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O MUNDO COMO IMAGEM E REPRESENTAÇÃO: DE HEIDEGGER À CULTURA


CONTEMPORÂNEA

Working Paper · June 2017


DOI: 10.13140/RG.2.2.16484.58244

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Eli Vagner Francisco Rodrigues


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O MUNDO COMO IMAGEM E REPRESENTAÇÃO: DE HEIDEGGER À
CULTURA CONTEMPORÂNEA.

Eli Vagner Francisco Rodrigues

Introdução

As reflexões de Martin Heidegger em “A Época da Imagem de Mundo” (Die Zeit


des Weltbildes”), ensaio que compõe a obra “Holzwege” (Caminhos de Floresta)1
de 1950, sobre as formas de representação do mundo moderno e seus
fundamentos metafísicos figuram, ainda hoje, como uma das mais profícuas
interpretações sobre o processo de formação de uma ideia ou imagem
representacional para a compreensão da realidade. Perpassa toda a
investigação de Heidegger a ideia de que o ato de formar uma imagem mental
que seja, de fato, algo representativo ou constitutivo do real, essa crença da
subjetividade, é definida por entes cuja complexidade estão muito além da mera
conceituação e se torna, efetivamente, uma forma de apropriação da consciência
em relação à realidade. Anteriormente a filosofia já havia questionado a
legitimidade e o status dessa “imagem” como “ente cognitivo” apontando-a como
distorção e distanciamento do real em si. O dilema epistemológico se dá a partir
da dúvida sobre o efeito cognitivo da imagem. Tal dilema, apesar de determinar
complexas questões relativas à teoria do conhecimento pode ser sintetizada na
questão: Que tipo de conhecimento a “imagem de mundo” (Weltbildes)
proporciona das coisas em si mesmas? O problema da falsa consciência se
avizinha do tema. A falsa consciência seria, antes de tudo, uma visão distorcida
do real, uma ilusão provocada pela natureza volitiva, ou ainda uma espécie de
oclusão provocada por motivações inconscientes. Todas essas definições

1
A tradução do termo Holzwege já foi tema de inúmeras discussões e, não resta dúvida, impõe
dificuldades tanto aos tradutores de língua portuguesa como aos tradutores de outras línguas. Em
português já se optou por “Caminhos de Bosque”, “Caminhos de Floresta”, em Francês “Chemins que ne
mènent nulle part” (caminhos que não levam à nenhuma parte), em inglês, Forest Paths (Caminhos
Florestais). O termo pretende indicar os caminhos que são possíveis traçar em uma floresta ou em um
bosque a partir de uma linha de visada qualquer. A imagem que se pretende criar é a de várias
possibilidades do caminhar por entre as árvores formando uma trilha, não estabelecida com
anterioridade, e sim na medida em que se prossegue no caminhar. Essa interpretação vai ao encontro
tanto de uma alusão à local de produção dos textos (floresta negra) quanto à perspectiva de Heidegger
ao caracterizar sua obra como “Wege nicht Werke” (caminhos, não obras), como bem destacou Alexandre
Franco Sá na tradução portuguesa da editora da Fundação Calouste Gulbenkian.
possuem em comum o aspecto de impenetrabilidade do real pela consciência,
um dos temas centrais da Crítica de Kant.

Não é o caso, aqui, de desenvolver o problema em termos kantianos, mas de


analisar a perspectiva heideggeriana do problema e desdobrar o problema em
questões sobre a estética e a cultura. No entanto, a pergunta, formulada em
termos das duas conhecidas categorias utilizadas por Kant na Crítica da Razão
Pura, (fenômeno e coisa-em-si) pode nos dar uma ideia do abismo
epistemológico que pode haver entre uma imagem formulada na mente humana,
forjada a partir de princípios metafísicos diversos e epocais, e a verdadeira
constituição das coisas e de suas relações fora da mente que representa. O
problema que se avista é o da total impossibilidade de um juízo que não seja
representacional para o conhecimento humano. Certamente por este motivo
Hegel criticou a ideia da razão ser juíza de si mesma referindo-se à crítica
kantiana, impasse epistêmico insolúvel. Seria possível determinar quais as
categorias metafísicas que fundamentaram a visão de mundo característica de
cada fase do conhecimento humano; antigo, medieval, moderno,
contemporâneo? Em outras palavras, seria possível definir o que Foucault
denominou como uma “episteme” particular de cada época? Em certo sentido,
essa é, a meu ver, a intenção de Heidegger no ensaio “A Época da Imagem de
Mundo” de Holzwege. O problema epistemológico, no entanto, é muito menor
que o problema gerado pela apropriação tecnicista do mundo gerado por esta
visão de mundo, por esta “imagem do mundo” como algo a ser dominado pela
razão.

Na perspectiva estética a crítica da imagem como índice do real já foi


amplamente criticada na filosofia. É oportuno lembrar a crítica platônica das artes
miméticas nos livros III e X da República, “caracterizadas como ontologicamente
precárias, afastadas três vezes do real, as imagens da pintura são para Platão
mera aparência, cópia de cópia, simulacro, fantasma” (Pellejero, 2013, p. 306).
Os produtores de imagens, enquanto artistas, serão criticados por Platão.

Assimilados a crianças que brincam torpemente com um espelho,


refletindo indiferentemente a aparência do sol e do céu, da terra e
dos seres viventes, das coisas e dos homens, sem apreender na
realidade coisa nenhuma das suas naturezas. Os fazedores de
imagens têm a consciência das sombras, essa forma baixa e
irracional da consciência – eikasía – que caracteriza os habitantes
da caverna; logo, são irresponsáveis, porque jogam com uma
incapacidade séria, e compartem nesse sentido a condenação
que Platão lança sobre os sofistas. As suas imagens são
perigosas, porque remedam o espiritual, encobrindo-o sutilmente,
trivializando-o, ameaçando converter-se num substituto mágico
da filosofia, numa mediação que daria conta da realidade por um
caminho mais curto e perigosamente consolador. Todavia, o
preconceito platónico para com as imagens da arte tem como
correlato um preconceito em relação àqueles que olham para
elas, os espectadores, na medida em que as imagens apelam nos
homens à sua parte irracional (sem fins sãos nem verdadeiros). A
arte é especialmente perigosa aí onde o pensamento é menos
poderoso, ao nível da sensibilidade e das paixões. (Pellejero,
2013, p. 307).

Segundo Platão, a imagem quando é instrumento e objeto da arte é capaz de


tocar-nos, de comover-nos. Sob seu encanto somos incapazes de discernir
ciência e ignorância, realidade e ficção, verdade e aparência. Na medida em que
somos demasiado sensíveis às formas e às cores, às fábulas e às modulações
da luz, as imagens têm o poder de reduzir-nos a uma posição de total
passividade. Ora, sabemos que é na passividade do espectador que reside o
perigo do jogo da arte enquanto ilusão, engano, encantamento e alienação.

Irrealidade, irracionalidade e passividade conjugam-se assim na


produção e na contemplação das imagens da pintura, fazendo do
olhar o oposto de conhecer e o oposto de agir, uma aceitação
acrítica das aparências, coisa de crianças (Pellejero, 2013, p.308).

Vê-se claramente nesse pequeno percurso inicial que a imagem se constitui


como um problema para a filosofia enquanto problema epistemológico, estético,
cultural e, se verá, por fim, como um problema político.

Pretende-se, com esta reflexão, percorrer vários aspectos do problema da


relação imagem-subjetividade. Parte-se do problema epistemológico da
formação de uma imagem de mundo para abordar o problema da dominação
técnico-científica proporcionado pela visão sujeito-objeto advinda dessa
imagem, para, por fim, concluir com o problema da imagem como problema da
cultura.

A metafísica da subjetividade

Segundo Heidegger, a concepção de mundo característica dos chamados


“Tempos Modernos” se configura como algo bastante distinto das concepções
ditas antigas. Isto se dá pelo modo como o próprio mundo é representado pela
mente humana em diversas etapas de desenvolvimento da própria metafísica.
Na idade moderna, afirma Heidegger, o mundo se torna representação. Pelo ato
de representar o mundo o homem o torna, por assim dizer, uma imagem pré-
concebida de si mesmo, pois quem o representa porta, inevitavelmente, a “mente
moderna”. Nesta nova representação do mundo opera uma concepção
metafísica distinta da metafísica platônica, mas ainda assim opera uma
metafísica. A metafísica platônica é substituída pela metafísica de Descartes.

Quando hoje usamos a palavra ciência, ela quer dizer algo que se
diferencia essencialmente da doutrina e da scientia da Idade
Média, mas também da episteme grega. A ciência grega nunca foi
exata, e isso porque, segundo a sua essência, não podia ser exata
e não precisava de ser exata. Daí que não tenha qualquer sentido
opinar que a ciência moderna é mais exata que a da antiguidade.
Assim, também não se pode dizer que a doutrina de Galileu da
queda livre dos corpos é verdadeira, e que a de Aristóteles, que
ensina que os corpos leves tendem para cima, é falsa; pois a
concepção grega da essência do corpo, do sítio e da relação de
ambos assenta numa outra interpretação do ente e condiciona,
por isso, um modo correlativamente diferente de ver e de
questionar os processos naturais. Ninguém afirmaria que a poesia
de Shakespeare é mais evoluída que a de Ésquilo. (Heidegger,
2002, P. 99).
A metafísica da representação, ou “metafísica da subjetividade” traz em si o
pensamento dualista. O dualismo se estabelece como uma dicotomia entre o ser
e o ente. Assim como o real e o aparente contrastam na filosofia platônica
constituindo um a verdade do ser o outro a ilusão do devir, e sujeito e objeto
perfazem as relações de conhecimento no pensamento moderno. O homem
passa a ser o sujeito de conhecimento, par excellence, e o mundo objeto de
conhecimento, submetido ao poder humano, racional, da classificação e
manipulação da natureza. Essa concepção, enquanto modelo epistemológico
aplicado ao mundo das ciências naturais, por exemplo, funciona como
fundamento do surgimento da técnica moderna, esta sim motivo de
preocupações mais profundas por parte de Heidegger enquanto “crítico da
cultura” e da civilização ocidental. A apropriação técnica do mundo se torna
possível somente através dessa concepção de poder em relação ao ente
efetivada pela metafísica da subjetividade, que impõe à natureza seu regulador
e legitimador de conhecimento, a saber, o próprio homem. Em outras palavras,
Heidegger está apontando, com esta análise, para a dominação do mundo
efetivada por uma modalidade de pensamento técnico-científico que tem suas
raízes numa metafísica da representação. Segundo Heidegger, esta concepção
está aliada ao próprio Humanismo e este será um dos pressupostos de sua
polêmica crítica à visão de mundo humanista (welltanschaung). Isto é, a
valorização da “prerrogativa humana” em relação a outras formas de conceber o
ente carrega em si a forma como o humanismo domina a própria natureza e se
impõe ao próprio ente como praticamente única forma de conceber as coisas do
mundo. O modo privilegiado de ver o mundo, proporcionado pela ciência
moderna é, também um modo de dominação do ente pelo homem e a técnica
tem papel central na efetivação desta apropriação. Note-se que passamos de
uma representação para uma apropriação, de um movimento de conceber para
um ato de se apoderar instrumentalizado. A “virtude” matemática da ciência
moderna permite a exatidão da apropriação. Certeza e precisão infinitesimais
perfazem a operação cirúrgica da ciência sobre a forma natural do ente. Neste
sentido a matemática passa a ser um elemento do pensamento cotidiano sobre
o mundo natural, esse pode ser apenas um exemplo do modo como a metafísica
da ciência se apropriou de nossas consciências. Assim, Heidegger associa a
matemática à concepção científica moderna.
“Aos fenômenos essenciais da modernidade pertence a sua
ciência. Um fenômeno de um nível igualmente importante é a
técnica de máquinas. No entanto, não se pode confundi-la com a
simples aplicação prática da moderna ciência natural matemática
A técnica de máquinas é ela mesma uma transformação
autônoma da prática, de tal modo que é esta que exige o emprego
da ciência natural matemática. A técnica de máquinas permanece
o rebento até agora mais visível da essência da técnica moderna,
a qual é idêntica à essência da metafísica moderna.” (Heidegger,
2002, p. 97).

A partir do momento em que o homem pode representar o mundo de maneira


exata, pelo instrumental matemático e pelo método científico, forçosamente se
começa a pensar em um novo ideal de verdade baseado na noção de exatidão.
O que era adequatio (adequação do conceito ao real), ou o que era objeto de
reverência por autoridade (verdade-autoritas-verecundiam) passa a ser
chancelado como verdadeiro pelo ideal de exatidão, precisão e neutralidade
científica. Segundo Heidegger, como vimos, quando hoje usamos a palavra
ciência, ela quer dizer algo que se diferencia essencialmente da doctrina e da
scientia da Idade Média, mas também da episteme grega.

É curioso comprovar que já no início de seu texto sobre a imagem moderna do


mundo Heidegger aponta as consequências dessa nova concepção para o
mundo da cultura. Para o filósofo “uma terceira manifestação da época moderna,
igualmente importante, reside no processo por meio do qual a arte entra para o
domínio da estética.” (Heidegger, 2002, p. 97). A obra de arte, segundo o filósofo,
com esse processo, se transforma em objeto de uma vivência. A arte passa a
equivaler a uma expressão da vida humana. Uma quarta manifestação moderna
se anuncia no modo como a ação humana passa a ser concebida e consumida:
como cultura. Assim, a cultura seria a realização dos valores superiores através
do cultivo dos dons supremos do homem. “Trata-se, na essência da cultura
tomada como tal cultivo, de cultivar a si mesma expressamente e de se tornar,
assim, uma política da cultura.“ (Heidegger, 2002, P. 98)

O homem passa a ser o responsável pela verdade, pela verdadeira


representação do mundo e pelo mundo da cultura e de seu cultivo. Sob este
ideário de responsabilidades intelectuais se forma o homem de letras, o homem
de ciência e o homem político nos séculos XIX e XX. Afinal a política seria,
também responsável pelo cultivo da cultura, enquanto da tradição. Nota-se,
assim, o elo entre mundo da cultura, mundo da ciência e mundo da técnica no
horizonte da idade moderna. O mundo como representação e a relação entre
sujeito e objeto estão na base da concepção do mundo da cultura, da ciência e
da técnica. O sujeito do conhecimento nessa concepção é o ente de atividade
exploratória, transformadora, da técnica dominadora. O homem domina a
natureza, a humanidade domina e manipula o ser.

Imagem de mundo e cultura atual

O que torna o pensamento de Heidegger fundamental para os séculos seguintes


é, não somente a análise acurada desse processo, mas, principalmente, o
apontamento de seus perigos. O próprio humanismo desembocaria em uma
situação perigosa para o próprio homem, agora capaz de manipular todos os
entes, através da ciência e da técnica. Se tudo é objeto de manipulação do
moderno sujeito do conhecimento o próprio homem passa a ser objeto em seu
aspecto fisiológico, material e de gênese. Esta possibilidade, não prevista pela
cultura até a idade moderna, não é regulamentada pela própria cultura, isto é, o
juízo sobre a manipulação do todo ainda deve ser formulado. O problema
anteriormente epistemológico passa a ser um problema ético e cultural. Sob o
ponto de vista da ética o problema nunca se colocou pela própria impossibilidade
de manipulação técnica do homem pelo próprio homem. Esta condição de
manipulação era vedada ao homem não somente ela incapacidade técnica, mas
sobretudo, pela proibição normativa. Somente com o “desendeusamento”
(Nietzsche) ou “desdivinização” (Heidegger), neologismos criados pelo filósofo,
similares ao conceito de “desencantamento do mundo” (Max Weber), foi possível
a dominação técnico-científica sem que um imperativo normativo de proibição
absoluta se impusesse no caminho entre o homem e a mobilização total. O
problema apontado não somente por Heidegger, é que a eliminação ou a
anulação de uma prerrogativa normativa, isto é, de uma proibição para a
manipulação indiscriminada dos entes (dos humanos, da natureza) implica em
um problema ético que no limite aponta para a questão da ordenação moral do
mundo. O horizonte de desvalorização dos valores supremos até então vigentes
é o horizonte do niilismo e, neste ambiente, o homem se vê sem referências
normativas. Vale dizer que este, também, é um dos sentidos da parábola
nietzschiana da “morte de Deus” anunciada pelo “homem louco” na Gaia Ciência.
Nietzsche submeteu a cultura europeia a uma crítica impiedosa. As
consequências do próprio esclarecimento, das possibilidades e dos limites do
saber e do agir modernos são analisados por Nietzsche e colocados em termos
de uma parábola que não se refere necessariamente a uma questão teológica.
Com a parábola do Homem Louco, Nietzsche descreve o drama de nossa
condição cultural.

"Não ouvistes falar daquele homem louco que, em plena manhã


clara, acendeu um candeeiro, correu para o mercado e gritava
incessantemente: 'Procuro Deus! Procuro Deus?'— E, como lá
se reunissem justamente muitos daqueles que não acreditavam
em Deus, provocou ele então grande gargalhada. 'Perdeu-se ele,
então?', dizia um. 'Ter-se-ia extraviado, como uma criança?', dizia
outro. 'Ou se mantém oculto? Tem ele medo de nós? Embarcou
no navio? Emigrou?' — desse modo gritavam e riam entre si. O
homem louco saltou em meio a eles e trespassou-os com o olhar.
'Para onde foi Deus?', clamou ele, 'eu vos quero dízê-lo! Nós o
matamos, vós e eu! Nós todos somos seus assassinos? Como,
porém, fizemos isso? Como pudemos tragar o oceano? Quem
nos deu a esponja para remover o horizonte inteiro? Que fizemos
nós quando desprendemos esta Terra de seu sol? Para onde se
move ela, então? Para onde nos movemos nós? Longe de todos
os sóis? Não nos precipitamos sem cessar? E para trás, para o
lado, para frente, de todos os lados? Há ainda um alto e um baixo?
Não erramos como através de um nada infinito? Não nos bafeja o
espaço vazio? Não ficou mais frio? (Nietzsche, 2001, p. 147-148).

Nietzsche descreve, com a parábola, o sentimento de abandono e o vazio


característico da consciência do homem moderno. Os homens modernos com
sua visão científica, teriam vencido a disputa pela interpretação verdadeira do
mundo, mas não estariam conscientes da dimensão épica de seu próprio feito.
Nietzsche teria levado até as últimas consequências o impulso crítico que
animava o pensamento filosófico da modernidade. Para o filósofo, não se pode
levar essa crítica até o seu limite se não retornarmos ao platonismo, isto é, à
imagem de mundo característica da metafísica antiga. Fica claro que Heidegger,
de certa forma, assimilará e dará continuidade à essa crítica.

“Esta expressão não visa a simples eliminação dos deuses, o


ateísmo grosseiro. A desdivinização é o dúplice processo de, por
um lado, a imagem do mundo se cristianizar, na medida em que o
fundamento do mundo é estabelecido como o infinito, o
incondicionado, o absoluto, e, por outro lado, o cristianismo
transformar a sua cristianidade numa mundividência (a
mundividência cristã) e, deste modo, se modernizar. A
desdivinização é o estado de ausência de decisão sobre o deus e
os deuses.” (Heidegger, 2002, P. 98).

O esvaziamento ou o desagaste do horizonte da metafísica religiosa dá lugar a


uma outra perspectiva para a metafísica moderna. A perspectiva da
investigação. Para Heidegger, assim como para as mais elementares definições,
a essência daquilo a que hoje se chama ciência é a investigação. Em que
consiste a essência da investigação? Antes de tudo em se preparar para o novo
dado, para a mutabilidade do ser. Daí, observa Heidegger, que o avançar tenha
de ter livre o olhar para a mutabilidade daquilo que se encontra. Só no campo de
visão do sempre-outro da mudança se mostra a plenitude do particular, dos
factos. Esta particularidade da investigação científica não pode pensar mais o
mundo como uma essência imutável, constante e eterna. A desconfiguração de
tal “imagem de mundo” se dá necessariamente pelo próprio método e por sua
nova concepção metafísica.

Mas quais seriam os perigos dessa nova concepção e a quais condições as


quais ela nos levou, uma vez que já decorrem pelo menos dois séculos dessa
apropriação de conhecimento e de dominação técnica sobre a natureza e a vida
em geral. Uma delas tem especial interesse no que diz respeito ao chamado
mundo da cultura.

Na cultura, esse processo de estabelecimento da hegemonia da modalidade


científica do conhecimento produziu um “domínio ideológico”, no sentido mais
restrito desta palavrada tão polissêmica. Um domínio da ciência sobre outras
manifestações interpretativas da vida humana e do mundo. O resultado dessa
hegemonia levou a uma preponderância do tipo de saber exclusivamente
metodológico-sistemático sobre qualquer outro tipo de saber. Por força dessa
prioridade em relação aos problemas epistemológicos a própria filosofia passa a
dar mais ênfase às questões relativas ao modo, forma e possibilidade do
conhecimento do homem moderno. O mundo da vida (Lebenswelt), no entanto,
se caracterizaria por uma forte guinada tecnológica mudando a própria forma de
produção da arte e da cultura. O problema que se impõe neste contexto é que
essa forma de apropriação dos entes se justifica por si própria, pois é a forma
com que os sistemas políticos, científico-tecnológicos e até culturais se colocam
à serviço do homem moderno. Sua imposição é sua própria legitimação. A
tecnologia por si mesma se impõe como uma necessidade para as várias áreas
da cultura, para a arte, por exemplo. E os exemplos podem ser vários e de muitos
tipos: o modo de produção dos bens é técnico, inclusive dos bens culturais, e a
forma de organização social é burocrática, portanto matemática e científica. A
própria noção de ascensão é dada pela possibilidade de acúmulo de objetos e
de recursos tecnologicamente valorizados em relações de troca. O que é objeto
de troca é, antes, fruto da técnica. A noção de valor se apega à técnica como
nenhuma outra característica dos entes. Neste sentido o que é tecnológico, por
si só, tem mais valor no munda das trocas. Paralelamente, o próprio mundo
acadêmico se vê atingido por essa tendência científico-técnica no sentido de
uma empresa que objetiva uma finalidade de pesquisa. O investigador substitui
o erudito e a ideologia da produtividade científica se difunde.

O desenrolar-se decisivo do carácter de empresa moderno da


ciência cunha também, por isso, uma outra espécie de homem. O
erudito desaparece. É rendido pelo investigador que está nos
seus empreendimentos de investigação. Estes, e não o cuidado
de uma erudição, dão ao seu trabalho o ar fresco. O investigador
já não precisa de nenhuma biblioteca em casa. Ele está aliás
constantemente em viagem. Discute em colóquios e informa-se
em congressos. Vincula-se a encargos de editores. Estes co-
determinam agora que livros têm de ser escritos (3). O
investigador é impelido necessariamente para o círculo da figura
essencial de técnico, num sentido essencial. Só assim é que
continua a ser eficaz e, deste modo, efectivo no sentido da sua
era. O romantismo da erudição e da universidade, que se torna
cada vez mais raro e cada vez mais vazio, pode ainda manter-se
por mais algum tempo e algures, à margem. No entanto, o
carácter de unidade eficaz e, [79] assim, a efectividade da
universidade não reside num poder espiritual de união originária
das ciências, que dela emana por ser por ela alimentado e nela
guardado. A universidade é efectivamente real como uma
instituição que torna possível e visível, ainda numa forma peculiar,
porque administrativamente fechada, a dispersão das ciências na
particularização e na unidade particular das empresas.
(Heidegger, 2002, p. 108).

Se, como vimos, a “imagem de mundo” (Weltbildes) característica da idade


moderna é a base para nossa visão “científica” ela se relaciona diretamente com
nossa moderna “visão de mundo” (Weltanschaung) “cientificista”. Esta
perspectiva, para Heidegger, deve ser interpretada como uma perspectiva
ideológica. No cenário da contemporaneidade, no entanto, se confrontam
diferentes “visões de mundo”. Os adeptos de uma ideologia específica não
concebem o mundo pela mesma imagem que outra ideologia o concebe. A
interpretação do mundo parte de uma imagem do mundo e se molda, não
esqueçamos, a um querer (subjetividade) sobre o mundo. Assim, uma ideologia
seria como um processo de produção de ideias, crenças e valores baseados em
uma intencionalidade não explícita. Essas ideias e crenças sempre são objeto
de síntese nas imagens que compõem a cultura. Uma imagem aparentemente
banal como uma imagem publicitária carrega em si os elementos de imagem e
visão de mundo. Nesse sentido, se a história da cultura é a história da elaboração
consciente e inconsciente de imagens-síntese de visões de mundo, a história
dos ideais humanos seria uma história de seus efeitos sobre a subjetividade.
Neste sentido a falsa-consciência, isto é, uma visão equivocada do que é o
mundo, ocorre, cotidianamente, muito mais facilmente do que podemos
imaginar. A metafísica do mundo como uma imagem, portanto, tem várias
facetas, nem todas reconfortantes para os destinos do conhecimento.

O que pretende Heidegger com um projeto fenomenológico, entre outras coisas,


é tentar escapar destas maneiras pré-determinadas pela forma de apropriação
que o homem moderno se impôs. Adotando uma ideia original de Edmund
Husserl, Heidegger aponta para uma crise na cultura europeia causada pela
visão ortodoxa da ciência como discurso privilegiado de apropriação do ser do
mundo.

“A supervalorização do mundo científico (objetivo) leva ao que


Husserl (1997) chamou de Crise das Ciências Européias, tema de
sua última obra publicada em vida: Die Krisis der europäischen
Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie: Eine
Einleitung in die phänomenologische Philosophie (1936). Trata-se
não de uma crise das ciências enquanto tais (é bastante óbvio que
as ciências continuam progredindo e produzindo conhecimento),
mas trata-se basicamente de uma crise de sentido. A neutralidade
do mundo da ciência deixa de fora questões humanas
fundamentais (valores, cultura, ética), de modo que entre o mundo
da ciência e o mundo-da-vida vai se instaurando gradualmente um
processo de distanciamento. O ponto de Husserl é que a ciência,
assim constituída, tem muito pouco a nos oferecer no que se
refere às questões mais fundamentais para a humanidade: seus
valores, sua cultura e o sentido da existência individual e coletiva.”
(Struchiner, 2007, P. 242).

Heidegger aponta para a perda de uma relação autêntica com o ser provocada
pelos rumos que tomaram a própria filosofia, o caminho epistemológico, a ciência
em sua guinada tecnicista e finalmente a cultura em sua vertente humanista. A
acusação de Heidegger é contra as bases mesmas do que denominamos
civilização ocidental e não apenas ao que aparece como fenômeno desta cultura
e visão de mundo, mas, especificamente, ao que a sustenta enquanto fundo
metafísico. Assim como Husserl separou o mundo da vida do mundo da ciência
propondo novas possibilidades de interpretação do real, Heidegger aponta para
a via única (cientificista, técnica) que tomou a cultura do ocidente como uma via
de riscos ao próprio homem.

Toda esta crítica pode ser acusada de constituir uma tecnofobia. De fato, certas
correntes refratárias ao desenvolvimento tecnológico se inspiram, em certa
medida, em concepções negativistas com relação ao desenvolvimento da
técnica e dos rumos éticos da manipulação da natureza. No entanto, no que diz
respeito à cultura como produção de significados para o mundo o problema se
revela de maior complexidade e de uma aparente irresolução, sobretudo a partir
do momento em que se tornou popular certa visão pós-moderna da cultura e de
seu cultivo. São desta época, por exemplo o uso de termos como cult, kitsch,
pop, hiper. O cultivo da cultura que era concebida como uma atividade individual,
dispendiosa de tempo e de riqueza passa a ser uma automatização do consumo
de imagens em substituição das letras. Pode-se caracterizar, por exemplo, a
cultura característica dos séculos XVIII e XIX como culturas das letras, da
palavra, porém, quando se atinge o século XX esta definição exige uma
adaptação para algo próximo de uma cultura das letras e das imagens. Esta
mudança, obviamente, tem como fator principal o desenvolvimento da tecnologia
no âmbito da produção cultural. Neste sentido que a obra de Walter Benjamin “A
obra de Arte na época de sua reprodutibilidade técnica” não somente aponta
para os dilemas estéticos da segunda metade do século XX, e
consequentemente dos séculos vindouros, como é bastante feliz na síntese de
seu título aliando os dois problemas centrais da cultura atual “Técnica” e “Arte”.
A arte no nosso século é, antes de tudo, imagem. Em outras palavras, ocorre
com a cultura atual um fenômeno de reconhecimento de referências imagéticas
que tomam o lugar do reconhecimento conceitual, ou discursivo, característico
da cultura dos séculos anteriores. A cultura pop é o exemplo máximo dessa nova
modalidade de “saber”. Boa parte do que se considera a fruição estética na
cultura contemporânea está baseada no reconhecimento de imagens da própria
cultura pop. Assim a cultura contemporânea cria um círculo de reconhecimento
e satisfação que provoca reconhecimento, desta vez intelectual e social e,
consequentemente, um prazer “estético”. Acrescente-se neste movimento de
consumo um volume excessivo (massivo) de produções e uma nova valorização
(revalorização) do tempo para o consumo da arte.
Para termos uma visão mais acurada desse “estado estético contemporâneo” o
próprio termo pós-moderno não é mais suficiente. Gilles Lipowetsky, na tentativa
de superar a insuficiência deste termo cunhou o termo “Hipermodernidade”. Para
Lipowetsky a expressão pós-moderno é vaga. Há na expressão uma sugestão
que não é efetiva, a saber, que o moderno estaria morto. Não é o que verificamos
na realidade, várias instituições da modernidade são, ainda, pilares de nossa
civilização contemporânea. O que ocorre sim nos dias de hoje seria um
liberalismo globalizado, na mercantilização dos modos de vida e numa
individualização galopante. Lipovetsky sugere o termo hipermoderno.

A Hipermodernidade seria caracterizada por uma cultura do excesso. As coisas


se tornam urgentes e sua reposição é necessária e inevitável, sejam elas
produtos materiais ou culturais. O tempo de fruição da arte se acelera e perde
conteúdo. A informação supera a formação. Esse movimento de aceleração da
cultura não considera a vagareza da subjetividade em interpretar e assimilar os
conceitos. Nesse sentido, ocorre uma esquizofrenia cultural. O efêmero faz parte
da formação mais do que o duradouro, mais do que o clássico. Há, de fato, uma
integração, mas essa integração da cultura se dá necessariamente através de
regras do mercado. Vemos o surgimento do capitalismo cultural e da
mercantilização da cultura.

O funcionamento do mundo liberal, que gera mais lucro, mais


eficiência e mais racionalidade, parece justificar os receios de
Heidegger, o qual, a respeito da técnica, denunciava uma
deturpação de seu sentido em favor de uma “vontade de vontade”,
uma dinâmica de poder que se alimenta de si mesmo, sem outra
finalidade além de seu próprio desenvolvimento. A vontade, que
de início era animada pelo louvável desejo de aliviar a
humanidade de seu sofrimento imemorial, transformou-se pouco
a pouco em vontade de poder, tendo como única finalidade seu
próprio domínio sobre os homens e as coisas, em última análise,
produzindo este mundo fanático da técnica e do desempenho que
é o nosso. (Lipovetsky, 2004, P. 34).
A racionalidade do excesso aponta ainda para um problema estético de
consequências incalculáveis para a o mundo da produção e do consumo da arte.
A própria preocupação relacionada com a beleza, enquanto ideal artístico passa
a ser substituído por uma ideia de conceito. A arte conceitual, características de
movimentos como o dadaísmo, por exemplo, nega a funcionalidade estritamente
ligada ao ideal de beleza. Roger Scruton, em “Beauty”, que daria origem ao
documentário “Why Beauty Matters?” denuncia que “o repúdio à beleza é
alimentado por uma visão particular de arte moderna e de sua história. A obra
de arte justifica-se a si mesma ao anunciar-se como um visitante do futuro. O
valor da arte é o valor do choque.” (Scruton, 2015, p. 179). Ora, essa fuga da
beleza, além de questionar mesmo que legitimamente um establishment cultural,
abre as portas para o vale tudo em arte e cultura da imagem. A banalização da
imagem enquanto obra de arte fica mais exposta aos fatores de massificação e
consumo, pois a figura do artista, antes exclusivista e rara se alastra e se
intensifica em sua decadência. Segundo Scruton, as aberrações no campo da
arte contemporânea chegam a abalar o próprio conceito de arte na medida em
que um objeto passa a ser considerado arte simplesmente porque o autor a
nomeia como arte. Um dos fatores da decadência é a falta de critérios.

Conclusões

A título de conclusão poderíamos nos perguntar qual relação que existiria entre
as críticas de Lipovetsky à cultura hipermoderna, as análises de citadas de
Benjamin e de Adorno sobre a cultura contemporânea e a denúncia de
Heidegger sobre a apropriação técnico-científica proporcionada pela visão de
mundo moderna?

A resposta está diretamente ligada à linguagem e sua capacidade de criar formas


de consciência. Para compreender esta característica temos que entender algo
do processo fenomenológico. Isto é possível através de um pequeno
experimento de pensamento.

Quando olhamos para uma paisagem podemos ver várias coisas: um rio, um
campo, pessoas e o sol, por exemplo. Percebemos, pela sugestão do método
fenomenológico, que cada coisa que foi enunciada já havia sido determinada em
seu significado por uma cadeia de significação culturalmente imposta à minha
subjetividade. Isto é, já havia uma semântica e uma sintaxe que dariam o sentido
do que vejo. Todavia, tudo que vejo pode deixar de ser percebido como os
nomes e palavras com sentido determinado. O que Heidegger aponta é que a
realidade pode aparecer como realmente é e não por força interpretativa de uma
linguagem dada. Haveria nesse ato, uma “experiência originária”. O que esse
ato, essa experiência fenomenológica, pode nos mostrar, em primeiro lugar, é
que o que fala por nós ao descrevermos essa paisagem é a linguagem e não
nossa experiência mesma, pois já estamos condicionados a interpretar as coisas
como nossa linguagem determina. Ora, com a cultura e, sobretudo com a cultura
das imagens, isto é o modo corrente, por não dizer “correto”, de interpretar essas
imagens, ocorre o mesmo modelo condicionante. Uma imagem que é veiculada
com forte sentido interpretativo em redes sociais, na televisão e no cinema, por
exemplo se torna a maneira correta de interpretar tal imagem. Ocorre, assim,
uma descaracterização e anulação da experiência originária da apreciação
dessa imagem. Sob esse monopólio interpretativo (político) se dá a cultura de
nosso tempo. Para concluir voltemos à Heidegger.

Se utilizarmos o método fenomenológico proposto por Husserl e Heidegger


podemos, em certo sentido, suspender a interpretação vigente. No caso mais
simples da contemplação das coisas, por exemplo, temos que a ciência nos diz
que ver é um fenômeno que depende da luz. A luz incide sobre as coisas e de
maneira ondulatória chega à nossa retina, só assim vemos as coisas. Se penso
que ver é um fenômeno de propagação de ondas não estou interpretando pela
linguagem científica, portanto em uma relação de sujeito-objeto a minha
experiência. Se eu consigo entender o fenômeno da linguagem atuando por
detrás desse processo cognitivo eu compreendo que essa experiência não é
uma experiência originária. A rigor, essa experiência está baseada na concepção
sujeito-objeto-representação, característica de uma visão de mundo e de uma
imagem de mundo determinada pela metafísica moderna.

Finalmente, no caso da cultura contemporânea e de sua proliferação midiática


interpretativa-impositiva das imagens, impera, mais do que uma visão metafísica
(dualismo-sujeito-objeto) do real, por força seus aspectos técnico-científicos e,
também, tecnicistas e cientificistas, inerentes à produção da cultura como
mercadoria, mas também a formação de padrões de interpretativos homogêneos
de criação de valores culturais. Assim, a imagem é interpretada antes de chegar
ao intérprete-consumidor de arte e cultura. Toda a arte contemporânea sofre, por
assim dizer, a orientação de uma linha interpretativa aceita pelos meios cultos
entre os consumidores letrados, toda a cultura média é acolhida em um ambiente
politicamente pré-determinado por ideias de igualdade, reciprocidade e
reconhecimento, capazes de conferir aos consumidores seu status de semi-
cultura ou semi-formação (Halbbildung) e toda cultura de massa é balizada pelas
eficazes fórmulas do entretenimento. De todo esse contexto conclui-se, tanto por
influência do método fenomenológico como por sugestão da teoria crítica que a
imagem, enquanto objeto da cultura se ressente cada vez mais de autonomia. A
experiência de interpretar uma imagem se vê, a cada dia, mais distante de uma
autenticidade originária. O que vemos no nosso cotidiano de consumo cultural já
possui a marca da interpretação heterônoma e não mais se caracteriza como a
imagem originária. Se adotarmos uma fórmula muito cara a Adorno para a
interpretação da cultura atual, o ato de ver uma imagem, em muito casos
significa, hoje, aceitar uma tutela interpretativa. Nesse sentido, a distinção que é
apontada por Heidegger em Holzwege (A época de imagem de mundo) segundo
a qual a concepção de mundo característica dos chamados “Tempos Modernos”
se configura como algo bastante distinto das concepções ditas antigas pelo
modo como o próprio mundo é representado pela mente humana em diversas
etapas de desenvolvimento da própria metafísica, pode ser retomada a partir da
consideração de uma nova “metafísica” interpretativa na idade contemporânea.
Os pontos de vista característicos do rebanho (Nietzsche), do espetáculo
(Debord), do entretenimento (Adorno) e da moda (Lipovetsky), determinam o
prazer e a decadência (Scruton) do culto e da cultura da imagem atual. Isenta de
prerrogativa da beleza a imagem se dilui em um mercado de referências e
repetições.

A acusação de Adorno aponta não somente para o perigo da massificação


heterônoma direta através dos meios de comunicação, mas também para o ideal
de formação passiva e consensual e para o “filisteísmo cultural” dos formadores
de opinião. Este tipo cultural foi caricatamente apresentado por Nietzsche na
figura do “último homem”. Esse animal de rebanho se auto-interpreta como o fim
último da história, como o telos (finalidade) manifestado da história do mundo.
Sua segurança seria assegurada pelo reinado universal da razão seja em uma
sociedade sem classes seja em uma sociedade de mercado, de onde se poderia,
por fim, fazer desaparecer toda desigualdade, injustiça e sofrimento.

Nietzsche nos lembra que há uma tendência muito forte no sentido de que,
fisiologicamente, esse homem seja um decadente. Esse “último homem” é, na
verdade, uma construção de um ser impotente para suportar o sofrimento, pois
sua imagem e ideal foram erigidas sob o signo do prazer e da distração. A
banalidade dos prazeres e o ideal de consenso e conforto constituem seu
supremo ideal de felicidade. Nesse contexto a imagem midiática tem um papel
primordial. É a imagem que impõe e reproduz esse ideal de humanidade, seus
instrumentos são a educação, a publicidade e o consenso democrático mediado
pela opinião pública e as imagens de bem-estar e sucesso característicos dos
produtos culturais. O homem não se torna mais somente igual, mas passa para
o nível do idêntico. Gilles Deleuze em Diferença e Repetição aponta como
problema central do pensamento moderno esse homem de consciência idêntica.
Ele teria nascido da falência da representação, assim como da perda das
identidades e das descobertas de todas as forças que agem sob a representação
do idêntico. O mundo moderno seria o mundo dos simulacros. (DELEUZE, 1988).
Baudrillard também denuncia a simulação característica da imagem como
simulacro.

“Hoje a abstração já não é a do mapa, do duplo, do espelho e do


conceito. A simulação não é já a simulação de um território, de um
ser referencial, de uma substância. É a geração pelos modelos de
um real sem origem nem realidade: hiper-real. O território já não
precede o mapa, nem lhe sobrevive. É agora o mapa que precede
o território - precessão dos simulacros - é ele que engendra o
território cujos fragmentos apodrecem lentamente sobre a
extensão do mapa. É o real, e não o mapa, cujos vestígios
sobrevivem aqui e ali, nos desertos que já não são os do Império,
mas o nosso. O deserto do próprio real.” (BAUDRILLARD,
1991, p.8)
No deserto do real se dá a invenção da felicidade através da mediação da
imagem e a imagem é o elemento central de consecução desse ideal de
felicidade baseado no entretenimento e na voragem do imagético.

“Nós inventamos a felicidade” – dizem os últimos homens, e


piscam o olho. Eles deixaram as regiões onde era duro viver: pois
necessita-se de calor. Cada qual ainda ama o vizinho e nele se
esfrega: pois necessita-se de calor. Adoecer e desconfiar é visto
como pecado por eles: anda-se com toda a atenção. Um tolo,
quem ainda tropeça em pedras ou homens! Um pouco de veneno
de quando em quando: isso gera sonhos agradáveis. E muito
veneno, por fim, para um agradável morrer. Ainda se trabalha,
pois trabalho é distração. Mas cuida-se para que a distração não
canse. Ninguém mais se torna rico ou pobre: ambas as coisas são
árduas. Quem deseja ainda governar? Quem deseja ainda
obedecer? Ambas as coisas são árduas. Nenhum pastor e um só
rebanho! Cada um quer o mesmo, cada um é igual: quem sente
de outro modo vai voluntariamente para o hospício. “Outrora o
mundo inteiro era doido” – dizem os mais refinados, e piscam o
olho. São inteligentes e sabem tudo o que ocorreu: então sua
zombaria não tem fim. Ainda brigam, mas logo se reconciliam –
de outro modo, estraga-se o estômago. Têm seu pequeno prazer
do dia e seu pequeno prazer da noite: mas respeitam a saúde.
“Nós inventamos a felicidade” – dizem os últimos homens, e
piscam o olho. (Nietzsche, 2011,

Referências bibliográficas

DELEUZE, G. Diferença e repetição, São Paulo, Editora Relógio D’água, 2000.

HEIDEGGER, M. Holzwege, V. Klostermann, Frankfurt am Main., 1950.

_____________. Caminhos de floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,


2002.
LIPOVETSKY, G. Os tempos hipermodernos, São Paulo, Ed. Barcarola, 2004.

HUSSERL, E. A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia


Transcendental, São Paulo Ed. Forense Universitária, 2012.

NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência, São Paulo, Cia das Letras, 2001.

_____________, Assim Falou Zaratustra, São Paulo Cia das Letras, 2011.

SCRUTON, R. Beleza, São Paulo, editora: É realizações, 2015.

STRUCHINER, Cinthia Dutra. Fenomenologia: de volta ao mundo-da-vida. Rev.


abordagem gestalt., Goiânia , v. 13, n. 2, p. 241-246, dez. 2007 . Disponível
em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-
68672007000200009&lng=pt&nrm=iso>. acesso em 01 maio 2017.

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