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Júlia Pessôa
Colaboração para o TAB, de Juiz de Fora (MG)
14/10/2020 04h01
Como quase todas as tretas do Twitter, ninguém sabe exatamente como esta começou.
Mas em pouquíssimo tempo, a rede repetia variações das mesmas perguntas em seus
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Assuntos do Momento e em milhares de perfis: "Sua avó entende sua tese? Seu TCC
chega à sua mãe?".
A partir do tuíte, seguiram-se as mais variadas respostas, das que rebatem a crítica que o
meme supostamente pretende fazer às — mais populares, diga-se de passagem —
incontáveis piadas desdobradas a partir das indagações originais.
Para Eni Orlandi, uma das mais importantes referências do país no campo da análise do
discurso, o principal equívoco do meme é partir de uma pressuposição de que
"conhecimento" é algo homogêneo e imutável. "O conhecimento formal, acadêmico, é
produzido em certos espaços e sob determinadas normas, mas ele não é imóvel. Ele se
movimenta e se transforma na sociedade. A Lei de Gravidade é uma formulação
científica, mas as pessoas sabem que se largarem alguma coisa no ar, ela cai no chão —
e usam esse conhecimento diariamente. Dá para dizer que esse saber não chegou a
elas?", provoca a professora da Unicamp.
Orlandi destaca que há uma enorme diferença entre a socialização do saber e sua
institucionalização. Segundo ela, a busca de legitimação de qualquer conhecimento por
instituições acaba criando um imaginário social completamente implausível, de que os
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"Essa busca quer apenas validar sem avaliar, e fixar determinado conhecimento como
'legítimo'. Um bom exemplo na prática é o que vemos acontecer com os ministros que
mentem sobre cursos e especializações que acham que deveriam ter para serem
validados nos postos que ocupam. Na verdade, o conhecimento só se produz como tal
quando se abre, quando se constitui como relação social entre pessoas e entre formas de
saber. Neste sentido, não é possível conceber hierarquia entre formas de conhecimento."
Outro questionamento possível de ser levantado a partir do meme que relaciona avós,
mães e teses diz respeito a quem se atribui, no imaginário coletivo, a possibilidade de
compreensão do saber científico. "Nunca às mulheres!", conforme adianta a doutora em
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"Sempre este tipo de pergunta usa figuras femininas como exemplo: sua avó, sua mãe, a
proverbial 'Dona Maria' e não homens. Isso reforça uma construção de que mulheres são
incapazes e presume também, uma subalternização, ao sugerir a imagem de uma mulher
que é mais pobre, que não estudou, supondo também onde estas mulheres deveriam
estar na sociedade."
"Só que isso não traz equiparação salarial com os homens, não corresponde a um
aumento significativo de mulheres em posição de liderança e também não contribui para
desconstruir o preconceito de gênero, tão arraigado socialmente, de que as mulheres não
são inteligentes, de que não conseguem entender coisas complexas. Esse meme reforça
todos estes problemas", pontua Moschkovich, copesquisadora do Núcleo de Estudos
sobre Marcadores Sociais da Diferença (Numas), da USP (Universidade de São Paulo).
Eni Orlandi aponta e desconstrói, com sua própria vivência, outro preconceito embutido no
meme: o geracional. Afinal, desmantelando o raciocínio que o tuíte pretende construir, ela
é a própria avó que entende o TCC. No caso, o do neto Thiago, estudante de física. "É
óbvio que, dada a desigualdade social do país, ser de uma família em que a avó -- como
eu -- trabalha com produção científica, aponta para um privilégio, uma exceção. Dito isso,
o meme sugere que há uma barreira geracional para se compreender algo produzido pela
ciência formal, e que estaria além do alcance de avós e mães. Como se o conhecimento
atendesse a uma linearidade cronológica e não fosse historicamente construído e
transformado pelas relações sociais, inclusive entre diferentes gerações", destaca Orlandi,
que também leciona disciplinas relacionadas à divulgação científica na Unicamp.
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"Meu pai é bombeiro hidráulico, e não sei absolutamente nada sobre o que ele faz — o
que não quer dizer que o conhecimento dele não seja essencial para a sociedade. As
complexidades dos saberes são muitas, e situar a academia como esse lugar de
produção de conhecimentos complexos que não são reconhecíveis ou imediatamente
'úteis' é uma armadilha muito perigosa", argumenta ela. "As pesquisas servem a uma
multiplicidade de protagonismos, são escritos da memória, criam uma história pública,
integram uma sociologia do conhecimento e a psicologia social", destacando que é
preciso se perguntar a quem serve a tentativa de silenciar da ciência.
Nathália
@nathaliaraptor
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Doutora em educação pela USP, Carolina Bezerra observa que a ideologia anticiência
causa efeitos desastrosos e, em alguns casos, fatais. "Vivemos agora um momento em
que o conhecimento científico e acadêmico é crucial para se combater a Covid-19. Aqui
no Brasil e nos Estados Unidos, por exemplo, a tentativa de negar essa premissa levou a
erros perigosíssimos e que põem a vida das pessoas em risco, como a recomendação do
uso de hidroxicloroquina. Os trabalhos que estão sendo desenvolvidos nas instituições
não serão compreendidos pela maioria esmagadora da população, mesmo que sejam até
da área, mas não trabalhem exatamente com esse tipo de vírus. Todas as pessoas do
planeta são afetadas pelas descobertas", argumenta a pesquisadora.
A socióloga Marília Moschkovich alerta que, a médio e longo prazo, essa ideologia do
descrédito na academia, e discursos como o de que o trabalho de pesquisadores seria
"mamata", ao encontrarem eco na sociedade, são também uma manobra política. "Fazer
as pessoas concordarem que 'a universidade não faz nada', o 'conhecimento acadêmico'
não tem utilidade é uma estratégia eficaz e cruel para legitimar o corte de dinheiro
investido na ciência, o desmonte da produção científica e no caso do Brasil,
especificamente da universidade pública, o que é uma ameaça gravíssima".
Pegando carona em uma das piadas feitas a partir da pergunta original, vale a pena
perguntar: sua tese entende sua mãe e sua avó? Será que a academia só dialoga com o
público em suas realidades com a leitura de TCCs e teses?
"A crítica que o meme tenta fazer é completamente rasa. Então, num cenário muito
hipotético, uma mãe que tem cinco filhos tem que entender o trabalho acadêmico de
todos? E uma avó com 15 netos? O que é preciso é que haja cada vez mais investimento
para que as pessoas queiram entender as questões de que a academia trata, porque são
afetadas por ela. E isso não acontece lendo tese. É para isso que existe a divulgação
científica", observa Giovana Castro.
Com ampla experiência na área, a professora Eni Orlandi explica que a divulgação
científica mobiliza linguagens e técnicas específicas. Por isso, é um dos espaços que cria
condições para que o conhecimento aconteça. "A ciência está presente e atuante na
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A professora Carolina Bezerra acrescenta que outro pilar importante de diálogo com a
sociedade são os projetos de extensão, que aproximam a comunidade acadêmica da
população por meio de iniciativas práticas embasadas pelo conhecimento científico.
"A academia se desenvolve apoiada no tripé entre ensino, pesquisa e extensão. E nessas
iniciativas, o conhecimento científico se transforma também. Há projetos de extensão, por
exemplo, em que o contato com populações indígenas pode fazer com que arquitetos
aprendam sobre o uso de materiais sustentáveis, adaptação ao clima e várias outras
características. E isso acontece em todas as áreas", exemplifica. "O que diferencia estes
conhecimentos é que eles não são marcados pela relação com os papéis, as patentes,
quebram com a concepção de conhecimento elitista, burocrática e eurocêntrica como o
meme pretende 'vender' a produção científica".
Por fim, Marília Moschkovich lembra que a linguagem "difícil" da academia faz parte do
processo de avanço do conhecimento científico e do rigor que ele exige. "Para aprofundar
a percepção das pesquisas, é preciso inseri-las em toda uma gama de teorias,
experimentos e ferramentas de análise antes que elas possam ser compreendidas só com
base nas experiências das pessoas. Seja uma cirurgia ou um fenômeno social, não dá
para explicar num tuíte."
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