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Maria e seu gozo erótico pelos tecidos

Trecho  extraído  do  Livro  Uma  mulher  e  seus  extravios  -­‐    (Izabel  Haddad,  2019).  

“Os autores clássicos unanimamente dizem que o fetichismo não foi ainda
observado nas mulheres, essa asserção seria inexata se fosse preciso ligar
nossos casos ao fetichismo e se não o ligarmos a ele seu lugar não é mais
assinalado em nenhum local” (Clérambault, 1908/2009, p. 75).

A Srta. Marie D. conta que, desde que se casou, sentia uma fixação forte pelas sedas.
“Casei-me para ter um bonito vestido de seda preta. Depois do casamento, ainda punha
vestidos nas bonecas. Ainda gosto disso. A seda tem um frou frou, um cri cri que me dá
prazer” (Clérambault, 1908/2009, p. 278). A forma com a qual a paciente descreve os
barulhos da seda apontam certamente, segundo uma análise psicanalítica, para um gozo
que, nesse caso, parece desgarrar-se do simbólico. Mesmo que se queira atribuir à seda a
qualidade de um fetiche, ela é adorada por si só, e não pelo que evoca no caso dos
fetichistas homens, ou seja, uma pessoa, uma mulher. “O fetiche para a mulher é apenas
um fragmento de matéria, não é uma personalidade” (Clérambault, 1908/2009, p. 281).
Os fetichistas verdadeiros encontram no fetiche características associadas ao corpo
da mulher, e não apreciam o objeto somente pelo que ele é, mas, na maioria das vezes,
pelo que ele representa. A ideia de que as sensações em relação à seda não podem ser
descritas nem colocadas em palavras exatas é o que nos leva a acreditar que um elemento
de gozo se desgarra do simbólico e faz sua aparição fora da simbolização. “A seda acaricia
com suavidade uniforme uma epiderme que se sente sobretudo tornar-se passiva; depois
ela revela, por assim dizer, um nervosismo em suas quebras e seus gritos. Talvez assim
se prestasse melhor à volúpia feminina” (Clérambault, 1908/2009, p. 274).
Em 1901, Marie passou a viver perto de Paris com um trabalhador muito mais jovem
que ela. Nessa época, voltou a se embriagar com frequência. Apesar de ter tido uma série
de relacionamentos, relata sua falta de desejo pelos homens: “Não suporto os homens.
Antes de mais nada, eles são todos parecidos e, depois, agora tenho uma barrigona”
(Clérambault, 1908/2009, p. 278). Sua frigidez confessa era mais um dos sintomas
prevalentes no quadro clínico.
Muitas vezes, ao comparecer ao Tribunal, Marie se recusava a responder sobre os
motivos que a levavam a furtar, pois isso a fazia se sentir desconfortável. Em outros
momentos, “confessava suas taras com precisão e mesmo com uma segurança mórbida”
(Clérambault, 1908/2009, p. 280). Na época, a conduta sexual da paciente se mostrava
inadequada, o que ainda se somava à aura de enigma que a sexualidade feminina já
representava para os homens e a medicina daquele tempo. As predileções sexuais por
objetos do vestuário eram encontradas apenas nos fetichistas homens, descritos no livro
Psicopatia sexuais: as histórias de caso (2001), o manual de doenças sexuais de Krafft-
Ebing.
Um dos relatos da paciente nos pareceu muito ilustrativo para definir um tipo de
paixão feminina que, na conduta desregrada da paciente, saltou aos olhos de Clérambault.
No final de 1904, Marie entrou em uma grande loja de departamento, “possuída”, diz ela,
por um verdadeiro impulso. Segue o relato do que se passou nesse dia:

Acabara de tomar éter quando passei pela porta; além disso, havia oito dias não fazia outra coisa senão
me embebedar e praticamente não comia mais. Na seção de seda, fiquei fascinada por um vestido de
seda azul claro: ele se mantinha ereto. Uma seda que não se mantém rígida não me diz nada. Ele tinha
uma renda por baixo. Eu peguei esse vestido de criança, deslizei sob a minha saia, dentro de um grande
bolso e, segurando a ponta do vestido, me masturbei em plena loja, perto do elevador, e dentro do
mesmo, onde eu atingi o gozo máximo. Nesses momentos, minha cabeça incha, meu rosto se torna
vermelho, as têmporas pulsam, não posso mais gozar senão dessa forma. Depois disso, às vezes, eu
levo o objeto comigo, às vezes eu o deixo por lá. No momento em que me surpreenderam, ele estava
comigo, cheguei a dar um pontapé nele (Clérambault, 1908/2002, p. 105).

Há alguns elementos curiosos no relato da paciente. O primeiro deles é o fato de a


seda precisar ser rígida, qualidade prevalentemente desejada. “Aqui, a seda não apenas
deve roçar com delicadeza a epiderme, é preciso ainda que ela tenha corpo” (Clérambault,
1908/2009, p. 282). O segundo é a forma como M. é tomada por um gozo que a arrebata,
deixando-a alheia a si mesma, em plena loja. O terceiro elemento é a ação paradoxal de
deixar o objeto roubado na loja. “Após o uso, o fetiche perde todo o interesse”
(Clérambault, 1908/2009, p. 280). Esse estado de coisas só nos leva a pensar que a relação
com a seda tinha um significado, oculto e inconsciente, e que era parte importante de uma
formação de compromisso que mantinha algum elemento recalcado que não podia atingir
a consciência, mas produzia seus efeitos em forma de sintomas. O roubo, o exibicionismo
e a masturbação eram elementos combinados de uma mesma cena dirigida ao outro.
A paciente acrescenta que a masturbação em si, ou seja, sem o tecido, não lhe causava
prazer, mas que ela a completava pensando no brilho ou no ruído da seda. Algumas vezes,
no momento em que se masturbava, confessou que pensava em homens, ainda que os
homens em si não lhe causassem nenhuma sensação, pelo contrário. A seda era o objeto
adorado sexualmente por suas propriedades intrínsecas: seu brilho e seu ruído eram
verdadeiros afrodisíacos para ela. O tecido é o elemento chave da fantasia e deflagrador
do gozo sexual. Ao se masturbar, ela esfrega a seda na região vaginal e, para completar o
cenário da fantasia, é preciso pensar na seda como se ela representasse um verdadeiro
corpo, com qualidades sexualmente atrativas. Na verdade, a seda não possuía
características que remetiam a um homem, nem muito menos a uma mulher, mas seu
corpo representava o próprio amante. “A mulher procuraria, além da maciez superficial,
um tipo de energia interna que lembra o músculo ou qualquer outra tensão” (Clérambault,
1908/2009, p. 284). O quadro é pitoresco, pois, além do objeto estar presente na cena, ele
ainda invade a fantasia através de devaneios.
Os psiquiatras acreditavam que a paciente tinha uma conduta amoral, pois parecia ter
desenvolvido uma hipomoralidade afetiva, não manifestando nenhum pesar ou
arrependimento por seus roubos impulsivos. “Eles simplesmente não deveriam expor suas
sedas, assim eu não pegaria nada” (Clérambault, 1908/2009, p. 279). Essa suposta
presença, na cena histérica, do que Freud descreveu, nos Estudos sobre a histeria, como
a belle indiference parece encontrar um lugar nesse relato. Paradoxalmente, em alguns
momentos, M. parecia não ter mais nenhuma vergonha e contava suas “taras” com
precisão e, mesmo, com uma segurança mórbida que, posteriormente, chocou os médicos
do manicômio.
Segundo as análises de Clérambault, suas crises de histeria e sua aptidão para a
hipnose foram clinicamente constatadas pelos médicos que a atenderam no manicômio.
Nessa época, a hipnose era o método utilizado pela psiquiatria para tratar a histeria,
embora Marie pareça não ter se beneficiado desse tipo de tratamento. Pouco tempo
depois, Freud também havia concluído com seus estudos a ineficiência da hipnose para a
cura da neurose histérica1. Os vários médicos que a atenderam fizeram o mesmo
diagnóstico e descreveram seu quadro clínico da seguinte maneira: “Histeria, precocidade
sexual, frigidez confessa, delírio do tocar2, paixão pela seda, amoralidade, delinquência,
impulsos cleptomaníacos” (Clérambault, 1908/2009, p. 276).

                                                                                                                       
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Vale lembrar que, enquanto, na França, Clérambault atendia suas pacientes pseudo-fetichistas, em Viena,
logo após voltar da Salpêtriére, Freud estava atendendo as histéricas e já usava a técnica da associação livre.
Isso nos parece um paradoxo, pois a análise de Clérambault não parece levar em conta os estudos que Freud
já estava desenvolvendo há algum tempo. Contudo, sabemos que as teorias freudianas foram rejeitadas no
meio médico por muito tempo.
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O delírio do tocar seria configurado como uma perversão tátil.
No hospício de Saint-Anne, outro médico acrescentou às características acima
descritas a menção dipsomania3. Devemos acrescentar que, desde o dia em que se
internou pela primeira vez, Marie foi examinada por quatro médicos além de Clérambault
e, também, por um perito que trabalhava junto ao Tribunal. Eles analisaram e destacaram
suas diversas “taras”, concluindo que ela apresentava um quadro compatível com o
fetichismo masculino verdadeiro. Essa conclusão precipitada seria reavaliada mais tarde
por Clérambault, que definiu seu quadro como um fetichismo inespecífico.
A sintomatologia era muito rica e a associação de muitos elementos que compunham
a história clínica, como cleptomania, fetichismo, histeria, frigidez, alcoolismo,
dipsomania e delírio do tocar, pareciam turvar o quadro mais do que esclarecê-lo, já que
tamanha proliferação sintomática fazia com que o caso de Marie se tornasse impuro e
cheio de contradições. Diz-se impuro, pois os elementos psíquicos presentes não puderam
ser remetidos por completo a nenhuma categoria psiquiátrica que já havia sido
reconhecida e catalogada por essa teoria científica. Logo, o caso permaneceu na ordem
do indecidível até o fim.
O falso ‘fetichismo’, nessa doente, como em outras mulheres, desenvolveu-se sobre
um fundo de frigidez sexual, segundo o relato dos médicos, o que produzia mais um
contraste que mereceria uma análise mais apurada. O instinto sexual nessa frígida
desenvolveu-se precocemente e a masturbação tornou-se um hábito, apesar de ela se
sentir indiferente às relações sexuais. “Entregava-se todos os dias à masturbação. As
relações sexuais normais não lhe proporcionavam nenhum prazer” (Clérambault,
1908/2009, p. 278). A análise de Clérambault (1908) concluiu que a precocidade e a
frigidez, associadas à masturbação, produziam uma “tríade paradoxal”, que não podia
estar associada ao fetichismo verdadeiro. Pelo menos duas das outras pacientes
apresentavam esse mesmo quadro.
Os sintomas referentes ao quadro de falso fetichismo surgiram cedo e a doente, ainda
uma criança, já tinha consciência de sua paixão arrebatadora pela seda4. Quando menina,
Marie tinha uma ligação forte com as sedas e com a própria masturbação, de modo que,
talvez, em razão do encontro contingente desses dois elementos, ela havia encontrado a
posteriori uma maneira muito curiosa de ligar a compulsão pelo onanismo à paixão pela

                                                                                                                       
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Impulso ininterrupto e irresistível de ingerir bebidas alcoólicas.  
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O professor de Clérambault, o Dr. Garnier, com frequência observava que os primeiros indícios das
perversões sexuais, principalmente no fetichismo, quase sempre remontavam a uma cena da tenra infância.
seda. Talvez a sensação de um orgasmo sentido em tenra idade, ao esfregar a região
genital numa cadeira de tecido, tenha fixado o destino das tendências, nesse caso. “Eu
brincava de papai e mamãe com uma menina sobre as cadeiras” (Clérambault, 1908/2009,
p. 278). O encontro, sempre traumático, com a sexualidade havia sido, de certa forma,
contornado ou simbolizado com aquilo que psiquicamente e materialmente estava à sua
disposição, ou seja, a seda5.
A paciente abandonou o ato sexual devido à indiferença em relação aos homens,
permanecendo uma “grande masturbadora” (Clérambault, 1908/2002, p. 280). Ela
afirmava que, no momento do onanismo, somente a imagem da seda aparecia em seu
espírito, nunca a de um homem. O retalho de seda, ou mesmo somente a imagem, era a
condição prevalente para o gozo ser deflagrado. O afeto que vertia pelo tecido superava
a relação com o outro sexo. Embora esse dado pareça tipicamente fetichista, ainda havia
muitas dúvidas em relação ao diagnóstico.
Existia uma relação curiosa entre o domínio da seda como objeto encontrado na
realidade e sua representação na mente: quando a seda, presente e real, propiciava o
orgasmo, ela podia desaparecer do pensamento, pelo menos enquanto imagem visual. Ali,
uma imagem de homem aparece, mas não é mais do que um deslocamento, “ela vem
complicar como que por fantasia um estado de alma já completo” (Clérambault,
1908/2009, p. 281). Clérambault relata que a imagem do homem que surge na hora do
ato masturbatório vinha dificultar a análise do caso, pois Marie pensava na seda e só
depois de atingir o orgasmo como um deslocamento da fantasia que se fixara nas
propriedades táteis da seda, podia pensar no homem. Isso de fato não acontece no caso
dos homens fetichistas, pois, neles, o processo da fantasia era “muito mais frequente, mais
intenso e muito mais eficaz” (Clérambault, 1908/2009, p. 280).
Segundo Clérambault (1908), não se pode dizer que a emoção do roubo era, nesta
doente, uma condição necessária ou mesmo coadjuvante do gozo. Ela cometeu com
frequência ‘roubos banais’, que não justificam uma maior atenção aos furtos, o que nos
leva, mais uma vez, a pensar que o roubo da seda era, na verdade, somente um álibi.
Depois de amassar e sujar a seda, ao esfregá-la na genitália, descartava-a como um
objeto enxovalhado que não servia mais aos seus propósitos de gozo. O menor sinal de

                                                                                                                       
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O fato de duas das pacientes de Clérambault serem costureiras, e uma terceira ter uma irmã que também
costurava não nos parece um mero acaso. O trato com os tecidos faziam parte do cenário familiar e eram
muito próximos a uma tarefa que Freud reconheceu como ‘estritamente feminina’: a de trançar e tecer. Isso
se torna ainda mais significativo em um cenário que havia sido tomado pelo discurso da Moda.
uso e impureza degradava o tecido, a tal ponto que era impossível usá-lo novamente. Esse
detalhe não teria relevância alguma se não estivesse associado à importância que a
paciente conferia às qualidades da seda em si: era exigido que o retalho fosse bem
passado, de seda pura, e que tivesse cores escuras. Ou seja, deveria ser o mais puro e
imaculado possível; a seda precisava ser simbolicamente virgem. Após o uso, ela perdia
todo o valor, pois a fantasia associada sustentava o lugar de um objeto idealizado.
Inicialmente, a seda era cultuada, mas, logo depois, degradada ao ser tomada como objeto
sexual. Nesse caso, a seda está sendo falicizada pela paciente, e não fetichizada, como os
homens fazem com um detalhe do corpo da mulher. A seda poderia representar,
inconscientemente, o lugar dela própria como mulher quando procurada sexualmente por
um homem. Assim como o tecido é arrebatado das bancas, Marie também era tomada
pelo marido, a contragosto. Talvez tenhamos aqui uma identificação inconsciente ao
próprio lugar do objeto6.
Para o homem, o objeto de fetiche é conservado após o uso (Clérambault, 1908/2009,
p. 262). Desfazer-se do objeto tão adorado, como faziam as pacientes de Clérambault, era
algo paradoxal, incompreensível, e que raramente acontecia em casos de fetichismo. Para
essas mulheres, a seda perdia totalmente o interesse após o uso e era jogada fora. Durante
o ato da masturbação, o objeto não era manejado com raiva, com o intuito de posse sobre
a seda, nem enriquecido com visões intensas, contrariamente ao que se passa com os
objetos que servem aos fetichistas masculinos.
Estes dados resultaram em uma única conclusão: o ‘fetiche’ é, para a mulher, apenas
um fragmento de matéria. É importante frisar que o tecido era completamente
objetalizado pelas pacientes. Ela não substituía de forma alguma o corpo do homem. Os
homens fetichistas, ao contrário, objetalizam a parceira amorosa com a prerrogativa de
poder ligá-la ao objeto fetiche, que consiste, na verdade, num prolongamento do corpo da
mulher. Passa-se da degradação do todo ao detalhe do corpo. A mulher é reduzida a uma
parte do corpo que, tornando-se um fetiche, busca, segundo a teoria freudiana, elidir a
castração da mãe. O objeto encarna a função de um instrumento que serve aos propósitos
                                                                                                                       
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Poderíamos proceder a uma análise a partir da psicanálise sobre o fetichismo, mas seria uma digressão
longa demais para os propósitos desse subtítulo. Entretanto, no texto “Diretrizes para um congresso sobre
a sexualidade feminina”, Lacan esclarece a tese sobre a inexistência do fetichismo na mulher, dizendo que:
“O estudo do quadro da perversão na mulher abre um outro viés. Tendo-se levado muito longe a
demonstração, quanto a maioria das perversões masculinas de que seu motivo imaginário é o desejo de
preservar o pênis da mãe, a ausência na mulher do fetichismo que representa desse desejo o caso quase
manifesto permite desconfiar de um outro destino desse desejo nas perversões que ela apresenta. Pois supor
que a própria mulher assume o papel do fetiche é apenas introduzir a questão da diferença em sua posição
quanto ao desejo e o objeto” (Lacan, 1960, p. 745).
de gozo. Nunca é adorado por si só, mas precisa lembrar ou estar associado ao corpo da
mulher. No caso das pacientes de Clérambault, a seda é como um talismã7, um objeto
cultuado enquanto causa do desejo que levaria a mulher ao gozo.
Devido ao fato de Marie pensar e desejar algumas mulheres em sonhos, os médicos
aventaram a hipótese de uma suposta homossexualidade. Entretanto, a homossexualidade
feminina não tem forçosamente ligação com o fetichismo. Pelo menos uma das mulheres
‘fetichistas’ era homossexual e, no entanto, ao se masturbar com a seda, não tinha
evocação de formas femininas. O gozo evocava homens, se é que evocava algo. Todo o
relato é ainda mais interessante quando se percebe que se trata de um gozo inteiramente
clitoridiano, ou seja, “o mais neutro possível” (Clérambault, 1908/2002, p. 110). A
explicação residia talvez no fato de que esse tipo de fetichismo era “uma expressão bem
menos elaborada, certamente bem menos adoradora, do tipo de amor feminino”
(Clérambault, 1908/2002, p. 110). A masturbação, com igual ardor, comporta menos um
devaneio ideal do que a homossexualidade masculina. Ou seja, nas mulheres, a estrutura
psíquica aparece marcada por uma inconsistência digna de nota. A mulher, que, nesses
casos, supõe-se fetichista, parece não levar o fetiche tão a sério, como fazem os homens.
Elas não fetichizam a seda, mas falicizam o objeto-tecido.
Através da encenação com a seda, fisgam os homens, misturando-se ao tecido,
produzindo um “esconde-mostra” por trás do véu sobreposto entre o olhar e o objeto do
fetiche masculino. Nesse caso, as partes do corpo da mulher são o objeto do fetiche, e o
tecido ajuda a compor uma cena perfeita para a fantasia voyerista. Os homens observam
a mulher por detrás do véu. Ou seja, parece que essas pacientes se deram conta,
claramente, de que os homens as observavam, ainda mais quando se tratava de uma
conduta tão absurda.
Existe um dado curioso entre os elementos que compõem o cenário desses casos: o
fato de a seda ser rígida. “A seda não apenas deve roçar, com delicadeza, a epiderme; é
preciso ainda que ela tenha corpo” (Clérambault, 1908/2002, p. 110). Devemos observar
que Marie procurava algumas características importantes no tecido, dentre elas, a
aparência de rigidez. A seda do vestido devia possuir firmeza, qualidade que ela venerava,
sobretudo, em um retalho. “Gosto de seda que fica em pé sozinha” (Clérambault,

                                                                                                                       
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O talismã foi analisado por Clérambault (1908) como uma categoria em que objeto fetiche representava
para o sujeito algo muito precioso.
1908/2002, p. 109). Marie preferia, inclusive, as sedas negras8, exatamente porque, nessa
cor, a característica procurada estava mais presente do que em outras cores.
Esse dado, de que a seda deveria ter um corpo e aparência de rigidez, apesar de
inesperado, nos parece, no final das contas, muito surpreendente e contundente para
diferenciar tais manifestações nos homens e nas mulheres. Se o homem fetichista procura
matérias indumentárias dotadas principalmente da maciez, prevalecendo, nos relatos
clínicos, sobretudo os fetiches por veludo, pelúcia e peles, em contrapartida, as
“fetichistas”9 mulheres sempre procuraram exclusivamente a seda. Todas testemunham
amar o ruído e o caráter quebradiço do tecido. Nessas qualidades, talvez encontrassem
não apenas a característica de um delicado nervosismo, mas também um dos signos da
firmeza própria de um corpo enrijecido. Assim, enquanto o homem procura e exige do
tecido maciez e leveza, conjunto de características bem femininas, a mulher procuraria,
além da suavidade superficial, um tipo de energia interna que lembra um músculo em
movimento ou qualquer outra tensão parecida com um corpo em trabalho.
Uma coincidência tão constante é digna de observação, pois a histeria predispõe a
fenômenos sinestésicos e muitos outros citados, como a frigidez, por exemplo. Ou seja, a
atração pelas propriedades tácteis da seda, e mesmo a fricção do tecido na região vaginal,
são elementos que podem ter sido superestimados pelas características presentes no
quadro de histeria, devido à prevalência da sinestesia10.
Os sintomas que os médicos chamavam de amoralidade e delinquência banal foram
encontrados em pelo menos dois dos outros casos. A toxicomania, a aptofilia11 e
cleptomania eram, segundo eles, a marca de uma “imperfeição da vontade”, segundo os
psiquiatras uma espécie de fraqueza do espírito causada pela degenerescência mental. O
fato dos períodos de toxicomania terem coincidido com os roubos pode nos levar à
conclusão de que a subembriaguez etílica teria favorecido o impulso cleptomaníaco. Mas,
segundo os médicos, esse fato é um fenômeno banal.

                                                                                                                       
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Talvez, nessa época, as costureiras já soubessem que, numa cartela de cores, a cor preta e as nuances que
apresentam maior pigmentação possuem a propriedade de parecerem mais encorpadas. A gramatura do
tecido, que é o peso encontrado em um metro quadrado de pano, é maior nos tecidos escuros, pois estes
permanecem mais tempo submetidos a altas temperaturas no momento do tingimento e, por isso, tornam-
se, como elas diziam, “mais encorpados”.
9
Grafamos o termo fetichista entre aspas porque, tanto na psicanálise quanto na psiquiatria, não existe a
categoria do fetichismo como estrutura clínica aplicada à sexualidade feminina.
10
A sinestesia é um fenômeno psíquico que se exerce com a intermedição do Sistema Simpático por um
mecanismo semelhante à excitação que produzem certos odores.
11
A aptofilia é um termo genérico aplicável a todas as parafilias caracterizadas pelo fato de o prazer sensual
depender de maneira fundamental do canal sensorial tátil.
3.3 - Soi-même: uma análise psicanalítica

“A seda acaricia com suavidade uniforme uma epiderme que se sente,


sobretudo, tornar-se passiva; depois ela revela, por assim dizer, um
nervosismo em suas quebras e seus gritos. Talvez assim se prestasse
melhor à volúpia feminina” (Clérambault, 1908/2009, p. 274).

A tentativa de fazer uma retomada do caso de Marie e das outras pacientes pelo crivo
da perversão foi uma estratégia usada por Clérambault para encaixar o caso dessas
mulheres em uma categoria nosográfica já conhecida pela psiquiatria. Assim como Freud
fez inicialmente, quando tentou pensar o Édipo da menina como uma inversão das
posições tomadas pelo menino, Clérambault também partiu do modelo masculino.
Entretanto, foi exatamente por esse caminho que essas mulheres se extraviaram das vias
diagnósticas usuais. Mesmo apresentando um apego sexual a um objeto inanimado que
parecia tomar o lugar de um parceiro sexual, não se encontrava, ali, uma verdadeira
estrutura fetichista.
Em primeiro lugar, a análise feita por Clérambault pelo viés psiquiátrico confirma
que o fetichista homem mantém uma ligação muito particular com o objeto fetiche,
porque emoldura a relação com esse elemento através de uma série de elucubrações
imaginativas. Além disso, a ligação com o fetiche não é mais do que um elo que se
estabelece em relação a uma mulher, pois o objeto tem sempre algumas qualidades que
evocam a parceira amorosa. Já a partir da teoria freudiana, os homens fetichistas dotam a
parceira de um pênis como uma forma de compensar a castração. No caso da relação de
Marie com a seda, não havia, como ela diz, fantasias associadas a nenhum homem, nem
mesmo uma ligação com eles. Por outro lado, a masturbação com a seda configurava um
uso apenas fálico e não fetichista, pois, através do manuseio do tecido, não pretendia dotar
a si mesma de um pênis imaginário, mas obter um gozo masturbatório e autístico. A seda
era o objeto que apresentava a castração tanto do homem como da própria mulher, pois
eles eram preteridos e elas, impossibilitadas de chegar sozinhas ao orgasmo.
O segundo ponto a ser ressaltado consiste exatamente em uma outra especificidade
do caso, pois a ligação com a seda nos parecia mais amparada numa relação imaginária
do que numa determinação estrutural, como é o caso do fetichismo verdadeiro das
perversões. A seda era o elemento que viria arrematar a cena histérica. Marie e suas
colegas ladras de seda sabiam bem o que fazer com esse objeto, pois era através dele que
o olhar dos homens podia ser capturado. Esse é um elemento a ser inserido no próprio
discurso psiquiátrico, pois a clínica que se intitulava “clínica do olhar” privilegiava a
dimensão escópica muito mais do que a escuta do paciente. Clérambault mesmo era
considerado um exímio observador e um minucioso detalhista.
Um terceiro ponto que nos chamou a atenção está relacionado ao contexto e ao
discurso da época. No mesmo momento em que os loucos, as prostitutas e os desviados
eram presos pela polícia parisiense, e as histéricas, como Marie, eram enclausuradas nos
hospícios, numa estratégia de saneamento social, Paris fervilhava como o epicentro da
Moda. A alta costura francesa experimentava, nos primeiros anos do século XX, um de
seus triunfantes momentos, ao entrar em cena como uma das vedetes da Exposição
Mundial. No ano de 1900, o Pavillon de l’Élegance (Seeling, 2000, p. 15) da primeira
Feira de Moda de Paris revelou novos modelos de vestidos e uma variedade de tecidos
leves e flexíveis, anunciando a maneira inovadora como as mulheres iriam se vestir dali
em diante.
Compondo o cenário do encontro entre médico e paciente, Paris foi animada por uma
dicotomia entre um passado vitoriano, cheio de pudores, e um presente fervilhante,
tomado pela arte impressionista. A virada do século trouxe consigo um divisor de águas
em vários setores da vida social. A Moda, fenômeno que refle as novas formas de viver
e de pensar, acompanhou a flexibilidade que se viu naqueles anos. Até que tivesse início
o processo de liberação do próprio corpo feminino através das tendências da Moda, os
vestidos seguiam uma única linha: eram como uma prisão e, neles, as mulheres estariam
encerradas em suas camisas de força, assim como as supostas loucas assistidas pelo olhar
austero e atento dos médicos nas sessões clínicas de apresentação de pacientes histéricas
nos hospitais psiquiátricos. Esboçou-se, a partir de então, um vestido de linhas simples e
estreitas cujo tecido, leve e macio, caía sobre os ombros até os pés. O novo corte foi
chamado de La Vague12, pois deslizava em torno do corpo suavemente. O vestido da
reforma13, imortal e etéreo, apenas contornava o que a ele se sobrepunha. Assim, sob a

                                                                                                                       
12
O estilista Paul Poiret cria no início do século XX o vestido La vague, que era um corte de linhas simples
com saia cortada abaixo do peito e que caía até os pés. (Seeling, 2000)
13
O vestido da reforma era também chamado de vestido artístico. Ela era uma túnica solta, com silhueta
desprovida de curvas.
leveza da seda, escondia-se uma mulher mais livre, substituindo a figura de espartilho dos
anos que passaram.
Há um último ponto digno de nota. Achamos importante analisar os desdobramentos
do significante seda na língua francesa, uma vez que o termo soie foi proferido tantas
vezes nos relatos das pacientes de Clérambault. Para um psicanalista, essa palavra,
repetida muitas vezes, não passaria despercebida. Tratava-se, com certeza, de um
deslizamento significante que sofreu um deslocamento ou uma condensação. Esse fino e
eletrizante fio, talismã do tempo da Belle Époque francesa, paixão natural das mulheres
que se ocupavam em tecer uma imagem nova, decompõe-se, na língua francesa, em uma
homofonia com dois outros termos na língua: soit e soi, que significam, respectivamente,
seja e si. Ao ouvir soie, podemos também pensar em soi-même, “si mesma” ou, mesmo,
soit, “seja”, verbo ser/existir, no subjuntivo. A ligação pode parecer irrelevante e, como
Freud diria, “estaremos sem apoio se o leitor acreditar que essa hipótese é fantasiosa”.
Tratava-se de fato de um uso muito especial do termo, já que talvez ele se desdobre, na
língua francesa, em outras palavras importantes. La soie, a seda vestiu com palavras a
mulher do novo século e, entre símbolos e signos, os vestidos de seda representaram uma
nova versão da feminilidade.

3.4 - Non-lieu: um precursor do não-todo

Os casos das ladras de seda poderiam somar-se aos infinitos relatos sobre as doenças
histéricas encontrados na clínica médica da época. No entanto, Clérambault havia
percebido que existia, ali, algo a mais. Essa “cristalização menos nítida do tipo clínico”
(Clérambault, 1908/2009, p. 261) talvez tenha revelado a ele o que Freud e Lacan
nomearam, respectivamente, de um “continente negro” e um “extravio”. Fato é que,
cinquenta anos antes de Lacan concluir algo sobre o desdobramento do gozo feminino e
sobre o extravio das mulheres, Clérambault já havia se deparado com essa questão,
embora não houvesse ferramentas suficientes para teorizá-la.
A inadequação desses casos a qualquer categoria nosográfica é a prova de que nem
o discurso cientificista da psiquiatria da época, nem mesmo um médico com o olhar
privilegiado como Clérambault puderam circunscrever uma faceta muito particular da
sexualidade das mulheres. “Insistimos pouco a respeito da presença da histeria em nossas
doentes, porque tal característica não parece absolutamente necessária para a constituição
da síndrome” (Clérambault, 1908/2009, p. 261). Esse fato se repete no texto freudiano,
em que o psicanalista reconhece que nunca foi possível descrever com maiores minúcias
a sexualidade feminina, pois havia uma pré-história em relação à ligação da menina com
a mãe que turvava o período do Édipo. A recomendação do psicanalista vienense era de
que deveríamos esperar pelo socorro da ciência, pelo alívio sublimatório da poesia ou por
nossa própria experiência, se quiséssemos mesmo saber sobre o desenvolvimento sexual
e psíquico da mulher (Freud, 1933/1980, p. 139).
Não é fruto do mero acaso vislumbrar a existência de um mesmo gozo − fugidio e
marcado por limites muito tênues − nas pacientes de Freud, nas personagens mitológicas
descritas por Lacan e nas pacientes de Clérambault. Todas elas deixaram entrever, cada
uma à sua maneira, o que Lacan nomeou “um extravio” em relação à estrutura simbólica
que engendra o arcabouço teórico tanto da psicanálise quanto da psiquiatria. A
sexualidade feminina sempre permaneceu, desde o advento da psicanálise, como
elemento que impulsionou e, ao mesmo tempo, que produziu obstáculo ao saber,
exatamente em razão desse elemento pulsional arredio às amarrações propostas pelo
Édipo.
Ao nos determos atentamente às anotações de Clérambault nos prontuários de suas
pacientes, foi possível detectar a repetição de alguns significantes muito próprios ao
discurso jurídico e psiquiátrico da época. Um desses termos chamou nossa atenção
especificamente, pois pareceu estar envolto por uma teia invisível que conectava no
tempo a teoria de Clérambault sobre a sexualidade feminina e as elaborações lacanianas
sobre a mulher. Trata-se do termo non-lieu14 (Clérambault, 1908/2002, p. 440),
encontrado em todos os casos das ladras de seda e utilizado para significar e nomear
literalmente a negativa do lugar para a sexualidade feminina.
A escolha do termo non-lieu era uma espécie de ponto final, de basta, que colocava
termo ao suplício do delegado e do psiquiatra encarregados do caso. Depois de transitar
durante anos entre delegacia e manicômio, as pacientes viam seus casos serem arquivados
por falta de provas e eram classificadas com essa expressão, non-lieu. Por fim, voltavam
às ruas e às suas recidivas, pois nem as leis, nem as normas da nosografia psiquiátrica

                                                                                                                       
14
O termo non-lieu foi retirado dos prontuários dos Arquivos de Antropologia Criminal de medicina legal
e patologia. É um termo do Direito Penal francês utilizado para designar um crime que não pode ser julgado
por falta de provas. Nessas situações, não há como dar encaminhamento ao caso e ele é então arquivado.
haviam encontrado uma nomeação para suas paixões, senão esse curioso termo que traduz
de forma nítida a falta do nome. Ao mesmo tempo em que possuíam sintomas típicos de
uma histeria, também apresentavam uma paixão fetichista atípica por sedas, descrita pela
psiquiatria apenas em casos de homens. Curiosamente, o enquadramento para essa
patologia era ditado pela nomenclatura jurídica, tomada de empréstimo do discurso da
lei. Psiquiatria e Direito trabalhavam juntos a fim de sanear a cidade de Paris e conter os
excessos e perversões sexuais de seus moradores.
O significante non-lieu preserva em si a partícula negativa. Há um não lugar que se
extrai do cerne mesmo do lugar. Assim como o termo lógico lacaniano não-todo, o termo
non-lieu significa que existe um lugar no todo: o não-lugar. Ambas as expressões dão a
entender que há uma forma de negar em parte o todo, o discurso, as leis e a própria teoria.
Esse termo significa muito para nossos escritos, porque Clérambault o utilizou para
descrever um lugar muito específico localizado à margem do discurso. As ladras de seda
permaneceram não somente marginais em relação à nomenclatura psiquiátrica, mas
também em relação ao discurso penal francês. Seria também o não-todo esse lugar à
margem ou extraviado da posição fálica?
Tecer uma conexão entre o que Lacan formalizou da posição feminina em 1972-73
através do operador lógico não-todo e o termo usado por Clérambault, non-lieu, é uma
forma de questionar a elaboração teórica tecida por esses dois autores sobre a sexualidade
feminina, pois são dois discursos diferentes que se debruçaram sobre o mesmo impasse.
A questão é colocada porque a natureza da sexualidade feminina mostra-se em parte
refratária a esses discursos e às ferramentas simbólicas disponíveis para lidar com as
dúvidas suscitadas. Sentimo-nos autorizados a fazer essa conexão, pois Lacan confessou
nutrir por Clérambault uma admiração ímpar e, além disso, acreditava que ele era seu
“único mestre”. Será possível ignorar a hipótese de que o psicanalista havia lançado mão
das elaborações de Clérambault sobre essas mulheres para também escrever suas teorias
sobre a feminilidade? A conclusão lacaniana de que a mulher tem um gozo não-todo
fálico não viria da mesma intuição de Clérambault quando ele definiu os casos das
mulheres como non-lieu?
O não-todo é uma categoria lógica criada por Lacan nos anos 1970 com o objetivo
de formalizar a posição da mulher e de seu gozo em relação à linguagem, mediante a
incidência da referência fálica para os dois sexos. Ele havia conseguido descrever com
esse operador a forma como uma mulher se inscreve no complexo de Édipo e no
complexo de castração: uma forma não-toda submetida ao falo, não-toda fálica. Uma
mulher é castrada porque está marcada pela linguagem, mas, a partir desse lugar, algo de
sua sexualidade escapa ao falo e se desvia para um outro lugar. O operador não-todo é a
formalização da união entre dois lugares distintos ocupados pela posição da mulher dentro
e fora da linguagem.
Por outro lado, o termo non-lieu demonstra como Clérambault encontrou uma
maneira muito permeável aos estudos e discursos da época de dar lugar à falta de lugar
da qual padeciam as mulheres daquele tempo. Se, por um lado, o caso clínico foi descrito
a partir de uma patologia masculina catalogada, o fetichismo verdadeiro, foi exatamente
por participar dessa categoria de forma a questioná-la ou de forma não-toda que as
pacientes foram nomeadas como sujeitos sem lugar no discurso psiquiátrico e jurídico.
Na análise da história clínica de Marie, é possível perceber o momento em que um
elemento se extravia do lugar em que os médicos procuravam encontrá-la, ou seja,
exatamente ao lado dos casos de fetichistas típicos.
 

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