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HISTORIA DA A lingua egipcia e a escrita hieroglifica. — Mais de trés milénios antes de nossa era, en- trou o Egito na Historia com a invencdo do calendario e dos caracteres escritos. A escrita surgiu, a principio, sob a forma de sinais pic- tograficos, gravados sobre as laminas de es- quisto do Rei Narmer (antes do ano 3000). Logo depois ela sistematizou-se nos hieréglifos — imagens estilizadas de personagens e ani- mais e simbolos diversos, representando sons, ‘objetos ou idéias. Desenvolveu-se em inscri es cada vez mais numerosas e variadas, nas trés modalidades seguintes: a escrita hieroglt- fica e a hierdtica, utilizadas na lingua literd- ria; a escrita demética, lentamente elaborada, e que serviu para transcrever a lingua po- pular. “Escrita sacra”, os Aierdglifos, gravados ou pinta- os, cobriam com seus desenhos minuclosos as pa- redes dos templos e dos timulos, os sareétagos ¢ 5 estétuas. Suas flleiras regulares enquadram figuras de rels, divindades ou génios do outro mun- 0 a que dizem respelto, imagens essas estilizadas maneira t8o idéntica que sio mais “escrita” ou imbolo” que pintura reallsta. Essa forma de es- cerita, a mais erudita de todas, recorre por vézes a LITERATURA ANTIGA LITERATURA EGIPCIA criptografias complicadas. Ela serviu para transcre- ‘er os textos religiosos e a historia. Escrita “dos sacerdotes", como a denominaram, constituiu a hierdtica uma estilizacho da escrita hie roglifica, usada nos papiros: fol a eserita mals cor- rente, utilizada tanto nas cartas e narrativas dos eseribas como nos tratados religiosos e rituals dos temples e livros funerérios, Excrita “popular”, 0 demético, que apareceu a par- tir do ano 700 3.C, servia para transcrever & lin: guagem vulgar dos atos e contratos, mais tarde das narrativas e finalmente, muito depols, de certos tex- tos religiosos. Seria utilizado pelo ‘menos até © ano 473 da era cristh. Trata-se de uma cursiva muito ligetra, quase uma “estenografia’, derivada do hle- rateo, Cumpre acrescentar que, ap6s timidos en- saios (desde 0 século III a.C.), a lingua egip- cia popular adaptou-se, pouco a pouco, ao ‘alfa- beto grego, em certos escritos de magia: tra ta-se do copta, que se tornaria mais tarde (sé- culo II da era crista) a lingua escrita dos cris- tos do Egito. Ble subsistiu até os nossos dias, sob forma de lingua litirgica artific compreendida, sobrevivendo, assim, a extingio da lingua egipcia falada, progressivamente su- Plantada pelo arabe entre os séculos XI e XVIL. Foi gracas a sua conservacio sob a forma de copta que se tornou possivel traduzir a lingua egipeia contida nos textos ahtigos, a0 ser descoberto o sistema de escrita hierogll. fica, por Jean Francois Champollion, em 1822, através da pedra de Roseta, que trazia um texto gravado ao mesmo tempo em hieréglt fos, em demético e em traducdo grega. A literatura egipcia era rica e variada, e comportava quase todos os géneros. Mas a palavra “literatura” deve ser entendida com certas ressalvas. Muitos fragmentos que nos parecem literarios podiam ter finalidade di datica ou magica que nos escapa. Por outro lado, a decifracdo de tais textos esta longe Cerimonial migico "e' votlvo 0 tempo. dos Ptolomeus. LITERATURA FaIPCIA — 3067 de ser perfelta: a sua tradugéo representa mais uma aproximacéo do que uma equiva: lencia, No reduzido conjunto que chegou até nds predominam os textos religiosos. Foi, porém, esse género, indubitavelmente, que se regis traram as maiores perdas: desapareceram os manuscritos enumerados nas paredes das bi bliotecas dos templos. S6 nos resta 0 que fora gravado ou pintado. 0s livros funerfrios. — Entre os escritos re ligiosos, deve ser reservado lugar especial aos textos funerdrios, de que os textos das pira ‘mides constituem a colecdo mais antiga. Gra ‘Tabua, gessada que o escriba usava para a inseri- G40," (CErea do ‘ano 2000 3.0.) ito da estela de Unasonkh. Caledrio de HeDD cxbrenlatde teste ae EV aktekhes vados, em Ménfis, nas paredes dos comparti- mentos das piramides de cinco faraés da V* e VI" dinastias, éles reanem as formulas in- dispensdvels para assegurar ao rei falecido ‘sua sobrevivéncia e protecdo, no timulo e no além, misturando o material e o espiritual num Jirismo por vézes impressionante. Conjunto menos antigo, os textos dos sar- e6fagos — assim denominados por serem ge- ralmente pintados no interior dos atatides de madeira do Médio Império — apareceram a partir do periodo heracleopolitano (2222 — 2040). Destinados, dessa vez, aos particulares, @sses textos deviam proteger os mértos dos perigos do outro mundo, . Outros documentérios, de idéntica natureza religiosa, constituiram, a partir do Novo Im- pério, compilacdo muito desenvolvida, deno- minada Livro dos Mortos. & uma série de ca. pitulos de origem dogmatica e de antigilidade heteréclita, freqiientemente oriundos de cole- téneas desaparecidas. Entre estas figuram al- guns hinos a Osiris e a Ra, e férmulas mégi- cas destinadas a orientar 0 morto no mundo infernal, permitindothe enfrentar vitoricsa- mente o julgamento de Osiris. Tais livros, ge- ralmente escritos em rolos de papiro e ilus- trados com vinhetas simbélicas, foram depo- sitados nos timulos até a época romana, quan- do se associaram a rituais posteriores; como © Livro das Respiracoes. Para terminar, as lépides funerdrias, con- servadas em ntmero consideravel, apresentam principalmente ao lado dos nomes e titulos do defunto, por vézes acompanhados de breves elogios biograficos, algumas férmulas desti- nadas a assegurar ao morto 0 g6zo de bens abundantes. s tratados religiosos rituals. — Uma cate- gorla completamente diversa de manuscritos — a mais elevada, sem divida — & a dos tra- tados cosmogénicos. ® verdade que nada chegou até nos ¢os livros sacros pretensamente encontrados pelo sabio Hardedef (IV* dinastia), ou ditados pelo deus Tot a Inhotep e por éste redigidos; mas podese citar 0 texto conservado por uma inscrigdo do Faraé Shabaka (XXV* dinastia), que, transcrevendo um papiro antigo, descre. veu a erlacdo do mundo pelo menfita Ptah- Tennen. Ha também fragmentos de tratados heliopo- litanos, de mistura com o Livro dos Mortos e capitulos da Cosmogonia tebana, resumidos nas Inscrig6es do Templo de Konsu em Karnak. © mundo do além e suas indmeras divinda- des foram descritos no Livro do Outro Mun- do, no Livro do Dia e no Livro da Noite, no Livro das Portas, no Livro da Vaca Celeste, ete, que evocam, hora por hora, o trajeto noturno do sol num mundo fantistico. Apa- receram a partir do Novo Império nas pare- i RGR Na ate LITERATURA EaIPCIA — 3069 wih it Oferenda de Ramsés I a0 simbolo de Osiris ¢ a deusa isis, (Templo de Ramsés 1, des dos tamulos do Vale dos Reis, onde estao transcrites, ademals, formularios litirgicos, como a Litania do Sol, ou narrativas mitol6- gicas, como a da Destruigdo dos Homens, re- latando um acontecimento do reinado terres. tre primordial do deus Ra. Outros escritos mitolégicos, sébre a Senec- tude de Ra (papiro de Turim), sdbre o reina- do terrestre dos deuses Xu e Geb (santuario de Saft el-Henneh), sdbre a lenda da Deusa lon- ginqua (Filae), ou sdbre a chegada prodigiosa dos deuses primordiais de Hermépolis a Tebas (Templo de Edfu), completam esta historia mitica do Egito primordial da “Bpoca dos deuses”. Os hinos aos deuses so freqiientemente de grande beleza, datando os principais do Novo Império. Citemos 0 grande Hino a Amon-Ra, “Abidos conservado num papiro do Cairo; 0 Hino ao deus Nilo, e sobretudo os cAnticos compostos em homenagem ao disco solar pelo rei herege Aquematen, Esses hinos tiveram enorme in- fluéncia sobre as literaturas vizinhas, encon- trandose alguns trechos déles retranscritos nos Salmos biblicos. A éles devemos agregar as oragées inspiradas pela devogao particular, tal a dos escribas a Tot, deus da sabedoria e da escrita. Os rituais eram extremamente numerosos variados, mas a maioria dos que estao men- cionados nas relacdes gravadas nos templos nao chegaram até nés. Havia formularios relativos & fundacdo dos templos, com pormenores sdbre a construgio dos mesmos; rituais do culto didrio (de que uma redac&o esta gravada em Abidos); livros AS i aaa sc 2070 — LINGUA E LITERATURA de exorcismos regularmente recitados contra © deus do mal, Set (papiro do Louvre), ou contra 0 deménio Apofis (papiro Bremner- Rhind); coletaneas destinadas & celebracdo dos grandes festejos, como o Livro da Des- truigdo do Hipopétamo, conservado nas pate des do Templo de Edfu, e comemorativo da vitéria de Horus sObre Set; textos relativos aos aniversarios do fara6; formularios dialo- gados, destinados A celebracdo dos mistérios divinos, e representando de maneira ritual certas lendas, como a Paiedo de Osiris; final: mente, tratados referentes aos ritos funerd- rlos (Livro da Abertura da Béca), etc. Deviam ser tratados muito abundantes em que a astrologia se encontra mesclada & cos- mogonia. Fornecem descricées do além, e do céu noturno. Apareceram no timulo de Seti I, em Tebas, e no seu pretenso cenotafio de Abi- dos, no tdmulo de Ramsés IV, etc, Alguns escritos désse género, 0 Livro das Horas ou © Livro de Sotis, no chegaram até nés, mas possuimos no preciosissimo papiro Carlsberg T, um tratado assaz desenvolvido que, embo- ra copiado por volta do primeire séeulo de nossa era, mostra conformidade com o que os tamulos nos ensinam sdbre os modelos an- tigos. Essa literatura é de importancia capital, pois deu origem a numerosos escritos astro- légicos ou “herméticos” greco-egipcios, que Thes devem, além de certos bosquejos cosmo- gonicos, as longas relacdes de figuras celes- tes denominadas decanos, cujos nomes pas- sariam para a astrologia latina da Idade Média, A literatura religiosa oficial, além désses escritos grandiosos, registrava’ também nar. rativas de milagres, tals como a histéria de uma princesa oriental curada pelo deus tebano Consu, gravada numa estela do templo te: Estela do nobre Maat. (Calcirio de. Kurna, cemi- tério de” Antef. XI dinastia.) bano déste Ultimo. e a narragio de uma fome que fora milagrosamente jugulada pelo ceus Cnum (estela de Xelal, perto de Assua’ Cumpre citar, por fim, como prova de uma religido mais popular, as coletaneas magicas: cartas dos vivos aos mortos que os atormen: tavam, interpretagdio de sonhos e calendérios dos dias propicios e nefastos. As menos remotas dentre essas alentadas coletaneas de magia, como o papiro demético de Londres e Leida (I ou II" século da era crist4), foram fielmente utilizadas em certas Fragmento de estela, (Tebas, Dra’h Abu'l Nega, XI dings LITERATURA EGIPCIA — 3071 Caleério de El Kantir, em que ha a inseriedo: Capela dos Milhbes de Anos da Rainha Te-Uosret, no'templo de Amon. (XIX dinastia, reinado de Si-Piah, 1215 compilagdes magicas gregas, dai passando a integrar, parcialmente, as colegdes francesas da Idade Média. A literatura moral. — Ao lado da religiao oficial, seus mitos e ritos; manifestouse uma moral privada, que poderiamos quase qualifi- car como “leiga’’. Originaria ndo mais dos templos. mas das escolas de eacribas, ela com: preende tratados didaticos de forma literdria varidvel e reveladores de grande elevacdéo mo- ral. Entre éles encontramos, em primefro lu- gar, coletaneas de instrucbes, as mais antigas, talvez, devendo ser atribuidas a Imhotep, vizir do Faraé Djeser, e a Hardedef, o “velho sé bio”, louvado pelas Inscrigées. Nesse género de escritos conservamos, quanto 20 Antigo Império, os Preceitos de Ptahotep e os Precei- tos de Kagemeni; relativamente ao Novo Im- pério, as Mdzimas de Ani; e por fim, datando de uma época mais proxima, os Eusinamentos de Amenemopé, dos quais alguns capfiulos Passaram até para o livro biblico da Sabe- doria. 1208" ac) No Médio Império, foi explorado 0 mesmo velo pelas coletaneas de maximas politicas e administrativas: Os Hnsinamentos para o Rei Mericaré, os Ensinamentos de Amenemhat destinados a seu filho Seséstris. A essa literatura edificante fillam-se os “es critos pessimistas”, surgidos sob a influéncia dos infortiinios sociais que se seguiram & que- da do Antigo Império. Bsse género literdrio, extraordinariamente moderno, teve grande voga no Médio Império; um de seus espécl- mes caracteristicos era 0 famoso Didlogo de wm homem cansado da vida com a prépria alma: 0 homem, desenganado, verificou que a vida ndo vale a pena de ser vivida, estabe lecendo-se 0 didlogo entre seu corpo, que néo desejaria perecer, e sua razio, que terminow por convencé-lo de que devia recorrer ao sul- iio. A critica social toma forma diversa nas pretensas profecias das Adverténcias de wm 3072 — LINGUA & LITERATURA sdbio e nas Profecias de Neferti, que evocam episédios hist6ricos da época, para satiriz4- Jos, ou para déles tirar ensinamentos. A ironia pura, finalmente, inspira obras pl torescas, tals como a Sdtira das profiss cujo autor — certamente um escriba — es- carnece os inconvenientes e a miséria dos de mais oficios ou misteres. O texto, alias, é dos mais tipicos de tais escritos, redigidos na maioria das vézes sob forma epistolar, e em que os escribas analisam os problemas e 0 carter de sua condicao, Embora de origem egipcia, todos ésses es. critos morais tiveram extraordaria difusio no mundo oriental. Varios dentre os que pos- suimos, tais como os Ensinamentos de Ame- nemopé, 0 Canto do Harpista, 0 Didlogo do Misantropo, e a Sdtira das Profissdes, forne- ceram, comprovadamente, elementos para a —eoooooEOEOEOEOEOEOeeeEeEeeOOOOEEEEEEEEe—————————eeeeeeeeee_—_—o73OV7O_—_—_—_O_O_73V0_ ‘compos Sabedoria, 0 dos Provérbios e o Eclesiastes. Literatura historiea, — A literatura histori ca esté igualmente ligada aos temples, em que se encontravam, gravados ou depositados, escritos sObre a cronologia, e onde se encon tram, ainda hoje, inscritos em gigantescos hle- réglifos, os feltos do fara6, também deus. AS duas estelas frontais erigidas por Seséstris II na altura da segunda catarata, constitu ram, todavia, os primeiros exemplos dos anais oficiais que, a partir do Novo Império, enche rlam as paredes dos monumentos, tais como as descricées das campanhas asiaticas de Tut més III no Templo de Karnak, e as campa- nhas de Ramsés III no de Medinet-Abu, Uma grande epopéia, denorhinada Poema de Pentaur, narra a vit6ria de Ramsés II sobre Age TS \ lcd bee TE UT Estela, de, Nefer- Iu, (Reg ido, ze Dendera IY dina os hititas em Kadesh; ela atingiu tal perfel co que serviu de modélo a numerosos escri- tos posteriores. Bsses textos histéricos foram completados elas biografias pessoais que se encontram gravadas nos timulos de particulares, desde © Antigo Império: Uni, Hercuf, Perpinact. Os mais belos dentre @sses textos sao os que exal~ tam a piedade do grande sacerdote Petostris (XXX! ou XXXP dinastia (7). Devemos acrescentar, ainda, os textos de certos decretos e as deserigSes comemorativas feitas pelos chefes de expediodes as minas do Sinai ou as do Uadi Hamamat. Dessa literatura histérica originaram-se ver- dadeiras crénicas mais ou menos populares; parece ter havido um ciclo de narrativas s6- bre Seséstris. Mencionemos, entre os textos conservados: a Histéria de Sinué, obrigado a fugir para a Palestina, por ocasiio da as censio de Seséstris I, autobiografia roman- ceada em que se descreve a vida dos néma- des no deserto, assim como recepedes, cer! monias finebres, uma conspiracdo, etc. na corte faradnica; 0 conto da Tomada de Jope por Tuti; a desericéo da Viagem de Uanmun Pelas escalas do Levante, Foram tais escritos que forneceram parte apreciavel do livro de Herédoto sobre 0 Egito, ‘em oposicao as inscricdes e rolos oficiais que serviram de base & compilacio grega com- posta pelo sacerdote Maneton. Os contos. — Conservados em papiros temos contos de todas as épocas, que retomam sob feicéo popular, os mais variados temas dos diferentes escritos_precedentemente enumera- dos. Os do Médio Império — os mais antigos que se encontraram — tém estilo sobrio e direto. Bles dizem respeito & hist6ria, com as Aventuras de Sinué, j mencionadas; e & mi: tologia, com 0 Conto do Néufrago, espécie de Ulisses egipcio atirado pelo mar numa filha maravilhosa, onde ¢ acolhido por uma ser- pente gigantesca e benévola. As Queizas do Camponés, despojado por um funcionario de- sonesto, dos asnos que possuia, representam nao s6 uma satira a Injustica social, como também uma homenagem a justica faradnica. Os Contos mégicos contados ao Rei Queops evocando os tempos Iendarios do Antigo Im- pérlo, misturam a moral 4 magia. Os redigidos na época do Novo Império apresentam linguagem mais ornada e estilo mais vivo e atraente. O Conto dos dois ir. mdos é 0 mais célebre déles. Inicia-se por um episédio semelhante & histéria de José e da mulher de Putifar — de que foi talvez 0 mo- délo — mas seu final, cheio de maravilhoso, toma feicio de alegotia mitolégica e oculta poderoso fundo religioso que nos escapa mut- tas vézes. Em torno do motivo central en- contram-se néle muitos motivos acessérios que pertencem ao repertério dos contos populares LITERATURA EGIPCIA — 3073 dos povos modernos. Assim, para citarmos ape- nas um désses elementos, 14 esté a crenca no poder sobrenatural do sangue derramado dos inocentes: das gdtas do sangue do heréi esquartejado brotam outros séres vivos, for tes e invenciveis. Essa histéria, como tédas as outras que de- pois dela vieram a luz, transporta-nos a um mundo sobrenatural, cheio de mistério e de magia. Nao a poderiamos contudo chamar de conto magico no sentido que se da hoje A pa- lavra, pois — segundo Maspéro — a crenca no maravilhoso, as supersticbes e a pratica de acdes magicas constituiam parte da vida quo- tidiana dos egipcios. Assim, os contos fornecem provas da curiosa conviccio de que a vida humana dura nao até a morte, e sim até a decomposi¢ao do cadaver, o que explica o cos- tume do embalsamamento. Bles oferecem ain- da ilustragio valiosa dos conceitos éticos da época, cuja moral sexual, por exemplo, diferia muito da atual. Assim, no Conto de Rampsi- nitos, 0 Rei manda & prépria filha que desem- penhe as funcées de policia secreta entregan- dose a qualquer homem, pormenor confirma- do pela Histéria do Rei Cego, 0 qual nao devia recobrar a vista antes de encontrar uma es pésa fiel ao marido e que, em conseqiiéncia desta condicdo, passou longos anos sem rever a luz do dia. Bsse mesmo Conto de Rampsi- nitos — alias registrado por Herédoto tam- bém — além de oferecer dados interessantes sobre a arquitetura egipeia, distinguese por um enrédo bem conduzido, certa harmonia de construcdo e elementos de mistério que fazem déle 0 primeiro espécime do conto policial. Citemos ainda as Aventuras do Principe Pre- destinado, que expde o tema da fatalidade, a Papiro funerario da Princesa Entiu-Ni, filha ‘do Farad Peinudjem. Da tumba da Raina Meriet~ Amun, em Deir el Bahri, cerea de 1025 a.0. No ‘alto, Entiu-Ni lavra a terra, weg “The Metropolitan Maser 3074 — LINGUA & LITERATURA historia moral das duas personagens Verdade © Mentira, os mitos religiosos dissimulados na Contenda de Horus e Set, ete. Para terminar, entre as narrativas de época mais recente, devem ser citadas, além de nu- merosos relatérios sdbre os faraés Amasis ¢ Nectanebo, as longas Histérias de Setna, o Magico, em que se verifica uma indiscutivel evolugéo moral e religiosa, e 0 ciclo histérico de Petubastis. Esta literatura de crOnicas, contos e lendas deixaria tracos profundos nas tradicdes gregas e Arabes referentes & histéria do Egito e de suas maravilhas (ver, por exemplo, a Tomada de Jopé por Tutii, ea historia de Ali-Babé e 08 Quarenta Ladrées). A poesia. — A literatura egipela comporta, ainda, um nimero apreciavel de textos poé ticos. Alguns déles tomaram seus temas a his- tOria, celebrando os méritos de Seséstris III e de Amenemhat III, ou exaltando os feitos de Tutmés III na Estela triunfal de Karnak. Outros sio os hinos religiosos que mencio- namos. Outros, ainda, os didlogos amorosos, ‘Aion, a, herons ¢ tare dlicads amide fatigante: vemos aqui um egiptology em stividade, ao fecolher inserigoes ‘num muro ‘de ‘Karnak, Khonsu, em seu barco, levado aos ombros pelos sacerdotes e incensado pelo rel, vai ao encontro de ‘seu duplo, que regressa a Tebas, apés ter exorcisado e curado'a filha do principe de Bacts. Estela da XV dinastia, (Leuvre,) em estrofes ternas e apaixonadas, comparaveis a0 Cantico dos Canticos: cancBes de amor dos Papiros de Turim, do papiro Hatris'e dos papiros ha alguns anos editados e pertencen. tes colecdo Chester Beatty. © mais comovente, porém, de todos ésses hinos, € 0 que esta conservado nas paredes do timulo de Neferhotep em Tebas (XVII* dinastia): a ode melanc6lica denominada Can- to do Harpista, em que o poeta aconselha que se procure gozar a vida, pois nada resta dos sabios e dos grandes de outrora, e ninguém sabe 0 que 0 espera no outro mundo — tema éste que, por intermédio do Eclesiastes, passa- ria até a Tdade Média ocidental. Os eseritos clentificos. — Convém citar final- mente certo niimero de tratados mais atinen- tes as ciéncias que & literatura: coletaneas de problemas matemdticos do papiro Rhind; for- muldrios médicos, como o papiro Ebers (que, ao lado de outras doencas, apresenta uma no. tavel descricio clinica do escorbuto), ou ct ritrgicos, como o papiro de Edwin Smith; in- ventarios geograficos dos templos e de sua hierarquia, cartas particulares; macos de ar- quivos administrativos e judicidrios, etc. H4, finalmente, como obra quase escolar, 0 tra: tado composto em copta por Horapollon sobre os hieréglifos — que éle ja nfo sabia ler — © qual termina, no V século de nossa era, a histéria da literatura do Egito pagéo. Els, em resumo, 0 que chegou até nés de uma prodigiosa literatura, cuja evolucdo se estendeu por trés milénios. Marianne e Jean Dorasse, Traducdo de Heitor Foes, Adaptacio de Paulo R6Nat.

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