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Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Marina Leopold
NºUSP: 6872748
 
O demandante solicita a autorização para que o aborto seja realizado em caso de
anencefalia. O autor baseia-se em fatores compreendidos pela medicina, como a má
formação do sistema nervoso, que permitiria apenas que as funções vitais da criança
funcionassem, mas não o sistema nervoso central; e observados na prática (a
mortalidade de todos os recém-nascidos e de grande parcela dos nascituros).Desta
forma, entende que, por ser inviável, a vida do anencéfalo não deveria ser considerada
superior à dignidade da mulher. Embora seja duvidoso o argumento, a ideia do texto
seria um simples adiantamento do parto, fator comum em casos de gravidez complicada.
Não se trataria, de acordo com o demandante, de um aborto em si.
Juridicamente, ele prevê a proteção do princípio da dignidade da pessoa humana, na
medida em que seria degradante, não apenas para a própria mãe, mas para toda a
família, ter de manter a gravidez até o final sendo impossível que o nascituro venha a se
desenvolver com o mínimo de autonomia. A tentativa, assomando-se aos argumentos a
não subsunção do fato – transformação do aborto na antecipação terapêutica do parto –
à norma, qual seja, o os arts. 124, 126 e 128 do Código Penal. Cabe questionar: ao saber
que adiantar o parto significa adiantar a morte (na medida em que a alimentação e
respiração do nascituro são muito mais eficientes dentro do útero materno), esta simples
mudança de procedimento técnico implicaria em um não-aborto? O anencéfalo está
morto ou vivo?
Um dos posicionamentos para o caso, no entanto, é de que o magistrado não
pode suprimir lacunas deixadas pelo legislador. Se, por não considerar o assunto
importante ou por não ter conhecimento técnico no momento de redigir a norma, gerar
uma lacuna (ou uma lacuna aparente, uma vez que a anencefalia pode simplesmente não
ter sido considerada um excludente de ilicitude para o aborto), não pode o tribunal
autorizar um comportamento diferente em função de convicções do magistrado.
Permanece, como dito no item 09, o princípio da reserva legal. No decorrer do processo,
obviamente mais longo em comparação ao período de gestação, o parto (em tempo
normal) ocorreu. Conforme a previsão médica, este veio a falecer em um período
inferior a dez minutos após o parto. Por se tratar, porém, de uma questão pública, o
processo continuou. Cabe dizer, a continuação do processo ocorreu por decisão unânime
do Supremo Tribunal Federal.
No seguimento, analisam-se, separadamente, os argumentos advindos de
profissionais da área da saúde, sendo eles: a inviabilidade da vida extra-uterina; a
necessidade de pensar-se na saúde da gestante, física ou psicológica. Pensando-se no
sistema jurídico em si, os argumentos mais relevantes dentre os apresentados: a defesa
do princípio da dignidade da pessoa humana; a não adequação da iniciativa do parto
antecipado aos artigos do Código Penal referentes à prática do aborto; o direito à saúde
(arts. 6º e 196 da Constituição Federal); o ferimento do princípio da legalidade, uma vez
que a antecipação terapêutica do parto não está vedada no ordenamento jurídico.
Novamente, a ideia contrária pressupõe limites à hermenêutica normativa
constitucional por parte dos magistrados, bem como das regras infraconstitucionais.
Desta forma, a supressão de lacunas só pode ser feita pela interpretação de acordo com
princípios legais condizentes com a intenção presumida da norma a ser proposta. Neste
caso, especificamente, uma interpretação teleológica sugeriria, ainda, a proibição ao
adiantamento do parto, na medida em que a proibição concorda, teleologicamente, com
as ideias contidas no Código Penal.
Outra crítica feita refere-se, não exatamente à norma positivada, mas também a
problemas decorrentes da perda da possibilidade de doação dos órgãos do bebê que não
vingaria. A dizer, com o parto antecipado, perderia-se a oportunidade de utilização
desses órgãos, – ainda não plenamente formados - que salvariam outras crianças de
diversos problemas, evitando, talvez, a morte de um grande número. Partindo deste
ponto, entende-se que a demanda não apresenta nenhum vínculo (em sentido amplo)
com o princípio de sociedade solidária. Mais um pensamento errôneo seria aplicar a
“autonomia da vontade” para lidar com a presente situação.
Ao utilizar-se da “autonomia da vontade”, a arguição fere, por si, os princípios
de preservação à vida e dignidade da pessoa humana, pois transforma um ser humano –
ainda que sem potencial de vida – em uma coisa, transformando a relação entre pessoas
em uma simples disposição do direito de propriedade. Ademais, mesmo que tenha uma
vida breve, como de fato ocorreu, o anencéfalo chega a nascer, fato jurídico que torna
este bebê titular de uma série de direitos (capacidade jurídica de fato), não podendo
entender-se, portanto, a interrupção prematura desta gravidez como figura aceitável
mediante a desculpa do pouco tempo de duração extra-uterina.
Um fato interessante desta ação, que deve ser levado em conta, embora destoe
levemente da questão central, é o de ser uma demanda pela inserção de conteúdo na
legislação quando, na quase totalidade das ações direcionadas ao Supremo Tribunal
Federal, tem-se a necessidade de retirar determinada norma por ser esta incompatível
com a Lei Maior. Discute-se, a respeito disso, se o “Civil law”, herdado da tradição
romana, comporta a inserção de conteúdo com base na jurisprudência. Como bem é
destacado no texto, esta dúvida não se mostra tão pertinente ou, ao menos, tão relevante,
na medida em que existe a influência mútua entre diferentes sistemas jurídicos. Para
este caso, especificamente, porém, entende-se a inadequação da demanda por uma
norma que pretensamente interpretasse a vontade do legislador. O assunto mereceria
tratamento no âmbito do Poder Legislativo, de modo a manter-se a separação entre os
Poderes e, também, o tempo necessário para a deliberação a respeito dos já citados
conflitos hermenêuticos. A celeridade processual impede uma análise tão ampla do caso
que tornasse possível a extrapolação para uma norma abstrata, tanto em função dos
fatores normativos quanto materiais.
O grupo minoritário já defende a inserção imediata do terceiro excludente de
ilicitude (a anencefalia), por meio da decisão, mas não por uma alteração física do
Código Penal, porém por meio de interpretação da Constituição em favor do aborto
(neste momento já não se fala mais propriamente em adiantamento terapêutico do parto)
caso seja a anencefalia detectada por meio de exames realizados por profissionais da
saúde. O entendimento também faz referência à assistência a ser oferecida à mulher que
pretenda passar por estes métodos, de modo que tivesse acompanhamento não apenas
médico, mas também psicológico.
Cabe ponderar sobre a eficácia de uma norma desta estirpe. De um lado, existe a
dignidade da mulher e sua respectiva família, por outro, a série de fatores apresentados,
dentre os quais, a proteção da vida. Uma decisão de acordo com a Constituição não
pode abandonar completamente nenhum dos dois princípios, de modo que uma decisão
pura e simples do caso concreto dificilmente poderá transferir-se para a norma genérica.

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