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Renegados

Índice
1 – Pequenas Bruxas.............................................................................................................................3
2 – Banidas........................................................................................................................................... 8
3 – O bosque da Ninfa........................................................................................................................13
4 – O caçador de Leprechauns............................................................................................................18
5 – Responsabilidade..........................................................................................................................24
6 – A dificuldade de Mika.................................................................................................................. 28
7 – O som do vento.............................................................................................................................34
8 – O amigo dos leprechauns..............................................................................................................38
9 – Pandora.........................................................................................................................................48
10 – A loucura.....................................................................................................................................52
11 – Inverno........................................................................................................................................55
12 – Casa de campo............................................................................................................................63
13 – Ser mulher...................................................................................................................................67
14 – Sentido........................................................................................................................................72
14 – O despertar da magia..................................................................................................................78

1 – Pequenas Bruxas

Leah contemplava as rosas vermelhas que se erguiam deslumbrantes em seu


jardim. Os olhos verdes semicerrados seguiram uma pequena pétala vermelha
que se desprendeu da flor. Enquanto acompanhava a pétala graciosa caindo
sobre o solo, quis chorar, podia sentir o que estava por vir.
Agachou-se para pegar a pétala entre o verde vistoso da primavera, os dedinhos
pequenos e delicados a segurou com cuidado. O bater de asas de um pássaro fez
com que sua atenção deixasse a delicada pétala, para seguir o corvo em seu voo,
que pousou no telhado da grande casa.
Ouviu as gargalhadas de sua irmãzinha Elin tão logo a porta amadeirada e
arqueada de sua casa se abriu. A pequenina de apenas dez anos segurava a mão
do pai, o homem mais lindo que Leah já tinha visto, com seu cabelo preto e curto
e olhos tão verdes que pareciam duas esmeraldas.
— Vamos, Leah! Estamos atrasados, mamãe disse. - Gritou a menor para a irmã.
Leah lançou um último olhar para o corvo sobre o telhado, que se coçava com o
bico abaixo de uma de suas asas. Sentia o vento tocando sua pele, mas era como
se tudo estivesse parado, como uma cena dourada de um sonho noturno. Era
como se seu pai e irmã brincassem em câmera lenta à entrada da casa.
A mãe fora a última a deixar a casa, com seus cabelos dourados esbranquiçados
pela luz solar e ondulados como os de Leah, enfeitando-a como a mais bela
deusa. O tilintar das chaves batendo umas contra as outras, a enorme jardineira
florida no sopé da parede externa. O corvo a bicar-se, divertido. O vento a soprar-
lhe o cabelo.
A adolescente fechou os olhos, como se aquilo pudesse ajudá-la a suprimir o que
sentia. E ela sentia, sentia aquele como seu último momento, por mais que não
sentisse coragem de contar para os pais. Ela sabia que não deviam ir para a
igreja àquela manhã, até pediu para a mãe, mas ela fora irredutível.
Talvez se Leah tivesse um pouco mais do que apenas quinze anos, ela lhe daria
ouvidos. Sentiu as mãos fortes da mãe sobre seus ombros, balançando o corpo
esguio e alto para a idade, fazendo-a abrir os olhos. Encarou os olhos castanhos
da mãe, que lhe disse:
— Agora não, entendeu? Sem magia agora. Nós vamos para igreja e você deve se
comportar. Leah, você é a irmã mais velha e deve dar exemplo para Elin, não
pode deixar a magia lhe tomar, ninguém pode saber, acabaríamos todos mortos.
Ajeitou o vestido que caia um pouco abaixo dos joelhos da garota, ajeitando as
mangas curtas. Leah já era uma moça, os seios pequenos e proporcionais ao
corpo esbelto, a pele sempre lívida, os cabelos castanho-claro com suas pontas
douradas pelo queimar do sol.
— Mãe, não devemos ir à igreja. Devemos ir embora para Nence agora. - A garota
insistiu mais uma vez.
— Iremos depois de voltarmos da igreja, Leah. Como combinamos. Seu tio nos
levará e não pode se comprometer, assim devemos fazer como ele, irmos para a
igreja como se estivéssemos vivendo a vida normalmente. - A mulher carinhosa
beijou o pequeno rosto. — Dá pra fingir que você ama Jesus e está feliz em ir à
igreja?
Contrariada ela concordou com um balançar de cabeça e segurou a mão da mãe
que se esticara para ela. Sentou-se no banco de trás do carro moderno ao lado de
Elin. Olhou para a pequena sempre risonha, com seus lábios carnudos e
vermelhos, que davam ainda mais charme ao rosto que se empalidecia ainda
mais com o véu sedoso do cabelo tão negro quanto ébano, igual de seu pai.
— Não pode falar palavrão na igreja, Elin. - Lembrou a mãe, que sentara sobre o
banco de passageiro.
— Se comportem, meninas. - Completou o pai.
— Ah, seria muito bom se eu pudesse mandar o padre dar o cu pro capeta. -
Disse Elin, gargalhando em seguida.
Leah riu também, seria uma cena e tanto. Lançou um olhar agradecido para a
pequena que sempre conseguia iluminar seu espírito com seu jeito debochado de
ser. Agarrou a irmã e beijou seu rosto várias vezes, enquanto essa gritava para a
mais velha a largar, xingando-a e fazendo palhaçadas.
A única coisa que Leah gostava da igreja, era que ficava no topo de um alto
monte. Sempre amara os lugares altos, onde o vento poderia falar aos seus
ouvidos. Os pais não a incomodaram quando ela parou diante da mureta da
igreja, curvando-se sobre ela e olhando penhasco abaixo.
Os olhos correu sobre a cidade de Vento em sua beleza e majestade, os prédios
altos, a cidade planejada e arborizada. Era muito bonito de ver de cima, parecia
uma maquete com detalhes perfeitos. O cabelo acariciou as pouquíssimas partes
desnudas de seu corpo, abriu os braços para as laterais, sustentando um sorriso
ao toque do vento que tanto amava.
— Leah! - A mãe a chamou, sempre preocupada e cuidadosa.
Ela e a irmã nasceram com dons que eram perigosos demais para a sociedade de
Vento. Elas eram bruxas, viam seres e espíritos, conversavam com os deuses e
enquanto Leah podia controlar o vento, Elin controlava o fogo. Desde muito
pequena ouvira a mãe implorando para que ela nunca mostrasse aquele poder e
estranheza para as pessoas, ou morreriam.
Assim, sempre que a jovem parava para sentir o vento que tanto amava sobre sua
pele, a mãe se agitava preocupada, com medo dela perder o controle de seus
poderes e tornar público o que com tanto esforço, os pais procuraram esconder
de todos.
Com o ensino religioso da escola que frequentava, entendeu o que a mãe sempre
a avisara. Vento era terra de Iluminados, como se chamavam e eles tinham uma
religião conservadora e suas leis baseadas em seus dogmas religiosos. O
julgamento poderia não ser justo e as condenações com requintes cruéis era um
pesadelo ao infeliz condenado.
A mãe sabia que as duas crianças eram absurdas demais para aquela sociedade.
Desde bebês não simpatizaram em nada com a religião vigente e para desespero
da mulher, que de início tentou convertê-las, por acreditar que as filhas
sofressem com algum tipo de possessão do diabo, soube que as filhas eram
espíritos muito antigos e livres, que jamais se submeteriam. Suas crianças eram
bruxas de nascença.
Naty, a mãe, que sempre fora uma Iluminada e sempre teve todos os conceitos de
sua religião, sabendo que o diabo era real e que tudo faria para destruir sua
família. Num momento de insanidade e desespero pensou em entregar as filhas,
quando Elin era um bebê de dois anos e Leah uma garotinha meiga de sete.
Não conseguia entender porque aquilo tinha acontecido com ela, não sabia lidar
com um bebê que a queimava ao abraçá-la, nem com uma garotinha que
conversava com os espíritos malignos que a rodeavam desde o nascimento.
Odiava o quanto Leah parecia adulta, mesmo com poucos anos de idade.
Naquela noite de tristeza e desespero, pegou as duas crianças escondida do
marido, que infelizmente não pôde fazer qualquer outra coisa senão amar as
pequenas diabólicas e quando se aprontou para jogá-las ao rio, caiu sobre os
joelhos e chorou.
Por mais estranhas que suas filhas fossem, eram seus bebês, aos quais
alimentara em seu peito, passou noites em claro e a encantou quando a
chamaram de mamãe pela primeira vez. Não era possível que Deus pudesse ser
tão cruel ao lhe dar filhas como aquelas e encher seu coração de tanto amor.
Naquela noite, imersa em culpa, jurou que as protegeria com a própria vida, que
as amaria como qualquer mãe que desejou tanto um filho quanto ela, que
deixaria para trás todos os conceitos ultrapassados de sua religião medíocre, que
jamais deixaria que as ideias alheias lhe roubassem de si mesma, não se tornaria
a assassina de sua própria pole em prol da religião.
E Deus, como aquelas duas criaturinhas a fizeram feliz em todos aqueles anos.
Como os pequenos acidentes absurdos de suas meninas a divertiram, como as
histórias inteligentes que Leah a contava, mesmo sem nunca ter contato com elas
através de um livro ou pessoa, faziam-na pensar sobre o sentido da vida. Eram
seus tesouros.
O pai colocou Elin no banco ao seu lado, entre ele e a mãe, dando em seguida um
livro de colorir para ela se distrair durante o culto religioso, do contrário seria
impossível para o padre seguir com a missa com a bagunça que ela certamente
faria. Elin sempre fora inquieta e barulhenta e um desafio para momentos como
aqueles.
Leah sentou-se ao lado da mãe, que segurava os lápis de cor para Elin, que
rabiscava o desenho do livro, com a língua para fora da boca, como se precisasse
fazer força para rabiscar. O pai olhou para a mais velha, que decorara todas as
rezas e as repetia junto com o padre, estava certo de que seria atriz quando
adulta e sorriu.
A garota olhou para o lado ao sentir que alguém a olhava, era um rapaz um
pouco mais velho que ela, com olhos verdes azulados que pareciam dois lagos, o
cabelo ruivo, tão raro entre os Iluminados lhe davam todo um charme. Ele sorriu
para ela e sem qualquer pudor sorrira de volta, fazendo o pai ciumento também
observar o moço.
Teria sido só mais uma manhã de domingo como qualquer outra, entretanto o
que era raro de acontecer, quis vir à tona naquela manhã. Antes de encerrar o
culto, o padre pediu a atenção dos fiéis, sobre um jovem rapaz e seu pequeno
irmão, que foram pegos lendo livros de autoria dos Renegados.
O padre passou três livros que os fiéis passavam de um para o outro, como uma
prova do crime cometido. Leah ao segurar os volumes observou os títulos: “A
bruxaria como forma de libertação”, “As vozes dos deuses” e “O poder das
plantas”. Entregou os volumes para a mãe, sentindo o nervosismo da mesma, ao
apertar tanto os livros, como se fosse esmagá-los.
Os olhos de Elin caíram assustados sobre o pequeno no púlpito, ela o conhecia,
era um amiguinho de classe, com o qual amava brincar no recreio. Leah sentiu
novamente o vento soprando em seu cabelo e num ímpeto se levantou, a mãe
rapidamente a puxou fazendo-a sentar novamente.
— Por cortejarem o diabo e sua malignidade, por mentirem sobre a leitura,
Adriano Levi e Ricardo Levi são condenados à morte.
O múrmuro dos fiéis surpresos com aquilo preencheu o solo sagrado.
Condenação de morte para crianças era rara. Elin se agitou, começou a gritar,
implorando para que o padre não fizesse aquilo. Qualquer criança de dez anos
como ela, obrigada às vezes a assistir execuções, para não seguir pelo mal
caminho, podia imaginar o que estava para acontecer com seu amigo de classe.
Agitada a irmã mais velha passou a enrolar os longos cabelos entre os dedos,
enquanto olhava o pai acalmar a mais nova. Os fiéis a olhavam, mas o padre
começou a falar, na intenção de consolar Elin sobre a morte, informando que eles
iriam para o purgatório e que depois seriam redimidos e encontrariam a casa de
Deus.
Nervosa demais, Elin não conseguiu se controlar, lançando uma chama tão
poderosa no banco da frente, que acabou se incendiando prontamente, fazendo
os fiéis ali sentados saírem correndo, desesperados, na intenção de apagarem o
fogo de suas roupas, que outros fiéis solícitos tentavam ajudar.
Alguém os apontou, os acusando de bruxaria, uma velha senhora, que podia ter
visto quando aconteceu. Leah apertou uma mão contra a outra, seu sonho estava
acontecendo, exatamente como ela tinha sonhado na noite anterior. Contudo,
estava tão assustada que permaneceu sentada, olhando para a mãe que
cochichava algo no ouvido da irmã.
A mãe se levantou, dizendo que ela era bruxa e que tinha incendiado o banco e
que provaria sua bruxaria. Conforme ela movia os braços, Elin agora no colo do
pai, seguia estritamente as instruções da mãe, incendiando estátuas de santos,
bancos, pessoas.
Aquilo causou um enorme tumulto e agitada, Leah convocou o vento para
alimentar as chamas. Levantou-se puxando a mãe pela mão e gritando para o pai
fugir com elas e Elin. Os quatro correram para fora da igreja e antes de adentrar
o carro que os pais e a irmã mais nova já invadiram, ela convocou o vento
novamente, alimentando ainda mais as chamas da irmã, na intenção de matar o
padre.
Lançou um último olhar ao garoto ruivo, que por algum motivo parou para olhá-
la com o rosto assustado, levando a mão fechada em punho à boca, enquanto
tossia por causa da fumaça. E o abandonou ali, adentrando rapidamente o carro
dos pais.
— Você não devia ter alimentado o fogo para tentar matá-los. - O pai esbravejava
nervoso.
— Odin decide o dia da morte das pessoas, não eles! - A mais velha falou severa.
Leah abraçou a pequena que ainda muito agitada, chorava. Enquanto o pai
dirigia em fuga. Seria melhor levar as meninas para a velha bruxa que
conheceram anos antes em Nence. Precisava ser rápido e fugir. Naty ao seu lado,
muito abatida, não conseguia sequer chorar, estava em choque.
— Nós ficaremos bem. - O pai repetia, como se aquilo pudesse acalmar suas três
garotas assustadas.
— Você devia me ouvir, mãe. - Esbravejou Leah. — Eu te avisei que não podíamos
ir à igreja hoje.
— Avisou. - A mulher concordou, abatida.
2 – Banidas

A cabeça de Leah doía quando acordou dentro da masmorra escura e fedorenta.


Olhou para as paredes de pedras tingidas pelo musgo e umidade, sentando-se na
cama de pedra onde dormira. Abaixou a cabeça por um momento, os espíritos
sussurravam palavras em seus ouvidos, pequenas instruções e aquilo de certa
forma a acalmava.
Não sabia como tinha parado ali, procurou se lembrar do que tinha acontecido
depois de deixarem a igreja. Lembrava-se de seu pai dirigindo tentando acalmá-
las, de sua mãe catatônica no banco do passageiro, como se não pudesse
acreditar no que estava acontecendo e de Elin com a cabeça em seu peito,
umedecendo seu vestido com suas lágrimas.
Olhou para o corpo esguio, o vestido ainda era o mesmo, mas não estava mais
alvo com seus bordados coloridos como fora. Havia manchas ocres,
provavelmente de sangue, estava longe de parecer de que algum dia aquilo fora
branco.
Esticou os braços que mal conseguia enxergar na escuridão, estavam doloridos e
se houvesse um pouco mais de luz poderia enxergar todos os hematomas que se
espalhavam por todo seu corpo. Um corte ardido no supercílio inchava seu olho
esquerdo, assim como seus lábios estavam inchados.
Levou o dedo à ferida ainda aberta o que a fez soltar um abafado gemido. Sim,
eles os perseguiram, milhares de carros de polícia, lembrou-se de seu pai
indeciso sobre parar ou tentar escapar. Sua mãe não tinha mais qualquer reação
e ela apertava a irmã contra o peito, temendo o pior.
Lembrou-se de que quando o carro parou abruptamente, ela voou agarrada de
Elin, ambas sem cinto de segurança, voaram para frente, Leah quebrou o vidro
frontal do carro com as costas e bateu a cabeça com tanta força com o impacto
que apagou.
Mas, onde estavam seus pais e sua irmã? Quanto tempo se passara depois
daquilo. As vozes continuavam falando em sua cabeça, diziam para ser forte,
para suportar toda dor, que ela ficaria bem.
— Odin, me ajude. - Sussurrou, aflita.
Por horas ficou naquele cubículo fedorento sem ver uma viva alma. Traçava
runas nas paredes com as pontas do dedo, enquanto cantava seus sons mágicos
mentalmente para que ninguém a escutasse. As lágrimas escorriam por sua face,
preocupava-se com Elin, onde ela poderia estar? E seus pais? O que aconteceu
com eles?
Queria cantar aquelas runas a plenos pulmões, estava ansiosa, triste e
assustada. “Odin”, ela o chamava repetidas vezes, em inaudíveis sussurros. A
boca seca implorava por um gole de água, o estômago doía e roncava de fome, a
cabeça latejava e ela traçava as runas nas paredes. Enfiava o dedo na ferida
fresca e agora as desenhava com o próprio sangue.
Não sabia precisar quanto tempo ficou ali, parecia-lhe eterno e sufocante. Virou-
se rapidamente ao ouvir o barulho metálico da grade de sua cela. Um homem
vestindo um robe branco, escondia o rosto com o capuz comprido, com uma
enorme cruz vermelha sobre o peito.
Esticou-lhe a mão gentil e ela a segurou. Nada disseram durante o caminho
sinuoso entre os túneis rochosos, que acomodavam as masmorras onde outros
que ela não conseguia ver pela pouca luminosidade, choravam e suplicavam por
misericórdia.
Enquanto seguia o homem, o olhar da garota caiu sobre o rosto cansado e
pesaroso de uma mulher, que silenciosamente a olhava com seus olhos grandes e
misteriosos. Os cabelos negros desgrenhados davam volume ao rosto fino e
magro. Sem que o homem a percebesse, por puro instinto, Leah soprou-lhe um
beijo e a mulher repetiu o gesto com um sorriso.
A claridade daquela sala de paredes rochosas cegou-lhe, fazendo com que a
cansada Leah os fechasse para aliviar a dor que sentia neles. Ouviu a voz chorosa
de Elin chamando seu nome e abriu os olhos, que aos poucos se acostumavam
com a claridade.
Soltou bruscamente a mão do homem que a guiara até aquele lugar e correu,
abraçando a irmã em seguida, olhando para o rosto tristonho do tio, que
silencioso a encarava. Frank era muito parecido com seu pai e tão amoroso
quanto. Aproximou-se das pequenas, colocando uma mochila nas costas de cada
uma.
O homem encapuzado empurrou as duas garotas para fora daquele lugar e as
colocou num furgão. Nem Elin e nem Leah tinham coragem para falar, apenas se
abraçavam assustadas. Enquanto apertava a irmã contra o peito, a mais velha
olhou pela janela e observando o movimento das ruas de Vento, julgou ser final
de semana novamente.
Será que dormira por uma semana inteira?
Contudo seu questionamento perdeu a razão de existir, quando observou o lugar
onde o homem encapuzado agora estacionava o automóvel. Conhecia bem aquela
praça. Era a praça central de Vento, onde as execuções públicas importantes
aconteciam como um lembrete sobre o que acontece se não seguir as leis de
Deus.
O homem ainda gentil com as duas crianças, abriu a porta, guiando-as pela
praça arborizada, repleta de pessoas, que cochichavam entre si, ao ver as duas
garotas. Os olhos verdes e desesperançosos fitavam a multidão, ninguém as
xingavam ou protestavam contra elas.
— O que está acontecendo, Leah? - Perguntou a mais nova. — Estou com medo.
— Vai ficar tudo bem. - A mais velha respondeu, apertando a mão da pequena.
Os olhos marejaram, quando os viu no centro da praça. Os pais estavam
amarrados num poste de madeira, sobre pilhas do mesmo material inflamável. O
pai ao lado direito e a mãe ao esquerdo. Parou subitamente ao entender o que
estava acontecendo. Rasgou uma parte da saia do vestido de tecido fino, o que a
ajudou a conseguir tal feito e cobriu os olhos da irmã, dizendo:
— Elin, nós vamos brincar de cabra-cega.
— Por que?
— Porque eu vou te guiar, sem que você veja essa gente feia. Está bem?
A pequenina, mesmo sentindo que aquilo não era uma brincadeira, assentiu. Aos
poucos foi achando divertido os tropeções que levava, enquanto a irmã mais velha
a guiava em passos apressados para ficar próxima do encapuzado. Parou onde o
homem ordenou e apertou a mão pequenina da irmã, com os olhos marejados.
— A criança deve ver. - Ordenou o carrasco, que observara Elin.
— Por favor, poupe a criança. - Gritou alguém na multidão. — Elas não têm
culpa do pecado dos pais.
Leah não conseguiu segurar o pranto. O único pecado que seus pais cometeram
fora colocá-las no mundo e amá-las demais. Olhou para os pais que a encaravam
aflitos. Entendia bem o olhar de sua mãe. Com apenas uma leve expressão, ela
implorava para que a moça não fizesse nada.
— O que está acontecendo, Leah? - Perguntava a menor, curiosa. — Por que as
pessoas estão gritando tanto?
— Fica quietinha. - Falou a mais velha com carinho na voz, entre lágrimas. — Vai
acabar logo.
O carrasco aproximou das crianças com uma tocha acesa nas mãos, ordenando:
— A mais velha acenderá as fogueiras, então! Do contrário, a mais nova terá que
retirar a venda dos olhos.
— Por favor, não. - Implorou a adolescente.
— Retire a venda dela!
Leah olhou para a irmã, que muito assustada apertava sua mão. Com os olhos
inundados de lágrimas olhou para a multidão, esperando que alguém
intercedesse por ela. Mas, a ajuda não viera de nenhum lugar. Todos mantinham
um silêncio sepulcral.
Uma senhora, comovida, puxou Elin contra o corpo dela e abraçou a criança
assustada, fazendo um movimento com a cabeça incentivando-a a seguir em
frente. Em pura dor e ódio, juntando a coragem que parecia lhe fugir naquele
momento, segurou a tocha, olhando fixamente para o fogo, covarde.
Ouviu o crocitar de dois corvos que pousaram sobre uma árvore próxima aos
seus pais. Os olhos negros dos animais cravaram nos dela e o vento novamente
balançou seu cabelo. Ouviu a voz da deusa que a acompanhava, recitando algo
que lhe era conhecido desde a tenra idade:
“A guerra da qual me lembro, a primeira do mundo, quando os deuses com lanças
tinham golpeado Gullveig e no salão de Har a queimaram. Três vezes a queimaram
e três vezes renascera. De novo e novamente, contudo ela vive para sempre.”
Com passos hesitantes caminhou em direção aos pais, apavorada, encarava a
chama dançante. Nenhum barulho era ouvido além do zunir do vento nas copas
das árvores e do crocitar dos corvos que a observavam.
Diante da pilha funerária de sua mãe, ela ergueu os olhos para o rosto cansado e
umedecido pelas lágrimas abundantes. Encarou a mãe por um tempo, com as
mãos trêmulas e o peito doendo. Sentia que desmaiaria a qualquer momento, as
pernas já não a obedeciam. Naty começou a gritar:
— Não obriguem minha criança a fazer isso. Por favor, ela é uma criança, ela não
merece carregar isso com ela.
— Que ela aprenda com o erro de sua mãe. - Gritou o carrasco.
Leah virou-se, o encarando, jamais esqueceria aquele rosto, sabia que Elin
precisava dela mais do que tudo naquele momento, não fosse por isso enfiaria
aquela tocha na boca dele, ali mesmo. Os murmúrios da plateia atônita se
ergueu. Ele ordenou mais uma vez.
Os olhos da moça pousou sobre o rosto da mãe novamente, apertou os olhos,
enquanto buscava pelo ar, entre o choro abundante. Sentiu a mão apertada de
seu algoz em seu punho, forçando-a a levar a tocha até a pilha já banhada em
óleo.
Ela abriu os olhos e focou-se na chama que se avivou sob os pés da mãe. Ergueu
o olhar para o rosto assustado que a olhava e implorava para que não reagisse.
Naty conhecia a filha bem para saber que ela estava a beira de matar aquele
homem. Conseguiu ler os lábios da mãe, que suplicava: “Cuide de Elin, ela
precisa de você”.
Impulsionada pelo ódio e a catarse de momento tão doloroso, que jamais
esqueceria, com passos pesados e infelizes, caminhou com a maldita tocha até a
pilha de seu pai, acendendo-a e olhando para o rosto doce dele, que apenas disse
em voz alta:
— Eu te amo, Leah, nunca se esqueça disso.
— Essa noite vocês banquetearão com Odin. - Ela disse num sussurro inaudível.
Jogando a tocha ao chão, em prantos, deixou seu olhar deslizar sobre todos os
rostos da multidão, que mesmo horrorizada, não fizera nada para livrá-los de
tamanho sofrimento.
Os gritos de seus pais encheram seus ouvidos e pode ouvir os gritos da pequena,
com a cabeça enfiada no peito da velha que a abraçava, também aos prantos,
provavelmente pelo sofrimento das duas crianças. Não soube como pôde
continuar ouvindo o crocitar dos corvos e sem pensar muito, disse:
— Odin tem vós todos.
O cheiro de carne queimada, os berros angustiados de seus pais, o crepitar do
fogo, o crocitar dos corvos, o nariz que fungava, os olhos que marejavam.
Caminhou com passos pesados, arrancando a pequena irmã que gritava aos
prantos, assustada, sem ver o que exatamente estava acontecendo, dos braços da
velha senhora. A trouxe contra seu peito, num misto de choque, horror, ódio e
dor.
Um homem a obrigou olhar para os pais que gritavam e fritavam e ali ela ficou
até que eles finalmente silenciaram, assistindo a cena de horror, com Elin entre
os braços dela, questionando, chorando e resmungando. O povo foi dispersando e
em seguida as duas foram levadas para o furgão novamente.
Exaustas, famintas e devastadas as duas meninas dormiram abraçadas no banco
de trás, com as mochilas a descansar no chão do automóvel. O homem
encapuzado que as levou numa viagem de horas, abriu a porta do furgão,
acordando as duas crianças assustadas, as deixando numa cidade
completamente desconhecida.
3 – O bosque da Ninfa

As duas olharam cabisbaixas para o furgão que se afastou rapidamente. O sol


ainda ameaçava a nascer, com o céu a se pintar com linhas brancas e rosadas.
Embora tivesse dormido toda a viagem, Leah estava exausta. Sem muita
esperança olhou ao redor.
Era uma zona rural, com algumas poucas casas de madeira salpicando o campo,
algumas pessoas transitavam pela rua de barro onde foram deixadas, as olhando,
com o rosto que entendiam o que acontecia com elas. Virou-se para trás e viu um
bosque convidativo, com árvores altas e belas a se balançarem majestosas ao
vento.
— Estou com fome. - Resmungou a mais nova, chorosa.
A moça segurou a mão pequena e atravessou a estrada de barro adentrando o
bosque. Tentava se lembrar de tudo o que tinha aprendido em suas aulas de
escotismo, enquanto tentava reconhecer a flora. Viver numa cidade grande como
Vento agora lhe era uma grande desvantagem.
Antes de continuar caminhando, com Elin resmungando sem parar, decidiu
sentar-se sob uma alta árvore para, pela primeira vez, ver o que o tio pudera
colocar nas mochilas. Questionadora, Elin não parava de lhe fazer perguntas
sobre onde comeriam, mas a mais velha a ignorava.
Vasculhou a bolsa onde encontrou um pacote de papelão onde o tio colocara dois
lanches e algumas poucas frutas, duas garrafinhas plásticas, uma contendo água
e a outra suco, e alguns doces. Conferindo se aquilo era tudo, tomou a mochila
que pendia nas costas da pequena que olhava ao redor e agradeceu que ele
tivesse colocado igual porção para a irmã.
Elin sentou-se ao seu lado quando a irmã mais velha ordenou que comesse, ao
passo que a adolescente olhava as poucas trocas de roupas, dois mantos que as
aqueceriam e serviriam de coberta à noite e para a alegria de Elin, seu velho
ursinho de pelúcia que ela chamava de Divo.
Sentiu-se melhor depois que se alimentou e deitou-se sobre as raízes altas da
árvore, esticando o corpo dolorido e cansado. Elin como sempre estava cheia de
energia e com o estômago cheio, se viu pronta para uma brincadeira com o Divo
em meio aos arbustos.
O sol estava alto quando Leah finalmente acordou, não queria ter dormido tanto e
se desesperou ao não ver a irmã por perto. Colocando a mochila nas costas
começou a chamá-la. Ficava em silêncio por um momento para ouvir se a irmã
respondia, mas nada ouvia além dos pássaros cantarolantes.
O verde do ambiente por um momento pareceu devorá-la, para onde olhava tudo
o que via era os arbustos, as samambaias, as trepadeiras que se agarravam as
árvores. Sentiu o coração disparar e a respiração se tornou ofegante. Onde estava
Elin? Gritou seu nome repetidas vezes, cada vez mais alto, sem saber para onde
devia seguir.
Girou-se sobre o próprio eixo aterrorizada, sem saber que caminho seguir. Em
sua mente o olhar súplico saltou-lhe novamente. Arrasada ao sentir que em
apenas um dia conseguiu decepcionar a mãe, gritou desesperada o nome da irmã
várias vezes. De súbito começou a caminhar, mas parou ao que julgou ouvir uma
gargalhada familiar.
O riso vinha da direção contrária que estava seguindo, fazendo-a virar-se
rapidamente e se colocar a correr para onde vinha o barulho abafado. A vegetação
brincalhona, arranhava o rosto alvo, enquanto em desespero ela corria. Elin
gargalhava com uma ninfa à margem de um rio.
Olhou a bela donzela da água, nua, numa brincadeira carinhosa com Elin e
apertou os olhos para conter o choro que estava prestes a lhe saltar ao rosto
novamente. Sentou-se em silêncio, observando a irmã brincando com a ninfa,
dizendo para si mesma mentalmente que não poderia se desesperar daquele jeito.
Elin precisava dela agora e ela tinha que ser forte, sabia que a pequena também
se desesperaria se ela demonstrasse seu desespero com aquela situação. Não
sabia como sobreviveriam, não tinha ideia de como sobreviver naquele lugar.
Tudo o que tinha em mente era de que precisavam encontrar água, objetivo que
Elin alcançara e precisavam de um abrigo.
Ao sentir-se mais calma, aproximou das duas que brincavam e em silêncio,
retirou as garrafas das duas mochilas, lavando-as no rio e as preenchendo com
água. Virou-se ao perceber que a ninfa a encarava, embaraçada, Leah se levantou
e fazendo uma leve reverência com a cabeça, disse:
— Desculpe, ninfa. Esqueci-me de pedir a sua permissão para usar de sua água.
— Isso não me incomoda. - A voz suave soava como um belo canto.
— Sabe onde posso encontrar um abrigo? - Perguntou a mais velha, debruçando-
se sobre o rio novamente para lavar o rosto.
A ninfa apontou para o sudeste, dizendo em seguida:
— É melhor que se banhem enquanto o dia ainda está quente.
A mais velha olhou para a pequena, que tamborilava os dedinhos na água
tranquila e rasa, se conscientizando que além de abrigo, água e comida, também
precisava se preocupar com a higiene de Elin. Temeu não ser capaz de tanta
responsabilidade e deixando as garrafas na bolsa, retirou a única toalha de
banho que o tio colocara na bolsa.
— A ninfa tem razão, Elin. - Disse a mais velha tirando aquele vestido horrível,
que tanto lhe lembrava do sofrimento. — Vamos nos banhar.
Aproximou-se já nua da irmã mais nova, ajudando-lhe a retirar a roupa e jogando
os maltrapilhos que ela também vestira para ir à igreja naquele dia fatídico e
segurando a mão pequena, que seguia com seu corpinho saltitante para a água,
que num primeiro momento parecera gelada, fazendo-a se arrepiar toda, logo se
tornou morna e relaxante.
A ninfa que deslizava no rio de um lado para o outro, às vezes em círculos ao
redor das duas meninas, cantava uma canção numa língua que ambas
desconheciam. Sentiu o coração confortado com a canção e a água parecia levar
toda sua tristeza e dor para longe.
Elin começou a brincar jogando água no rosto da mais velha, que agora se
sentindo mais leve e revigorada, tornou a revidar, fazendo a pequena se inclinar
em gargalhadas. Boiou sobre o rio, deixando a água amável acariciar o longo
cabelo, se livrando de sua posição relaxante com as cócegas que Elin fizera em
seus pés.
Satisfeita deixou o rio, trazendo Elin consigo e a enxugou antes de se enxugar
com a única toalha que tinham. Vestiram-se, pela primeira vez animadas e
esperançosas e agradeceram a ninfa que ainda cantava e sorria. Colocou-se a
caminhar com a menor na direção que a ninfa apontara e já um pouco distante
do rio, ouviu-a:
— Quando ele te convidar, aceite.
— Quem? - Perguntou Leah, virando-se para olhá-la, mas a ninfa não estava
mais lá.
Continuou caminhando entre as árvores, o verde dos olhos das duas garotas,
pareciam dizer aos milhares de tons de verde ao redor delas, que também faziam
parte daquele bosque. Não demorou muito até que Leah avistou a entrada
estreita de uma gruta.
Com medo de que houvesse algum animal na cavidade escura, pediu para que
Elin a esperasse na entrada e que não se movesse dali. Odiava lugares escuros e
fechados como aquele, mas era um abrigo perfeito. O cheiro não era muito
agradável, contudo não parecia a toca de nenhum animal.
Chamou Elin e as duas passaram parte do tempo se preparando para o anoitecer,
procurando por frutos ou animais para comerem e galhos secos para a fogueira.
Nada encontraram para comer naquele dia, mas as frutas, os doces e o lanche
que sobrara do café da manhã ajudaram para que dormissem sem sentir fome.
No começo Leah tentou contar os dias e esses foram dias terríveis. Encontrar
coisas para comerem era sempre um desafio, que nem sempre ela conseguia
conquistar. Quase não tinha nenhum conhecimento sobre plantas e tampouco
sobre como caçar animais. Com uma vara improvisada que fizeram a partir de
uma faca que pediram numa das casas próximas ao bosque, onde se
alimentaram naquele dia, Leah bem se lembrava, criaram lanças para pescar.
Não era tão fácil quanto parecia nos programas de televisão que assistia em
Vento e naquele dia não fora diferente. Sem peixes e sem frutas, as duas foram
dormir com fome, tomando apenas um chá que Leah fizera com uma erva
conhecida que encontrou no bosque.
Elin acendeu a fogueira, com o fogo que brotava de suas mãos, enquanto Leah
afiava a faca numa das pequenas e abundantes pedras dentro da gruta. O vento
urrava nas copas das árvores e a noite clareava com os relâmpagos. A pequena
encostou nela, abraçando o ursinho de pelúcia e dizendo:
— Estou com medo, Leah.
— Desde quando passou a temer a tempestade? - Perguntou a outra, tentando
parecer animada.
— Desde que chegamos aqui eu comecei a ter medo de coisas que não tinha medo
antes. - Confessou a pequena. — Estou com fome, minha cabeça dói. Será que
vamos sobreviver?
Leah segurou o rosto pequeno entre as mãos, forçando a pequena a olhar para os
olhos dela.
— Nós vamos sobreviver, você entendeu? Nossos pais morreram para que nós
vivêssemos e temos de honrá-los. Não podemos morrer antes de vingarmos a
morte deles. Você compreendeu? Você vai viver e eu vou viver.
A pequena balançou a cabeça com os olhos marejados, o que fez Leah pressioná-
la contra o peito.
— Estou com frio. - Resmungou a pequena, sonolenta.
Leah se deitou com ela próxima da fogueira e já acostumadas com o chão frio e
duro puseram-se a dormir. E assim muitos dias se seguiram. Dias mais felizes
onde as duas conseguiam alimento, dias mais difíceis como aquele em que eram
obrigadas a se satisfazerem com chá.
Com o tempo as duas tornaram-se mais ágeis e mais acostumadas com aquela
vida, o que fez com que encontrassem alimentos com mais facilidade e quando
estavam a beira de um colapso, mendigavam nas casas ao redor do bosque. Leah
sabia que não poderia viver daquele modo para sempre, mas não tinha nenhuma
ideia melhor naquele momento.
Numa noite sem lua, enquanto Elin brincava na gruta com o Divo, ela pegou a
faca velha e enferrujada que usava para tudo e cortou a mão. Em raízes
previamente colhidas, cravou runas com a ponta da faca e as untou com seu
sangue enquanto cantava um velho encantamento.
Alegre ao ver o rosto da mais velha iluminado pelo fogo bruxuleante, a pequena
se colocou a dançar, como se o canto de Leah não fosse algo tão doloroso.
Entretanto, a irmã mais velha sempre cantava tão bem, que Elin se comprazia ao
ouvir a bela voz que parecia acordar todos os seres da floresta.
Sabia que a irmã cantava um canto rúnico, a magia crescia ao redor delas e as
chamas da fogueira cresceram mediante a alegria que Elin sentia. A mais velha
cantou por mais de uma hora, com a mão sangrenta sustentando as raízes acima
do fogo, o canto crescia e descia, em tons harmoniosos.
Sentiram os seres do bosque curiosos, embora não os vissem, os sentiam por
toda a parte, espiando e se deliciando com a bela voz de Leah. A adolescente
silenciou com os olhos fixos nas raízes. As runas brilhavam, vivas com o seu
sangue a tingi-las. Levantou um clamor:
Eu sei que pendi numa árvore fustigada pelo vento por nove noites inteiras, ferido
por uma lança e dedicado a Odin, sacrifiquei-me a mim mesmo; naquela árvore que
não sei de onde suas raízes vêm.
Eles não me consagraram com pão, nem com qualquer bebida, eu contemplei o
abismo. Peguei as runas, gritando, eu as peguei e caí.
Nove poderosas canções eu aprendi do famoso filho de Bolthor, o pai de Bestla e
também bebi do precioso hidromel, servido de Odroerir. Então, comecei a entender
e fiquei sábio.
Odin entre os deuses. Dain diante dos elfos. Dvalin diante dos anões. E Asvid
diante dos gigantes. Eu mesma gravei runas.
Eu conheço tais canções que esposa de rei não conhece e nem os filhos dos
homens: E a primeira chama “Ajuda” e ela me ajudará contra disputas e mágoas e
todo tipo de infortúnio.
Havamal.
E como se tirasse o som da própria garganta, a mais velha vibrou de modo
gutural, repetidas vezes:
— Fehu! Fehu! Fehu!
Jogou as raízes sobre o fogo, deixando Elin tão extasiada, que a pequena voltou a
dançar ao redor da pequena fogueira, pedindo para a mais velha cantar
novamente. Sentindo-se alegre, a bruxa se pôs a cantar uma música animada em
prol de satisfazer a pequena.
4 – O caçador de Leprechauns

Naquela tarde deixou Elin pescando no rio, assim que avistou um coelho
despreocupado correndo entre os arbustos. Com a faca na mão e muita
disposição, a mais velha seguiu o coelho com todo o silêncio possível, seus passos
sobre a relva eram inaudíveis.
Observando o coelho, enfiou-se entre os arbustos e ali ficou imóvel por vários
minutos, na esperança de que em algum momento, o coelho distraído viesse em
sua direção. Em sua mente se desenhavam todos os deliciosos pratos que poderia
fazer com carne de coelho, enquanto vigiava o bicho.
Os dias estavam ficando cada vez mais quentes com a proximidade do verão, o
que deixava Elin ainda mais agitada e barulhenta, assim passou a confiar em
deixar a pequena sozinha enquanto caçava. Elin não conseguia ficar quieta e por
isso sempre afastava todo e qualquer animal.
Fachos dourados penetravam pelas densas copas, dando ainda mais beleza ao
lugar e ao gordo coelhinho branco, que distraído seguia com sua vida de coelho.
Contudo, subitamente o animal disparou a correr de algo que o assustara,
embora a garota não soubesse o que o assustara.
Sem querer deixar o jantar escapar daquele jeito, não ao menos sem uma luta. A
menina disparou a correr na mesma direção que o coelho, mas ao tentar saltar
um arbusto, algo volumoso a fez cair. Ele estava ali, imóvel, debaixo dela, os
narizes se tocaram e o assombro deixaram ambos paralisados.
Ele a encarava com os olhos tão azuis como se invejassem o céu límpido daquela
tarde. O cabelo loiro, liso e muito comprido, se espalhou sobre a relva, como uma
bela seda dourada. Nunca tivera visto rapaz tão belo em toda a sua vida e ao
notar aquele pensamento, tímida, se livrou daquela situação ultrajante,
levantando-se desnorteada.
— Sua idiota, você assustou o leprechaun! - Disse o garoto, apoiando-se sobre a
mão para se levantar.
— Quem é você para me chamar de idiota, seu idiota? - Esbravejou.
Ele a ignorou, passando as mãos sobre as roupas na intenção de limpá-las.
— Eu não afastei nada. Não tinha nenhum leprechaun aqui!
— Claro que tinha. - Respondeu nervoso, sem olhá-la.
— Não, não tinha. Mas, com certeza foi você quem afugentou o meu jantar!
Sim, estava ali o mistério do coelho assustado. Com certeza aquele loiro alto e
bonito, não, bonito não, idiota, o tinha o assustado. Sentiu-se acuada, quando ele
pousou o olhar sobre ela.
Por um momento foi como se não houvesse mais ar na floresta, mesmo as copas
das árvores não mais se curvaram ao vento, os pássaros calaram-se e o rio
distante parou de cantar. O sol, entretanto, como rei de tudo, ainda brilhava em
seu cabelo, como se esse fosse seu espelho.
Ela sentiu o peito apertado e uma intensa vontade de chorar. Ele agitou-se com a
súbita dor que parecia devorar-lhe a própria alma. Não eram capazes de
moverem-se, nem de pararem de se olhar. Um laço oculto parecia amarrá-los,
transmitindo os sentimentos e as sensações de um para o outro, ainda que os
cérebros não pudessem decodificar a mensagem.
Os segundos que se passaram pareceram uma eternidade para ambos e sem
conseguir conter o choro, os olhos verdes inundaram-se. Confuso, o loiro se
aproximou da estranha e encostou seu nariz sobre o dela. Sempre se acalmava
quando alguém fazia aquilo com ele, certamente funcionaria com ela.
Não sabia dizer porque fazer com que ela se sentisse bem lhe pareceu tão
importante, contudo sabia que ninguém, que por um motivo ou outro, estava
naquele lugar porque sonharam em viver lá. Deliciou-se no toque estranho do
nariz do moço sobre o seu, a respiração dele que aquecia suavemente seu rosto a
acalmava de certa forma.
Os olhos se ergueram para fitar o azul do mar infindo que a observava, percebeu
a boca dele tão próxima da dela, que num ímpeto saltou para trás, constrangida.
Ele continuou imóvel, embora as mãos agitadas se enfiaram nos bolsos da calça
jeans surrada que vestia. Era mais velho que ela, pela aparência e alguns fiapos
de barba dourada, devia ter uns 18 anos.
— Desculpa. Não devia ter te xingado. Não esperava encontrar uma menina no
meio do meu caminho.
— Você me acusou de algo que não fiz. - Disse ela, limpando as lágrimas,
orgulhosa.
— Meu nome é Mika. - Ele disse, estendendo a mão.
— Leah. - Ela apertou a mão calejada do rapaz.
— O que está fazendo aqui no bosque? - Perguntou, olhando ao redor.
— Moro aqui desde que fui banida de Vento. Estava tentando caçar um coelho
suculento para o jantar, até você o espantar. - Disse, chateada.
Ele sorriu ao observá-la, ela era muito bonita, embora estivesse toda suja. Não
que ele estivesse com a melhor roupa do mundo, porém sabia estar com uma
aparência melhor. A testa da moça se franziu ao perceber que os olhos grandes
observavam atentamente cada milímetro de seu corpo e esbravejou:
— Para de me olhar assim, seu tarado.
— Não sou tarado. - Replicou. — Você está com fome?
— Estou assim tão magra? - Ela perguntou, averiguando a roupa que realmente
se tornara mais larga com o passar do tempo naquele bosque.
— Está bonita assim. - Respondeu, gentil. — Eu estava fazendo almoço quando
saí para caçar esse leprechaun, que você fez questão de assustar.
— Já disse que não tinha nenhum leprechaun aqui. - Esbravejou novamente e
lembrando-se do convite do almoço, seu estômago roncou. — Aceitaria seu
convite, mas não estou sozinha.
Ele levantou o pescoço para ver quem estava com a moça, mas nada viu além do
verde imponente do bosque.
— Acho que é o bastante para três. - Respondeu, confuso.
— Tem certeza?
— Certeza eu não tenho, mas posso cozinhar mais se for necessário.
Ela segurou-lhe pela mão e o fez a seguir até o rio, onde Elin se ria sozinha, a
cada tentativa desastrada de pescar um peixe. A pequena olhou para a irmã e em
seguida depositou o olhar sobre o loiro estranho que a seguia.
— É um elfo? - Perguntou a pequena.
— Não, só um moço que nos convidou para almoçar. Vamos pegar nossas
mochilas para ninguém roubar! - Ordenou.
A pequena saiu do rio, carregando a vara torta maior que ela e ao aproximar-se
dele, o apalpou risonha. Ele se abaixou, com o rosto iluminado pelo sorriso, a
pequena era de fato graciosa. Acariciou os cabelos pretos a despenteando e
dizendo:
— Com essa vara horrível nunca conseguirá pegar um peixe.
— Teu cu.
A resposta da pequena lhe soou tão engraçada, que Mika gargalhou batendo as
mãos nas coxas. Animada e achando aquela a risada mais medonha e engraçada
que já ouvira, Elin se pôs a rir com ele. Leah sacudiu a cabeça, esperando passar
a crise de riso dos dois, que agora riam das próprias risadas.
— Qual seu nome elfo? - Perguntou a pequena.
— Mika, mas não sou elfo. Só sou um homem.
— Vamos, Elin, pegar nossas mochilas, não temos o dia todo.
— Bem, parece que ela já me contou seu nome.
— Minha irmã sempre faz isso. - Resmungou a pequena, que segurou a mão dele,
enquanto seguia Leah.
A casa de Mika era bem próxima ao bosque, embora tiveram que caminhar por
uma longa estrada de barro por cerca do que Leah julgou ter sido uns vinte
minutos. A casa de madeira não era muito grande, mas o cheiro da comida que
fervilhava nas panelas era maravilhoso.
Um cômodo da casa, onde algumas almofadas estavam espalhadas pelo chão,
estava tão abarrotado de instrumentos musicais que a deixou tonta e que foi
motivo para Elin fazer uma festa a parte, tocando tudo e qualquer coisa,
desafinadamente.
Enquanto o rapaz avançou para a cozinha para averiguar que nada tinha
queimado, já que deixara tudo lá enquanto saiu para caçar o leprechaun, viu que
as batatas cozinharam demais e resolveu improvisar um purê.
Leah encontrou um quarto onde havia duas camas de solteiro, a foto antiga de
uma mulher que não se parecia com ele sobre um criado-mudo caindo aos
pedaços e uma pequena porta de madeira que dava para um banheiro minúsculo,
mas onde havia uma velha banheira branca, que a fez desejar por um banho
quente e relaxante que não tomava há muito tempo.
— Se importa se eu tomar um banho quente em sua banheira? - Ela perguntou,
entrando na cozinha.
— Claro que não me importo. - Respondeu, solícito.
Caminhou ao banheiro, com a garota em seu encalço, tentando não
ensurdecerem com as batidas nada rítmicas que Elin fazia na enorme bateria. Ele
ajustou a temperatura do gás num aparelho grande e velho, abrindo a torneira da
banheira em seguida.
— Veja se essa temperatura está boa. - Disse, sentado à borda da banheira.
Ela se esticou por cima dele, para alcançar a água com a mão e sorriu ao sentir a
água morna e relaxante. Num pequeno armário, com um espelho quebrado e
manchado na porta, ele retirou um sabonete ainda lacrado e entregou para ela,
saindo, para logo retornar com uma toalha limpa, que ao deixar sobre a tampa do
vaso sanitário, saiu, fechando a porta atrás dele.
Em seguida, aproveitou a boa vontade do rapaz e também banhou Elin, que
nunca mais quis deixar a água quente, fazendo Leah desistir dela e ajudar Mika
cozinhar.
Ela não tinha como saber o que aquilo foi para ele. Mika perdera a mãe quando
tinha dez anos e desde então morou sozinho naquela casa. Apenas Andrei o
visitava de vez em quando, especialmente quando queria lhe oferecer um
presente. Estava certo de que as duas meninas foram um presente dos
Leprechauns, pela primeira vez de ser capaz de comprar um doce para dar a eles.
Ela cortava grandes tomates em rodelas, sobre a pia velha, enquanto ele
terminava de verificar se as batatas que há pouco colocara no ensopado já
estavam cozidas o suficiente. Gargalhou mediante a alegria que sentia, ao ter as
duas ali.
Acostumada com o comportamento estranho de Elin, de também viver rindo
sozinha, ela sequer o estranhou, na realidade aquilo deixava seu coração mais
leve. Sempre quando sentia que estava prestes a desmoronar em sua devastadora
tristeza, as risadas de Elin pareciam alimentar a alma cansada.
— Pode provar para ver se está bom de sal para você? - Ele perguntou, levando a
colher até a boca da garota, sem dar sequer a chance dela responder a pergunta,
que ele não esperava uma resposta.
O caldo quente estava delicioso e secou com o punho o pouco que escorreu sobre
o queixo.
— Está delicioso! - Exclamou, honestamente, fazendo o rapaz sustentar uma
expressão orgulhosa em seu rosto.
Com o almoço pronto, Leah se viu obrigada a retirar a irmã do banho, que
naquela altura já devia ter virado um peixe e após algumas discussões e
xingamentos, a pequena enfezada cedeu, trocando-se também no quarto de Mika,
com os lábios fazendo um beicinho descontente, enquanto a irmã penteava o
cabelo com o pente que pegara emprestado.
Serviram-se e sentaram-se os três à mesa. Mika olhava para as duas, que
famintas comiam como se não vissem comida há dias. Repetiram o prato e após
comerem tão depressa quanto devoraram o primeiro, ambas se esticaram na
cadeira, colocando as mãos sobre a barriga cheia, o que arrancou dele o riso.
— O que pretende fazer? - Ele perguntou, ainda comendo.
— Eu não sei. - Respondeu a mais velha, embaraçada. — Tenho que cuidar da
minha irmã.
— Vocês podem morar aqui comigo se quiserem. Mas, vai ter que encontrar um
trabalho, porque o que recebo mal dá para eu viver sozinho o mês inteiro.
— Não me importo de trabalhar. - Disse a mais velha, esperançosa e ao mesmo
tempo desconfiada.
— Nem eu. - Respondeu a pequena se espreguiçando.
— Está com sono, Elin? - Ele perguntou.
Ela balançou a cabeça afirmativamente. Tinha o costume de tirar um cochilo
depois das refeições. Ele a guiou até o quarto, organizou a cama que era da mãe e
a convidou para deitar lá. Elin se esparramou, como era bom dormir numa cama
macia e quente novamente. Aquele chão duro da gruta que viviam tinha acabado
com ela. E com esse pensamento riu-se sozinha, apertou o Divo contra o peito e
logo adormeceu.
Sentou-se novamente à mesa e voltou a comer. Observou que a moça traçava
uma runa sobre a mesa com a ponta do indicador e deixando o garfo no prato,
deslizou o dedo sobre a mesa desenhando a mesma runa que ela. Ela ergueu o
olhar para os olhos que seguiam o rastro invisível que deixava com o dedo e ele
sussurrou em seguida:
— Ansuz.
Depositou as safiras sobre as esmeraldas dela e sorriu. Ela não disse sequer uma
palavra, sequer um pensamento corria em sua mente. Descontraído e silencioso
voltou a comer.
— E se você nos fizer mal se ficarmos? Conheci uma renegada muito boa uma
vez, a bruxa que aconselhou a mamãe sobre nós, mas em Vento dizem que os
renegados são perigosos.
— Não somos. - Respondeu com naturalidade. — Só queremos sobreviver como
qualquer outro. - Levou a comida à boca novamente.
— Onde posso encontrar emprego?
— Posso pesquisar isso para você. As pessoas morrem trabalhando com
frequência, então estão sempre precisando de novos trabalhadores. Mas,
enquanto eu não arrumar, vou mostrar para você onde fica o lixão dos Puros e
todas as terças-feiras você deve ir para lá e recolher tudo o que for bom e útil,
ficamos com o que precisarmos e vendemos o que não nos serve.
— Posso fazer isso.
— Amanhã também estou de folga e vou te ensinar a caçar, assim enquanto eu
estiver trabalhando você caça e cuida da horta. Também vou te mostrar um lugar
onde podemos encontrar algumas ervas e frutas. Você e Elin cuidam da casa e
assim a vida ficará mais fácil para nós três.
Ela balançou a cabeça afirmativamente e se deixou levar pelos pensamentos.
Precisaria encontrar alguma coisa para ofertar em pagamento para Odin, por ter
ouvido seu ritual onde pedira por ajuda. Ali estava Mika lhe oferecendo uma casa
para morar e um pouco de esperança para continuar.
Sobreviver era tudo o que importava para ela, até ter idade suficiente para invadir
Vento e vingar a morte de seus pais. A segurança e conforto de Elin estariam
garantidos debaixo de um teto, por mais simples que ele fosse e dormiria com a
faca sob o travesseiro, caso Mika tentasse fazer algo contra elas.
O rapaz sorriu para ela, jogando a mecha do enorme cabelo para trás, para não o
mergulhar no prato. Levou mais algumas garfadas à boca, comendo lentamente e
ergueu o olhar para ela mais uma vez. Sentia-se feliz ao ter encontrado
companhia.

5 – Responsabilidade

O tempo foi correndo mais rápido do que as meninas esperavam. Leah sentia-se
triste que Mika não tivesse conseguido um emprego para ela ainda, entretanto
colocara em prática tudo o que lhe ensinara. Já estava tão boa com o arco e
flecha e a própria caça, que sempre tinham o que comer.
Duas vezes por semana, Leah colocava Elin dentro de um carrinho de mão de
madeira que Mika construíra e seguia para o lixão dos Puros, com o qual
aprendeu a fazer bastante dinheiro. Sempre encontrava coisas boas e
funcionando como batedeiras de bolo, jogos de panelas, utensílios domésticos e
eletrônicos no geral.
Sempre que encontrava um instrumento musical ela e Elin vibravam para
presentear Mika, que genioso, tocava com perfeição qualquer instrumento.
Passou a procurar por linhas, lãs e barbantes desde que a vizinha do caçador,
Dona Irene, lhe ensinou a tear, além de outros artesanatos que também lhe
rendia alguns trocados.
Tudo o que aprendia ensinava para Elin e o que ela conseguia ter alguma
facilidade para fazer, a irmã mais velha incentivava. Infelizmente a pequena não
levava o menor jeito para tecer, mas era boa em costurar colchas e cobertores de
retalhos, o que naquele outono estava lhes rendendo muito dinheiro. Isso quando
Leah não estava esbravejando para deixar a bateria de Mika de lado.
Após preparar o jantar para que o caçador tivesse o que comer ao chegar do
trabalho exaustivo de doze horas, sentou-se na cama que dividia com Elin e
contou as moedas que guardara num pote. Ainda estava longe de conseguir
comprar o colchão que tanto almejava com suas economias.
Dormir numa cama macia em nada se comparava com o chão duro da gruta, já
há muito esquecido em sua nova rotina, mas também estava cansada de ser
espancada todas as noites pela pequena espaçosa e queria mais do que tudo ao
menos comprar um colchão para colocar entre a cama dela e de Mika e ter uma
noite de sono satisfatória.
Independente disso estava feliz em conseguir fazer dinheiro o suficiente com a
tecelagem e o lixão, além de nunca faltar comida, se orgulhava de que ela e Elin
não fossem um peso morto para Mika, o que recebia as alimentava, vestia e ainda
ajudava o caçador com as contas de água, gás e eletricidade.
Olhou o velho relógio barulhento que tinham na parede do quarto, ele estava
atrasado e aquilo a preocupou. Com ele aprendera muito sobre Nence e sobre
Serpentine, a cidade onde eles moravam no momento, fronteiriça com Nizand. E
embora raramente um Renegado fazia mal ao outro, não podiam esperar o
mesmo dos Iluminados e Puros que circulavam pelo lugar.
Era normal que o caçador às vezes se atrasasse, especialmente se visse algum
leprechaun pelo caminho e decidisse por segui-lo, o que nunca era uma escolha
na verdade. Entretanto, nunca demorara tanto. Ansiosa deixou o quarto, lançou
um olhar para a pequena que terminava mais um cobertor de retalhos entre os
instrumentos e saiu porta afora.
Nem soube precisar por quanto tempo esperou aflita, não havia mais ninguém
circulando pelas ruas barrentas de seu bairro e nada de Mika. Alguma coisa a
deixava muito inquieta, o procuraria pelo bosque na esperança de encontrá-lo
caçando leprechauns, mas não podia deixar Elin sozinha.
Entrou e colocou o velho aparelho de som para tocar música e se ocupou com
seu tear. As horas passaram depressa e sonolenta percebeu que Elin dormira
sentada, embaixo da coberta que estava produzindo. Pegou a pequena pesada no
braço e levou para cama, olhando para o relógio mais uma vez.
Era meia-noite quando ouviu o rangido da porta velha de madeira. Avançou até a
sala dos instrumentos e muito abatido, o caçador lhe lançou um olhar pesaroso.
Estranhamente quieto, seguiu para o quarto e depois para o banheiro onde se
demorou no banho.
Insegura sobre o que fazer e cansada de esperar, ela se deitou junto com a irmã,
tentando se aconchegar de modo a não ser derrubada da cama de solteiro. A
pequena resmungou e xingou mesmo dormindo e abraçada a ela fechou os olhos.
Entretanto, não conseguia dormir, ele ainda não tinha deixado o banheiro.
Fechou novamente os olhos quando ouviu a porta se abrindo, os passos pesados
de Mika pela casa, davam-lhe uma noção do que estava fazendo. Não conseguia
entender porque se sentia tão perturbada e preocupada. Logo sentiu o cheiro de
incenso e a voz rouca do rapaz esbravejando na cozinha:
— Droga, não tem doce! Por isso que está tudo ruim. Por isso que está tudo ruim.
Ele repetiu aquilo algumas vezes a deixando assustada, os passos iam e vinham
como se ele não conseguisse ficar quieto. Ouviu os dedos do moço sobre as
cordas do violão, mas logo ouviu o ruído abafado do instrumento abandonado.
Novamente passos e mais passos. O som dos passos ficaram altos o bastante
para saber que ele estava no quarto e o silêncio reinou, abrupto.
Curiosa ela se virou e viu o loiro sentado sobre a cama, balançando o tronco para
frente e para trás com os olhos cheios de um sofrimento que sua boca parecia
incapaz de expressar. Estava assustada, nunca tinha visto alguém com face tão
insana antes. E ainda que aterrorizada pelo estado emocional caótico que ele se
mostrava, ela se levantou.
Aproximou-se dele com passos hesitantes, ele sequer a olhava, como se ela fosse
invisível, os olhos vazios e fixos no chão não se ergueram com a proximidade
dela. Lembrou-se de como sentiu-se bem quando ele estranhamente colocou o
nariz sobre o dela e decidiu fazer o mesmo naquele momento.
Cautelosa, tocou a ponta do nariz dele com o seu com delicadeza. Tão logo ele
sentiu aquele contato ergueu o olhar pesaroso para ela e os olhos se inundaram.
Ela afundou os dedos finos sobre a cabeleira loura e macia e sibilou os lábios
como se estivesse tentando acalmar uma criança.
Ao toque dela, seu corpo imobilizou, mas as lágrimas não pararam de brotar.
Com o tempo a sua posição curvada para tocar o nariz do rapaz tornou-se
terrivelmente incomoda. Gentil, pressionou os ombros dele, o incentivando a
deitar e deitou-se ao seu lado, acomodando-se de forma a encostar novamente
seu nariz sobre o dele.
Acariciava seu cabelo e se questionava porque aquilo a preocupava tanto. Após
alguns longos minutos, ele passou os braços a envolvendo num abraço, tomando
todo o cuidado para não retirar o nariz do dela. A incomodava um pouco ter que
respirar o ar que ele expirava, contudo não demorou a se acostumar com aquilo,
sentiu prazer sob aquele simples e estranho toque.
— Leah, eles a mataram. - Ele sussurrou, já mais calmo.
— Quem? - Ela sussurrou em seguida.
— Mataram a minha amiga no trabalho, Leah. Bem diante de meus olhos, minha
melhor amiga de muito tempo. Bateram tanto na cabeça dela que vi pedaços do
cérebro dela sair a cada forte pancada que davam com uma pá.
Entendendo a dor que ele sentia naquele momento, ela voltou a acariciar seu
rosto e a sibilar com os lábios, sussurrando em seguida:
— Eu estou aqui. Estou aqui.
— Meu pai nos mandou embora e não pude fazer nada. Minha mãe foi embora e
não pude fazer nada. A Bia foi embora hoje e não pude fazer nada. - As lágrimas
umedeceram o rosto dele novamente. — Promete que nunca vai embora, Leah?
Promete que não vai embora e me abandonar? - Voltou a se chacoalhar
novamente.
— Prometo. - Ela não pensou na promessa, desejava apenas acalmá-lo.
E pela primeira vez se percebeu desejosa de querer que Mika se sentisse bem,
que se acalmasse. Era devastador vê-lo daquela forma, estava prestes a surtar e
ela nem sabia que ele tinha aquele tipo de problema. Preferia quando estava
risonho, falando sozinho, repetindo frases bobas e caçando leprechauns. Nunca
tivera o visto imerso em tamanho sofrimento antes.
Sentiu-se infeliz ao acordar e percebeu que acabara adormecendo antes mesmo
do moço. Ao menos acordou em tempo de lhe preparar o café da manhã para
enfrentar o dia. Não, ele não estava sorridente quando a abordou na cozinha.
Colocava a marmita que ela deixara preparada na noite anterior na mochila e se
sentou à mesa a esperando para fazer o desjejum com ele.
Comeram em silêncio, enquanto Leah o observava, se fosse possível não o
deixaria trabalhar aquele dia, temia no que poderia fazer mediante a tantas
emoções intensas. Estava assustada, nunca tinha lidado com alguém com
transtorno mental antes, todas pessoas que sofriam daquilo eram banidas de
Vento.
Sabia sobre os transtornos porque aprendiam na escola, as crianças eram
ensinadas a denunciarem seus familiares, caso reconhecessem os sintomas. Não
sabia o que aquilo era de fato, não tinha conhecimento para aquilo, mas algo não
estava tão certo com Mika e temeu por um momento ao pensar que talvez ele
pudesse as machucar se estivesse surtado.
Sua cabeça rodopiava. Será que o universo não percebia que ela era nova demais
para todas aquelas coisas? Que ela não sabia o que fazer na maior parte de seu
tempo? Depositou o olhar sobre o belo rosto novamente, que lentamente comia o
desjejum simples que preparara.
Quando ele finalizou a refeição, levantou colocando a mochila nas costas e pela
primeira vez em toda a sua vida, sentiu os lábios quentes do jovem em sua
bochecha, dizendo em seguida:
— Obrigado por tudo, Leah. Não demoro hoje, não quero te deixar preocupada de
novo.
— Mika. - Levantou-se abrupta, fazendo o rapaz parar sob o batente da porta,
virando-se para olhá-la.
Como falaria aquilo? Sentiu um bolo no estômago, apertou os dedos de uma mão
com a outra e criando coragem, continuou:
— Promete que se ficar nervoso você volta para a casa e deixa o trabalho?
— Não posso prometer isso, Leah. Se eu deixar o trabalho, eles me matam.
O rosto demonstrou sua chateação em não fazer a única coisa que ela lhe pediu
em todo aquele tempo e cabisbaixo deixou a casa.
6 – A dificuldade de Mika.

Naquela manhã, tão logo ela e a irmã caçula terminaram de limpar a sala e a
cozinha, aproveitando o outono, Leah seguiu com ela para o local onde Mika
mostrara que podiam colher frutas sem qualquer problema. Enchiam as sacolas
plásticas de todas as frutas que conseguiam recolher, colocando-as no carrinho
de madeira.
O rapaz informara sobre a necessidade que tinham de armazenar alimentos para
o inverno, estação que ele trabalhava apenas uma vez por semana e por isso seu
salário diminuía consideravelmente. Ela deveria secar as frutas para as
conservar, como ele pedira, enquanto ele cuidaria das carnes secas e defumadas.
Retornaram em casa, guardando as frutas e deixando Elin as separando sozinha
na cozinha, Leah avançou para o quarto que deixou para organizar naquele
momento. Após organizá-lo e limpá-lo, gritou:
— Elin, separe um pouco de frutas para levarmos para Dona Irene.
— Tudo eu. - Reclamou a outra na cozinha, colocando-se a separar algumas
frutas para a instrutora da irmã.
Ajeitou o travesseiro de Mika e novamente sentiu o peito apertado ao sentir o
cheiro dele. Será que estaria bem? Será que se surtasse faria alguma bobeira?
Incomodada encheu a mochila com algumas linhas e colocando-a nas costas,
chamou a irmã, ajudando-a com as duas sacolas de frutas para a senhora.
A pequena mordiscava uma maçã, enquanto carregava a sacola mais leve, que
tinha enfiado o Divo de qualquer jeito dentro e Leah deixou os olhos descansarem
no bosque. As folhas amareladas ao chão, algumas belas bétulas com suas folhas
avermelhadas davam cor e vida à morte que se anunciava.
Dona Irene as esperava sentada numa velha cadeira de balanço na pequena
varanda da casa, amava as duas meninas que alegravam os seus dias e lhe
faziam companhia. Há muito perdera os próprios filhos e o único neto havia a
deixado há poucos dias, para trabalhar em Vento.
Elin alegre lhe entregou as frutas e logo correu para brincar no jardim da
senhora. Irene sorriu para Leah a convidando a entrar. Na bela e ampla sala
estava os teares, onde passava grande tempo com a senhora aprendendo a arte
de fabricar roupas e outros acessórios.
Irene conversava alegre, sempre lhe contando as mesmas velhas histórias,
sempre contando sobre Geraldo, seu grande amor, que a abandonou tão cedo. As
histórias sempre se misturavam entre histórias terrivelmente tristes e histórias
que arrancavam gargalhadas de ambas.
— Dona Irene, posso te perguntar uma coisa? - A moça perguntou, num
momento onde a senhora se pôs em silêncio.
— Claro, criança.
— A senhora conhece Mika há muito tempo?
— Desde que veio morar aqui com a mãe. Era apenas um garotinho loiro, sempre
com aquela carinha angelical. - Disse como se olhasse para as cenas do passado.
— A senhora saberia me dizer se ele tem algum transtorno mental?
— Aquele garoto passou por muita coisa, criança. - A senhora disse, séria. —
Mas, sempre teve um bom coração.
— O que aconteceu? - Ela perguntou, curiosa, enquanto ajeitava os fios da blusa
que estava tecendo para ele.
— Ele e a mãe fugiram de Nizand. Alice era uma mulher forte e muito carinhosa
com aquele menino. Eu cuidava daquele traquina enquanto ela trabalhava duro
para alimentá-los. Sempre fora muito esperto, quando aprendeu a ler se
apaixonou pelos livros, mas tudo o que mais amava fazer era tocar música. Ah,
como Mika alegrava nossas noites com suas cantorias.
A velha sorriu para ela.
— Quando estava com oito anos a mãe adoecera ao ponto de não deixar mais a
cama. O bom menino que já era um ótimo caçador, passou a caçar e vender suas
caças. Garimpava o lixão e sempre aparecia com coisas incríveis para vender.
Muito cedo teve que se tornar um homem. E ainda arrumava tempo para estudar
com alguns Renegados que se dispunham a ensiná-lo à noite.
A velha fez uma pausa para trocar a cor de linha que usava, fazendo Leah a
olhar. Assim que averiguou que tinha feito tudo corretamente, tornou a dizer:
— Não tínhamos nenhum remédio naquela época. Leda e sua mãe vieram depois
algum tempo. Ele aborrecido trabalhava desesperadamente, porque sonhava que
iria para Nizand comprar o remédio que a mãe precisava, mas era muito caro e
impossível para qualquer um de nós comprar. A mãe culta, por viver muito tempo
em Nizand, onde conhecera o pai do menino, contava-lhe muitas histórias, mas
ele se encantou com as histórias que ela contava sobre leprechauns. - A velha
riu-se.
Ao lembrar da loucura de Mika em capturar um leprechaun, Leah não se conteve
e riu também.
— Entretanto, ele acreditou mesmo naquilo, sempre fora um menino bruxo,
sabíamos. A mãe ficava cada dia pior e a morte começou a rondar aquela casa.
Tenho certeza de que Alice morreu orgulhosa do garoto que educou, tudo ele fazia
para agradá-la. Entretanto, meu coração temia como ele reagiria a morte, ela era
tudo o que tinha, sua única família, tudo o que conhecia. Por mais que fosse
sempre muito sociável, Mika sempre teve um forte senso de família que a mãe
ensinara. Família em primeiro lugar, ele sempre dizia.
A feição da velha tornou-se triste.
— A obsessão dele com os leprechauns começou antes da mãe falecer. Um dia
chegou em minha casa contente e me contou a história dos sapatos.
— Que história dos sapatos? - Perguntou a moça curiosa.
— Bem, ele me disse com seus nove anos, que seus sapatos não tinham mais
como serem consertados e que ele não tinha mais o que calçar. Preocupado,
porque sempre caminhava muito com seu carrinho velho cheio de bugigangas
para vender, temia ser incapaz de trabalhar sem sapatos e eles não tinham
dinheiro para comprar. Disse que lembrou-se da história dos leprechauns que a
mãe contara e ansioso por ajuda, roubou um doce naquela tarde e ofereceu a
eles. Disse que no dia seguinte, enquanto andava pelo bosque caçando algum
animal para alimentar a mãe, encontrou um par de sapatos novos, que lhe
serviam perfeitamente e esteve certo de que foram os leprechauns que lhe deram.
Depois disso vivia sempre resmungando que não tinha doce para dar a eles. A
vida era difícil para todos nós, ainda mais difícil do que é agora.
Leah olhou para o vaso velho com suas flores artificiais e desbotadas sobre o
móvel amadeirado e antigo, mas minuciosamente lustrado e limpo, imaginando
toda a vida do garoto, o quanto devia ter sido difícil para ele. Claro que todas as
noites ela ainda tinha pesadelos com seus pais queimando, mas teve uma vida
abastada com eles.
Entretanto, a miséria já não lhe era uma estrangeira como antes, conhecia a dor
de dormir com fome e de se preocupar excessivamente com alguém. Sua vida
tornara-se aquilo da noite para o dia, com a pequena Elin, que feliz brincava aos
berros ao lado de fora da casa, a lhe preocupar dia e noite.
— Quando ela morreu, todos nós soubemos pelos gritos e o pranto de Mika. Ele
quebrou a casa inteira naquele dia, jogava as coisas contra as paredes e quando
finalmente consegui entrar na casa trancada para o socorrer, estava agarrado ao
corpo frio da mãe aos prantos. Viu-se sozinho e sem família aos dez anos e se
culpava sem parar por não ter dado doces para os leprechauns que certamente o
ajudaria a conseguir o dinheiro suficiente para comprar o remédio que a salvaria.
Oh, criança, você não sabe o que é dor! - Exclamou a velha, tristonha.
Bem, saber ela sabia, mas Dona Irene nada sabia sobre a morte de seus pais,
assim como Mika também não sabia e Elin, embora resmungasse com frequência
sentindo falta dos pais, não viu como eles morreram e nem que a obrigaram a
acender a pilha funerária para queimá-los vivos.
Aquela lembrança fez os olhos marejarem, mas não podia chorar, não podia se
entristecer e desmoronar, Elin dependia dela, a mãe esperava isso dela e não
podia decepcioná-la. Soltou um suspiro voltando a se concentrar na tecelagem,
quando ouviu a voz da velha.
— Ele adoeceu naquele dia, estou certa. Ficou trancado naquela casa por dias
sem que ninguém o visse. Depois o encontrávamos dormindo em qualquer lugar,
às vezes dentro do bosque gritando para a morte o levar ou xingando todos os
deuses e tudo o que existe por lhe tirarem tudo o que tinha. Não quis ficar comigo
quando pedi que viesse e com dez anos, lá estava o menino enlouquecido e
sobrevivendo por si mesmo. Começou a ser visto caçando seus leprechauns que
mais ninguém via, às vezes sentado na chuva ou na neve se balançando para
frente e para trás. Com o passar dos anos foi melhorando e essas crises
estranhas ocorriam apenas ocasionalmente, quando algo o perturbava.
— E o que o perturba? - Perguntou a adolescente, curiosa.
— Não dá para saber o que se passa na cabeça de Mika, ele não é de falar muito
sobre o que se passa em sua mente ou o que sente, acho que despeja tudo nas
letras das músicas que compõem. Tornou-se mais amigável depois de três anos
após a morte da mãe e parecia decidido a viver sozinho, embora todos
soubéssemos o quanto aquilo lhe era dolorido.
— Ele pode machucar a mim e a Elin se estiver surtado? - Perguntou, decidida.
— Menina, já vi Mika surtado enfiado em brigas que fizeram meu coração gelar,
mas nunca o vi agredindo ninguém que gostasse. Mesmo em suas piores crises
sempre foi respeitoso comigo, embora me assustava com sua agitação. Seu rosto
se transforma, parece profundamente perturbado e perigoso.
— Ele estava assim ontem. Uma amiga querida fora assassinada no trabalho. -
Confessou Leah.
— Ele confia em você. Ele gosta muito de vocês duas, não tinha visto mais Mika
com o rosto tão iluminado depois da morte da mãe. Eu não sei o que acontece
com vocês naquela casa, mas seja o que for, está fazendo bem a ele.
— Não acontece nada com a gente naquela casa. - Replicou, nervosa. — Nem
nunca nos tocamos. Veja, nem seio eu tenho direito ainda. - Disse apalpando as
pequenas azeitonas que chamava de peito.
— Você já sangra?
— Sim? - Que pergunta era aquela? - pensou e depois continuou: — Mas, na
escola ensinavam sobre a menstruação, então acho que dispenso seus conselhos
sobre isso.
— Não está mais em Vento, criança. - Disse a velha. — Vou te dar algumas ervas
que fará um chá para tomar uma xícara todos os dias para não engravidar.
— O que? - Perguntou a moça, indignada. — Eu e Mika não transamos e não
vamos.
— Ainda assim vai aprender. - Insistiu a velha. — Quer mesmo colocar um filho
no mundo quando tem sua irmã para cuidar?
— Nunca vou colocar um filho nesse mundo! - Protestou, convencida.
— Então, permita-me te ensinar como fazer. - A velha a olhou e riu ao ver o
cenho franzido e o olhar raivoso que a menina lhe lançava. — Eu acredito em
você quando diz que não está transando com Mika, mas eu também já fui
adolescente e ele é mais velho que você. Logo estará com os hormônios a flor da
pele e a gente nunca sabe quando essas coisas acontecem.
— Mamãe e a escola diziam que não podíamos transar antes do casamento.
— Minha criança, aqui levamos uma vida completamente diferente. Acredite, o
sexo reprimido nos adoece e nenhum deus ficará chateado em você descobrir a
magia mais poderosa desse mundo que esse ato encerra.
— Dona Irene, eu faço tantas coisas no meu dia, que 24 horas é pouco para ele,
não tenho tempo para trabalhar, cuidar de casa, do Mika e da minha irmã e
pensar em sexo.
— Acredito em você. - Disse a velha risonha caminhando para a cozinha.
Leah a seguiu pela casa pobre, mas impecavelmente organizada e limpa. Sempre
com flores artificiais horríveis a enfeitá-la. A velha apresentou-lhe a erva e
demonstrou como tinha que fazer o chá, fazendo a tomar em seguida. Quase
vomitou com o gosto amargo, fazendo um enorme esforço para tomar tudo sob as
ordens da velha.
Enquanto se entupia de tanto beber água para tirar o gosto horrível e pegajoso da
boca, a velha abriu o forno, perfumando a casa com seus maravilhosos biscoitos
doces. Elin, rapidamente atraída pelo cheiro, invadiu a cozinha dando as duas a
impressão de que dez crianças haviam passado pela porta. A velha a serviu com
carinho e disse:
— Mika me disse que vocês são a família dele agora.
Agitou-se com àquelas palavras de tal forma, que quase cuspiu a água que
mantinha na boca, fazendo Elin, sempre observadora gargalhar e fazer algumas
piadas sobre ela. Mesmo com o estômago cheio de água, não resistiu aos
deliciosos biscoitos de Dona Irene e comeu dois. Assim que terminou, perguntou:
— A senhora se importa se eu levar alguns pro Mika e um para os leprechauns
dele?
— Claro que não me importo. - Disse a senhora com um sorriso no rosto. —
Estou feliz que vocês estão cuidando um do outro e sei o quanto aquele traquina
gosta desses biscoitos.
Acomodou os biscoitos num pote plástico e entregou para a moça.
— Vou poder comer desses do potinho também? - Perguntou a pequena.
— Claro que não! - Esbravejou a mais velha. — Esses são pro Mika.
— Faço um potinho para vocês também. - Disse a senhora em sua comum
tranquilidade. — Tem mais no forno e outros na geladeira para serem assados.
— Para quê tantos biscoitos? - Perguntou a pequena com a boca cheia.
— Para vocês. - Respondeu a velha sorrindo. — Estou feliz em recebê-las em
minha casa, vocês afastam a solidão e a depressão dos meus dias solitários.
7 – O som do vento

Naquela tarde fria e cinzenta, Mika fazia sua guitarra chorar, compunha uma
música, a qual os acordes se repetiam vezes sem conta. Quando se sentiu
satisfeito, tocou novamente a guitarra, gravando a melodia num toca-fita velho.
Acoplando o pequeno aparelho num amplificador, sentou-se na bateria e
começou a dar tempo a música.
Sentada numa almofada no mesmo cômodo, Leah mantinha um caderno no colo,
escrevia algumas linhas aleatórias com todo e qualquer pensamento que passava
em sua mente. Lembrou de duas frases famosas, que pareciam agora como um
lema para ela. Para não esquecê-las, anotou no caderno:
“Nada melhor do que descobrir um inimigo, preparar a vingança e depois dormir
tranquilo.”
“Caminho para o meu fim; sigo o meu caminho; saltarei por cima dos negligentes e
dos retardados. Desta maneira será a minha marcha o seu fim!”
A música de Mika era suja e melancólica, nalgum momento, pareceu que a letra
saltou em sua cabeça e cantava com voz gutural. Se alguém de Vento ouvisse
aquilo, acharia que o próprio demônio estava a cantar, estranhou um pouco,
nunca tinha ouvido algo como aquilo em toda vida, a melodia limpa, cristalina e
perfeita, como um coral de anjos, era o que ouviam em Vento.
O caçador não parecia querer cantar como os anjos, nem tocar como eles, suas
mãos eram diabólicas, sua voz era o grito do rei infernal. E aos poucos aquilo foi
se tornando a coisa mais bela que ela já ouvira na vida. A guitarra a chorar
novamente, a melodia era como a escuridão se deitando sobre a terra.
Ele certamente só não fizera Elin tocar bateria para ele, como vinha a ensinando,
porque a pequena saíra com Dona Irene, para comemorar os 11 anos que
completara semana passada. Lembrou-se dos meninos condenados por lerem
livros escritos por Renegados, nunca soube se seguiram com aquela sentença ou
não, depois do ocorrido.
Eles tinham armas poderosas em mãos, a própria arte como um meio para a sua
revolução. Apenas não sabia como poderiam propagar aquilo, que arte seria tão
chamativa e absurda ao ponto de abrir os olhos das pessoas à miséria e terror
que viviam constantemente.
As palavras que saltavam da boca de Mika, enquanto falava entre a melodia sobre
a escuridão que banhava a terra, a terrível escuridão que dava sentido à vida.
Vivera escondida, mesmo cantar não lhe era permitido, dançar fora de casa era
proibido por lei em Vento.
Numa sociedade medíocre, onde a mentira se sustenta, por aqueles que a
repetem como papagaios, difícil é manter-se genuíno. Quando alguns poucos
influenciam muitos, fazendo-os pensar o que eles acreditam que deve passar
pelas suas mentes, é difícil reconhecer quais são os seus próprios pensamentos.
O social como uma forma de intimidação do próprio eu, as pessoas que esperam
que você sempre aja de uma determinada maneira e o abuso de si mesmo,
fingindo, para tentar se encaixar ou pertencer a algo. A música de Mika não
pertencia a nada além dele mesmo. Suas pequenas letras naquela folha, também
a nada pertenciam.
Eram deles e apenas deles. Era o modo como suas almas se expressavam num
mundo cinza e opaco. Como queria naquele momento tocar algum instrumento e
fazer uma música tão horrível que pudesse incitar no mundo o desejo de sua
revolução. Inchar os corações pelo desejo da liberdade.
Não era apenas pelos pais queimados vivos. Era por Dona Irene, era por Mika,
por um mundo onde pudessem ser eles mesmos, onde não tivessem que ver todos
aqueles horrores diários. Não era possível que os Renegados nunca tentaram se
livrar daquela situação, não caberia tanta conformidade no ser humano.
— Está me olhando esquisito, Leah. - Ele disse tão logo parou de tocar.
Ela se levantou e aproximando-se do rapaz que segurava a guitarra em seu colo,
segurou o rosto formoso entre as duas mãos, dizendo:
— Mika, precisamos criar músicas que sejam tão intensas e poderosas, que
incitem a coragem e o ideal no coração das pessoas.
— Você é estranha com suas ideias de guerra. - Disse, deslizando o céu azul
sobre seu rosto. — Isso me preocupa, Leah, todos os que pensaram como você
estão agora sete palmos abaixo da terra. E ninguém vai seguir uma adolescente.
— Não, talvez não sigam uma adolescente mesmo, mas prefiro morrer a me
conformar como você.
— Está tendo uma ideia errada ao meu respeito! - Disse, irritado. — Acha que eu
não quero viver num mundo diferente? Acha que não sonho em ser um músico
famoso? Acha que não me entristeço ao perceber que não existe um mundo para
a minha arte? O problema, Leah, é que revoluções já foram feitas antes, não há
um líder em Nence, as pessoas estão apavoradas.
— E se dermos coragem para elas? E se com a sua música não as enchêssemos
de um desejo por uma vida digna maior do que o medo que sentem? Você faria
isso?
— Faria. Mas, não temos como liderar isso, não temos dinheiro suficiente para
um movimento como esse e nem sei como convenceríamos as pessoas a lutar.
Ele tinha razão, ainda era muito nova para vingar seus pais e tinha que cuidar de
Elin. Por mais que estivesse ansiosa por fazer algo, tinha prometido em seu
coração para a mãe que cuidaria da irmã mais nova. Abandonou o rosto de Mika
e foi para o quarto, deitando-se na cama.
Por todo aquele tempo, sequer se deu o direito de chorar a morte dos pais. Em
seus piores momentos, não podia fazer nada além de deixar a angústia lhe
apertar o peito e encarar os desafios de frente, ainda que tudo o que desejasse
fosse chorar ou ter uma mãe para lhe acalentar.
Elin precisava daquilo, precisava da sua força e por ela não poderia fraquejar ou
cair. Sabia que aquilo a matava a cada dia, sequer Dona Irene, com quem tanto
conversava, sabia como tinha perdido os pais, nem sabia que as mesmas mãos
que habilidosas teciam, foram as mesmas que incendiaram a pilha funerária.
Toda aquela dor lhe corroía por dentro e ela gritava todas as noites, acordando
Mika e Elin, implorando para não os queimarem novamente, contudo tão logo se
perdia na inconsciência do sono, seus pais surgiam na consciência de seus
sonhos, sempre fugindo ou sempre queimando.
Tinha que encontrar uma saída para protestar através da arte, tinha que fazer
alguma coisa a respeito daquilo, nem que fosse uma coisa pequena. Tinha que
fazer aquela ferida sangrar até que não houvesse mais sangue para jorrar ou dor
que lhe fizesse hesitar. Sobreviver era tudo o que tinha para fazer naquele
momento, bem sabia. Mas, não se curvaria, nunca se curvaria.
— Teve uma noite difícil hoje, não foi? Acordei três vezes com seus gritos e
gemidos. - Disse ele sentando-se sobre a cama ao seu lado.
— Desculpa. - Respondeu, embaraçada.
— Não precisa se desculpar com isso. Eu tinha pesadelos horríveis depois que
minha mãe faleceu e até evitava dormir. O que não fora muito inteligente da
minha parte, porque exausto por lutar contra o sono, eu dormia em qualquer
lugar. É muito difícil se ver sozinho num mundo tão vasto e perigoso. - A olhou
com ternura. — Mas, não estamos mais sozinhos, não é, Leah?
— Não, Mika, não estamos mais sozinhos. Temos um ao outro. Mas, eu preciso
fazer algo, eu preciso sentir que estou fazendo alguma coisa a respeito.
Ele se agitou, ela não sabia o quanto o pensamento de perder as pessoas
próximas o afetava negativamente. Não tinha como saber dos pensamentos
turbulentos e repetitivos que surgiam em sua mente contra a sua vontade.
Pensar nela morta por causa daquilo o fazia tremer.
Ele não era um covarde, passou muito tempo pensando em como mudar a vida,
em como conseguir bastante dinheiro para nunca acontecer novamente o que
havia ocorrido com sua mãe. Morrer por uma doença tratável por falta de
medicamento. Ele também odiava aquele mundo e aquela vida.
Ele a contemplou por um momento. Sabia gostar dela, sentia que era sua nova
família, não sabia explicar porquê, talvez por viver por tantos anos sozinho sem
ter alguém para se preocupar com ele ou o acompanhar no café da manhã. Não
negava que aqueles poucos meses foram difíceis.
Teve que se acostumar com o barulho em sua casa, sua falta de privacidade, com
as risadas e brigas das irmãs. Entretanto, sentia que os cantos não eram mais
vazios e que a noite não era um pranto abafado, o vento já não soprava tão frio e
nem os seus despertares assustados. Era como ter sua mãe em casa novamente.
— Nós faremos isso juntos. - Ele disse. — Mas, terá que me prometer que não
ficará falando sobre isso pelos quatro ventos. Promete?
— Prometo que não falarei mais sobre isso.
Ele se deitou ao lado dela, encostando a pontinha do nariz no dela e fechou os
olhos. Desejando tocar os lábios afastados dos seus, numa distância irrisória, ela
procurou desviar o olhar para as pálpebras fechadas. Ele era muito bonito, mas
aquilo não era motivo para beijá-lo. E se o beijasse, ele saberia que nunca beijou
antes.
Que pensamentos eram aqueles? Não, não podia pensar em namorados, ou beijos
ou no toque de Mika. Tinha que lutar por um mundo melhor, tinha que se
instruir, desenvolver um plano, encontrar pessoas com os mesmos desejos
ardentes que os dela.
Sentiu a mão quente penteando seu cabelo, os olhos ternos se abriram e
pousaram sobre o dela. Estavam tão próximos, que ela podia ver cada minúscula
mancha preta nas íris azulada. Fechou os olhos como se aquilo pudesse aplacar
a inquietação que lhe tomava mente e corpo. Disse sem olhá-lo:
— Pode me ensinar a tocar algum instrumento como tem feito com Elin?
— Qual instrumento você quer aprender tocar?
Ela não sabia. Talvez a guitarra poderia ser uma ótima companhia, poderia criar
os sons sujos e revolucionários, como a melodia melancólica de Mika. Talvez ele
também pudesse a ensinar como cantar com aquela voz diabólica. Ela queria
fazer algo que fosse tão terrível, que os Iluminados ao ouvirem, sentissem vontade
de se matar.
— Guitarra. - Disse, abrindo os olhos.
Ele agora apertava o azul delicado num sorriso, sentia-se alegre com a sensação
de ser útil, de poder agradá-la de alguma forma. Levantou-se e com mãos suaves
a fez levantar também.
— Vamos. Vou te ensinar algumas coisas.

8 – O amigo dos leprechauns

Aquele monte de frutas estocadas em sacolas na cozinha minúscula a deixava


ainda mais nervosa do que já estava, sabia que ainda tinha que secá-las e estocá-
las em caixa no minúsculo porão, mas não teve tempo. Demorou-se muito na
casa de Dona Irene para terminar a blusa que fizera para Mika, já que o outono
estava tão gelado em Serpentine e ele tinha poucas para trabalhar.
E naquele momento se via desesperada com o jantar atrasado, ele sempre
chegava faminto e já estava atrasado. Elin já devia ter virado peixe na banheira
novamente e Leah esbravejou com ela da cozinha, insistindo para que saísse do
banho. A irmã retrucou do outro cômodo:
— Vai dar o cu pro capeta!
— Leah! Abre a porta aqui pra mim.
Quis morrer ao ouvir a voz de Mika, a carne estava longe de estar macia para ser
ingerida. Correu até a porta e abriu, olhando curiosa para descobrir o motivo pelo
qual ele mesmo não abriu a porta, nunca pedira para ela abrir antes. O cabelo
loiro reluziu sob a luminosidade artificial da casa e não acreditou ao ver que Mika
trazia um colchão consigo.
— Precisa de ajuda? - Ela perguntou.
— Não é necessário. - Respondeu uma voz que lhe era desconhecida.
Afastou-se da porta para deixá-los passar e assim que fechou, virou-se para
observar o rapaz que estava com Mika. Era claramente mais velho que o loiro, o
cabelo negro como ébano, escorria-lhe longo sobre as costas, alto e musculoso,
mas com o corpo harmonioso.
Colocaram o colchão sobre a cama de Mika, que animado a puxou pelo braço
fazendo-a entrar no pequeno quarto, estendendo a mão num convite para olhar o
colchão, como se ela não tivesse visto peça tão grande antes. O colchão seminovo
estava jogado sobre a cama de Mika e estava em ótimo estado. Ele a encarou
sorridente e disse:
— Presente para você.
— Onde arrumou dinheiro para comprar isso? - Ela perguntou, confusa.
— Ah, não compramos. Um senhor do meu trabalho pediu para que eu
consertasse a televisão para ele e vi esse colchão na varanda, perguntei o que
faria com ele e disse que jogaria fora. Perguntei se podia levar e ele disse que sim.
Aí pedi pro Andrei me buscar com o carro para trazermos o colchão pra casa.
Ela acenou para o rapaz. Os olhos tão negros quanto o cabelo pousou sobre o
rosto delicado da menina, o cavanhaque bem modelado, parecia embelezar ainda
mais o rosto apessoado. Ele estendeu a mão para ela e ela o cumprimentou com
um aperto. Virando-se para Mika, disse:
— Desculpe, Mika, mas me atrasei com a janta hoje.
— Não tem problema. Eu e Andrei vamos tocar um pouco.
— Dionísio do Olimpo, de onde surgiu tanto homem? - Gritou Elin, ao colocar a
cabeça para fora da porta e batê-la em seguida, a fechando. — Leah, traz a minha
roupa! - Gritou.
— Falei para você não morrer no banheiro! - Esbravejou a irmã, pegando as
roupas da pequena e abrindo uma pequena fresta da porta, passando as roupas
por ela.
Mika seguiu com Andrei para a sala, onde após ligar o velho amplificador,
conectou a guitarra e pedal da mesma. Olhou para Leah que logo passou pela
sala, claramente preocupada com a janta e sorriu. Sabia que ela devia estar feliz
por causa do colchão, só estava com cara fechada porque acreditava que
estivesse bravo com ela pelo atraso da janta.
— Tenho uma música que ainda estou trabalhando nela, mas não tenho tido
muito tempo para me dedicar.
— Sempre te disse para não deixar essa vida insana que levamos te consumir. É
a arte que nos mantém são, Mika. - Disse o mais velho.
A melodia que para Leah já era conhecida, preencheu o ambiente, seu divino som
sujo, melancólico e harmonioso. Observava impaciente a carne que borbulhava
no molho amarelado, demoraria para ficar pronto. Fechou os olhos, os acordes
pareciam alimentar sua alma e se deixou levar numa tímida dança diante do
velho fogão.
Andrei estava admirado, embora não lhe fosse estranho, mas Mika era tão
criativo que todas as vezes que lhe mostrava algo novo, o moreno tinha esse
mesmo sentimento de deslumbre e maravilhamento.
— Isso é maravilhoso, Mika.
— A melodia veio durante a noite, quando acordei assustado com os gritos de
Leah. Enquanto observava ela cair no sono novamente, após o pesadelo dela, a
melodia tocou em minha mente, como se inspirada por aquele momento. Quando
perguntei a Leah semana passada que nome ela daria para essa música, ela me
respondeu que ela lembra escuridão. E assim dei o nome de “Escuridão”.
Contudo não trabalhei nela como deveria. Pensei em acompanhar a melodia com
o piano, mas simplesmente não consegui parar para isso.
— Toca novamente. - Pediu o mais velho interessado, sentando-se ao velho piano
vertical encostado na parede da porta, ao lado do tear de Leah.
Mika se colocou a tocar novamente a melodia, em pouco tempo as notas doces do
piano passou a acompanhar todo som sujo da guitarra. Elin muito animada,
sentou sobre a bateria que passava horas desde que se mudaram e com batidas
simples, começou dar à música, tempo.
— Por Apolo, que nos abençoe sempre com a música, essa criança achou a batida
perfeita para isso! - Disse Andrei.
Mika olhou para Elin deslumbrado. Não era nada muito arranjado, mas era
perfeito para a melodia melancólica e lenta. A criança orgulhosa bateu palmas
para si mesma e gritou:
— Aqui é Dionísio, porra!
— Elin, não fale palavrão com visita em casa! - Esbravejou Leah na cozinha.
Ela fez que a estava a remedando, fazendo caretas, o que fez Mika rir, deixando
Leah ainda mais nervosa na cozinha, pois não precisava olhar para saber o que
estava acontecendo. Andrei se ajeitou ao piano novamente, dizendo:
— Concentração, vamos começar de novo.
E lá chorou a guitarra de Mika novamente, com Elin acompanhando o tempo
perfeitamente, surpreendendo a todos. Andrei parecia saber o momento certo,
esperava que Mika terminasse o curto solo introdutório e dar um pouco mais de
peso e melodia aos riffs, para então, ele inserir as notas doces do piano.
Deixando a panela, envolvida pela melodia, passou por eles, deitando o olhar
sobre Mika, o cabelo loiro parecia querer tocar com ele, lambendo a velha
guitarra cheia de adesivos. Andrei no piano vertical, balançava-se para trás e
para frente, como se a ritmo tivesse possuído seu corpo. Apenas Elin, que
concentrada, colocava a língua para fora apertando contra o canto da boca.
Ela retirou o caderno do pequeno criado-mudo caindo aos pedaços que ficava
entre a cama de Mika e a cama que dividia com Elin, levou-o para a cozinha e
sentou-se à mesa. Com a caneta em mão, começou a deslizar o punho sobre a
folha, deixando a melodia guiar seus dedos.
Fui forjada no fogo e no gelo,
Sou o vento que beija o pinheiro,
Sou a chama que queimará seu reino,
Seu deus, suas sandices e seus mandamentos.
Nasci mulher, mas sou guerreiro,
Sou a fornalha ardente na mão do ferreiro,
Sou a escuridão que ao deitar sobre a terra,
Te lembra que nasci para incitar a guerra.
Eu não me ajoelharei, jamais me curvarei,
E quando me arrastar sobre vocês em matança,
Serei a poderosa deusa em sua sangrenta dança
E ao ver mesma dor que senti em seus olhos, sorrirei.

Os minutos se arrastaram naquilo, cantaram e tocaram repetidas vezes. Leah


dividia a atenção entre o fogão e palavras soltas na folha. Entediada, parou sob o
batente da porta da cozinha e os olhou tocar. A garganta coçava com vontade de
cantar, mas satisfazia-se com eles.
Estava orgulhosa de Elin, a pequena lidava tão bem com a bateria e havia tanta
paixão em seus movimentos, que sentiu por um momento que a vida parecia
muito melhor para elas agora, podiam ser mulheres e ainda fazerem qualquer
coisa que quisessem.
Os olhos de Mika, que antes flertavam com a guitarra, caíram extasiado sobre o
rosto belo da garota, não havia pensamentos em sua mente, apenas o rosto dela a
fitá-lo com seus olhos tão verdes quanto o bosque na primavera. Desejou que
olhasse para ele com tanta admiração, quanto olhava para a irmã.
Ao finalmente concordarem em abandonar os instrumentos, Leah se lembrou da
panela no fogo como se tivesse saído de um transe hipnótico. Correu para o fogão
e nem se deu conta quando os três sentaram-se à mesa, conversando e rindo.
Andrei olhou para o caderno aberto e leu a primeira linha do poema que ela
escrevera.
Não resistindo, mesmo sabendo que era um gesto invasivo, leu-o todo.
Perguntando em seguida:
— Estamos indo à guerra?
Curioso, Mika tomou o caderno da mão do amigo e leu o poema. Tão logo
terminou a leitura, pousou o olhar severo sobre ela, levantou-se da cadeira e
andou de um lado para o outro resmungando. Apreensiva pelo comportamento de
Mika, Leah respondeu a Andrei:
— Sei que não posso fazer muito agora além de sobreviver, mas pra mim tudo é
apenas uma questão de espera. Mika está me ensinando tocar guitarra, porque
quero através da arte incitar o desejo de libertação nos corações dos Renegados.
— Leah, você me prometeu! - Disse Mika, nervoso, apontando o indicador para
ela.
— Está reclamando do quê, Mika? - Interveio Andrei. — Se você mesmo sempre
quis algo assim?
Mika levou o indicador aos lábios num sinal de silêncio. Leah olhou para Andrei
que ficou em silêncio a pedido do amigo. O olhar fulminante do caçador a partia
ao meio.
— Não precisa mais se esconder aqui. - Disse Andrei, quebrando o silêncio. —
Temos uma vida difícil e miserável, mas todos nós podemos nos expressar como
quisermos em nossa arte. Todos os Renegados estão cientes do que a arte faz pela
nossa saúde mental e todos os artistas são incentivados a fazer qualquer tipo de
arte.
— E os Iluminados e Puros? Eles não nos punem por isso? - Perguntou Leah,
curiosa, procurando não olhar para Mika, que ainda a encarava.
— Não. Antigamente era comum que os Iluminados quisessem impor suas
loucuras dogmáticas aqui, mas desde que Nizand fez um contrato com eles para
também usufruir de nossa produção e mão de obra, esses assentiram em não
intervir no modo como levamos nossas vidas, desde que nossas artes não sejam
consumidas em nenhum dos dois grandes estados.
— Como se a gente estivesse preocupado em dar-lhes o que fazemos de melhor. -
Comentou Mika, sem desviar o olhar dela.
— Devíamos. - Disse Leah.
Os dois a encararam.
— Sim, devíamos fazer músicas sujas como a que fizeram agora, uma música tão
horrível e tão cheia de verdades, que os fizessem querer morrer ao perceber a
miséria e loucura em que vivem. Poderíamos incitar e motivar as pessoas com
essas músicas, enchê-las de coragem e do desejo de lutar por uma vida digna.
Mostrar os deuses pagãos, o poder da nossa magia, a alegria de uma vida com
sentido, o poder de se ter o espírito livre, que nenhum deus, na terra ou no céu
poderá subjugar, o que dizer então de homens.
Andrei e Mika entreolharam-se em silêncio. A moça não disse mais nada e logo se
pôs a preparar o prato para servir a pequena, que continuava batendo na mesa
com o garfo e faca como se ainda estivesse tocando bateria, como se
absolutamente nada estivesse acontecendo ali.
Concentrada no que fazia sobre a pia, picando a carne para ficar mais fácil para a
irmã comer, ouviu o bater de um bico no vidro da janela da cozinha e observou o
corvo que lhe chamara a atenção. Virou-se para olhar os três que conversavam
animados sobre a mesa e por algum motivo, um anel com uma pedra negra que
Andrei usava, brilhou. Nesse exato momento o corvo bateu novamente com o bico
duas vezes sobre o vidro e voou.
Colocou o prato diante da irmã, enquanto colocou-se a se servir. Não prestava
atenção sobre o que os dois amigos conversavam e tampouco porquê Elin
xingava. Olhava discretamente para Andrei, sabia que o corvo lhe dissera que ele
era importante, embora ainda não estivesse claro para ela porquê.
Ela viu o vulto de uma mulher que subitamente parou sob o batente da porta e
apenas Andrei se virou para trás para olhá-la também. Observadora, viu que ele
havia percebido a presença do espírito, enquanto Elin e Mika comiam distraídos.
— Pandora. - Ouviu o nome como se sussurrado ao vento.
— Acho que Pandora é importante. - Leah disse, levando o garfo à boca.
— Que Pandora? - Perguntou Mika, confuso.
— Não sei. Não conheço nenhuma Pandora, mas ouvi esse nome no vento.
— Também não conheço nenhuma Pandora. - Disse o amigo de Mika. — Mas,
guardarei o nome comigo. - Depositou os olhos negros e frios sobre o rosto da
jovem.
— Vou guardar também. - Disse Elin, derrubando comida sobre a roupa limpa.
— Você vai é aprender a tocar bateria direito. - Ordenou Mika.
— Vai me ensinar mais, traste? - Perguntou a pequena, animada.
— Quem ensinou essas palavras a ela? - Perguntou Andrei, rindo.
— Sempre foi assim. - Respondeu Leah, bebendo um pouco de água. — As
primeiras palavras que aprendeu a falar foram: mamãe, papai e filha da puta.
Todos gargalharam com a informação.
— Acho que foram os encostos que a acompanham que ensinaram para ela.
— Sátiros! - Esbravejou a pequena. — Eles são livres, falam o que quiser e o que
dá na telha. Mika disse que posso falar palavrões aqui!
— E desde quando Mika tem poder sobre você?
— E você tem? - Perguntou o moço, rindo.
— Ninguém tem poder sobre mim! Eu sou o poder. - Elin levantou o garfo e a
faca, franzindo o cenho como se fosse muito perigosa.
— Vocês são bruxas de nascença? - Perguntou Andrei.
— Somos.
— São raras, mas já encontrei algumas aqui em Nence. Aliás, algumas pessoas
farão em breve a celebração de outono para os mortos.
— Prefiro não me comunicar com os mortos. - Disse Leah, inquieta.
— Ela sempre conversou com os mortos, eles a obedecem, lhe contam coisas.
Mas, depois que papai e mamãe morreram, ela não quer mais saber deles. - Disse
Elin.
— Fica quieta! - Exclamou.
— Estou mentindo?
— Não, só falando demais como sempre. - Disse, franzindo o cenho.
— Bem, aproveitando que estou aqui, deliciando-me com essa comida
maravilhosa. Vou aproveitar o momento para me despedir de você, Mika.
— Do que está falando? - Perguntou o outro, ficando claramente agitado.
— Contrataram-me para trabalhar como criado numa casa em Nizand. Você sabe
que pagam melhor quando trabalhamos lá. Acharam-me culto e apessoado, bom
para o cargo de criado. - Riu. — Chega ser cômico de tão trágico.
Leah se sentiu agitada duplamente com aquela conversa. Primeiro por perceber a
agitação de Mika e segundo porque o corvo e a morta queriam dizer algo sobre
Andrei, que ela ainda não tinha conseguido decifrar. Se não tivesse se fechado
para o mundo dos mortos, certamente saberia.
Por um curto período após a tardia refeição, Leah levou a pequena para tentar
fazê-la dormir, para que tivessem um pouco de tranquilidade. Como sempre
sentou-se ao seu lado, abriu um livro qualquer de Mika e se pôs a ler para ela.
Os dois continuaram na cozinha, Mika serviu um pouco de hidromel para ambos
e quase engasgou quando Andrei perguntou:
— O que foi aquilo? Por que a estava reprimindo?
— Não estou reprimindo ninguém! - Disse o outro incomodado.
— Sim, você está. Vai me dizer que se apaixonou por ela? Não achei que quando
disse que tinha encontrado uma família, você o dizia literalmente.
— Sim e não. Está me deixando com a mente cansada, Andrei. - Disse, irrequieto.
— Sabe que nunca me apaixonei por mulher alguma.
— Até agora. - Disse, irônico. — Mika, não pode temer gostar das pessoas ou
superprotegê-las apenas porque algo que estava muito além de seu controle
aconteceu.
— Ah, veja só quem fala. - Disse o caçador. — Como se você tivesse lidado com
tudo muito bem quando perdeu sua família também.
— Mika, você sabe o poder que teríamos com bruxas de nascença numa
revolução?
— E você sabe quem eles tentariam matar primeiro se houver bruxas de
nascença numa revolução? Hã? Os esfomeados moribundos que são abundantes
por aqui que não.
— Por Hella! Você está apaixonado por ela! - O amigo gargalhou. — Nem eu estou
acreditando que alguém conseguiu fisgar o coração do garanhão. Jurei que você
passaria a vida com todas as mulheres implorando para ficar com você, sem que
você desejasse viver com nenhuma delas.
— Fica quieto! - Disse Mika, levando o indicador a boca. — Se ela ouvir essa
loucura vai achar que o que diz é verdade.
— E não é?
— Não. - Esbravejou. — Se não formos conversar sobre outra coisa, eu vou te
mandar embora. Já me basta saber que você está indo embora. Não precisa me
cansar mais do que já estou.
— Está certo. Me dá uma folha para que eu possa te passar a partitura do que fiz
no piano quando estávamos tocando mais cedo.
Elin estava tão animada, que demorou muito para pegar no sono, fazendo com
que Leah sequer se despedisse do amigo de Mika quando esse deixou a casa.
Estava cansada, nem queria pensar sobre como ele devia estar se sentindo com
relação a sua promessa fajuta. Era melhor se deitar e resolveu ir à cozinha para
beber água antes.
Mika estava sentado solitário à mesa, tamborilando os dedos na madeira escura e
se balançando para frente e para trás. Depois de conversar com Irene, sabia o
quanto despedidas eram difíceis para ele, por mais que ela mesma tivesse
escutado de Andrei que ele o visitaria sempre que possível.
Como ele fizera anteriormente, ela se aproximou e encostou o nariz sobre o dele,
fazendo com que derramasse o azul de seus olhos sobre o rosto delicado da
menina. Ela preparou rapidamente a marmita dele, foi para o quarto, jogou o
colchão novo sobre o chão e retornou a cozinha, o guiando para o quarto em
seguida.
Deitaram-se sobre a cama de Mika em silêncio, ela encostou o nariz dela sobre o
dele e a envolveu num abraço. Não seria ela que tocaria no assunto da promessa,
já que ele sequer falava sobre isso, apenas queria fazer com que sentisse melhor e
que não a odiasse por aquilo.
Lutou contra o sono para não dormir novamente antes dele. Contudo, Mika
parecia também lutar contra o sono e sempre que abria os olhos cansados, via-se
observada pelos grandes olhos do rapaz.
Sua tentativa de não dormir não dera muito certo, por mais que lutou por longos
minutos para não adormecer antes, Mika era resistente e a contemplava
incansável.
Após ver Leah cair no sono, ficou por um longo tempo a olhando. Será que Andrei
estava certo sobre aquilo? Será que finalmente alguém fisgara seu coração? De
todo modo, olhá-la, sentindo o toque suave de seu rosto no dele, o acalmava,
fazia sentir que a vida valia a pena.
Se aquilo era amor, ele já não sabia dizer. Sabia que ela só estava ali porque
percebera sua agitação, ela parecia saber o que ele sentia, sim, ela sempre sabia
o que sentia.
O membro ereto, enquanto se deliciava com o cheiro da moça, denunciava o
desejo que sentia por ela. Entretanto, não ousava sequer beijá-la. Enrolava com
cuidado o dedo no cabelo ondulado e se recusava a se mover, mesmo se o corpo
doesse, mesmo se impetuoso se agitasse em espasmos involuntários.
Sabia que seus hormônios estavam a flor da pele e que era difícil se conter. A
desejava mais do que tudo, os pensamentos lhe invadiam a mente, imaginando-a
nua, mas não podia se deixar levar. Temia que ela se chateasse com ele, jamais
se perdoaria se fizesse algo que fizesse com que ela e Elin fossem embora. Sem
mais despedidas.
Gostaria de dizer isso a ela. Não queria se ver como um repressor, queria que elas
pudessem ser livres e serem elas mesmas. Entretanto, aquele maldito medo que
sentia sempre que pensava em alguém que gostava indo embora o fazia agir de
forma impensada.
Não, não suportava mais ver as pessoas indo embora de sua vida. Sentiu os
músculos tensos, contemplou o rosto sereno que ainda mantinha-se encostado
ao seu. Não, Leah era muito nova ainda e estava triste pelos pais, sim, ela ficou
inquieta quando Elin falou sobre eles.
Nem soube dizer quando dormiu, mas Leah não estava mais na cama quando
acordou e o cheiro do chá que perfumava a casa, dizia onde ela estava. Entrou no
banheiro, o membro ainda ereto, as imagens pervertidas lhe saltando novamente
à mente. Aliviou-se ali mesmo, masturbando-se e se imaginando com ela.
Sequer se importou com o frio intenso daquela manhã de outono, fechar os olhos
e imaginá-la nua em todas as posições possíveis lhe aquecia. Melhor seria se ela
estivesse ali, estava tão perto, dormiu com ele a noite inteira. A parede
embolorada do banheiro sujou-se com o gozo, que cuidadosamente limpou.
Sentou-se à mesa, onde a moça o esperava para o costumeiro desjejum. O deixou
por um momento, voltando-se em seguida e dizendo enquanto lhe mostrava a
blusa de lã que tecera para ele:
— Fiz para você.
— É linda. - Disse se levantando e vestindo a blusa vinho em seguida.
Ela colocou o pote com os biscoitos doces de Irene e saltitante, Mika correu com
um biscoito em mãos para seu pequeno altar de madeira na sala, onde
costumava deixar seus doces como oferendas para os leprechauns. Acendeu a
vela ao lado do doce e sorridente retornou para a cozinha.
— Hoje será um dia bom. Se não dou doce para os leprechauns coisas horríveis
acontecem. Não posso mais deixar que isso aconteça.
— Você se sente mal quando não lhes dá doces?
— Ah sim, fico perturbado o dia inteiro, apenas esperando pela coisa ruim
acontecer. Mas, se ofereço os doces para eles, fico em paz. É ótimo quando
ofereço doces para eles logo de manhã antes de sair de casa, não fico tremendo e
nem com medo de tudo, porque eu sei que tudo vai ficar bem porque eles estão
alimentados.
Ela o olhou pensativa. Como lidaria com aquilo? Como fazê-lo se sentir melhor
com aquilo?
— Está me olhando engraçado. - Comentou antes de enfiar um biscoito inteiro na
boca.
— Não estou não. - Respondeu embaraçada, servindo-se de mais chá.
9 – Pandora

Enquanto caminhava pelas ruas limpas e tranquilas do bairro que o endereço no


papel lhe indicava, Andrei passava a mão sobre o rosto estranhando a suavidade
da pele. Há tanto tempo se acostumara a usar barba que o rosto glabro lhe era
alheio. Entretanto, era um requisito da família que o contratara que mantivesse
sempre uma excelente aparência.
Alguns poucos passantes apressados caminhavam pelas belas calçadas, sempre
ornamentadas como uma continuação dos belos jardins que se erguiam das
casas oponentes. O vento frio acaricia os cabelos negros, enfiou as mãos no
trench coat que seu empregador lhe dera para vestir, tão novo que lhe fazia sentir
desconcertado.
Atravessou a rua, segurando o guia que segurava na mão para se localizar
naquele lugar desconhecido. Um homem de cabelos tão amarelos quanto o sol de
verão, fitou-o com os olhos claros e riu-se, enquanto segurava seu celular
moderno, há muito não via alguém usando aqueles velhos guias de bancas de
jornais.
Andrei respirou fundo, tentando não se abalar com aquilo, era um Renegado, o
que um Puro como aquele poderia esperar dele? Não andaria num carro moderno
blindado usando GPS. O que não o deixava esquecer da injustiça que eles viviam
na maior parte do tempo, no meio de duas potências entre ciência e religião.
Olhou para a placa num pequeno poste de metal que informava o nome da rua
onde estava, que era exatamente a rua onde deveria estar. Aquilo o fez suspirar
aliviado, já estava andando naquele lugar por horas, tentando encontrar a casa
onde trabalharia.
Voltou-se para a enorme mansão que se erguia imponente ao seu lado, na
esperança de ver o número. As casas ali não tinham muros, Nizand gozava de
uma segurança invejável e seus sistemas de alarme e proteção eram tão
modernos que ele sequer sabia como funcionavam. Entretanto, lá estava o
número, numa bela estátua e seguiu adiante conferindo a numeração.
Finalmente encontrou o lugar. Era murada, ao contrário das outras, com uma
cerca viva baixa e um portão duplo com grades de ferro, com duas letras iniciais
do sobrenome da família. Seu agente dissera que eram dois cientistas renomados
e poderosos. Ricos mesmo para os padrões de Nizand, onde a maioria dos
cidadãos tinham rendas semelhantes.
Apertou o interfone e informou sobre sua chegada. Esperou diante do portão,
com as mãos agitando-se nos bolsos. Uma mulher de bela aparência vestindo
blazer e saia, equilibrando-se nos saltos, abriu o portão para ele, dizendo:
— Sou Adriene, secretária dos Castiel e Werneck. Andrei Lieman, certo?
— Sim. - Respondeu, passando pela fresta do portão que a moça abrira.
Seguiu-a por uma pequena estrada, com enormes pedras quadradas que
saltavam límpidas sobre a grama volumosa. A pequena estrada que levava para a
casa era ladeada por arbustos, delicadamente podados, dando uma beleza verde
por todo o caminho.
A casa parecia ter saltado de um sonho, de três andares, numa arquitetura
moderna. O segundo andar da parte frontal da casa, tinha longas vidraças de
tons azulados, com um baixo parapeito, numa bela construção e trança de
madeira e concreto, branco como toda a parte externa casa, que protegia uma
extensa sacada.
Viu uma mulher que segurava um aparelho eletrônico na mão, os cabelos
penteados em delicados cachos, caia sobre o corpo belo e esguio, numa mistura
de tons alourados e acobreados. Ela lhe direcionou o olhar, de onde estava, não
conseguia conferir os olhos azuis que o fitava, mas sabia serem claros.
Ela se debruçou sensual sobre o parapeito, tornando a olhar para o aparelho
eletrônico, enquanto esboçava um meigo sorriso, tingido pelo vinho do batom, os
seios volumosos e proporcionais desejavam serem vistos no decote não tão
discreto de seu vestido preto. Era tão linda que parecia uma Afrodite moderna.
Adriene começou a falar sobre o trabalho que ele desempenharia, enquanto
adentrava apressada pela porta pesada de madeira da casa, deixando-o tonto
com todos os móveis finos e caros que ornamentavam a sala ampla. Tentava se
concentrar no que a mulher lhe dizia, sobre todas as regras da casa, enquanto
seguia acelerada com o seu salto a bater sobre o belo piso de madeira.
Lançou um olhar rápido sobre a porta aberta que anunciava a sala de jantar,
uma enorme mesa em jacarandá, enfeitada apenas com uma pequena toalha
num artesanato fino e requintado, onde um vaso que devia valer mais que sua
própria vida a sustentar flores frescas e um belo lustre de cristal que pendia
delicado acima das flores.
— Entendeu? - A mulher lhe perguntou, fazendo-o desviar o olhar deslumbrado
da beleza e requinte daquela casa.
Ele concordou, embora nem tivesse ouvido direito o que ela lhe dissera. Estavam
para descer por uma escada de concreto, com um piso frio e num branco tão
impecável que pensou que as criadas deveria limpá-lo a cada hora. Entretanto,
um homem lhe lançou a palavra, fazendo Adriene parar abruptamente:
— Senhor Becker, em que posso ajudá-lo?
Andrei olhou para o homem e não acreditou no que seus olhos viam, ele parecia
terrivelmente com Mika, certamente o amigo ficaria com aqueles exatos traços
mais velho, exceto pelo cabelo curto e finamente penteado, que mostrava sua
nobreza e elegância.
O relógio de pulso de Adriene apitou, enquanto ela ouvia o que homem tinha a
lhe dizer. Com elegância, pediu ao homem esperar um momento, entrou numa
das milhares portas que havia naquele corredor, aparecendo em seguida com
uma pequena bandeja de prata, entregando-lhe para Andrei, que observou o
pequeno copo plástico com alguns comprimidos dentro.
— Siga por esse corredor e encontre uma mulher chamada Aly e peça para que
ela lhe dê o copo e a jarra de água. No segundo andar tem uma porta com um
uma pequena placa de madeira escrita “não perturbe”. Dê esses medicamentos
para a moça, está com problemas pneumológicos. - E tocando o braço do homem,
disse: — Siga-me, por favor, Sr. Becker, resolverei isso para o senhor.
Andrei se esgueirou perdido pela enorme casa, encontrou Aly, que o vendo com a
pequena bandeja, logo retornou colocando um copo de cristal e uma garrafa
similar com água, sem lhe direcionar a palavra. Ele se esgueirou, perdendo-se
novamente pela enorme casa, mas logo encontrou a escada que dava para o
segundo andar.
Os degraus numa combinação harmoniosa entre concreto e madeira, com o
corrimão em vidro foram um desafio para ele que tentava equilibrar a bandeja,
com os olhos vidrados nos quadros que decoravam a parede branca. Deu num
extenso corredor, mas com poucas portas e não fora difícil encontrar o lugar
indicado.
Bateu à porta e para o seu espanto a mulher que há pouco vira debruçada no
parapeito abriu a porta. A mulher admirou a beleza de Andrei e aquilo foi tão
nítido que ele se enrubesceu. O cabelo preso num rabo de cavalo baixo, com o
laço a escorregar nos fios lisos, tentavam escapar pelo rosto lívido.
Ela fez sinal para que ele entrasse e Andrei sentiu o coração disparar, quando
ouviu o som abafado da porta se fechando atrás deles. Ela se sentou sobre a
cama enorme, coberta com um manto acolchoado e fofo, com milhares de
travesseiros a ornamentar a cabeceira. Passando a mão nos cabelos brilhantes e
sedosos, disse:
— Agora é você que me trará essas pílulas repulsivas?
— Não sei, senhora. - Respondeu, tímido.
Ela maneou a cabeça, num gesto para que colocasse a bandeja sobre a mesa de
cabeceira e assim que o fez, virou-se na intenção de se retirar do quarto. Ouviu a
voz da moça que parecia uma melodia junto com o barulho da água batendo no
fundo do copo:
— Ainda não te dei permissão para se retirar.
— Desculpe, senhora. - Disse, virando-se para ela, fazendo exatamente como o
agente ordenara.
— Pode me chamar de Pandora.
Ao ouvir aquele nome, ergueu o olhar de forma instintiva ao lembrar-se de Leah.
Ela fazia uma careta engraçada ao engolir o medicamento que a mãe conseguira
com a alegação de que a filha estava estressada com os estudos. Os olhos de
Andrei se voltaram para a água no copo, que se remexia em círculos dentro do
copo imóvel.
Observando os olhos perplexos que fitavam o copo, Pandora baixou o olhar para a
água onde viu o rosto dele, que se desvaneceu com nuvens escuras passando
velozes, anunciando uma terrível tempestade. Assustada com a visão, deixou o
copo cair no chão.
Andrei se aproximou agitado, agachando-se para pegar os cacos de vidros e
ergueu o olhar para as mãos da moça que caíram sobre as coxas grossas,
apertadas pelo vestido, tremendo incontroláveis. Segurou a mão dela por
impulso, arriscando a própria vida por isso, era estritamente proíbo tocar em
seus empregadores.
Os olhos se encontraram, perturbados. Ele sabia, já tinha as visto antes, tinha
visto duas pequenas há poucos dias, ela era uma bruxa de nascença, estava
certo. O que deveria ser um pesadelo para ela na sociedade na qual estava
inserida.
— Desculpa. - Ela disse, sem retirar as mãos do calor dele.
— Esses remédios são mesmo para um problema pulmonar? - Arriscou, aflito.
O assombro permeou os olhos dela. Agitada, soltou-se das mãos cálidas e se
levantou abrupta.
— Claro. Não tenho nenhum outro motivo para me medicar se não estivesse
doente.
Ele continuou recolhendo os cacos tentando se decidir se insistiria naquele
assunto. Estava pisando em terreno perigoso, sabia. Assim que colocou todos os
cacos de vidro sobre a bandeja, levantou-se e a olhou. Continuava agitada,
tamborilando os dedos sobre a penteadeira.
— Pode se retirar. - Ordenou a moça, altiva.
— Quer que eu peça para alguém vir secar o quarto?
— Não precisa.

10 – A loucura

A neve caía pesada, afastando consigo qualquer ideia de vida. Pandora olhava os
pequenos flocos brancos que rodopiavam com o vento bem diante da vidraça de
sua janela. Há dias não tirava o pijama e raramente deixava o quarto. Ter
trancado a faculdade a pedido da mãe a angustiara.
Pior do que aquilo, eram as visões e seus sonhos. Desde que Andrei chegara a
sua casa, todas as noites sonhava com ele, sempre o mesmo sonho, onde o via
entrando numa gruta que tinha uma longa escada e ela sempre o perdia de vista
em sua descida.
Seu rosto num momento ou outro aparecia sobre a superfície da água, muitas
vezes a assustando. Não conseguia compreender porque aquelas coisas
aconteciam com ela, mas aquilo a preocupara tanto, que passou a evitar ver o
criado em sua casa.
Sua família tentava esconder aquelas visões, acreditavam que talvez sofresse de
esquizofrenia e um Puro, não poderia se dar ao luxo de ter um diagnóstico
daquele. Antes de Andrei, costumava ficar em qualquer lugar da casa, contudo
vê-lo lhe deixava tão inquieta que se trancara há dias no quarto.
Preguiçosa, arrastou-se até a janela, colocando as mãos delicadas sobre o
batente. Os flocos brancos eram hipnóticos, a água glorificada pelo inverno,
passou a mão sobre o vidro que se embaçou com sua respiração.
A mão que deslizava sobre o vidro gelado chamou-lhe a atenção para os flocos de
neve que subitamente passaram a fazer o mesmo movimento. Assustada
permaneceu imóvel e observando a neve, percebeu que agora ela caia em seu
próprio ritmo.
Escorregou a mão no vidro para a direita e para seu espanto, os flocos fizeram o
mesmo movimento, parando ao que ela descansou a mão. Foi fazendo isso
lentamente de um lado para o outro, apenas para confirmar que os flocos
cristalinos seguiam seu ritmo.
Aquilo não poderia acontecer, a mãe devia estar certa, era loucura. Com as mãos
trêmulas, afastou-se da janela dando alguns passos para trás, com os olhos fixos
na janela. A neve dançar em devoção ao movimento dela era um belo prenúncio
do fim. A morte certamente lhe sorria.
Saltou-se ao ouvir as batidas intensas da mãe sobre a porta trancada. Estava tão
atordoada com aquilo que não conseguia sequer atender a mãe. Sempre muito
discreta, a mãe deixou o local e logo voltou com uma chave reserva, abrindo a
porta do quarto.
Katia precisou dar uma inspiração profunda antes de se mover em direção da
filha estática. Já acostumada com aquelas situações que pioraram nos últimos
três anos, parou diante da moça e tocou seu rosto, fazendo Pandora depositar o
olhar opaco sobre ela.
— Está tudo bem, filha?
— Claro que não! - Esbravejou a moça jogando-se sobre a cama aos prantos.
Katia preocupada, deu alguns passos apressados para fechar a porta e abafar os
sons, detestava que os criados soubessem do drama que estavam passando desde
que Pandora adoecera. Ela não merecia aquilo, além de estar estressada com seu
projeto científico com Becker, que era outro maluco, ainda tinha que lidar com a
filha naquele estado.
Afastou os livros que estavam jogados sobre a cama macia, encontrando um
espaço para sentar ao lado da moça, que se agarrava a um travesseiro,
apertando-o contra o rosto vultoso e aflito. Desajeitada, acariciou as costas da
filha, dizendo:
— Estive pensando. Talvez seja melhor te enviarmos para a casa de campo,
dizemos aos repórteres que você está indo para a zona rural, pois te fará bem
para a doença pulmonar, respirar o ar limpo do campo, pois você tem piorado
muito aqui na capital.
— Mãe! - Exclamou. — Você está tentando se livrar de mim?
— Estou tentando te manter viva. - Disse a mulher, nervosa.
— Claro que não, está tentando esconder de todos o que está acontecendo com a
gente para manter sua carreira e de papai intactas. Para começo de conversa, por
que tem que dizer tudo aos repórteres?
— Não tenho culpa do sucesso de nossa empresa, Pandora. - A mulher disse,
impaciente. — Preciso que você fique com boa aparência, porque jantará com a
gente hoje e Becker é nosso convidado. E ele não pode suspeitar de nada além de
que está com um sério problema pulmonar. Fingir que está tossindo ajuda.
Pandora depositou um olhar indignado sobre a mãe.
— Embora. - Continuou a mulher, abrindo o closet de Pandora para lhe escolher
uma roupa. — Todos sabemos que Becker ficou meio doido desde que aquele
bastardo dele foi embora. Oh, sim, tenho que dizer que o bastardo está morto.
Parece que aquela renegada insolente conseguiu esconder bem as coisas do filho,
porque nunca voltou para procurar o pai.
Jogou dois modelos diferentes de vestido sobre a cama da filha e continuou:
— Mas, é sempre um risco. Já pensou se descobrem que Becker tem um bastardo
em Nence e eu uma filha maluca?
— Você não precisa me dizer essas coisas! - Implicou Pandora evitando olhar
para a mãe.
— Ah, claro que preciso. Preciso te lembrar que a Castiel & Werneck é a maior
empresa de Nizand e que a nossa imagem deve ser mantida como uma família
exemplar aqui. Por isso, é melhor que eu tire você da capital.
— Mãe, eu tenho amigos aqui!
— Claro que tem e amigos que não podem saber o que está acontecendo com
você. - Jogou outro vestido sobre a cama, dizendo: — Acho que esse é perfeito.
Sentou-se ao lado da filha, que agora sentada sobre a cama, apertava o
travesseiro contra o peito.
— Sabe, tenho feito algumas pesquisas sobre transtornos mentais. No passado
ainda havia um governo que se importava com pessoas doentes. Como não
conseguiram uma solução para modificar ou retirar os genes responsáveis por
esses transtornos, nosso governo achou melhor matar os imperfeitos.
A mulher revirou os olhos, claro que não era nada inteligente, mas até pouco
tempo nem ela se importava com aquilo, só passou a ser um assunto interessante
depois que se viu às voltas com a única filha, que sem sombras de dúvidas, tinha
um problema mental grave.
— Uma saída barata, para um governo que está sempre tentando cortar gastos,
ainda mais agora que estão pensando em tomar Nence para si e se livrar
daqueles religiosos idiotas. Com isso acabei lendo que a arte pode ser uma
terapia efetiva para transtornos mentais.
Encarou a filha, que a olhava enfadada.
— Soube que um dos nossos novos criados toca piano muito bem e se
comprarmos algumas partituras com as músicas comuns aos Puros, ele
desempenhará bem. Antes tinha pensado em contratar um professor de música,
mas na nossa situação, um renegado que possa fazer isso é ainda melhor. Ao
menos ele não falará nada se te ver surtar e se falar podemos considerar dizer
que está mentindo e matá-lo. Prático, não acha? Melhor do que um Puro te ver
enlouquecida com as suas crises.

11 – Inverno

A noite estava muito fria, entretanto a neve deixara de cair naquele dia. Se
arrumava enquanto esperava Mika retornar, tinha levado a pequena para a casa
de Dona Irene. Foram convidados para uma festa na casa de um amigo dele, o
que ela sentiu como um alívio após vários dias trancada em casa sem ver
ninguém além do caçador e Elin.
Colocou um longo manto negro com capuz, era necessário. Não se lembrava de
ter passado tanto frio em sua vida antes. Acostumada com a modernidade de
Vento e seu aquecimento a gás, ali ainda precisavam usar carvões e até mesmo
braseiros e lareiras em dias mais gelados.
Não tinha quase nenhuma maquiagem, apenas um batom que Mika dera para ela
algum tempo atrás e uma pastinha brilhante que passava nas pálpebras e
esfumaçou os olhos com um Khol que Irene lhe dera. As mulheres em Vento não
se maquiavam muito e talvez por isso gostava de deixar os olhos bem delineados
de preto. Tudo pela sensação de liberdade.
Olhou no espelho grande e quebrado do quarto, enquanto vestia as luvas de lã
preta que fizera para combinar com seu manto. Como ele estava demorando,
sentou-se na velha poltrona da sala e pegou a guitarra para treinar um pouco
mais.
Estivera tão dedicada a aprender guitarra, que sempre que encontrava um
momento livre a pegava ou às vezes até mesmo o violão. Quando acordava de
seus pesadelos de madrugada, agarrava-se a guitarra, que não fazia muito
barulho se não acoplada ao amplificador e treinava o que o caçador lhe ensinara.
Ele sorriu ao entrar e vê-la agarrada novamente a guitarra, estava linda, o
contorno escuro ao redor dos olhos realçavam o verde que tanto passou a
admirar nos últimos dias. Com alguns acordes que ele lhe ensinara, ela tinha
desenvolvido uma música e alegre ao vê-lo pediu para ouvi-la.
Ele se sentou diante dela e pediu para que tocasse. Colocara tanto peso nos riffs
que ele se surpreendera. Era uma melodia simples, até mesmo repetitiva, mas
que com alguns arranjos, baixo e bateria, ele sabia que ficaria ótima. E então, ao
que claramente pareceu o refrão, a melodia mudou e ficou ainda mais admirado
com os curtos solos.
Gostou tanto que pediu para ela tocar novamente, enquanto se sentou à bateria e
começou a tocar. Animada se levantou e os dois se deleitaram na primeira
música que estavam criando juntos. Assim que ela parou de tocar, olhando-o
com olhos brilhantes, ele disse:
— Poderia passar a noite aqui tocando com você, mas será bom para ambos
sairmos um pouco de casa.
Ela guardou a guitarra, enquanto Mika desceu ao porão para pegar algumas
garrafas de bebidas para levarem à festa. Caminharam sobre a neve fofa e
escorregadia que cobria a terra, conversando animadamente. De tempos em
tempos, Leah segurava em seu braço, para evitar uma queda.
Ao adentrar a casa ampla para os padrões de Serpentine, a moça notou que o
amigo se tratava de outro músico, que logo fora introduzido por Mika com o nome
de Juha. Ele era alto, com os cabelos bem curtos, com algumas mechas pintadas
de verde, sobre o castanho-claro, os olhos tão azuis quanto do caçador.
A sala estava repleta de pessoas da idade dela e sentiu-se alegre, desde que
chegara em Serpentine nunca tivera a chance de socializar com pessoas de sua
idade além de Mika e Andrei. Não demorou muito até que os dois amigos fossem
cercados por garotas, percebeu enfadada o quanto o caçador era atraente.
Sentindo-se um pouco excluída, invadiu a cozinha sem pedir permissão, sobre
uma grande mesa de madeira havia várias garrafas de bebidas, não reconhecia o
que era o que, gostava muito do hidromel que Mika fazia, mas havia tantos
líquidos com tons diferentes que optou por qualquer coisa.
Sem encontrar um único copo, sentiu-se obrigada a beber no gargalo. A bebida
era levemente adocicada, provavelmente feito de arroz, bebera algo semelhante
antes com o sedutor.
Sentindo-se um pouco aquecida com a bebida tornou a voltar para sala,
segurando a garrafa a qual jurou não abandonar até que se esvaziasse. A música
tocou alta, fazendo grande parte das pessoas ali dançarem, enquanto outras
continuavam conversando.
Não fez nada além de encostar numa parede e olhar as pessoas se divertindo,
tendo apenas a garrafa como companhia. Pediram para ela se mover por um
momento, pois colocariam os sofás onde estava, um em cima do outro para ter
mais espaço para a dança e já com a garrafa a um gole de esvaziar, tomou e
voltou para a cozinha.
Ainda não reconhecendo bebida alguma e um pouco mais alegre, fechou os olhos
para escolher a próxima garrafa a qual juraria não abandonar antes que estivesse
vazia e acabou pegando outra bebida, mais forte e mais amarga que a anterior.
Continuou andando pelo lugar, sem saber o que fazer.
Ela não tinha nenhum problema para se comunicar, mas as pessoas ali lhe
pareciam pouco abertas. Esgueirou-se por uma porta aberta e deparou-se com
um cômodo semelhante com a sala de instrumento de Mika e o melhor de tudo
era que além de ter um violão e estar vazio, a lareira ardia.
Sem ter alguém por perto para pedir permissão, pegou o violão e sentando-se
diante da lareira colocando a garrafa ao seu lado, passou a treinar o que
aprendera e passou a tocar a canção que criara, de modo a guardá-la bem em
sua memória.
Ao ver novamente a garrafa vazia, sentindo-se levemente bêbada, acreditou que
poderia beber mais uma garrafa e lá se foi em sua brincadeira de escolher com os
olhos fechados. Em seu caminho de volta para o violão e a lareira, parou por um
momento ao ver Mika.
Ele dançava com uma garota que lhe beijava o pescoço, enquanto que as mãos do
caçador deslizava pelo corpo dela, para então apalpar as nádegas e lá
descasarem. A moça sorriu para ele, gostando do toque. Ela então avançou
rapidamente sobre a boca do sedutor e se beijaram de modo tão provocante, que
Leah pode até mesmo ver as línguas se encontrando.
Seu peito apertou e aquela sensação a fez sentir-se ridícula. Apressada retornou
para a lareira, bebeu um terço da garrafa diante daquele sentimento horrível que
se apossou de sua alma e pegou o violão nas mãos. Sentia uma vontade absurda
de chorar, embora não entendesse porque se sentia daquela maneira.
Dedilhou as cordas do violão, tomada pela fúria, sem entender ao certo porque se
sentia tão furiosa. Como se fosse possuída por algo, logo novos acordes foram se
formando. Com a imagem de Mika beijando aquela garota sem lhe dar qualquer
trégua e lhe enchendo de um furor cada vez maior.
A melodia começou lenta, triste e escura, como ela mesma se sentia naquele
momento. Arrastava os dedos pelas cordas, como se estivesse arrastando toda a a
sua amarga vida. Nunca passara-lhe à mente que ele poderia ter alguma
namorada e no quanto aquilo poderia interferir em sua vida.
Sentiu medo, o mesmo medo que sentiu naquela prisão, ou quando viu os pais
sobre a madeira, o medo que lhe perseguira sua vida inteira, o medo de ser
descoberta, o medo de alguém saber o que se passava com ela. O medo que
sentira de não ser amada pelos pais se soubessem da escuridão que havia em
sua alma.
As batidas sobre as cordas tornaram-se ainda mais rápidas, selvagens,
transmitia seu ódio, medo e escuridão para o som. Repetiu aquilo várias vezes,
para decorar e melhorar a melodia. Naquela altura já tinha secado a terceira
garrafa.
Buscou por outra, agora os dois estavam agarrados num canto, beijando e
devorando os corpos com as mãos. Ciúme! Aquilo também era ciúme. Ao pegar
qualquer garrafa deu por si que gostava dele e que não desejava vê-lo com
ninguém. Odiou-se por aquilo.
Retornou, retomou a sua nova e furiosa melodia. Não, o violão não fazia jus ao
horror e fúria daqueles acordes. Olhou ao redor, Juha era como Mika, tinha
vários instrumentos musicais, não sabia dizer se ele tocava todos ou se tinha
apenas por ter.
Viu a guitarra, procurou em seguida por amplificador, estava bêbada o suficiente
para mandar todo mundo a merda se reclamassem dela. Sozinha ajeitou tudo,
guitarra, pedal, amplificador, microfone… Passou a palheta nas cordas, precisava
afinar um pouco.
A afinação chamou a atenção de Juha e dele apenas. Ficou quieto a olhando, ela
sequer notou a presença dele. Então, a guitarra chorou em suas mãos. Uma
melodia escura, tão terrível quanto a própria noite, um pequeno solo tímido,
apenas para enfatizar sua tristeza. A melodia calma, infeliz, pesada…
Então, a fúria saltou de sua alma para os seus dedos. O maldito loiro beijando a
garota de corpo perfeito. Acordes e melodia lenta, uma terrível vontade de gritar,
de expressar a sua dor. Juha olhava para aquilo encantado. A garota se pôs a
gritar algumas coisas que eram difíceis de compreender, numa voz gutural.
Ela se sentiu feliz. Sentia-se o próprio demônio com uma guitarra nas mãos.
Sequer se deu conta de outras pessoas adentrando o cômodo para assistir, estava
imersa em sua dor, em seu ódio e em seu ciúme. Com a voz gutural, berrou ao
microfone:
— Eli, Eli, lemá sabactani!
Deus meu, Deus meu, por que me abandonastes? E a guitarra gritou em fúria e
velocidade, sua tão sonhada música suja e terrível. Tinha que ficar melhor, tinha
que fazer ainda pior do que aquilo. Estava furiosa, taciturna e infeliz. Berrava
qualquer coisa com voz gutural no microfone.
Logo todos a olhavam perplexos, um rapaz saltou diante dela, fazendo a parar de
tocar abruptamente e finalmente tomar consciência das pessoas ao redor. O
rapaz era alto, com o cabelo comprido e castanho, com olhos grandes e redondos,
num tom entre castanho e esverdeado e sustentando um sorriso, disse:
— Não pára. Isso é a coisa mais terrível e maravilhosa que ouvi. Vou tentar te
acompanhar com a bateria.
Sentiu-se tímida e estúpida. O caçador a olhava estupefato, o odiou naquele
momento, como jamais pensara que o odiaria. O moço fez a bateria gritar como se
pedindo para ela começar. Sentia vontade de sair correndo. O vento soprou tão
forte lá fora, que puderam ouvir seu uivo.
Agachou-se e virou toda a bebida da garrafa. Acomodando a guitarra, olhou para
o moço alegre que a esperava na bateria. Ela começou a tocar o pequeno solo,
misturando alguns acordes. Atento, procurava marcar o tempo e após várias
tentativas, finalmente se harmonizaram.
Pronta para tentar tocar toda a música, após explicar para ele o que estava
fazendo, passou pelas poucas pessoas que não se entediaram com tanta repetição
e tomou outra garrafa de bebida. A moça que ele beijara, o abandonara entediada
com a guitarrista.
— Qual seu nome? - Ela perguntou ao moço da bateria.
— Felipe. - Respondeu.
— Quero que a batida seja tão rápida e tão monstruosa quanto a melodia, assim
que ela ficar rápida.
Ele abriu um largo sorriso. E após mais alguns goles, deixou a garrafa no chão e
acariciou a guitarra. Felipe tinha encontrado o tempo e o ritmo. E finalmente sua
fúria tomou para si o som. Enquanto tocava sua mente lhe mostrava seus
próximos passos.
Encontrar um lugar para ela e Elin morarem, longe do caçador, longe daquele dia
horroroso, longe de qualquer sentimento horrível que estava sentindo naquele
momento. Era tão barulhento e agressivo que descrevia profundamente o que ela
queria de seu futuro. Ela e Felipe tocaram mais uma vez, apenas para guardarem
a música em suas mentes.
Leah desculpou-se com Juha por ter usado seus instrumentos sem pedir, após
guardar devidamente onde os encontrara.
— Por mim você poderia tocar a noite inteira. - Disse, gentil.
— Você já pensou em formar uma banda? - Perguntou Felipe se aproximando
dela.
— Por isso que estou aprendendo. - Ela confessou. — Infelizmente ainda tenho
que aprender mais.
Olhou de soslaio para o caçador que os observava em silêncio, com o peito
apertado pela angustia de saber que precisaria encontrar um lugar para morar,
que tinha que garimpar o lixão mesmo sob a neve, na esperança de encontrar
uma guitarra para ela e enfim, encontrar outro professor.
— Você pode vir à minha casa para melhorarmos essa música. - Disse o
baterista, animado.
— Claro. - Respondeu, apática. Retirando-se para mais uma garrafa.
Segurando já a nova cheia garrafa nas mãos, percebendo-se ainda mais bêbada
que antes, deu uma olhada fugaz para dentro do cômodo da lareira, a moça
agarrara-se ao pescoço de Mika, enquanto esse conversava com Juha e Felipe.
Não queria ver mais daquilo e esgueirou-se para fora da casa.
Maldito inverno congelante! O vento gélido a fez estremecer ao bater a porta atrás
dela. Colocou o capuz, levando a garrafa à boca em seguida. Sentia-se zonza, mas
aquilo não diminuía sua dor e tristeza. Estava claro que gostava dele além do que
pensara gostar.
O peito se apertava a cada vez que a cena do beijo vinha à sua mente, o que se
repetia incessantemente. Movida pela raiva e rancor, desceu os três pequenos
degraus da estreita varanda da casa e se pôs a caminhar sobre neve e sob
escuridão, com a garrafa como sua única companhia.
Já afastada o suficiente da casa, deixou que as lágrimas com seu calor
aquecessem seu rosto, para transformarem-se num rastro congelante. A vida se
repetia, tudo e nada separados num pequeno instante. Olhou para o alto, não
havia estrelas, as nuvens as engoliram.
Sentiu pena de si mesma, permitiu-se ao menos uma vez já que ninguém estava
olhando. Virou o resto do líquido da garrafa e a jogou num canto. Os pequenos
flocos cristalinos pareceram querer acompanhá-la em seu esmorecimento. Julgou
ser seguida e virou-se. Nada viu.
Se ele desse por sua falta, talvez a procuraria e aquele pensamento a fez correr,
ao perceber que tudo o que desejava era ficar sozinha. Naquele chão escorregadio
aquilo não fora uma boa ideia, logo escorregou e caiu sobre o braço, o que a fez
urrar de dor.
Odiou aquele dia ainda mais, enquanto com dificuldade se levantou, com o
manto já branco pela neve grudenta e suja. Agora chorava tanto pela dor
emocional, quanto pela dor física. A casa dele se erguera em seu campo de visão,
para concluir que não trouxera a chave consigo.
Sentou-se desolada encostando-se à porta, com o braço latejando de dor, o corpo
que de tanto tremer, agora a chacoalhava, com o frio a endurecer seus ossos.
Colocou a cabeça sobre os joelhos que aproximou de seu peito, numa luta inútil
contra o frio, o braço machucado não conseguia segurar as pernas, esticou-o ao
longo do corpo.
Não soube precisar quanto tempo ficou ali, congelando e se torturando, mas
sabia que fora bastante, até ouvir a voz ofegante de Mika:
— Leah, o que deu em você?
Ela sequer se moveu. O caçador se aproximou, agachou-se e com cuidado
levantou a cabeça dela, o rosto vultoso e os olhos vermelhos mostraram-lhe o que
estava acontecendo. A moça estava gelada e preocupou-se com aquilo. Abriu a
porta da casa e a ajudou se levantar, observando os gemidos de dor.
Preocupado encheu uma bacia com água quente e após retirar os sapatos dela, a
fez colocar os pés frios na água. Nunca a vira daquela maneira, nada falava,
sequer olhava para ele, ficou ali sentada na cama, estática, imóvel e sem
qualquer expressão.
Ele então começou a retirar o manto úmido e ela novamente gemeu ao que tocou
o braço machucado.
— Ajude-me a tirar esse manto. - Pediu, educado.
Ela se levantou e com dificuldade, usando apenas um braço facilitou a tarefa. Ele
jogou uma coberta sobre ela e olhou o braço. Tinha um enorme hematoma e
conferiu se não estava quebrado, o que não estava para seu alívio. Angustiado
sentou ao lado dela e perguntou:
— O que aconteceu, Leah? Por que você foi embora sem me avisar?
Sentiu o peito apertado novamente ao ouvir as perguntas. E ao invés de se sentir
amparada, ela desejou ter morrido no lugar dos pais. Era tudo culpa dela afinal,
nascera daquele jeito, morreram pelo que ela e Elin eram. A mãe até se condenou
para salvá-las, mas desejava que não tivesse feito aquilo.
Estava ali, com tantos problemas, com tanta coisa para resolver e se sentia com a
alma despedaçada apenas por causa de um homem. Que mérito tinha naquilo?
Como alguém poderia se orgulhar dela? Não era tão forte quanto gostaria, era
tola, fútil e estava arruinada.
— Só não me sinto bem, Mika.
Podia até ouvir a voz do pai naquele momento, dizendo o que sempre lhe dizia:
“Será uma ótima atriz, Leah!”.
— Achei que te faria bem levá-la para festa dos meus amigos.
— Acho que estou precisando dos meus próprios amigos. - Havia dor e verdade
em sua voz.
Ele não entendia e aquilo o torturava. Poderia estar seriamente equivocado, mas
sentia que ela estava com ciúme. Fora tolo da parte dele permitir que Karina o
beijasse e o envolvesse como fez. Estava acostumado com a sua vida de agarrar-
se a qualquer uma que se jogasse sobre ele.
Apertou os lábios e inclinou a cabeça para trás, sem saber o que fazer. Ela estava
com ciúme, certamente, já teve que passar por situação semelhante com outras
mulheres, que sempre ignorara com erudição. Mas, com ela era diferente. Estava
com medo, medo de que ela fosse embora, medo de ficar sozinho novamente.
Estava com medo de perdê-la.
Ansioso deixou-a sozinha no quarto, pegou algumas frutas secas e colocou sobre
o altar dos leprechauns, acendendo a vela em seguida. Sentiu uma terrível
vontade de chorar por não saber o que fazer naquele momento. Ainda tinha o
braço machucado que ele não sabia como tratar.
Era muito tarde para pedir ajuda para alguém e não queria incomodar Dona
Irene, ao que já estava cuidando de Elin naquela noite. Por que foi beijar aquela
menina? Ela certamente viu aquilo e agora desejava partir. Mas, isso também
queria dizer que ela gostava dele.
Levantou-se impetuoso e adentrou o quarto, ela estava deitada, ainda tremia sob
as cobertas. Ele levou a bacia com a água para o banheiro e com gentileza deitou-
se ao lado dela, ela não opôs resistência, a fez virar para olhar para ele e beijou os
lábios finos com suavidade.
— Eu estou aqui. - Encostou seu nariz no dela.
Estava zonza, a cama estava rodando, bebera demais. Abriu os olhos, como se
aquilo pudesse a fazer sentir-se melhor. Ele a olhava, com olhos umedecidos e
brilhantes. Como queria beijá-lo, mas sentia-se péssima. Perceber-se apaixonada
fazia-a sentir ainda pior.
Acomodou-se, não querendo se livrar do calor de seu corpo que a aquecia, nem
do silêncio sempre tão acolhedor e se permitiu dormir.

12 – Casa de campo.
Andrei organizava a despensa para Aly, estavam na casa de campo há três
semanas. Katia embora os tivesse informado de que iriam para lá durante o
inverno, apenas concluiu a mudança deles no começo da primavera, por conta do
estado de saúde da filha e sobre como não queria que ela ficasse no externo
durante a época mais fria do ano.
Embora seus empregados deixaram claro que ele tinha apenas a obrigação de dar
aulas de piano para a filha e se especializar nas músicas do Puro, como ele
certamente estava fazendo, acabava a maior parte de seu tempo ocioso e ajudar
Aly ajudava a passar o tempo.
Estava preocupado ainda assim, há três semanas tentava ensinar a filha mimada
dos patrões, mas ela o evitava a todo custo e ele, ansioso, receoso do que os pais
dela poderiam fazer com ele por conta disso, tentava encontrar uma solução para
aquilo.
Não sentia inclinado a forçar a moça a fazer o que não queria, mas se ela não
aprendesse piano com ele, não sabia o que poderia acontecer com a sua vida.
Trabalhar para Puros e Iluminados na terra deles era vantajoso porque o salário
era melhor, mas ainda mais perigoso. Os patrões tanto em Nizand quanto em
Vento poderiam matar Renegados sem qualquer punição.
Ao terminar a simples tarefa de organização, decidiu caminhar pela casa, ainda
tinha algumas partituras para treinar, o que seria fácil, pois que Katia
providenciou tudo o que lhe fosse necessário e ele passava grande parte do tempo
ouvindo as músicas que a senhora lhe indicara.
Os passos ruidosos sobre o piso de madeira o guiou para fora dela. Era uma casa
ampla, mas térrea, com um pequeno rio há alguns metros de sua entrada e
muitas árvores, o que lhe fez se sentir mais à vontade, já que em Serpetine viviam
entre os bosques e rodeados pela natureza.
Embora os dedos mornos da primavera já degelavam a terra e os pássaros
tornaram-se barulhentos novamente, o vento ainda soprava frio, como se não
quisesse que esquecessem o inverno. Sentia falta de casa, naquela época já
estavam começando os preparativos para a festa que ele mais gostava do ano, o
Beltane.
A já gorda economia que fazia com o dinheiro que recebia de seus empregadores
servia como um efêmero consolo. Nada dissera para a esperta garota de Mika,
quando esta sugeriu que fizessem música como protesto, mas a ideia genial o
fizera pensar numa rádio pirata. Passara todos aqueles meses que esteve distante
sobre aquilo.
Ganharia alguns dias de folga dali uns meses e já tinha planos em visitar Mika e
dizer para a sua garota sobre seu plano. Não poder fazer muita coisa além do que
lhe fosse ordenado e ter os Castiel e Werneck organizando seu tempo, o deixou
apenas com uma mente saudosa e ardilosa.
Abandonou seus devaneios ao ver a bela moça debruçada sobre o rio, com a
barriga sobre a terra, balançava as pernas para o ar, enquanto tocava a água com
os dedos, nem parecia uma mulher de 19 anos, se deliciava com a água como
uma criança ou Narciso a deliciar-se com o belo rosto.
E bela ela era. Sentia no fundo de sua alma que tinha algo para fazer por ela,
além de lhe ensinar piano. Leah não teria dito aquele nome à toa antes de partir
para Nizand. Se perguntava como lidar com Pandora que negou ser quem era.
Ainda mais correndo o risco de ser morta. Sim, ele podia entender… Já perdera
amigos por menos que isso.
Pandora, olhando o próprio reflexo sobre a superfície cristalina e calma, sentia-se
agitada e irritada. Embora se deleitasse no silêncio do campo, introspectiva por
nascença como diziam seus pais, se sentia inquieta. Não que ela concordasse
com aquilo, pensava muito diferente sobre si mesma.
Com a proximidade da natureza, naquelas três semanas que passara ali, suas
visões se intensificaram, qualquer poça de água era suficiente para que as
imagens sem sentido surgissem, tocando em seus sentimentos mais profundos e
lhe mostrando que sua mente racional nada saberia dizer sobre aquilo. E agora
um pressentimento lhe acompanhava dia e noite.
Sentia uma necessidade premente de conversar sobre aquilo com alguém, mas
não podia sequer mencionar uma única palavra que a comprometesse. Como
colocar em palavras algo que ela sabia que seria tratado como loucura? Ela
mesma pensava estar no limiar da insanidade. E tudo piorou muito,
catastroficamente, com a presença daquele Renegado.
Andrei ainda permeava seus sonhos, sempre o mesmo maldito sonho todas as
noites. Era impossível não negar seu desejo de descobrir tudo sobre ele, não
mentia para si mesma, o achava bonito e interessante, outro grande erro seu. O
que fariam com ela se soubessem que estava interessada em conhecer
profundamente um Renegado?
Mas, suas perguntas não encontravam respostas através de seu monólogo
interno. Por que aqueles olhos negros a fascinavam tanto? Por que aquele rosto
se intrometia em seus pensamentos com tanta frequência? Por que mesmo o
evitando, se pegava como naquele momento, pensando nele?
— Senhorita Pandora. Desculpe-me.
A bela sentiu seu coração parar de bater por um momento e prendeu o ar sem
sequer notar, a ouvir a bela voz de Andrei. Sentiu como se ele pudesse ver o que
estava pensando e com esse pensamento seu corpo se agitou numa onda de
calafrios. Sabendo não poder se comportar daquele jeito, virou o corpo, ágil e
sentou-se.
— Sim? - Sentiu-se aliviada que sua pequena resposta não soou tão trêmula
quanto o próprio corpo.
— Desculpe te incomodar. Realmente não queria, mas não tive escolha, já que
mal te vejo pela casa. - Ele levou a mão sobre a cabeça, embaraçado. — Posso
entender que nossos pais às vezes desejam que façamos coisas que não queremos
fazer. Assim como entendo que você não é obrigada a lidar com um Renegado. -
Parou abrupto.
Como diria aquilo? Nem a conhecia, não sabia o que esperar dela.
— Sei que eu devo fazer exatamente como a senhorita deseja. - Ela nada falava,
apenas o encarava, o que o deixava ainda mais embaraçado. — A verdade,
Pandora, quero dizer, senhorita, é que temo que eu venha a morrer se não te
ensinar piano. Sua mãe deixou isso muito claro. Sei que você não tem nenhuma
obrigação em pensar na vida de um Renegado, mas…
— Entendo. - Ela o interrompeu. — Começaremos hoje a tarde. Pode ser?
— Oh, sim, claro. - Ele sorriu, aliviado. — Obrigado pela sua consideração. Posso
me retirar?
— Não. - Nem ela mesma acreditou em sua resposta. Devia mesmo estar doida.
Ela a encarou esperando para que dissesse o que mais queria dele.
— Como aprendeu tocar piano?
— Vim de Além Mar. - Respondeu, embaraçado. — Quando Vento nos colonizou,
também trouxe mão de obra para Nence e grande parte dos Renegados são de
Além Mar. Vim com 8 anos, mas já tocava piano desde os 5 como meu pai me
ensinara. Ele era um grande pianista.
— Mas, vocês tocam música em Nence? - Ela estava surpresa.
— Fazemos muitas coisas em Nence, não apenas trabalhamos e arte é algo que
todos nós fazemos, ajuda para não enlouquecermos.
— Foi o argumento de minha sobre essa aula de piano. - Ela confessou, sem
pensar no que estava dizendo.
— Com certeza a arte é de grande ajuda. - Ele respondeu, percebendo não ser de
todo tola sua desconfiança de que a magia poderia a perturbar. — Em Além Mar,
bruxas de nascença são comuns. - Disse, cuidadoso.
— Bruxas de nascença? - Ela gargalhou. — A religião é uma mentira para
confortar o coração dos carentes de corpo e espírito. Deus não existe.
— O fato de não poder comprovar algo, não necessariamente significa que
inexiste.
— E onde está Deus então? Por que ele sempre vai embora quando mais
precisamos Dele? - Ela disse alterando o tom de voz, emocionada.
— Pergunta errada. - Ele disse, cauteloso. — O correto é perguntar “qual Deus
está aqui”?
— Pode se retirar, Andrei. - Disse agitada, abanando a mão como um sinal para
que se apressasse.

13 – Esperança

Caminhava com a guitarra de Mika nas costas, deixando-o para trás em sua caça
por leprechauns, enquanto caminhava lentamente para a casa de Felipe, onde
agora costumava ir às vezes para tocarem juntos. Não era ainda uma boa
guitarrista, mas durante aquele inverno se esforçara bastante.
Ainda se via as voltas por não ter amigos em Serpentine, embora já considerasse
Felipe um amigo – se viam com frequência e às vezes ele até ia na casa do Mika,
quando aparecia com alguma ideia nova – ainda não sentia íntima de ninguém.
Sequer conseguia considerar ser um problema dela.
Claro que muitos de seus costumes ainda estavam relacionados ao modo como
vivia em Vento e por outro lado se sentia tão responsável por tantas coisas e até
pela irmã – que se esgueirou para dentro do bosque com Mika – que às vezes
pensava que não podia ter a vida normal de um adolescente.
Mesmo a música pela qual se apaixonara, não via como um simples hobby, era a
sua arma para a revolução, tudo para ela tinha que ter um sentido, um
propósito, não se permitia divertir-se ou entregar-se a qualquer coisa que por
algum motivo julgava inútil.
Exceto pela bebida, desde aquela noite na casa de Juha, beber tornou-se um
hábito para aplacar a dor e o vazio de sua vida, era como um remédio que
diminuía a angústia constante que sentia. Ela não tinha desconsiderado morar
sozinha com Elin, planejara aquilo e mantinha uma economia, antes destinada
ao colchão, para que pudesse ter uma casa.
Não ousou dizer ao Mika o que sentira aquela noite, nem o que sentia por ele no
dia a dia, acreditava que para conquistar o que queria não poderia se relacionar
com ninguém, era um luxo e uma perda de tempo. E ele também não parecia
inclinado. Com o fim do inverno, passaram a se ver menos por causa do trabalho
dele. O que sentiu ser um alívio.
Embora ainda estivesse entristecida pelo fato de que não arrumara um emprego e
dependia do lixão e da tecelagem, o que não dava muito dinheiro para fazer o que
pretendia. Queria se mudar para a cidade de Nence, a capital, sabia que
encontraria mais pessoas com os mesmos pensamentos que ela.
Ao lado da casa de Felipe tinha um celeiro que não mais usavam e que eles
utilizavam para ensaiar, o que seria mais correto dizer festejar, já que esses
ensaios sempre apareciam outros músicos que acabavam tocando e muitas
pessoas munidas de bebidas alcoólicas para dançarem e ouvir música.
Com a repetição daquela rotina, muitas pessoas eram conhecidas de Leah,
embora não se considerasse amiga de nenhuma delas. Mesmo quando vivia em
Vento sempre se sentira muito seletiva para amigos, não obstante ainda tinha
alguns. O que mudara?
Felipe montava a bateria quando ela chegou, antes mesmo de Mika e Elin que
saíram de casa com ela. Graças a nova menina que seria baixista da banda deles,
ela não precisara levar o amplificador, já que a moça tinha vinte anos e tinha um
carro velho que ganhara de herança do pai.
Logo foi apresentada à nova baixista e simpatizou-se prontamente com ela.
Rachel era da altura dela, com o cabelo liso caindo um pouco abaixo dos ombros,
preto, com chamativas mechas cor-de-rosa. O baterista comunicara que ela já
tinha aprendido a tocar as músicas que eles compunham e que já conhecia os
covers.
Enquanto ligava a guitarra, pronta para trocar algumas palavras com Rachel,
Leah parou ao observar que Juha chegara com a mesma garota que Mika beijara
na festa da casa dele, onde todo seu mundo desmoronou e sua banda se fundou.
Jeff o moço que tocava teclado na banda deles, disse para Felipe:
— Parece que Mika vai se divertir com Karina hoje.
Então, ela se chamava Karina? O que ela tinha de tão interessante? Sim, tinha os
cachos perfeitos e dourados como o sol de verão, não aquele cabelo ondulado dela
que não se decidia se era liso ou ondulado, os olhos eram castanhos e os traços
de seu rosto eram perfeitos. O corpo era escultural, com curvas perfeitas e seu
sorriso era como o desabrochar de uma flor.
Enquanto conversava com Rachel, percebeu que o caçador e a irmã chegaram,
depositando garrafas de bebidas dentro de uma enorme caixa de isopor,
previamente preparada para armazená-las. Não se preocupariam em invadir a
caixa tão cedo, já que o pai de Felipe era um mestre cervejeiro e havia barris da
bebida disponíveis.
Sentiu-se agitada quando viu Karina se aproximando de Mika, beijando os lábios
dele suavemente e ele não opôs nenhuma resistência. Ao contrário, pareceu
gostar. Felipe se divertia bebendo e conversando com as pessoas, sempre social e
por isso não acabara de montar a bateria. Incomodada por Karina e Mika, pediu
para Rachel a acompanhar, enquanto treinava uma música que criara.
Elin que dissera ter se apaixonado por um amigo de Mika, que eles chamavam de
Shiva, mas o nome era Ryan, estava de mãos dadas com ele, dizendo para todos
que eram namorados. Enquanto que o caçador conversava com Juha, com Karina
ao lado dele.
— Por que não tem me visto com mais frequência, Mika? - Ela perguntou tão logo
teve a oportunidade, jogando os sedosos fios para trás e apoiando as duas mãos
no ombro dele.
— Não tenho tido muito tempo ultimamente.
— Que desculpa furada. - Ela riu. — Você sempre encontrou tempo para mim.
Fico preocupada que tenha te feito alguma coisa que o chateasse. Sabe o quanto
gosto de você.
— Não devia gostar de mim, Karina, não sou alguém que vale a pena gostar.
— Falaram que ela mora com você agora. - Disse maneando a cabeça, apontando
Leah que se divertia com Rachel.
— Sim, logo faz um ano que ela mora comigo junto com a irmã.
— Por que não me contou? - Seu tom de voz era aborrecido.
— Não achei importante.
Ela entrelaçou os braços no pescoço dele e roçando em seu corpo, disse:
— Estou com saudade de ter você em minha cama. - Pressionou a boca sobre a
dele, chupando seu lábio inferior sensualmente.
Ele se entregou ao beijo e charme da moça. Parando abruptamente de beijar,
quando ouviu a voz gutural de Leah, que berrou ao microfone:
— Hail, Satan.
Sorriu orgulhoso dela. A música iniciou com um pequeno e doce solo de guitarra,
para então entrar todo o peso da melodia, onde ela cantava suas letras de
protesto e liberdade numa voz gutural tão intensa, que não dava sequer a
impressão de que uma mulher cantava.
Percebendo o brilho nos olhos com que olhava para a guitarrista, Karina sentiu-
se enciumada, o envolvendo em outro beijo na intenção de não deixá-lo
contemplar a esquisita. Ele não se livrou dela, ao contrário a apertou contra o
corpo, com o membro a lembrar-lhe do desejo insano.
Contudo, largou Karina ao ouvir a guitarra novamente, agora tocando uma
melodia que lhe era muito conhecida, sim, uma música dele, que tocara com
Andrei numa noite não tão divertida. Ele não sabia que eles tinham ensaiado
aquela música, embora tivesse ouvido Leah tocá-la em casa algumas vezes.
Era belo o modo como ela tocava, fechando os olhos e balançando o corpo no
ritmo da música, mas o que o deixou ainda mais maravilhado foi que ela cantou o
poema que ele e Andrei leram naquela noite. A voz gutural mesclava-se com uma
voz feminina doce e cristalina.
Quando a banda resolveu fazer uma pausa, para deixar que outros músicos
também tocassem, como de praxe, esgueirou-se entre as bebidas e observou
Karina, ao passo que bebericava a cerveja. Não era apenas uma mulher bonita,
sentia a magia fluindo dela em seus próprios ossos.
Um moço que nunca tinha visto ali antes a abordou. O cabelo era comprido, mas
não muito longo, os olhos eram grandes e cinzentos como o céu de inverno, o
achou sensual e bonito. E devolvendo o cumprimento, deixou que ele lhe falasse:
— Eu vim da capital, porque um amigo me falou muito bem da sua banda
quando ele esteve aqui.
Aquilo era normal, pessoas que gostavam de metal e sons pesados como os que
faziam, acabavam viajando para Serpentine quando podiam, para ouvi-los tocar.
Todavia aquela era a primeira vez que recebia alguém de fora da cidade para
ouvir músicas que ela fizera junto com Felipe.
— Fico lisonjeada. - Disse ao rapaz, sustentando um sorriso. Ofereceu a mão
para um cumprimento, dizendo: — Leah.
— Mathias. Pelo que ouvi agora pouco, parece que você protesta em suas
canções, incita muito o desejo pela liberdade. Mas, por que falar sobre Satã?
— Sou de Vento. E tudo o que não é Deus para eles, é Satã. A ideia é englobar
tudo dentro da imagem do inimigo, assim eles saberão quem ou que está por
detrás dessa música.
— Essa ideia é incrível! - Exclamou, admirado. — Não esperava que alguém tão
jovem pudesse criar músicas assim.
Como se ela fosse muito mais jovem que ele, que aparentava ter uns 22 anos.
Com os cabelos que não se decidiam se douravam ou se avermelhavam sob a luz
que invadia o celeiro pela porta dupla escancarada.
— Você já considerou tocar na Capital? Às vezes nos permitem fazer festivais por
lá, onde vários artistas se apresentam.
— Nem sabia que uma coisa dessa existia. - Respondeu, animada.
— Eu tenho um bar lá.
— Como conseguiu dinheiro para abrir um bar?
— Era do meu pai e normalmente nos reunimos com pessoas como você,
decididas a lutar por uma causa.
— Então existe um movimento revolucionário? - Os olhos dela brilharam.
— Não somos organizados ainda, muita gente querendo liderar, o que acaba
formando vários grupos que por pirraça ou intriga acabam não se unindo.
— Sou uma bruxa do ar, não sei se boa para unir pessoas.
— É uma bruxa de nascença? - Perguntou, surpreso.
— Sim.
— Muitos se dizem ser bruxas ou bruxos de nascença por aqui, porque querem
ser privilegiados.
— Posso te mostrar.
Ela caminhou para fora do celeiro e Mathias a seguiu. Fechou os olhos e deixou-
se sentir o vento, com os braços esticados. Ao que ergueu a mão, como se
movesse uma grande massa de energia, formou um pequeno redomoinho. Não
acreditando em seus próprios olhos, pediu para ela fazer novamente.
Dessa vez ela ergueu um redemoinho de ar ao redor dele, que com olhos
arregalados e gargalhando, com o cabelo a voar e chicotear o rosto, gritou:
— Isso é maravilhoso!
Naquele momento foram abordados por Mika, que intrigado observou Leah
desfazendo o redemoinho ao redor do rapaz. Encarou o homem que estava com a
guitarrista e perguntou:
— Quem é você?
— Mathias. E você?
— Mika.
— Ele é seu namorado? - Perguntou, olhando para Leah.
— Não namoro. - Respondeu a moça, sincera.
Percebendo a face severa do caçador e entendendo o que estava acontecendo ali,
retirou um cartão do bolso, entregando para a guitarrista, que logo percebeu que
além de um número de telefone, ao qual ela nunca ligaria, já que ninguém tinha
telefone por ali, havia também o endereço de seu bar, onde ela poderia encontrá-
lo. Acenou para Mika com a cabeça e os deixou.

14 – Sentido
Parado diante da casa, com o murmúrio do rio a cantar em seu ouvido e o sol
tingindo o céu de vermelho, enquanto deitava-se lentamente no horizonte, Andrei
passou a ouvir o barulho de tambores melodiosos. O som era abafado e distante,
curioso, se pôs a caminhar para a direção de onde o som vinha.
Abriu os arbustos que cercavam toda a casa requintada dos Castiel e Werneck e
diante dele surgiu uma trilha, aparentemente pouco usada, para dentro de um
bosque, com alguns belos pinheiros erguendo-se em prol de tocar o céu que
convidava a noite.
Seguindo pela trilha, percebeu que o som estava cada vez mais alto, contudo
parou abruptamente, quando pensou ter visto algo correndo entre os altos
pinheiros ao seu lado direito. Virou-se, silencioso e viu uma moça correndo e se
escondendo atrás dos largos troncos.
O sorriso dela preencheu o ar de uma melodia doce e suave, as vestes brancas e
esvoaçantes, dançavam ao vento na medida em que a moça corria de um tronco
ao outro, sem o deixar ver sua face. Por impulso foi em direção à moça e atento
ao sol, descobriu em qual árvore estava se escondendo.
Sorrindo pela brincadeira, aproximou-se do tronco e quando fitou a bela moça,
com seu vestido leve, num corpo escultural, surpreendeu-se ao ver que era
Pandora. A surpresa lhe foi tão intensa, que o fez sentar sobre a cama, alarmado.
Fora um sonho, apenas um sonho. Dizia mentalmente, enquanto se sentava
lentamente sobre a cama macia, cercado pela escuridão do quarto. Devia estar
com saudade de casa, celebrariam Beltane naquela noite em Serpentine, a
celebração que ele mais gostava. Talvez o sonho quisesse dizer isso, estava com
saudades de casa.
Entretanto, o corpo estremeceu, quando a sensação de ser observado lhe tomou,
abrupta. Virou-se para o lado e parada ao lado da cama estava o espírito de
Pandora, o fitando com os olhos tão azuis, que ele podia ouvir o ruído das ondas
do mar vindo deles.
Saltou-se assustado, procurando pelo interruptor para acender a luz. Cegou-se
por um momento pela claridade e quando os olhos ansiosos voltaram-se para a
sua cama, ela ainda estava lá, contudo se desvanecendo lentamente.
Lembrou-se de alguns ensinamentos que tivera, algumas bruxas tinham um
controle tão forte sobre o duplo, um nome dado ao corpo espiritual ou astral, que
elas podiam se fazer vistas muitas vezes, ou estarem em dois lugares ao mesmo
tempo. Não se lembrara de ter conhecido uma bruxa assim, mas os dias de
poder, como aquele, aumentava consideravelmente o poder das bruxas. Deitou-se
e adormeceu rapidamente.
Contudo, durante toda manhã aquele sonho ficou martelando em sua cabeça.
Talvez fosse apenas a saudade de casa, talvez se sentisse compelido a celebrar
junto com seus irmãos, ao menos em espírito. Desde que chegara em Nizand não
teve tempo para celebrar qualquer estação que entrara ou saíra.
Sempre na intenção de se ocupar para passar o tempo, foi limpar o porão velho e
úmido daquela casa de campo. Havia tantas coisas lá que ele se sentiu perdido,
organizou tudo da melhor forma e enquanto trabalhava nisso, encontrou um
velho tambor.
Não acreditava em acaso para deixar aquilo passar desapercebido. Havia o som
dos tambores em seu sonho. Não conseguia evitar pensar que aquele tambor era
o próprio chamado dos deuses para celebrar aquele dia de poder. Sem que
ninguém visse, escondeu o tambor em seu quarto e passou o dia envolvido com
suas tarefas.
Ao fim da tarde, munido de uma bolsa de pano, adentrou a despensa onde pegou
algumas frutas, em seguida indo para a adega. Esperava que ninguém desse falta
de duas garrafas de vinhos, havia tantos que era impossível que dariam falta. Não
era um entendedor de vinho, em Nence eles mesmos faziam suas próprias
bebidas, mas esperava ter escolhido os mais baratos.
Escapou pelos fundos da casa, sem ser visto, os músculos tensos se aliviaram,
precisava ainda ser rápido para que ninguém o visse. Assim como no sonho
daquela noite, procurou pelo arbusto que lhe revelara uma trilha, seguindo o
curso do rio. Assim que as mãos ágeis separaram o arbusto, segurando o tambor,
ouviu a voz, que lhe disse:
— Para onde está indo?
Sentiu o corpo gelar, como se o sangue tivesse parado de correr em suas veias.
— Senhora, me perdoe. - Disse voltando-se para Pandora. — Nessa situação não
há como mentir o que estou fazendo.
— E o que está fazendo? - Ela insistiu.
— Estava indo para dentro do bosque para celebrar um dia importante em minha
religião.
— Que dia? - Perguntou, curiosa.
— Hoje é Beltane, celebramos a união do Deus com a Deusa, o florescer da
primavera, agradecemos aos deuses pelo despertar da vida, tocamos músicas,
dançamos e às vezes pulamos a fogueira.
— Parece mais uma festa do que uma celebração.
— É uma festa em celebração à vida.
— Eu posso ir com você?
Lembrou do sonho novamente, mas o coração ficou disparado ao se lembrar das
garrafas de vinho que pegou sem pedir da adega. O que ele faria? Contaria a
verdade para ela sobre os vinhos e a deixaria vir, ou desistiria do ritual?
— Será um prazer. - Foi tudo o que conseguiu responder, embaraçado.
Ela o seguiu trilha adentro e o observava recolhendo algumas flores que
encontrava pelo caminho. Após um tempo entregou-lhe as flores e saiu a procura
de alguns galhos. Deram numa minúscula clareira, próxima a margem do rio e lá
ele depositou as flores e os galhos sobre a relva.
— Precisamos de alguns galhos secos para a fogueira.
— Posso ajudar.
Pandora o seguiu, embora soubesse que aquilo não passasse de um simples
teatro, como o era toda e qualquer religião, estava contente por fazer algo
diferente de ler livros, assistir televisão e ficar trancada em seu quarto. A tarefa
simples era divertida, nunca escolhia os galhos corretos, por algum motivo,
sempre preferia os umedecidos.
Quando conseguiram uma boa quantidade, retornaram para a clareira. Num
galho fino e maleável, Andrei enfeitou com algumas flores, formando uma bela
coroa que colocou sobre o cabelo alourado da moça. Ela sorriu, levando as mãos
a coroa, desejosa de ver seu reflexo.
Enquanto correu até o rio próximo, Andrei preparou a pequena pilha com os
galhos e em seguida, ajeitou alguns galhos sobre a própria cabeça, de modo a
assemelharem-se com chifres. Quando retornou olhou para o moço, que
organizava as flores.
Não podia negar, que mesmo com aqueles galhos sobre a cabeça e o peito nu, ela
o achava muito bonito. Ele a guiou gentilmente segurando suas mãos, deixando-a
de frente para ele e para os galhos. Andou em círculo por algum tempo,
sussurrando algumas palavras que ela mal conseguia ouvir.
Entretanto, Pandora agitou-se ao sentir uma energia que parecia vir de todas as
partes, enquanto ele caminhava em círculos. O homem parou diante da pilha de
madeira, olhando fixamente para ela. Não fosse por sua roupa moderna e
despojada, estaria exatamente como aparecera em seu sonho.
— Nessa noite em que o poder vibra aquecendo nossos corações, eu chamo o
espírito do fogo.
Agachou-se e demorou-se um pouco para acender a fogueira. Enquanto o olhava,
incomodada com a energia que sentia, Pandora julgou ver o rio, já quase oculto
pela noite que avançava rapidamente, brilhando como se milhares de luzes
flutuassem sobre ele.
— Que a união do Deus e da Deusa fecunde a terra e traga abundância para o
mundo. - Segurando o tambor, começou a fazer uma melodia suave e lenta,
continuou. — Nós dançamos com prazer na noite de Beltane. Todos os nossos
sentidos libertam-se. Dançamos para ser a flor e a chama do rito próprio do
amor. Entregamo-nos à Terra e brilhantes renascemos!
As batidas no tambor aceleraram lentamente e Andrei se pôs a dançar ao redor
da fogueira. Sem entender nada, Pandora movida pela energia que crescia e ao
mesmo tempo assustada com o bosque que parecia ganhar vida, com pequenos
rostos que pareciam se esconder entre os arbustos, se permitiu a dançar com ele.
Sentia-se boba dançando daquele jeito, mas as batidas profundas e rítmicas,
pareciam guiar o corpo na medida em que ela deixava a vergonha e o
constrangimento de lado. O fogo os aquecia e a sensação de ser observada pelos
seres de sua cabeça aumentava.
Andrei parou por um momento, consagrando o vinho que trouxe consigo, deu
alguns goles, entregando a garrafa para a moça que também bebeu no gargalo
risonha, sem acreditar que estava fazendo aquilo. A mãe, sempre muito
preocupada com as aparências, jamais a permitiria beber vinho daquela maneira.
Beberam o vinho tão rapidamente, que pareceu que uma garrafa não fora
suficiente, entretanto percebendo que Pandora estava se entregando a música e a
energia do ritual, Andrei achou melhor deixar a outra garrafa para mais tarde e
acelerou um pouco mais a batida.
Nunca se sentira tão livre antes, seu corpo parecia ter vida própria, levado pelo
tambor. O crepitar do fogo, seu calor e brilho, parecia levá-la para outro lugar, a
alegria enchia-lhe o peito. Contudo, ouviu o som do rio, como se algo pesado
tivesse caído sobre suas águas.
Virou-se assustada e Andrei olhou na mesma direção. Uma mulher se erguia das
águas escuras, com os cabelos tão compridos que pareciam tocar o chão, o
vestido leve de um azul translúcido, arrastava-se ao chão, carregando folhas e
galhos consigo.
Pandora gritou assustada. Acreditava se tratar de mais uma alucinação. O peito
apertou-se, como sempre acontecia sempre que constatava que a mãe estava
certa de que ela estava ficando maluca. Tentou correr, mas deixando o tambor
sobre o chão, Andrei a abraçou, delicadamente a fazendo sentar com ele e
dizendo:
— Eu também a vejo. Eu também a vejo. Ela saiu do rio e a chamamos de Dama
do Lago.
— Eu estou doida. - Chorava a mulher, sem saber se soltava de seus braços e
corria, ou se aconchegava sua cabeça no peito nu.
Ele sibilou os lábios na intenção de acalmá-la, enquanto a apertava ainda mais
contra o peito. Assustada e chorosa, Pandora virou-se para ver a mulher que
saíra do lago, mas não havia mais nada ali. Entretanto, Pandora ainda podia ver
vários olhos brilhantes que a olhavam curiosos, escondidos entre os arbustos.
Andrei a apertou ainda mais contra o corpo.
— Eu também vejo, Pandora. São as fadas e os seres do bosque que vieram
comemorar essa noite com a gente.
— Você está me dizendo que não estou doida? - Perguntou, nervosa.
— Não, você não está louca. Vamos voltar para perto da fogueira.
Os dois se levantaram e a puxando pela mão, ele a levou perto da fogueira, onde
se sentaram e ele a manteve em seus braços, balançando-a como se ninasse uma
criança. Não era fácil para ela, todos aqueles olhos, olhava várias vezes para a
margem do rio com medo de ver a mulher se levantando dele novamente.
Sem soltá-la, Andrei se esticou para pegar a outra garrafa de vinho da sacola e
abrindo-o com dificuldade, usando as pernas e apenas uma mão, para não tirar o
braço que descansava nos ombros da moça, abriu a garrafa e após beber do
vinho, levou a garrafa até a boca rosada da moça.
Pandora olhou para a garrafa próxima de sua boca e depositou o olhar sobre
Andrei, era lindo mesmo com aqueles galhos na cabeça. Por um tempo não
conseguiu fazer outra coisa a não ser olhar para ele. Os olhos negros, como
aquela noite, pareciam brilhar com o reflexo da fogueira a iluminá-los.
Ele a observando e dominado por um súbito desejo, aproximou lentamente os
lábios dos dela. Pandora percebeu que agora as duas pedras negras fitavam seus
lábios e como se dissesse sim para o que sabia estar por vir, virou um pouco mais
a cabeça na direção dele e as bocas se encaixaram, num beijo quente e úmido,
tão repentino quanto o desejo de ambos.
Dominados pelo fogo interior que se acendia dentro deles, ajeitaram-se de modo a
ficarem numa posição mais confortável. Pandora inclinou a cabeça para trás ao
sentir os lábios quentes chupando seu lábio inferior, sentiu as mãos fortes
segurando sua nuca e invadindo-lhe a boca novamente.
Ele se esticou sobre a relva e Pandora curvou-se sobre seu corpo, a boca macia
lhe era convidativa, afastando qualquer pensamento de sua mente, entregou-se
novamente ao beijo. Andrei deixou as mãos percorrerem massageando as costas
dela, mas os pensamentos que lhe invadiam a mente era perturbadores.
Deuses, o que estava fazendo? Se alguém soubesse que aquilo estava
acontecendo, ele morreria. Era estritamente proibido que um Renegado tocasse
um Puro, sob pena de morte. A não ser que o Puro o permitisse, o que nem
sempre era seguro, porque poderiam mudar de ideia e denunciá-los. A palavra de
um Renegado não tinha o menor valor.
Contudo, enquanto a deusa massageava sua boca, num beijo úmido e ávido, ele
se via sem saber o que fazer. Não queria que ela parasse, queria que aquele
momento fosse eterno, mas aquele beijo valia sua própria vida. Com delicadeza a
afastou, levantando-se em seguida e dizendo:
— Perdoe-me, Pandora. Não devia estar te tocando. Precisamos voltar antes que
alguém sinta nossa falta.
Sabia que ele estava preocupado com a própria vida, conhecia bem as regras e
mediante o olhar perturbado de Andrei, sua própria loucura minimizou por um
momento. Ambos estavam ali correndo risco de vida, por motivos diferentes, mas
que naquele momento os unia.
— Pode me ensinar sobre essas coisas? Pode me ensinar sobre sua religião?
Sequer conseguia saber se viveria outro dia, entretanto o pedido da moça o
acalmou por um momento. A mente agitada repetia incessante: “Deuses, o que
fiz?”. Sentindo correr o fogo pelas suas veias. Ela queria saber sobre bruxaria.
Como ele poderia explicar algo tão natural para uma incrédula? Uma descrente
que via o mundo além do mundo?
— Ensino, mas não podemos deixar que os outros nos vejam conversando sobre
essas coisas.
— É um segredo dos Renegados?
— Não, é a vida que vivemos abertamente. Mas, não podemos confiar que os
outros criados contem aos seus pais que estou te ensinando essas coisas.
— Combinaremos melhor quando estiver me dando aula de piano.
Ele concordou e fez um gesto para a incentivar caminhar de volta para casa.
Enquanto a bela moça caminha em sua frente, os pensamentos ainda lhe
incomodavam. O que raios estava acontecendo com ele? Já vira mulheres
bonitas, estivera com algumas… Entretanto, a proibida, a que valia mais que sua
vida, superava todas. O peito angustiado diante daquela constatação encheu-se
de dor.
15 – O despertar da magia

Leah se olhava horroriza ao vestir o vestido que Dona Irene fizera para ela usar
naquela noite de Beltane. Era uma peça linda, branca translúcida, era mais como
vários pedaços de panos unidos, com um decote no seio que descia até o umbigo,
as pernas quase que completamente desnudas, com as pequenas caldas que a
união dos panos formavam.
O delineado de seu corpo era aparente sobre o pano leve e enrubescia enquanto
se olhava no espelho. A mulher que ajudava Dona Irene no preparo de alguns
pratos a apressava para lhe fazer uma maquiagem leve. Enquanto a mulher
esparramava toda sorte de pós e cremes em seu rosto, Elin olhava para a irmã.
Dona Irene colocou um belo vestido branco na menina que agora tinha nove
anos, não havia nenhuma transparência e o arco cheio de flores pareceu um
alívio para pequena que ainda brigava com sua franja comprida. Contudo, Elin
estava brava e ao inspecionar a irmã, que agora recebia uma pintura que parecia
glitter sobre as pálpebras, disse:
— Por que Leah tem que ficar linda desse jeito, parecendo uma ninfa, enquanto
eu pareço uma boneca feia?
— Se vestirá assim quando for mais velha. - Respondeu Irene, risonha.
— Mas eu quero me vestir assim agora! - Esbravejou a pequena.
— Se você soubesse o quanto eu estou constrangida em vestir isso, não desejaria
estar em meu lugar. - Disse Leah, inclinando a cabeça para a senhora tingir seus
lábios com o batom.
— Vamos, já estamos atrasadas! - Apressou Irene. — Meninas, me ajudem com
esses pratos.
Quando chegaram na enorme clareira do bosque, onde várias pessoas já estavam
reunidas e a música tocava alegre. Leah viu Mika se esgueirando pelos arbustos,
certamente caçando algum leprechaun e suspirou aliviada que ele não a tivesse
visto daquele jeito. Depois daquela noite nunca mais o tocou.
Passou seus dias de inverno e primavera se dedicando a guitarra e a tecelagem,
ainda elaborando um plano para se mudar, viver apenas com Elin. Não queria
mais passar por aquilo novamente, não queria se sentir daquele jeito por causa
de homem nenhum. Ela tinha mais com o que se preocupar.

Uma mulher logo a abordou, tomando o prato com doces que carregava,
entregando para outra mulher e a segurando pelo punho, levou onde havia
outras garotas da idade dela ou um pouco mais velhas. Todas vestiam roupas
brancas e translúcidas, semelhante a dela e assim se sentiu um pouco melhor.
Duas mulheres apressadas logo a rodearam, enfeitando seus longos cabelos
ondulados com flores, outra mulher colocou uma guirlanda de flores amarelas e
delicadas sobre o seu pescoço e para finalizar, colocaram uma linda coroa de
flores campestres sobre sua cabeça.
Embaraçada ela olhou para as outras meninas que conversavam ao seu redor.
Uma delas lhe chamou a atenção, pois pela face vultosa parecia se sentir
exatamente como ela. Aproximou-se, o corpo da garota era bonito, com curvas
abundantes, mas proporcionais.
O cabelo acobreado liso caía sobre a peça leve que vestia e o glitter que usava nos
olhos era de um vermelho sangue, ao contrário de Leah que era amarelado. Leah
encarou os olhos castanhos da moça, que a fitou com o rosto pintado de sardas e
sorriram uma para a outra.
— Sou Leah.
— Leda. - Respondeu a garota ainda sorrindo.
— Estou me sentindo estranha. - Disse olhando novamente para seu vestido.
— Você está linda! - Disse a sardenta. — Daqui a pouco nem ligará mais para
isso, acredite. Logo metade das pessoas que estão aqui não vestirão sequer uma
única peça.
— Sério? - Perguntou a outra boquiaberta.
A ruiva levou a mão na boca, tentando esconder sua risada suave e delicada.
— Vou ajudá-la a sentir mais confortável com essa situação.
Leda agarrou a mão de Leah e a levou num lugar onde montaram um altar
improvisado com madeira, no alto estava a escultura de um homem e uma
mulher se beijando, enfeitada com todos os tipos de flores, que as pessoas que
vieram ao ritual, colocaram. Era bonito como o altar crescia entre os arbustos do
bosque.
Num grande cesto abaixo da estátua, a ruiva retirou cinco cogumelos, oferecendo
para Leah, que a olhou assustada, mas com o leve sinal que Leda fez com a
cabeça, levou todos os cinco à boca e mastigou. O gosto era a coisa mais horrível
do mundo e correu na esperança de encontrar alguma bebida, para ajudar
engoli-los.
Numa enorme mesa que improvisaram, perto de onde os músicos estavam sob as
altas e exuberantes árvores, Leah tomou um cálice e o encheu com a bebida que
estava disponível, vinho com maçãs. Não ajudara muito, mas tirou um pouco o
amargor da boca, fazendo agora o estômago da moça revirar.
— Você vai ficar enjoada por algum tempo, mas logo passa. - Disse a ruiva que a
acompanhara.
Leah sentia-se horrível, fazia de tudo para não vomitar e ficava cada vez mais
constrangida, agora não mais se importava com o sentimento de sentir-se nua
diante de tanta gente, mas da vergonha que sentiria se vomitasse. Desolada
sentou-se sobre um tronco caído e ali ficou segurando a cabeça e lutando contra
o mal estar.
Entretanto, como Leda dissera, o mal-estar passou, deixando apenas uma
sensação calorosa de felicidade e liberdade. Sentiu-se tão alegre como há muito
não se sentia e acompanhando a música alegre que tocava começou a dançar.
Esqueceu-se de tudo, era como se estivesse completamente sozinha ali, apenas
rodeada pelas altas árvores, acolhida pelas sombras da noite, com a música a
guiar-lhe os pés e o corpo a serpentear com o vento. Conforme erguia suas mãos,
em movimentos delicados, não perdendo o ritmo do corpo e da música, Leah
clamou o vento.
Era uma visão linda vê-la dançando, com o vento a circular ao redor de seu
corpo, levantando várias pétalas de flores consigo. Animada, Elin logo acendeu a
fogueira e também se colocou a dançar com os seus passos animados de criança.
As duas circulavam a fogueira em sua dança.
A música tornou mais alegre e intensa. Leda se juntou as duas que dançavam
sozinhas, com uma plateia encantada as observando. Leah ainda mantinha o
vórtice de flores ao redor de seu corpo, Elin brincava com as chamas, de suas
pequenas mãos maneava duas enormes tochas.
A medida que os pés descalços e delicados de Leda tocavam chão, flores se
abriam em seu rastro. As jovens alegres que participavam da celebração,
começaram a enrolar as longas fitas num mastro previamente levantado para
isso. Animada e feliz por sentir seu poder tão forte, Leah fez com que o vento
levasse para o alto várias flores, fazendo cair em seguida uma bela chuva de
pétalas.
Admirada com aquela beleza, Leda fazia mais e mais flores brotarem ao redor da
fogueira, apenas para Leah arrancá-las do solo para fazer cair novamente a bela
chuva. Num dado momento, em que faziam isso, Elin teve a grande ideia de
incendiar as pétalas que caiam, assim gerando uma bela chuva de fogo.
Uma senhora curvada e apoiada numa bengala, ergueu os braços e pediu
silêncio. A música parou, as pétalas flamejantes ainda caiam, o fogo alto
crepitava e o bosque estava repleto não apenas do povo de Serpentine, mas
também de todos os seres mágicos que foram atraídos.
— Nós celebramos a união da Deusa e do Deus. Que nessa noite sejamos todos
abençoados pelos deuses, pelo fogo que nos aquece, pelo amor que nos enobrece,
pelo poder da natureza que nos nutre. Que se comece o Beltane e que logo os
deuses nos agraciem com a bruxa da água.
As mulheres se puseram novamente a dançar ao redor da fogueira e depois de
um tempo, homens vestidos de forma a parecer que tinham pés de animais como
o bode, com uma calça larga e ornamentada para parecer as pernas do animal,
com o peito nu e mantendo sobre a cabeça um ornamento com galhos que
assemelhavam-se como chifres de cervo, passaram a dançar entre elas.
Muitos jovens atraídos pela beleza de Leah se aproximaram para dançar com ela,
que não rejeitava nenhum deles, mas não os permitia a beijar quando tentavam.
Percebeu que assim todos se comportavam, mesmo as mulheres mais velhas que
dançavam com elas, também eram abordadas por jovens e homens.
Sentia-se tão alegre e livre como nunca antes, que dançou com os braços
erguidos acima de sua cabeça e fechou os olhos, deliciando com o suor que
banhava seu corpo incansável e o calor da fogueira próxima. Sentiu as mãos
deslizando sobre sua cintura e abriu os olhos para ver que deus a abordara
daquela vez.
— Você está muito linda, Leah!
Mika vestia-se como os outros homens, com o tórax desnudo, os cabelos loiros
caindo sobre o peito glabro, os enormes chifres a ornamentar sua cabeça e o
corpo transformado no corpo do deus selvagem, coberto de cinza que os jovens
retiravam da fogueira. Ele a guiou numa dança animada ao redor do fogo, a
segurando pela cintura.
Rodopiaram e giraram, riam e gargalhavam. Até que ambos caíram sobre a relva
úmida pelo sereno e lá ficaram, um pouco afastado dos outros que ainda
dançavam, olhando para o céu salpicado de estrelas. Pareceu aos olhos de Leah,
que as estrelas acima deles formavam a runa Gebo.
Naquele momento, como se também tivesse percebido a runa no céu, o caçador
entrelaçou seus dedos nos dedos delicados dela e mantiveram-se em silêncio.
Uma nuvem atrevida tentou cobrir a runa que ambos apreciavam e com um
simples gesto de mão, Leah fez o vento levar a nuvem para longe.
— Estou com sede de tanto dançar. - Disse Mika, ainda fitando as estrelas. —
Quer beber alguma coisa, Leah?
— Eu quero.
Deixou-a e em seguida ela se sentou, olhando para as árvores do bosque. Viu a
sombra de um velho caminhando entre os arbustos, rapidamente se levantou
aproximando-se. Ele seguia em silêncio, com um chapéu cinza e pontudo, coberto
por um manto também cinza e apoiando-se numa lança.
Dois corvos estavam pousados um em cada ombro, enquanto ele parecia seguir
por uma trilha invisível para dentro da mata do bosque. Ela o seguiu, sabia quem
era. Pisou em algo que machucou seu pé e parou por um momento para retirar o
que havia perfurado um pouco de seu solado, fazendo brotar algumas gotinhas
de sangue.
Era um osso, havia alguns riscos nele, que logo ela percebeu serem três runas. A
primeira era Ansuz, a segunda Kenaz e a terceira Eihwaz. Um encantamento para
sonhos, ela bem sabia. Ergueu o olhar e o velho já estava um pouco distante.
Caminhou mais um pouco em sua direção e gritou:
— Odin! Pai!
O velho parou por um momento, sem se virar para ela e desvaneceu-se no vento
que soprou subitamente. Ela ergueu o osso até a altura dos olhos, entendia o que
aquilo queria dizer, há muito não praticava magia. Em parte por lhe faltar tempo
e também porque temia encontrar seus pais em algum momento.
A lembrança dolorosa das fogueiras os devorando fez brotar as lágrimas. Ouviu a
voz da bruxa velha que anunciava a união da deusa e do deus, mas não
conseguia se mover. Olhava para o ponto vazio onde vira Odin desaparecer, sem
querer se mover.
— Finalmente te encontrei! - A voz de Mika a fez saltar de susto. — Viu algum
leprechaun por aí?
— Para seu amigo um homem deve ser um amigo e retribuir um presente com
um presente. - Ela disse para si mesma, olhando novamente para o osso.
— Leah? - Ele a chamou, confuso.
Ela se virou, o loiro segurava dois grandes canecos com cerveja e sorridente
entregou um a ela, olhando para o que ela segurava.
— Não foi um leprechaun que vi, Mika.
— E o que viu? - Perguntou, levando a cerveja à boca.
— Odin. E acho que me deu isso de presente. - Mostrou o osso para ele.
Ele tomou o osso da mão da garota, sem tirar a caneca da boca, examinou-o com
cuidado e entregou para ela em seguida.
— Posso encontrar um cordão para você usar isso num colar. Acho que ficará
bonito.
Ela sorriu para ele, colocando o osso no cinto de tecido que amarrava os vários
tecidos de seu vestido e após bebericar a cerveja, deu um beijo no rosto de Mika,
o puxando para perto da fogueira novamente para dançarem mais.
Como Leda lhe dissera, após um tempo de comilança, bebedeira, música e dança,
grande parte das pessoas estavam transando sobre a relva, apenas com o fogo a
iluminar os corpos nus. Elin dormia quentinha, próxima a Dona Irene que zelava
seu sono e Leah se viu sozinha com Mika.
Tomando uma garrafa para si, saltou alguns corpos que se amavam no chão e
encontrou um lugar entre alguns arbustos para se sentar, precisava de um pouco
de solidão. De lá via os casais se amando. Sentia-se um pouco constrangida
sobre como se sentia diante daquela imagem.
Havia um casal tão próximo a ela, que era capaz de ouvir a respiração deles. O
corpo jovem saltou-se em pequenos espasmos, sentia prazer e desejo, era uma
sensação nova, nunca tinha visto pessoas transando antes e nunca lhe ocorreu
ser tão bom.
Olhou Mika que dançava animado ao redor da mesa enquanto mordiscava alguns
doces. Sorriu ao vê-lo alegre e risonho. Entretanto, os olhos curiosos não a
obedeciam e deixou a imagem do caçador, para observar o casal. Ele penetrava
nela, acariciando o corpo magro e delicado sob o dele.
As línguas se tocavam muitas vezes, às vezes até fora da boca. As mãos do
homem deslizavam sobre os seios desnudos, com as pontas dos mamilos rígidos e
ela arfava de prazer. Por um momento pensou em Mika fazendo aquilo com ela,
deslizando a mão calejada sobre seu corpo. Inspirou fundo com a sensação que
agitou seu sangue.
Olhou para o casal a sua frente, agora o homem beijava os seios da mulher, sem
parar de se movimentar sobre ela. Via-se muitas vezes ela e Mika no lugar do
casal e sentiu vontade de se tocar. Julgou que escondida pelos arbustos como
estava, ninguém a veria e levou os dedos delicados entre suas pernas.
Soltou um suspiro ao tocar o clítoris e o massageou com movimentos circulares.
Aquilo era tão bom, que relaxada se deitou, ajeitando-se em seguida para se livrar
de alguns galhos que insistiam em ficar sob suas costas. Pensou em Mika mais
uma vez e levou a mão entre as pernas novamente.
Era libertador, nunca tinha feito aquilo antes e o corpo parecia gostar tanto
daquilo, que quanto mais se tocava, mais o desejo selvagem crescia. Após um
tempo sentiu os lábios sobre sua boca e abriu os olhos assustada, retirando a
mão de onde se tocava num ímpeto.
Abriu os olhos e viu que era Mika, que tentava abrir uma passagem para dentro
de sua boca com a língua. Assustada sequer se moveu, mas abriu um pouco a
boca para deixá-lo entrar. Sentiu a mão quente sobre a dela e num movimento
delicado, ele colocou a mão dela entre suas pernas, incentivando a continuar.
O rosto enrubesceu e se levantou, afastando-o dela. Ele insistiu e tornou a beijá-
la. A língua quente causava uma sensação estranha em sua boca, sem saber o
que fazer, colocou a própria língua dentro da boca dele e elas dançaram num
salão umedecido. Foi a primeira vez que beijou alguém daquele jeito e se sentia
tímida.
Ele a fez deitar novamente sobre a relva e deslizou os dedos entre suas pernas,
pareceu gostar de deslizá-los na cavidade úmida e a fez soltar um gemido cheio
de ar para dentro de sua boca. Abriu os olhos, o rosto enrubescido denotava sua
inquietude diante daquilo, era gostoso, mas não sabia ser permitido.
Incomodada o afastou novamente, afastando-se dele, abraçando os joelhos contra
o peito. Ele sorriu, inclinando a cabeça para trás e se sentou ao lado dela,
dizendo:
— Isso é gostoso, Leah.
— Não quero que você mexa lá. - Disse, constrangida.
Tomou a mão dela, colocando sobre o membro ereto e disse:
— Viu? É normal. Também senti o que você sentiu quando vi você se tocando.
— Você viu? - Queria que abrisse um buraco na terra para enfiar a cabeça nele.
— Aham. - Ele sussurrou, balançando a cabeça afirmativamente e beijando o
pescoço dela. — Essa noite eu sou o seu deus e você é minha deusa.
Sentiu a mão quente de Mika sobre seu cabelo e se afastou dele novamente.
— Não, não somos. Eu não devia nem ter te beijado. Isso não deve estar certo.
— Posso parar de te beijar se quiser.
Ele a fez deitar sobre a relva e deitou-se ao lado dela, agarrando-lhe a mão. Ela o
olhou, fitava o céu sustentando um sorriso que o iluminava. Como conseguiria
olhar para ele novamente depois daquilo? - Ela pensava, intrigada.

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