
cretizado; não se obteve a desejada redução da desi- esses aspectos, há decerto um vasto campo para moti-
gualdade na provisão de serviços. A notícia é ruim, mas var a continuidade e o aprofundamento do quadro de
a identificação do problema é parte de sua solução; e reflexões delineado nesse volume.
a oportunidade do estudo reside justamente em reco- Formulação conceitual, condicionantes para a to-
nhecer caminhos para intervenções potencialmente mada de decisão, aspectos históricos da implementa-
efetivas de promoção da eqüidade. Com esse intuito, os ção de políticas públicas e recursos para sua avaliação.
autores apontam para a variável “regras que orientam A publicação de Políticas Públicas no Brasil é saudada
as transferências federais” como um possível elemento como instrumento relevante para a consolidação da
dessa solução. área de estudos no país e como recurso de capacitação
Telma Menicucci, da Fundação João Pinheiro, dos agentes envolvidos no processo de definição dos
também chama atenção para problemas na política de rumos da ação estatal no Brasil.
saúde. Freqüentemente sintetizados na tríade “univer-
salidade, integralidade e eqüidade”, os princípios do José Leopoldo Ferreira Antunes
Faculdade de Odontologia, Universidade de São Paulo,
Sistema Único de Saúde (SUS) foram formulados por
São Paulo, Brasil.
inspiração de uma conjuntura privilegiada – o processo leopoldo@usp.br
de redemocratização do país – na qual a manifestação
de interesses privados teria sido minimizada. Mas a re-
forma sanitária foi implementada progressivamente, TRAVESTI: PROSTITUIÇÃO, SEXO, GÊNERO E
e este processo não se reduziu à tradução prática das CULTURA NO BRASIL. Kulick D. Rio de Janeiro:
decisões anteriormente formuladas. Antes disso, con- Editora Fiocruz; 2008. 280 pp.
sistiu num redirecionamento das diretrizes da ação es- ISBN: 978-85-7541-151-3
tatal em saúde. A autora nos mostra o processo de im-
plantação do SUS em um quadro dominado por forças O livro do antropólogo norte-americano Don Kulick, é
políticas conservadoras que fizeram das dificuldades de uma profunda análise de campo sobre as travestis de
financiamento associadas ao aumento de atribuições Salvador, Bahia, Brasil, realizada em meados da década
do sistema instrumental para valorizar o investimento de 90. O livro foi inicialmente publicado nos Estados
privado e as opções de mercado em saúde. Nesse con- Unidos, e depois no Brasil pela Editora Fiocruz. O autor
texto, a perda de legitimidade das políticas sociais uni- é professor de antropologia e diretor do Center for the
versalistas implicou a reformulação da política de saú- Study of Gender and Sexuality, New York University.
de vigente em pleno processo de sua implementação, O texto é importante por várias razões. As pessoas
resultando num “sistema de saúde dual” que tem duas vêem as travestis nas ruas, na televisão e na mídia em
estruturas institucionais: uma delas expressa pela dire- geral, mas poucos fazem idéia de como estas pessoas
triz “publicista” original do sistema de saúde; a outra, vivem, o que pensam e qual a sua trajetória pessoal.
de ordem “privatista”, que visa a propiciar a realização Kulick viveu entre elas em uma humilde casa perto do
de interesses privados por meio da prestação de servi- Pelourinho, no centro de Salvador. Tornou-se um ob-
ços conveniados, ações suplementares e ampliação de servador neutro, até mesmo confidente de algumas, e
cobertura dos planos e seguros de saúde. conseguiu observar seu modo de vida, conhecer suas
Sob o título de Estado da Arte da Pesquisa em Políti- idéias, sonhos e problemas, reais ou imaginários.
cas Públicas, Celina Souza, da Universidade Federal da O livro é dividido em cinco partes: A Vida das Tra-
Bahia, traça um panorama da literatura internacional vestis em Contexto; Virando Travesti; Um Homem em
quanto aos modelos de análise e linhas conceituais pa- Casa; O Prazer da Prostituição; e Travesti, Gênero, Sub-
ra a interpretação das políticas públicas. Outros capítu- jetividade. O texto é claro, objetivo, respeita o vocabu-
los versam sobre políticas de educação; gastos públicos lário das entrevistadas e consegue, por meio de uma
e investimentos sociais; participação popular nos con- articulação entre argumentos, proposições e análises,
selhos municipais de política pública; interação entre tecer uma linha explicativa do mundo das travestis sem
sindicalismo e governo na reforma previdenciária; que preconceitos ou apologias o contaminem.
conceitos de Estado de bem-estar, desenvolvimento As travestis são homens, mas exigem ser tratadas no
econômico e cidadania. Ao término da leitura, o leitor feminino. Vestem-se de mulheres, tomam hormônios
ficará com um gostinho de “quero mais”, e talvez se sin- ou aplicam silicone para parecer mais mulher, porém,
ta motivado a procurar identificar possíveis lacunas a no ato sexual com seus clientes muitas vezes fazem o
serem preenchidas pelas próximas sessões do grupo de papel ativo. São femininas na aparência e másculas
trabalho da ANPOCS e por futuras edições de publica- em várias atitudes, podendo chegar à violência para
ções dessa natureza. se defender. Se o mundo homossexual masculino já foi
O interesse pela área da saúde poderá propiciar o razoavelmente estudado por sociólogos, educadores,
interesse do leitor em buscar outros elementos de lite- psicólogos, historiadores, antropólogos, literatos e pro-
ratura, ou mesmo em desenvolver estudos adicionais fissionais da área da saúde, as travestis permanecem
focalizando políticas específicas de grande impacto po- uma incógnita contraditória para muitas pessoas, com
pulacional, como o Programa Saúde da Família (PSF), poucos estudos científicos publicados no país. Elas são
a distribuição de medicamentos anti-retrovirais, para homossexuais, aliás, consideram-se os mais corajosos
mencionar apenas alguns. Uma indagação mais abran- e genuínos, e não admitem mudar de sexo. Possuem

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 24(9):2193-2196, set, 2008

Você também pode gostar