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Fernando Pessoa

que recorda o tempo em que era feliz sem saber que o era. "A
criança que fui vive-olT morreu?" Int~a:S;lancinanteme-nte o
poeta e ainda "E eu era feliz? Não sei:! Fui-o outrora agora".
A criança que foi é como o gato que brinca na rua ou a
ceifeira-c~ja sorte o poeta inveja, já que senTemalegria esatis-=
fãç~o -sem"Saberem que a sentem, ao contrário do poeta que já não
pode sentir essa alegria sem pensar nela e, conseque-;;te~
deixar de senti-la. "O que em mim sente está pensando" afirma
tristemente ao ouvir o canto da ceifeira que "Ondula como um
canto de ave". A dor de pensar é, assim, outro dos temas da
poesia de Pessoa ortónimo, o poeta fingidor que procura ~scr~.v..~L
distanciado do sentimento; já que "a composição de um poema
lírico deve ser feita não n~ m~me..nto da emoção, mas no -;;ãrnentõ
da recordação dela" e, por isso, a poesia não pode ser a expressão
directa de uma ;~oSão vivida. mas a expressão úa~s~g~radã_ do
rasto dessa emoção. Para Pessoa, a poesia é, pois, fingimento
poético.
É uma poesia intensamente musical que recorre à métrica
curta e frequentemente à quadra, no qosto pela tradição lírica lusi-
Pintura de Rinoceronte
tana e popular. Faz uso de um vocabulário simples e sóbrio e
utiliza um tom espontâneo, muitas vezes interrogativo, muitas
vezes negativo, por vezes irónico. No entanto, é também uma poesia que faz uso
de uma linguagem fortemente simbólica, onde abundam as metáforas inesperadas
e os paradoxos desconcertantes.

A primeira reacção de Femando Pessoa em face do mundo, incluindo o eu


que reflecte, é um sentimento de estranheza, um arrepio de espanto. Pessoa
nega-se, com todas as forças do seu espírito, a aceitar um mundo to! como as
suas percepções lho transmitem: é absurdo, não pode ser. Tomado da angústia
de intuir o mistério, interroga para satisfazer de certeza uma razão exigente.
Toda a sua obra exprime a interrogação ou as respostas possíveis para essa
interrogação, ou a melancolia de saber que não há resposta.

Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Femando Pessoa, Verbo

Toda a poesia de Femando Pessoa pode ser colocada sob o signo da ficção
do Ser. Ficção do ser do eu ou do eu como ser, ficção do universo como ser ou
do ser do universo, ficção do ser de Deus ou de Deus como ser.
A nenhuma das "realidades" que permitem opor um qualquer sentido ao
que chamamos Eu, Mundo ou Deus, Pessoa atribuiu um outro estatuto que o da
ficção ou sonho.

Eduardo Lourenço, "Cisão e Busca de Sentido em Pessoa",


Tabacaria, n. o 2

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