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LITERATURA BIZANTINA Os perfodos da histOria da literatura bizan- fina. — Chama-se literatura bizantina a lite ratura, de lingua grega, do Império do Ori- ente ou Império Grego, que subsistiu, com sede em Bizdncio ou Constantinopla, de 230 a 1453. A historla dessa literatura corresponde muito de perto, em sua evolugéo, & histéria do império bizantino. Na histéria das idéias, como na histéria politica e na histéria da arte, o século VI, século de Justiniano, foi um periodo brilhahte e fecundo, ainda multo im- pregnado da influéncia helénica, de modo que, no campo da historiografia como nos da poe- sia e da elogiléncia parece assistirmos & con- tinuagéo da lteratura grega classica, A séria crise que 0 império atravessou entre os s& culos VII e IX acarretou um retardamento acentuado do movimento intelectual; a lite ratura assumfu, durante essa época, intelec- tualmente a mafs pobre, novo aspecto, quase exclusivamente eclésidstico e popular. Desde a metade do século IX, porém, em contacto com o pensamento antigo, redescoberto, ma- nifestowse um renascimento, paralelo & re nascenca politica que o império experimentou sob o govérno dos principes da dinastla da Macedénia, e paralelo ao renascimento da arte, também inspirado na tradicéo da Anti- guidade. O século X caracteriza-se principal. mente como um século de sabios e de eruditos, preocupados em elaborar, em vastas enciclo- pédias, o inventario das Tiquezas intelectuais Jegadas pelo pastado. Foi sdbre tais bases que atuou o periodo seguinte: os séculos XI e XII, que constituiram para a histéria, a filo- sofia e a eloqiiéncia um periodo de brilho sin- gular. O grande movimento de idéias perdu- Tou, no obstante a crise de 1204, no reinado. dos PaleGlogos, nos séculos XIV e XV, em que tanto a literatura como a arte bizantina co- nheceram um derradeiro e magnifico renasci- mento. As caracteristicas da literatura bizantina. — 1X A tradigdo da Antiguidade, Em todos os periodos dessa ‘histéria literaria um trago co- mum e caracteristico deve ser assinalado: a influéncia profunda da tradigio classica. No mundo medieval, em parte alguma se verifi- cou contacto mais intimo com a antiguidade helénica. O estudo das obras-primas antigas constituia a base da educacdo bizantina, Con- siderese a soma de conhecimentos que pos- sufam uma princesa imperial como Ana Com- neno, que se vangloriava de haver penetrado na “quintesséncia do helenismo”, wn homem de origem importante como Fécio, ledor infa- tigdvel.e curioso insatisfeito, ou um burgué 3136 — LINGUA & LITERATURA letrado como Miguel Psellos, e compreender- sed a natureza e a amplitude dessa educa. co no seio de tddas as classes socials. O cen. tro irradiante dessa tradicio classica era a Universidade de Constantinopla, Era uma ad. miravel escola de filosofia, de literatura e de cléneia, em que mestres ilustres — gramitt cos, fil6logos e humanistas — comentavam os textos dos poetas, historiadores e oradores da Grécia antiga; outros estudavam Aristételes Plato, e ja no século XI, época em que o Ocidente apenas conhecia as doutrinas aristo- télicas, preludiavam ésse renascimento plato- nico que viria a ser a gloria do século XV na Italia, No século XI, nessa mesma universi dade, Psellos explicava os classicos com um entusiasmo por Atenas que se traduzia por expressdes encantadoras, conferindo a Platio, “o maior dos fildsofos", merecido lugar no ensino, Eustato de Tessaionica, no século XII, comentava Homero e Pindaro. Os grandes mestres da época dos Paledlogos: Plantidio, Moscopulos, ‘Triclinios, cram, no século XIV, fil6logos admiraveis, ja impregnados do es. pirito de humanismo. Assim, a sociedade bi zantina surge imbuida de espirito antigo e essa inclinacdo intelectual teve, naturalmen: te, repercussio na literatura. A maioria dos Brandes escritores de Bizincio empregava lin. guagem erudita, moldada na das obraspri mas classicas e, por isso mesmo, assaz artifi- cial, bem diversa da lingua falada, E do mes. mo modo que o estilo, 0 pensamento désses escritores refletia sem cessar as idéias anti- gas. Essa imitacéo exagerada da A literatura bizantina feicao por vézes um pouco conven- cional, e, em que pése real talento de seus escritores, tiralhes freqiientemente 0 vico, a espontaneidade e a vida. Ela fol também res. Ponsdvel por alguns dos defeitos ulteriores do espirito grego, tais como o gésto pela sutileza e pela afetacio, 0 amor & frase sonora e dca, a preocupacdo exagerada da forma em detri. mento da idéia. Acima de tudo, tornou essa li teratura quase que um apandgio de letrados, cada vez mais estranha e ininteligivel A massa do povo grego. 2° A lrailigdo crista. Ao lado do passado classico, entretanto, o passado cristéo ocupava lugar néo menor na formacdo intelectual bi- zantina. No setor da educacio, as sagradas Escrituras, as obras dos Doutdres da Igreja e as vidas dos Santos eram tio estudadas quanto as obrasprimas da Antiguidade. Em tddas as classes da sociedade manifestava-se idéntico interésse pelas discussbes religiosas. &, aids, fato digno de nota que a teologia fornece, por si s6, pelo menos a metade da Produgio da literatura bizantina, encontrando- se em Bizancio poucos escritores, mesmo pro- fanos, que nao tivessem, num momento da- do, ou por algumas facétas, versado essa dis- ciplina. Désse modo, como na histéria politi Téelto, Litografia de Jullien, Bibl, Nac. de Paris. ca, & admiracio pelo helenismo juntouse o Tespeito & ortodoxia. Justamente por haver harmonizado essas duas influéncias contra- rias, Bizfncio foi algo mais que simples con: tinuador da Grécia antiga, mostrando-se ca Paz de originalidade e espirito criador, na 1 teratura assim como na arte, mais freqiten. temente do que se pensa. Tais sio algumas das caracteristicas da literatura bizantina. Resta assinalar as direcdes principais assu midas pelo movimento das idéias e a maneira Por que éle se exprimiu, A historia. — A histria fol a forma pre- dileta assumida pelo pensamento bizantino, e constitui, sem duvida, com a poesia religiosa, a manifestagio mais notavel do genio bizanti no. Para comprovar a riqueza prodigiosa 2 a variedade infinita désse género literario, bas- ta lembrar os nomes de seus representantes mais ilustres: Procopo, AGATIAS, MENANDRD e EvAcrio no século VI; TeorrLacto Simocata no VII; Constantino PoreiroceNera e Lao Dia- cRo no X; PSELLOS e MIGUEL ATALIATA no século XI; Nicfroro BrieNA, ANA CoMNENO, CL¥AMOS e Nicetas no século XII; Acrop6uiro e Paqui- aero no século XIII; Nictroro Grétcoras e JoKo CaxracuzeNo no século XIV, e, por iltimo, Cauconpmuts, Ducas, FRantzes e CxiTésuLo no século XV. Se compararmos alguns dentre és- ses grandes historiadores aos do Ocicente la tino que foram seus contemporaneos, reconhe- ceremos que os gregos se colocaram, incon: testavelmente, em nivel intelectual bem supe- rior, tanto pela inteligéncia politica, pela su tileza da psicologia e pela habilidade da com: posigéo quanto pela qualidade da linguagem. Fora mesmo de qualquer intento de compara- cao, alguns dentre éles — um Psellos, por exemplo — pela exatidao pitoresca das pintu ras, pela agudeza da observaco, pela verve e humor do estilo, poderiam ser equiparados aos expoentes de qualquer literatura, que todos ésses escritores contavam com uma longa tradicio na qual se inspiraram: LITERATURA BIZANTINA — 3137 Procépio imitou Herédoto e Tucidides; Aga- tias, mais retérico, inspirou-se de bom grado hos poetas; Teofilacto, singularmente preten- sioso, estava embebido da literatura alexan- drina, Mais tarde, Nicéforo Briena tomou Xe nofonte por modélo e Ana Comneno procurou rivalizar com Tucidides e Polfbolo, Poder-se- iam multiplicar ésses exemplos, que atestam em todos os escritores referidos a preocupa- Ao de fazer da histéria verdadelramente uma obra de arte, Ademais, muitos déles souberam imprimir nas respectivas obras um cunho de incontestdvel personalidad. Muitos estiveram estreitamente ligados aos importantes aconte- cimentos que descreviam, seja pela origem principesca que os associava aos negécios pi: blicos, seja pelos altos cargos que ocupavam na administracio. Justamente por isso, mes- mo quando sua imparcialidade se revela me- nor do que proclamam, souberam infundir em suas obras interésse excepcional, pela preo- Clemente de Alexandria, Manuscrito grego do século XVI. (Biblioteca Nacional ee Paris.) So Joo Criséstomo. De um manuscrite do século XI. (Biblioteca Nacional de Paris.) cupacio cuidadosa de bem informar, pelos fa- tos objetivos e palpitantes que Ihes é dado referir, ou ainda pelas mindcias. caracteristi cas que testemunharam. Isso empresta atrati vo especial mesmo &s obras dos que nic foram historiadores profissionais, como, por exemplo, um Camenlato, narrando a tomada de Tessalonica pelos arabes em 904, um Eus tato, contando a tomada de Tessalonica pelos normandos em 1185, bem como as memérias, particularmente tendenciosas, mas plenas de talento, que escreveu Joo Cantacuzeno, ou As recordacées tao saborosas que Cecaumenos anotou, no século XI, para servirem de linha de conduta na vida aos seus filhos. ‘Ao lado dos verdadeiros historiadores nao devemos omitir os cronistas, cujas simulas de historia universal tiveram, em todo o mundo oriental da Idade Média, voga prodigiosa. Fo- ram Matatas no século VI, TROFANES e 0 Pa- triarea Nrcéroro no fim do VII, Jorce, 0 Mow: cz, e Srmeko, 0 Mntarnasto, no século X, Es: ‘autirzes no século XI, CeorsNos e ZONARAS 10 século XII. Evidentemente, muitos désses cro- nistas eram espiritos mediocres. Escritas ge- ralmente para um pdblico pouco instrutdo, suas crénicas apresentam carater nitidamen- te religioso e popular. Nelas ocupam aprecié- vel lugar as anedotas e futilidades, as taga- relices tOlas e as minudéncias maravilhosas, mas falta-lhes por completo o espirito crith co e denotam muitas vézes ausénela do senso da exatidio, Essas obras, que néo foram e: critas para uma elite, como as dos historia dores, mas para o povo, nem por isso dei xam de revelar, justamente pelo seu partida- rismo e preconceitos, algumas facétas do es. pirito bizantino; 0 éxito que alcancaram con firma o gosto dos bizantinos pela historia, que se manifestou igualmente no desenvolvi. mento da literatura hagiografica e no pra- zer que encontrava essa sociedade nas pesqui- sas eruditas, © significativa, sob ésse aspecto, a obra de um CONSTANTINO PORFIROGENETA, tanto em seu livro sobre A Administragdo do Império como nas miltiplas enciclopédias que mandou compor, coligindo — e isso deve ser assinalado — tais riquezas do passado com um objetivo pratico, para que o presente tirasse provelto da ciéncia e da experiéncia de antanho. A teologia, — Se a-hist6ria, em Bizancio, deriva diretamente do passado classico, a teo- logia, que foi, além dela, a ciéncia que mais ardentemente interessou o pensamento bizan- tino, estéve profundamente dominada pelo Passado cristao. Ainda aqui, para mostrar a abundancia dessa modalidade da literatura, basta citar alguns nomes: Lroncio de Bizin- cio no século VI, Joxo Damasceno e TsopoRo de Studion no século VIII, Féctos no século IX, Psuttos no século XI, Evrfaio ZicsseNos, Nicorau de Metona, e NiceTs “AcomINaTo no século XII, e, na época dos Paleélogos, os gran. des representantes da mistica oriental, PALA- MAS ou os dois CaBasILAs, e os defensores da escoldstica ocidental, Gnec6sio AKYNDINos (tradutor de S40 Tomas de Aquino), Dexérato Crowes (que traduziu Santo Agostinho) e Nicfiroro Grécoras, e no século XV, finalmen te, os adversarios e os partidarios des lati- nos: Mangos Evcenrcos, Jonoz Escoutnio e Bussanton, Ainda neste terreno, é incontestd- vel que a literatura teolégica, estreitamente vinculada aos acontecimentos dominantes da historia politica, foi em conjunto, pelo menos até o século XII, multo superior a tudo que, no dominio em questao, produziu o Ocidente. Foi ésse mesmo gésto pelos temas religio- sos que produziu 0 magnifico florescimento da literatura hagiografica, cujos representan- tes mais ilustres no século VI foram Cmmo de Skythopolis e JoXo Moscos, e que se desen- volveu mais amplamente ainda nos séculos VIII e IX, até que Srwefo, 0 Merarrasto, no século X, Ihe sintetizou a esséncia em sua vas: ta coletanea. ® ainda a essa inclinacdo que se deve o exito da eloqtencia religiosa, cujos represen: tantes mais ilustres — Fécios no século IX, Eustéquio de Tessalonica ou MIGUEL AcOMI- NaTo no século VII — foram bastante superio- res @ maioria dos pregadores ocidentais seus contemporaneos, igualando por vézes os anti g0s, como Is6crates, Libanio ou Temistio, nos quais se inspiravam. Se essa eloqiiéncia de aparato, tio cara aos bizantinos, no era isen- ta, muitissimas vezes, de énfase afetnda e 6ca, revela'se por outro lado bastante instru: tiva por tudo que deve & inspiragao antiga, Obras originais. — Asse cunho vigoroso que © passado classico ou cristio imprimia nos espiritos ndo deixava, todavia, de apresentar inconvenientes. J4 vimos como a preocupa- ao constante de tomar os antigos por mode- los levou a linguagem da hist6ria ao artifi cialismo. Do mesmo modo, o receio habitual que tinham os tedlogos de afastarse das tra: digdes dos Doutdres da Igreja priva seu pen- samento, sobretudo a partir dos meados do século IX, de grande parte de sua originali- dade e independéncia, e, a despeito das gran. des figuras que Ihe deram lustre, a teologia bizantina depressa se adotou numa imobilida- de crescente e numa singular estreiteza de espirito. Contudo, apesar dos entraves que Ihe im- punha o respeito pelo passado, BizAncio reve- louse, mais de uma vez, capaz de criar. A variedade do pensamento bizantino manifes- tase em producées de uma verve satirica ori- ginal e saborosa, tais como o Philopatris no séeulo X, 0 Timarion no século XI e 0 Ma- zaris no século XIV, ou ainda certos didlogos de Txovor Prépromo; nesses ensaios elegan- tes e espirituosos, cujos autores sio um PseL- Los no século XI, um Teoporo METOQUITA no século XIV, um MaNvEL Pate6uoco no século XV; nessas correspondéncias, multas vézes tho instrutivas, que nos deixaram Psettos ou Mr- GuEL AcommvaTo, DeMéreio CyDoNES ou Mi NUBL Paur6toGo, e muitos outros mais, pouco mais, pouco conhecidos ou mal estudados; e, também, na obra dos poetas bizantinos, desde Pavto, 0 SwaNcroso,no século VI, Jorce DE Pr- storia no século VII, Joko Gedwerra no século X, até Teovoo Pxoprowro no século XII e Mix NUEL Fits no século XIV. Trés elementos principals, entretanto, atestam a originalida. de dessa literatura. Cabe a MIGUEL PSELLOS a gl6ria de haver inaugurado no século XI, dan- do a Plato 0 devido lugar no ensino, um mo- vimento de liberdade de pensamento, que preo- cupou sériamente a Igreja, tornando-se assim precursor de um despertar da filosofia plato- nica, do qual outros bizantinos — Geaast PLETHON ¢ BessartoN — seriam os iniciado- Tes no Ocidente, no século XV. Cabe, por sua ‘vez, a RomANos, “o Principe dos melodistas”, judeu convertido a gliéria de ter criado, no alvorecer do século VI, em hinos de inspira- Gio tio ardente, de inflexdo tao sincera e de tio intenso poder dramético, uma poesia re- ligiosa de ritmos novos que permanece certa- mente a manifestacio mais pessoal e mais bela do génio bizantino. Outra gléria para Bi zAneio reside em haver criado, em meados do século X, uma poesia épica, todo ésse ciclo de cangbes da gesta, de que 0 poema de Di- genis Akritas constitu o mais insigne monu- mento, e que, inspirando-se nas cantigas po- pulares, formouse em torno do nome de um heréi_ nacional, como aconteceu no Ocidente em térno dos nomes de Rolando ou de Cid. Na poesia épica, como na poesia religiosa, nada mais deve Bizdncio aos modelos anti gos. Foi no entustasmo pela grandeza do cris- tianismo e na confianca patriética nos desti- LITERATURA BIZANTINA — 2139 nos do império, foi no tesouro dos sentimen- tos e das paixdes populares, e talvez também na imitacdo de alguma epopéia arabe, que a epopéia de Digenis hauriu sua inspiracdo. Dai representar a mesma, verdadeiramente, como se disse, 0 sangue e a alma da Bizanclo crista. © poema de Digenis Akritas esta escrito em grego vulgar, e isso constitui outra novida- de. Muito cedo, entre os sétulos VI e X, ao lado da lingua erudita, escritores como Mala- las e 0 hagidgrafo Leéncio de Neapolis, como © cronista Teéfanes ou Constantino Porfiro- geneta, haviam procurado conciliar a tradi- cdo classica com a realidade da lingua fala- da. Seus esforcos ndo tiveram éxito, mas es- timularam, por certo, a eclosio de uma lite: ratura em grego vulgar, cujo curioso e ré pido progresso é testemunhado pela epopéla de Digenis Akritas, pelos poemas prodrémi- cos e os de Glykas no século XII, pela Croni- ca de Moréia no século XIII e pelos romances gregos de cavalaria nos séculos XIII e XIV. Isso prova que, nao obstante a estreita de- Pendéncia em que se encontrava em relagéo ao passado, e a despeito da feicdo erudita e artificial que assume muito freqiientemente, @ literatura bizantina mostrowse capaz de ori- ginalidade criadora, e que, ao lado dos eleva- dos dotes intelectuais da ‘elite, encontrou na alma da raca um verdadeiro vico de inspira- do e de pensamento. + Charles Drew. ‘Tradugio de Heitor Frozs, Reunido, de agrimensores: Miniatura, segundo. um original bizantino do século IV. (Vaticano) ORR SS pee a)

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