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Mostre que relação se estabelece entre exercício da dúvida e procura da

verdade em Descartes.

R: Descartes procura um conhecimento certo e seguro sobre o qual possa


construir de forma ordenada e correcta um conjunto de conhecimentos a que
se chama sistema do saber. Esse conhecimento fundacional terá de ser
indubitável, ou seja, de tal modo distinto e claro – evidente – que dele não se
possa duvidar. Será uma crença básica, um conhecimento verdadeiro que a si
mesmo se justifique pela sua clareza intrínseca. Como encontrar um tal
conhecimento primeiro e inabalável? Submetendo todos os conhecimentos que
constituam crenças básicas do saber tradicional ao exame da dúvida. Como
vai ser aplicada a dúvida? Seguindo a regra do método que manda considerar
falso o que não for indubitável. Assim a dúvida é metódica – segue uma regra
do método – e hiperbólica – o que parecer, por pouco que seja, duvidoso será
considerado falso. Esta forma de exercer a dúvida deve-se ao facto de
Descartes visar separar absolutamente o verdadeiro do falso. Entre verdadeiro
e falso não há meio-termo. Verdadeiro é igual a absolutamente verdadeiro –
indubitável – e provavelmente verdadeiro é igual a falso. Se algum
conhecimento superar o teste da dúvida, será um conhecimento que não
suscitará a mínima dúvida – em última análise, será o conhecimento de uma
verdade que é condição de possibilidade do exercício da própria dúvida. O
primeiro conhecimento que superar a dúvida será a crença básica do sistema
cartesiano – o Cogito –, a verdade da qual dependerá a descoberta de outras
verdades, mas que não se deduz de nenhuma outra.

O que significa dizer que a dúvida é hiperbólica? Por que razão Descartes
decide aplicar a dúvida de forma hiperbólica?
R: A dúvida é hiperbólica porque, em termos gerais, se baseia no princípio
metodológico de que falso é igual a aparentemente duvidoso. O que parece
duvidoso não é provavelmente verdadeiro, mas sim falso. Entre verdade e
falsidade não há meio-termo, ou seja, não há compromisso possível.

 Em termos mais específicos, a dúvida é hiperbólica porque ordena que:


1 – Se considere falso o que for minimamente duvidoso.
2 – Se considere sempre enganador o que algumas vezes engana.
Descartes decide aplicar a dúvida hiperbólica para ficar seguro de que,
quando descobrir uma crença que lhe resista, essa crença seja absolutamente
verdadeira. A função da dúvida é separar o verdadeiro do falso abrindo o
caminho para uma verdade indubitável a partir da qual se reconstruirá um
sistema de conhecimentos verdadeiros e bem organizados.

O que distingue o primeiro e segundo níveis da aplicação da dúvida?


R: No primeiro nível de aplicação da dúvida, o argumento dos erros
perceptivos, Descartes põe em causa as informações dos sentidos sobre as
propriedades e qualidades dos objetos sensíveis que existem no mundo. No
segundo nível de aplicação da dúvida, o argumento da impossibilidade de
encontrar um critério que nitidamente distinga sonho de realidade põe em
causa a própria existência do mundo físico. Em ambos os casos, mostra-se que
não se pode confiar na experiência sensível ou, pelo menos, que não podemos
obter conhecimentos seguros acerca da existência do mundo e das
propriedades das coisas que nele existem se nos fiarmos somente nos nossos
sentidos. A palavra de ordem em relação aos sentidos é esta: não podemos
saber quando nos estão a enganar e por isso devemos deles desconfiar
completamente. Vê-se aqui que Descartes rejeita completamente uma
conceção empirista do conhecimento.

Por que razão recorre Descartes ao argumento do Deus enganador?


R: Um argumento como o dos erros precetivos não é de modo algum adequado
para por em causa crenças a priori – cuja verdade não pode ser justificada
pela experiência – como é o caso das verdades matemáticas. Por outro lado, o
argumento do sonho não é suficientemente convincente para me convencer de
que 2 + 2 = 4 pode ser uma crença falsa. Esses argumentos incidem em
crenças de tipo empírico, ao passo que as matemáticas pertencem à ordem
dos objectos inteligíveis, não empíricos. Trata-se de abalar a confiança no
funcionamento do nosso entendimento e não é recorrendo a erros e ilusões
que têm a ver com os nossos sentidos que o conseguiremos fazer de modo
satisfatório. As matemáticas – produtos do nosso entendimento considerados
exemplares – não vão passar no teste da dúvida devido a uma hipótese «muito
metafísica» que consiste em suspeitar que Deus seja enganador e malicioso a
ponto de perverter o nosso entendimento levando-o a tomar o falso por
verdadeiro.

Por que razão não se pode afirmar que Descartes é um cético? Consegue
contudo Descartes suplantar completamente o argumento cético de que o
conhecimento não é possível?
R: Descartes não é nem nunca foi um cético. O ceticismo é precisamente o
seu adversário. Contra o argumento cético da regressão infinita da
justificação das nossas crenças, Descartes vai argumentar mostrando que há
crenças básicas – que se sustentam a si próprias. Essas crenças são a
existência do sujeito pensante, a distinção real entre alma e corpo e a
existência de Deus.
Será que Descartes supera o desafio cético? Todo o problema reside no papel
que atribui a Deus – podemos perguntar se esta importância atribuída a Deus
tem a ver com razões epistemológicas ou releva de motivações pessoais e
sociais, tais como não ser incomodado pela censura religiosa e fazer de conta
que a sua filosofia é uma declaração de guerra ao ateísmo. Deus é que
garante que não me engano quando penso clara e distintamente. Esta garantia
não se estende ao Cogito – verdade que nada pode pôr em causa e que se
auto-justifica absolutamente. Ou seja, o primeiro princípio do sistema do
saber não precisa da garantia epistemológica conferida pela veracidade
divina.
São os resultados das operações do sujeito pensante – da razão – que, no
entender de Descartes, precisam da garantia de que Deus não engana. Se
concebo clara e distintamente que o triângulo é um polígono de três lados e
que 45 + 3 = 48, por mais evidente que isto me pareça, preciso de ter a
certeza de que Deus existe como ser perfeito ou não enganador. As ideias
claras e distintas, exceto a da minha existência como condição do acto de
duvidar. Ora, é aqui que começam, segundo vários críticos, os problemas. Em
primeiro lugar, a prova da existência de Deus parte da ideia clara e distinta
de perfeição. Pretende-se o quê? Provar a existência de um ser que garanta a
veracidade das ideias claras e distintas que o sujeito pensante forma. Mas isto
é um argumento circular: prova-se o que se quer concluir mediante a própria
conclusão.

Em que consiste a prova da existência de Deus pela ideia de perfeito? Qual o


seu objectivo? Considera-a uma prova convincente? Caso não seja uma prova
convincente, que problemas decorrem daí para o projecto cartesiano de
garantir que o nosso conhecimento claro e distinto é absolutamente seguro.
R: Eis a prova:
1 – Sei que sou imperfeito. Duvidar de tanta coisa é sinal de imperfeição.
2 – Mas como sei que duvidar é sinal de imperfeição? Porque tenho consciência
do que é ser perfeito, ou seja, tenho no meu pensamento a ideia do que é ser
perfeito.  
3 – A ideia de ser perfeito é, assim, uma ideia clara e distinta.
4 – Se está no meu pensamento, se sou eu que a descubro, será que sou eu o
seu autor? Não. A causa da ideia de um ser perfeito não pode ser causada por
um ser imperfeito.
5 – Por que razão não pode a ideia de um ser perfeito ser causada por um ser
imperfeito? Porque seria absurdo que o efeito – a ideia de perfeito – tivesse
mais realidade e perfeição do que a causa – nesta hipótese o sujeito pensante.

6 – Só um ser perfeito pode ser causa da ideia de perfeito.

7 – Esse ser perfeito é Deus.

8 – A ideia de perfeito existe. O que existe tem de ter uma causa. Não pode,
neste caso, ser o sujeito pensante. Logo, Deus tem de existir.

O objectivo da prova é garantir a objectividade das ideias claras e distintas,


em especial das ideias matemáticas que tinham sucumbido diante da suspeita
de que Deus podia enganar. Provando a existência de Deus como ser perfeito
ou não enganador – não é por acaso que a prova parte da ideia de perfeito –,
Descartes afirma que a partir de agora o que concebo como evidente (claro e
distinto) é verdadeiro não só no momento em que a evidencia está presente
na minha consciência como também quando não estou a pensar nela.
A prova é, sem dúvida, bem urdida e imaginativa, o que é apanágio de
Descartes. Contudo, algumas sombras se podem projectar sobre ela.
Deus vai garantir a verdade das crenças claras e distintas. Por outras palavras
e dado o que aconteceu no 3.º nível de aplicação da dúvida, para ter a
certeza de que as minhas ideias claras e distintas são verdadeiras, tenho de
saber se um Deus perfeito ou não enganador existe. Mas a prova baseia-se na
ideia clara e distinta de perfeição. Se, antes de completar a prova, a
existência de Deus não está provada, então essa ideia clara e distinta de
perfeição pode ser uma ilusão ou ser falsa. Assim, uma premissa frágil não
pode conduzir a uma conclusão sólida. Se só Deus pode garantir que não me
engano quando penso clara e distintamente, como pode Descartes garantir
que não se engana quando concebe Deus como um ser perfeito? E recorrer à
tradição para homologar essa ideia não parece adequado, dado que tudo está
sob suspeita, excepto o Cogito.
Admitindo que estas críticas não são satisfatórias, podemos dizer também o
seguinte: Deus vai garantir a verdade das crenças claras e distintas. Mas como
só Deus pode garantir a verdade dessas ideias claras e distintas, ao partir de
uma ideia como a de perfeição e ao considerá-la  clara e distinta, eu estou a
pressupor como já existente aquilo cuja existência vou demonstrar.
Os problemas não ficam por aqui: Por que razão tem de ser Deus a causa da
ideia de perfeito? É o sujeito pensante que a descobre. Será que é impossível
ser ele a sua causa?
Por outro lado, podemos perguntar se a desconfiança que se abateu sobre o
entendimento ou razão dada hipótese do Deus enganador se desvanece quase
miraculosamente, entregando-se a uma razão que ainda duvida que 2 + 2
somem realmente 4 a tarefa de provar a existência de um ser supremo.
Se estas críticas tiverem fundamento, então temos de concluir que Descartes
não ultrapassou completamente o cepticismo ou que lançou a primeira pedra
do seu projecto de constituição de um sistema do saber sólido e seguro, mas
não passou realmente daí.

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Descreva sucintamente como Descartes parte da dúvida e atinge uma verdade
indubitável.
R: Só a dúvida separa o verdadeiro do falso. Vou duvidar para encontrar um
conhecimento absolutamente verdadeiro que sirva de fundamento a todos os
outros, um princípio primeiro e absoluto. Como quero encontrar um
conhecimento desse tipo, não vou fazer a mínima concessão. Considerarei
falso o que por pouco que seja me pareça duvidoso. Se houver uma razão para
duvidar de uma crença, deixarei de lhe dar qualquer crédito. Como não vou
percorrer o vasto conjunto das minhas crenças de uma ponta à outra, basta
que submeta a exame as crenças fundamentais em que se baseia o saber dos
meus contemporâneos.
Nenhuma dessas crenças resiste. A crença de que o conhecimento começa
com a experiência não pode ser fundamento de nada porque os sentidos são
enganadores e os erros perceptivos muito frequentes. A crença imediata na
existência do mundo físico é abalada pela suspeita desencadeada pela enorme
dificuldade em distinguir o que é real do que é imaginário. E a crença na
capacidade intelectual da minha razão/entendimento é abalada pela suspeita
de que posso ter sido criado por um ser que virou todo o meu intelecto do
avesso e me faz confundir o verdadeiro com o falso sem eu disso me
aperceber.
Feitas as contas, nada parece poder servir de alicerce ao sistema do saber. O
sujeito que exerceu o acto de duvidar pôs em causa todo o tipo de objectos –
sensíveis e inteligíveis – e ficou sem certeza alguma. Mas no momento em que
parece render-se ao cepticismo, Descartes reflecte e vê que quem duvida é
iludido e enganado, tem pelo menos que existir. Isso é indubitável. Assim se
chega à primeira verdade fundamental: um sujeito que duvida de tudo, mas
que não pode duvidar de que existe. Essa existência é a condição sem a qual
não se pode exercer o acto de duvidar. A partir daqui, Descartes terá uma
base firme – puramente racional – para descobrir novas verdades sobre si e
sobre a realidade em geral.

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O projecto cartesiano é o de dar um fundamento metafísico – absoluto – ao
conhecimento humano. Quais são os três princípios metafísicos fundamentais
do sistema do saber? Qual é o mais importante?
R: Dar um fundamento metafísico ao saber significa dar-lhe um fundamento
absoluto, isto é, que não se baseia na experiência.
Ao descobrir o Cogito, Descartes pensa ter descoberto tal fundamento
metafísico porque o Cogito – Penso logo existo – é uma verdade absoluta e
radical. Imediatamente a seguir, descobre a natureza ou essência do sujeito
pensante – é uma razão pura, uma alma que, não precisando do corpo para
existir, se distingue radicalmente deste. O corpo é algo que, no momento da
descoberta da primeira verdade, não sabemos se existe ou não. Estas duas
verdades metafísicas são alicerces do novo saber que Descartes pretende
constituir de forma ordenada e dedutiva. A primeira derrota o cepticismo e
afirma-se como modelo e critério de verdade, ao mesmo tempo que nos vai
dirigir para novos conhecimentos. A segunda é importante porque separa o
material do espiritual lançando as bases de uma ciência da natureza que vai
conceber o mundo físico como realidade puramente extensa (Uma máquina
dotada de extensão e movimento) e por isso plenamente inteligível, afastando
qualquer referência a uma visão teleológica e finalista própria do
aristotelismo.
Mas como o sujeito pensante não consegue por si garantir a verdade e
objectividade das ideias claras e distintas que forma sobre os objectos do
mundo, Descartes julga necessário recorrer à garantia divina e por isso se
empenha em provar a existência de um ser perfeito que afaste de vez a
suposição muito frágil, mas suficientemente inquietante, do Deus enganador.
Só assim a objectividade e imutabilidade dos saberes (o que é verdadeiro será
sempre verdadeiro) alcançados pelo sujeito racional se estabelece e justifica.
Por outras palavras, é o sujeito ou a razão que conhece, mas a garantia de
que eles não são subjectivos e variáveis só pode ser dada por Deus. Este é a
verdadeira raiz da árvore do saber.
O que há de curioso nesta posição é que todo o percurso cartesiano da dúvida
ao Cogito é determinado pela exigência de autonomia da razão em relação à
experiência e à tradição, pela vontade de devolver a razão à posse de si
mesma, libertando-a de dependências externas. Mas não é assim que a
história acaba. O próprio Descartes declara surpreendentemente que «O ateu
não pode ser geómetra». Descartes libertou a razão da dependência em
relação à experiência como racionalista convicto que era, mas tornou-a
dependente de Deus, tese para nós surpreendente, mas também novidade
para os seus contemporâneos. Que haja razões extrafilosóficas para esta
atitude não cabe nesta introdução ao pensamento cartesiano.
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O que distingue o racionalismo cartesiano do racionalismo kantiano?
R: São vários os aspectos que diferenciam a gnosiologia kantiana da
cartesiana:

1 – A atitude em relação à experiência.


Kant considera que todo o conhecimento começa com a experiência e não
pode ultrapassar os dados da experiência. Descartes considera que a
experiência, dados os erros dos sentidos, não pode ser fonte credível de
conhecimentos. O conhecimento começa com a razão e atinge realidades
metafísicas desde que aquela se apoie na veracidade divina.
Kant considera que o conhecimento objectivo não deriva da experiência, mas
sim de formas a priori do sujeito cognoscente. Descartes está de acordo, mas
não concebe o fundamento dessa objectividade como Kant.

2 – A atitude em relação à razão.


Descartes entende que só há conhecimento certo e seguro da realidade se a
razão se libertar da dependência em relação à experiência, ou seja, aos
sentidos. Kant não admite que haja um conhecimento puramente racional. A
razão pura nada conhece. É precisamente para criticar esta pretensão do
racionalismo tradicional do qual Descartes é um dos expoentes que Kant
escreve uma obra cujo título é sintomático: Crítica da Razão Pura.

3 – A atitude em relação aos limites do conhecimento.


Descartes afirma que a razão apoiada na veracidade divina e nas ideias inatas
pode conhecer a realidade na sua totalidade, ou melhor dizendo, os princípios
gerais de toda a realidade: Deus, alma e mundo são realidades que podem ser
conhecidas.
Para Kant, a razão, em sentido lato, está limitada ao que a sensibilidade pode
dar para conhecer. Os objectos da intuição sensível marcam os limites do que
se pode conhecer. Deus, alma e mundo são simples ideias a que não
corresponde qualquer dado sensível. São pensamentos sem conteúdo.

4 - A atitude em relação à possibilidade do conhecimento.


R: Em Descartes, o conhecimento objectivo não é possível sem uma garantia
metafísica. Sem Deus e a sua veracidade, todo o conhecimento é incerto e
inseguro. Para Descartes, a metafísica é a raiz da árvore do saber.
Para Kant, o conhecimento objectivo é possível sem uma garantia metafísica.
O conhecimento objectivo deriva do sujeito humano e das formas a priori com
que está equipado.
Descartes nunca julgou possível garantir, fazer repousar a certeza
unicamente sobre o espírito humano. Daí a ambiguidade em falar
do Cogito  como primeiro princípio do sistema do saber e a  necessidade
imperiosa de, reconhecida a imperfeição deste, fundar o saber em Deus, ser
perfeito e verídico.
O fundamento e o valor da ciência encontram-se, para Descartes, fora
do espírito humano (Deus), ao passo que em Kant se dá o contrário. A
ciência humana não necessita de garantia divina. O problema do
conhecimento do mundo não é colocado para lá das forças do homem.  O
homem pode fazer ciência, mesmo que seja ateu. Quer Deus exista quer não
exista, a ciência em nada é afectada. Ela só depende do homem.

 5 – A atitude acerca da relação entre ciência e metafísica.


Como para Kant a metafísica não pode ser uma ciência – não podemos
conhecer realidades que não podemos espacializar e temporalizar, ou seja,
não podemos conhecer realidades metafísicas –, não faz sentido falar de dar
um fundamento ou garantia metafísica à ciência. Se a metafísica não é uma
ciência, como pode ser fundamento da ciência?
Contrariamente a Descartes, que se apoia numa nova metafísica, em novos
princípios ou alicerces para construir o edifício científico, Kant verifica e justifica
que não é possível fundar a ciência, conhecimento que progride, sobre a
metafísica, disciplina onde reina a luta interminável entre teses opostas e,
portanto, saber confuso, que não progride. Como fundar a ciência sobre a
metafísica se sabemos, através da análise transcendental das fontes, valor
e limites do conhecimento humano, que a metafísica não tem valor científico?
Não faria sentido construir sobre algo inexistente uma física e uma matemática
que são ciências existentes de facto.
Se a propósito de Kant e Descartes se fala de fundamentação da ciência, temos
de distinguir o tipo de fundamentação:
a) Em Descartes temos uma fundamentação metafísica da ciência, isto é, uma
fundação baseada em realidades metafísicas tais como Deus e alma (mas
sobretudo Deus, que é o verdadeiro pilar do sistema científico que Descartes se
propôs construir).
b) Em Kant temos uma fundamentação transcendental e não transcendente
do conhecimento científico, isto é, uma análise das condições a priori de
possibilidade do conhecimento científico que não remete para lá das faculdades
humanas intervenientes na constituição da ciência (entendimento e
sensibilidade e de algum modo a razão). A fundamentação da ciência esgota-se
na análise das funções das faculdades que constituem o nosso poder de conhecer.
Não há necessidade de referência a uma garantia metafísica, no sentido
tradicional do termo.

6 – A atitude em relação a Deus.


  Em Kant, Deus é uma ideia da razão e nada mais. Não podemos saber se Deus
existe. Deus é uma realidade metafísica cuja existência não podemos
demonstrar. A ideia de Deus (tal como as outras ideias) é uma forma ou
estrutura de uma faculdade do sujeito: a razão. É portanto uma estrutura ou
forma do sujeito e não algo que transcende este. Deus é transcendente; a
ideia de Deus é uma estrutura transcendental do sujeito.
Se é transcendental, a ideia de Deus é condição de possibilidade a priori de
algo. De quê? Não do conhecimento, mas sim do progresso do conhecimento. A
ideia de Deus é um ideal porque representa um ser que supomos omnisciente,
que não só supomos criador de tudo, mas também conhecedor de tudo. Agir
como se fosse possível conhecer tudo absoluta e definitivamente, ter a chave
que explica o mistério de todas as coisas, é agir segundo a ideia de Deus. É
essa a regra que a razão dá ao entendimento para que este nunca perca a sua
dinâmica cognitiva. Assim, a razão é condição de possibilidade do progresso
do conhecimento científico.

Em Descartes, Deus é a garantia da verdade das ideias claras e distintas.


Podemos demonstrar a sua existência. É uma ideia a que corresponde uma
realidade efectiva. E essa realidade efectiva é que torna objectivos os nossos
conhecimentos.

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