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Paradoxo

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Gustavo Martins
O tique-taque dos relógios destroçados ecoava pelo espaço profundo, reverberando nos
restos de paredes de pedra e outros materiais surreais. No fundo da escuridão, girando
tranquilamente, uma estranha fenda circular absorvia os pedaços do tempo para dentro de si,
gerando dentro de infinitos lumes azuis dentro de sua nuvem espiral. Assistindo impressionado
ao espetáculo cósmico, um homem sentava-se sobre o teto de uma grande catedral e ao seu lado
uma mulher permanecia de pé, imóvel, absorta em pensamentos.

—É um belo mundo esse que você criou. – disse o homem.

—Talvez. – a mulher respondeu desatenta – Mas ainda está incompleto.

—Parece-me bem completo, se me permite dizer.

—Visualmente falando está, mas ainda há alguns problemas na função básica.

O homem deitou-se para olhar para o céu escuro daquele lugar. Não havia estrelas, planetas
ou qualquer coisa do tipo numa distância que se pudesse ver. Apenas as engrenagens, ponteiros
e pedaços de vidro dos contadores de tempo.

—Se importaria em explicar?

A mulher deu de ombros e com um gesto simples de mão fez alguns pedaços que flutuavam
se juntarem numa grande ampulheta.

—O tempo nunca fez muito sentido. Por ser um conceito é poderoso, mas não há como
compreendê-lo e como tal, usá-lo. Ao menos era o que se acreditava antes de encontrarem a
Kadingir. Desde então todos tentarem encontrar um modo de compreender e manipular o tempo.
Mas nunca vão conseguir.

—Por que diz isso?

—Todos olham para os efeitos do tempo achando que eles são a resposta. Mas não é assim.
É como olhar para um objeto ao longe tentando compreender a profundidade.

—Acho que não entendi bem essa parte.

—Nosso universo visível é tridimensional, sendo formado por altura, largura e profundidade.
Cada um desses três fatores serve para definir a posição de algo e assim controlar toda a
matéria. A profundidade como nós a vemos é resultado da aplicação da profundidade de facto
sobre as partículas. Essas partículas são também influenciadas por outros fatores e isso torna a
maneira como a profundidade reage diferente do efeito original. É como puxar um objeto em
duas direções ao mesmo tempo.

—E o que isso tem haver com o tempo?

Subitamente a ampulheta virou, fazendo areia começar a fluir de uma parte para a outra.

—A areia cai de uma ampulheta não pelo efeito do tempo, mas pela ação da gravidade.
Quando ela foi criado ninguém fazia idéia do que tal força existia e por isso fizeram da areia
que cai o símbolo do tempo. E esse mesmo simbolismo vem sendo usado até hoje, mesmo que
saibamos que não é assim que funciona. E se o conceito base de tempo está errado como
podemos compreender o que ele realmente é? – com outro gesto, mais brusco, mais ágil, a
mulher fez despedaçar-se o aparelho que criara – Esse efeito também não é o tempo e sim a
cinética. Eu ordenei para as partículas que haviam se juntando que retornassem ao seu estado
original, ou seja que retornassem no tempo, porém para atingir tal efeito elas tiveram de utilizar
de outra força. Se isso também não é o tempo, então o que ele é?

O homem fixou seu olhar nos pedaços do objeto que agora flutuavam graciosamente em
direção ao esquecimento na nuvem espiral. Conforme se aproximavam do centro suas formas se
alteravam em longos fios luminosos e enfim tornavam-se luz.

—Poderia desfazer aquilo? – perguntou o homem.

—Não. Eu não consigo manipular o tempo e desconheço qualquer outra força que pudesse
gerar tal efeito.

—Para que esse mundo foi criado, então?

—Para resolver o paradoxo.

—Paradoxo?

Sentando-se ao lado do ouvinte a mulher fez surgir das trevas um estranho relógio espiral
cujos números pouco a pouco se fundiam numa única massa escura.

—O tempo não faz sentido como conceito, como força e mesmo como eixo e ainda assim é a
principal força motora do mundo. Tudo que existe ou que vai existir é delimitado por quanto
movimento essa força motora consegue gerar. Pouco a pouco, porém, o tempo vai se tornando
mais e mais abstrato. Não há um Deus que o represente e todo seu símbolo é errôneo. Se o
universo é movido por algo falho e incompreensível não seria ele então falho e incompreensível
por extensão?

—Acho que começo a entender aonde você quer chegar.

—Tentei criar esse mundo livre de qualquer coisa que não fosse o tempo, porém toda fez que
criava um novo o todo anterior desaparecia e algo novo com regras completamente diferentes
daquelas do anterior tomava seu lugar. Meu objetivo era criar um mundo onde só há uma
variável considerada, mas parece impossível. No fim das contas acho que é impossível criar um
universo com uma única regra.

—É impossível que algo se sustente numa única regra. Sinto dizer que não teria como dar
certo.

—Tem razão. Era um plano bem idiota. Acho que não tem sentido mais manter esse mundo
funcionando.

—Não acho, esse é um cenário lindo.

—Lindo, mas custoso. A energia para mantê-lo é grande demais para o meu corpo. Venha,
vou desativar isso tudo. – a mulher disse, fazendo surgir uma escada espiral por sobre a igreja.

O homem levantou-se e limpou a poeira estelar das roupas. Ainda continuou parado por
longos segundos, observando a dança dos destroços de relógios.

—Que desperdício… – murmurou ele enfim, subindo pelas escadas enquanto o universo se
desfazia em nada.
Quando atravessou para o outro lado, o homem viu-se novamente no quarto escuro do
hospital. A pouca luz que penetrava caía sobre o rosto da mulher, deitada, olhando
perdidamente para os livros na cômoda.

—Como se sente? – perguntou o homem.

—Ainda preciso dar um jeito de testar o tempo.

Estendendo o braço para pegar um caderno de sua cômoda, a mulher acabou por deixá-lo
cair no chão. Os cabelos caídos sobre a face escondiam sua expressão.

Adiantando-se a ela, o homem recolheu o caderno e colocou ao lado do travesseiro. Sentou-


se na cama e sorriu gentilmente.

—Margarida vermelha. – disse ele, entregando o livro de anotações.

—O que isso quer dizer?

—Beleza desconhecida para a quem possui. Você possui um poder lindo, algo capaz de
mudar o mundo!

—Não estou interessada em mudar o mundo.

Rindo suavemente o homem segurou a mão trêmula da mulher. Apertando-a ele sentiu a
força do movimento involuntário crescendo e aproximou seu rosto do dela.

—Você é linda demais para essa situação. – sussurrou ele – Por que não deixa que eu te
ajude?

Soltando-se do aperto, a mulher desviou o olhar para a janela. Era uma noite escura e fria e
as estrelas se escondiam atrás das nuvens. Tentou alcançar o fio para fechar a janela, mas foi
impedida pela ação mais rápida daquele que com ela estava.

—Não precisava disso. – disse a mulher.

—Mas eu quis.

—Não preciso de sua ajuda! Não sou uma de suas flores! Nunca serei!

—Você tem tanto potencial…

O homem afagou o rosto da dama, que logo o impediu com suas fracas mãos. Olharam nos
olhos um do outro, sem nada dizer por longos instantes. Apesar de doente e presa naquela cama,
a mulher era orgulhosa e possuía um espírito poderoso. Isso conquistara o homem desde a
primeira vez que a viu e agora mais que nunca ansiava por ajudá-la, entretanto sabia que ela
recusaria.

—Se mudar de ideia sabe como me encontrar. – disse o homem.

Não houve resposta. Apenas um olhar vazio, alheio, e um movimento de lábios interrompido
de início. O homem então se retirou sem olhar para trás.

Olhando para o caderno, a mulher se deixou mergulhar em sentimentos. Permitiu que as


lágrimas lhe lavassem a alma e escorressem por sobre o papel de suas anotações. Mas não
importava quanto tivesse de suportar aquela dor, iria continuar indo em frente e talvez um dia
pudesse consertar o paradoxo.

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