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Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD)

3(1): 34-41 janeiro-junho 2011


© 2011 by Unisinos – doi: 10.4013/rechtd.2011.31.04

O garantismo de Luigi Ferrajoli1


Luigi Ferrajoli’s garantism

Dario Ippolito2
Università di Roma, Itália
dario.ippolito@uniroma3.it

Tradução: Hermes Zaneti Júnior3

Resumo
Nos últimos dois séculos, à palavra garantismo foram associados vários significados, vez
por outra ligados às exigências de segurança social, de tutela constitucional das liber-
dades fundamentais, de limitação do poder punitivo do Estado. O garantismo penal, ger-
minado na cultura jurídica do Iluminismo, encontrou a sua maior expressão teórica na
reflexão de Luigi Ferrajoli, o qual nos últimos 20 anos articulou e expandiu o paradigma
garantista, correlacionando-o às diversas dimensões da democracia constitucional.

Palavras-chave: garantismo, constitucionalismo, Ferrajoli.

Abstract
In the last two centuries, several meanings have been associated with the word
“guarantism”, linking it with the demand for welfare, constitutional guardianship
of fundamental freedoms and z limitation of the state’s punitive power. Penal
“guarantism”, forged in the legal culture of the Enlightenment, has found its major
theoretical expression in Luigi Ferrajoli’s reflection, who over the last 20 years has
articulated and expanded the “guarantist” paradigm, putting it in relation with the
various dimensions of constitutional democracy.

Key words: guarantism, constitutionalism, Ferrajoli.

1
Versão ampliada e revisada do artigo “Garantismo. Un accostamento all’opera di Luigi Ferrajoli” publicado originalmente em 2008 na L’Acropoli rivista bimestrale diretta
de Giuseppe Galasso, IX(1). Disponível em: http://www.lacropoli.it/articolo.php?nid=187.
2
Università di Roma. Facoltà di Giurisprudenza.Via Ostiense 161, 00154, Roma, Itália.
3
Professor do Programa de Pós-Graduação stricto sensu da Universidade Federal do Espírito Santo. Email: zaneti.ez@terra.com.br.
Ippolito | O garantismo de Luigi Ferrajoli

A palavra “garantismo” – hoje de uso corrente la proprieté e du garantisme de Paul de Jouvencel, editada
nas principais línguas neolatinas – é um neologismo do em 1847; Révolution sociale (1848) de Fontarive, que se
século XIX (época prolífica de ismos políticos: libera- ocupa entre outras coisas – como preanuncia o subtítu-
lismo, constitucionalismo, comunismo...). O significado lo – das “Institutions de garantisme”; e os Principes de so-
com o qual se afirmou originariamente no léxico po- ciologie (1867) de François Barrier, nos quais se encontra
lítico francês é muito distante daquele atualmente pre- desenvolvido um articulado discurso sobre “garantismo
valente. Se abrirmos o Dictionnaire de la langue française agrícola”, sobre “garantismo industrial”, sobre “garantis-
de Émile Littré, editado em quatro tomos por Hachette mo doméstico”, etc., que alguns anos depois aparece
entre 1873 e 1874, encontraremos a seguinte definição nas colunas do Grand Dictionnaire universel du XIX siècle
de garantisme: “Dans le langage de l’école fourieriste ou (1872) de Pierre Larousse.
sociétaire, sistème de feodalité industrielle qui doit sui- Os exemplos poderiam multiplicar-se (respin-
vre notre anarchie et préceder l’association définitive”. gando entre os textos dos tardios seguidores do fourie-
O leitor que insatisfeito pela lacônica obscuri- rismo) até o começo do séc. XX, quando já a circulação
dade da informação escolhesse procurar outras fontes da palavra “garantismo” havia superado os limites da es-
lexicográficas permaneceria desiludido: o respeitado cola. Estendendo a sondagem às décadas sucessivas, não
Dictionnaire nationale de Louis-Nicolas Bescherelle, do se revelam significativos deslizes semânticos: persiste –
qual a quarta edição data de 1856, não contempla nem na era do Welfare State – a inicial referência à exigência
mesmo o verbete, e igualmente pobre se revela o Dic- da segurança social.
tionnaire classique de Henri Bescherelle, malgrado se au- Diferente (e totalmente independente da lição
tocredite, no frontispício de 1880, como “le plus exact de Fourier) é o significado com o qual o termo “ga-
e le plus complet de tous les ouvrages de ce genre”. rantismo” entrou em uso na língua italiana. Estabelecer
Tais omissões são significativas: evidentemente, a palavra quando (e à obra de quem), não é fácil. No monumental
garantisme – na França do século XIX – não pertencia à Dizionario de Tommaseo e Bellini, em oito tomos, surgi-
linguagem comum. do entre 1861 e 1879, de “garantir” se passa a “garanza”.
Em efeito, como atesta Littré, se trata de uma pa- Do lema não existe traço nem mesmo nos vocabulá-
lavra “de escola”, criada e codificada no seu uso semân- rios italianos das primeiras décadas do séc. XX. Todavia,
tico em um âmbito filosófico-político determinando: o como sabemos graças a Perfecto Andrés Ibañez (Andrés
filão de pensamento inaugurado por Charles Fourier Ibañez, 2005, p. 59), já em 1925, Guido De Ruggiero, na
(1772-1837) e alimentado pelos seus pouco conheci- sua magistral Storia del liberalismo in Europa, fala do “as-
dos discípulos. Colocado (e desacreditado) por Marx e sim chamado garantismo”: expressão que por si própria
Engels na categoria dos imaginativos proferidos pelo so- implica outras ocorrências da palavra. Em busca de des-
cialismo utópico, Fourier cunha e emprega o termo ga- cobri-las, podemos levar em consideração este primeiro
rantisme para designar um estado da evolução civil pro- emprego encontrado por Andrés Ibañez, notando que
drômico à realização do ideal supremo de uma perfeita De Ruggiero entende por garantismo a concepção “da
e harmônica sociedade comunitária. Objetivo interme- liberdade política [...] como liberdade do indivíduo do
diário e transitório do seu projeto político – sintetica- Estado e frente ao Estado” (De Ruggiero, 1984, p. 63), ou
mente ilustrado na obra Le nouveau monde industriel et seja, a “concepção das garantias da liberdade” (De Rug-
sociétaire de 1829 –, o garantismo é entendido por Fou- giero, 1984, p. 57) que começa a tomar forma com Mon-
rier como um sistema de segurança social que procura tesquieu, em torno da análise da constituição inglesa e
salvaguardar os sujeitos mais fracos, fornecendo a eles da correlativa teorização sobre as técnicas de limitação
as garantias dos direitos vitais (partindo daqueles co- dos poderes públicos face à tutela dos indivíduos. “A li-
nexos à subsistência) através de um plano de reformas berdade, – escreve De Ruggiero – que é retratada como
que diz respeito tanto à esfera pública quanto à privada. direito inato pelos racionalistas abstratos, se revela, à
É em um horizonte de tal amplitude que se de- observação sagaz, dependente de muitas circunstâncias”
senvolve, na publicística de aspiração fourieriana, a refle- (De Ruggiero, 1984, p. 57): é uma delicada construção
xão sobre o garantismo social, de que são testemunhas social que necessita de contrapesos jurídicos e de equi-
– além dos artigos da revista La Phalange (1836-1849) líbrios institucionais. A experiência constitucional ingle-
dirigida por Victor Considerant – obras políticas e so- sa, desta perspectiva, transforma o paradigma dos “prin-
ciológicas como De quelques heureux effets du garantisme cípios do garantismo” (De Ruggiero, 1984, p. 65).
[...], envisagés au double point de vue commercial et social, Como denominação centralizada sobre as garan-
publicada anonimamente em 1838; Du droit de vivre, de tias constitucionais das liberdades fundamentais, o termo

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“garantismo” se radica na linguagem filosófico-jurídica ita- ção progressista, reafirmou com força o primado dos
liana do segundo pós-guerra. Nos anos sessenta, Giovanni direitos individuais de imunidade e de liberdade diante
Sartori tenta até mesmo promover a adoção do termo dos poderes punitivos do Estado. Garantismo se torna,
no léxico do constitucionalismo inglês (Sartori, 1962) então, o nome da teoria liberal do direito penal, ou seja,
(sem sucesso, ao quanto parece). Na reflexão filosófico- do paradigma normativo – de matriz iluminista – do “di-
historiográfica de outro ilustre expoente da ciência polí- reito penal mínimo”.
tica italiana, Nicola Matteucci, o garantismo se configura A difusão internacional da doutrina jurídico-
como um componente essencial do constitucionalismo política desenhada com o termo “garantismo” se liga
moderno (antimajoritário e individualístico). No verbete – come é sabido – à atividade científica, cultural e civil
Constitucionalismo do Dicionário de política (1976) – por ele de Luigi Ferrajoli, que, com Diritto e ragione: teoria del ga-
próprio escrito, conjuntamente com Norberto Bobbio – rantismo penale (1989)4, suscitou um vasto e durável de-
Matteucci escreve: bate, influenciando profundamente a cultura juspenalista
ibérica e sul-americana. Nesta obra – que já pode ser
O garantismo, que tem o seu principal teórico em incluída entre os clássicos da história do pensamento
Benjamin Constant, acentua ao máximo, em polêmica jurídico – o garantismo se apresenta como uma teoria
com Rousseau e com a interpretação jacobina da von- do direito penal compreendido como instrumento de
tade geral, a exigência de tutelar, no plano constitucio-
proteção dos direitos fundamentais tanto dos delitos
nal, os direitos fundamentais do indivíduo, quer dizer, a
liberdade pessoal, a liberdade de estampa, a liberdade quanto das penas arbitrárias, ou seja, como sistema de
religiosa, enfim, a inviolabilidade da propriedade priva- garantias idôneo a minimizar a violência na sociedade: a
da (Matteucci, 2004, p. 205). criminal, dos indivíduos singulares, e a institucional, dos
aparatos repressivos.
Obviamente, uma vez que seu uso se tornou A elaboração teórica de Ferrajoli remete expli-
habitual, o termo “garantismo” aparece nos principais citamente à reflexão iluminista sobre o fundamento, os
dicionários. Em 1970, o Grande dizionario della lingua ita- escopos e os limites da “justiça punitiva”; a razões vistas,
liana de Salvatore Battaglia lhe atribui dois significados portanto, se falou a respeito de “neo-iluminismo penal”
estreitamente ligados. Garantismo é, em primeiro lu- (Ripoli, 1993). Com efeito, em Diritto e ragione: teoria del
gar, o “caráter próprio das constituições democrático- garantismo penale, renova-se o fecundo casamento entre
liberais mais evoluídas, consistente no fato que essas utilitarismo e contratualismo típico do discurso político
estabelecem instrumentos jurídicos sempre mais segu- dos iluministas. Um discurso que, a partir do reconhe-
ros e eficientes (como o controle de constitucionali- cimento do caráter intangível da vida, da liberdade e da
dade das leis ordinárias) com a finalidade de assegurar propriedade dos indivíduos, privilegiava uma concepção
a observância das normas e dos ordenamentos por do Estado antitética em relação àquela acreditada pela
parte do poder político (governo e parlamento)”. Em tradição: sobre a deontologia da obediência, que pres-
segundo lugar, é a “doutrina político-constitucional que crevia os deveres dos súditos nos limites do soberano
propõe uma sempre mais ampla elaboração e introdu- se impunha a teorização do dever do soberano de res-
ção de tais instrumentos”. Poder-se-ia parafrasear: (i) peitar e proteger os direitos do sujeito. Consequente-
garantismo como dimensão específica do constitucio- mente, a ideia de potestas legibus soluta era afastada e
nalismo rígido, (ii) garantismo como teoria normativa – contrariamente – se desenhava a consciência de que
do constitucionalismo rígido. para tutelar os indivíduos era necessário regular, limitar
Até aqui não impressiona o fato que não tenha e controlar o exercício do poder. Nesta perspectiva que
sido atestada no Battaglia a acepção de uso hoje mais se inscrevem as teorias da soberania da lei, da divisão
comum do termo “garantismo”, isto é, aquela que anco- dos poderes e da representação política, através da qual
ra o seu campo de denotação nos cânones de legitimi- se perfila o modelo de Estado preconizado pelos ilumi-
dade da justiça penal. Trata-se, de fato, de uma curvatura nistas: in nuce – poderemos dizer com uma expressão
semântica produzida sucessivamente no tempo, quando, anacrônica – o paradigma do Estado de Direito.
em relação à legislação emergencial com a qual a polí- Emerge então, neste cenário ideológico, a centra-
tica italiana tentou enfrentar o terrorismo, na segunda lidade do problema penal, ou seja, a suma problemática
metade dos anos setenta, a cultura jurídica, de orienta- do poder de punir: poder “terrível” (Montesquieu, 1996,

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Uma importante discussão sobre este livro foi recolhida em Gianformaggio (1993).

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p. 311), como o define Montesquieu, contudo, necessá- juiz e sua atuação como terceiro não interessado (terzie-
rio. Necessário porque, na falta de normas disciplinan- tà), sobre a colegialidade do órgão julgador.
tes da convivência social reforçadas pela sanção penal O “neo-iluminismo penal” de Ferrajoli insere
pública, a vida, a integridade e a liberdade das pessoas este conjunto de garantias processuais em um comple-
restariam expostas à violência privada, no vigor da lei do xo paradigma normativo voltado à proteção dos indiví-
mais forte. Terrível porque tal poder, mesmo que justifi- duos mercê da regulação do poder punitivo do Estado.
cado com fundamento na salvaguarda daqueles direitos, Regulação que passa através de um sistema de limites
invade a esfera de imunidade por esses constituída, esta- e vínculos, impostos tanto à legislação penal quanto à
belecendo as condições para a sua privação. À luz desta jurisdição penal, com o objetivo de restringir a primeira
dúplice consciência teórica, dramaticamente advertida à tutela dos direitos e de reduzir a segunda a uma ativi-
pelos iluministas, o sistema penal se mostra como o dade tendencialmente cognitiva.
lugar da primeira qualificação política da ordem civil, O caráter distintivo das decisões jurisdicionais
porque se encontram de imediato as relações entre au- em relação a todas outras espécies de decisões jurí-
toridade e indivíduo e os conflitos entre força e direito/ dicas (legislativas, administrativas ou negociais) está, de
os. O desenho de um paradigma estatal caracterizado fato, na sua dimensão teórica, bem como, normativa. A
pela subordinação dos poderes públicos à lei, em função jurisdição tem como objeto da sua atividade fatos em-
da tutela dos sujeitos, descobre, assim, na qualificação píricos e normas jurídicas, os quais verifica e nos quais
dos delitos, na definição das penas, na organização dos a conexão forma o pressuposto do ato jurídico no qual
juízos, um banco de prova crucial e decisivo (Cattaneo, se explica a sua dimensão normativa e sancionatória.
1974; Tarello, 1997, p. 383-483). Isto significa que o legítimo exercício do poder judiciá-
Contra o sistema punitivo do antigo regime, rio, à diferença dos outros poderes (baseados sobre o
confessional nas proibições, feroz nas punições, abu- consenso ou sobre o interesse), encontra fundamento
sivo nas imputações, arbitrário nas decisões, Beccaria, exclusivamente na “verdade judicial”: aquela jurídica, que
Voltaire, Filangieri (para citar os mais ilustres expoen- exige a sujeição do juiz à lei, e aquela fatual, que exige a
tes do iluminismo jurídico) se batem por uma reforma formalização de um adequado método cognitivo.
da justiça penal finalizada a retirar “ao inocente todo O enquadramento da jurisdição penal como
medo, ao infrator toda esperança, e aos juízes todo saber-poder e a ancoragem da lei penal na defesa dos
arbítrio” (Filangieri, 2003, p. 119). Codificação legisla- direitos descendem de um conjunto de garantias subs-
tiva do direito penal, humanização e racionalização do tanciais e processuais que a teoria do garantismo penal
sistema das penas, secularização e liberalização dos de- põe como parâmetros de justificação do poder de punir.
litos, demolição dos institutos do processo inquisitório As garantias penais substanciais são critérios normati-
e introdução das garantias fundamentais do imputado: vos e limitativos da previsão legal dos delitos: o princí-
são estes os objetivos dos iluministas (Ippolito, 2008, pio da taxatividade, os princípios da materialidade e da
p. 157-221). São estas as suas respostas às questões ofensividade dos comportamentos puníveis, e o princí-
nas quais se articula o problema penal: quando proibir? pio da culpabilidade. As garantias processuais regulam a
como punir? como julgar? intervenção punitiva estatal na fase crucial da decisão
Em Diritto e ragione: teoria del garantismo penale, judicial (accertamento giudiziario), formando com as pri-
Ferrajoli desenvolve um diálogo fictício com esta tradi- meiras um sistema fortemente coeso, voltado para a sal-
ção cultural, redescobrindo-a na sua plena significação vaguarda da liberdade e para a minimização do arbítrio
garantista. Basta voltar o olhar aos capítulos da obra punitivo (Ferrajoli, 1989, 1998).
dedicados ao processo penal para ponderar o valor A coluna mestra do paradigma garantista do di-
da lição do iluminismo, que em oposição ao processo reito penal, sobre a qual se rege o inteiro arranjo da
do passado, baseado na prisão preventiva, no segredo jurisdição como atividade cognitivo-normativa e não
e na forma escrita da instrução probatória, na posição valorativo-potestativa, é constituído pelo princípio da
de inferioridade da defesa em relação à acusação, na taxatividade ou da estrita legalidade. No campo penal, o
união dos órgãos requerentes e judicantes, concebe princípio da legalidade equivale à prescrição da reserva
um modelo processual antitético por natureza e cono- de lei: nullum crimen et nulla poena sine lege. A jurisdição,
tação fundamental: estruturado sobre a presunção de com base neste princípio, é limitada ao ius dicere, isto é,
inocência e a liberdade pessoal do imputado, sobre a à afirmação da lei, à subsunção dos fatos estabelecidos
publicidade e a oralidade do rito, sobre a paridade e o às normas legislativas. O princípio da taxatividade exige
contraditório entre as partes, sobre a imparcialidade do um reforço da legalidade penal em relação à denotação

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normativa dos delitos, com o fim de assegurar a certeza é, de normas que, ao contrário de regular comporta-
do direito e conjuntamente a liberdade e a igualdade ju- mentos dos destinatários instituindo vedações de ações,
rídica. Enquanto o princípio da legalidade (de mera lega- criam situações de desvio em referência a condições
lidade) é uma norma voltada aos juízes aos quais ordena subjetivas. Os princípios da taxatividade e da materiali-
a aplicação da lei, o princípio da taxatividade (de estri- dade valem para assegurar as condições de verificabili-
ta legalidade) é uma norma voltada ao legislador para dade ou falsidade em abstrato das hipóteses de delito,
quem prescreve o uso de termos dotados de extensão sem as quais a jurisdição penal perde o seu caráter cog-
determinada na formulação legal dos tipos (suportes fá- nitivo e degenera em poder arbitrário. Suportes fáticos
ticos) criminais. Para a linguagem penal, com base nesta criminais que não consistam em ações ou que são inde-
regra metalegislativa, deve ser portanto imprimida uma terminados sobre o plano extensional não são, de fato,
univocidade semântica. nem verificáveis, nem falsificáveis, e, portanto, rendem
Os princípios da ofensividade, da materialidade vãs as garantias processuais, consignando à discricio-
e da responsabilidade pessoal definem as condições ne- nariedade potestativa do juiz o êxito do processo e a
cessárias para justificar as proibições penais, identifican- sorte do acusado.
do os elementos constitutivos do delito no evento, na Ao contrário, na presença de hipóteses de deli-
ação e na culpa. O princípio da ofensividade prescreve to verificáveis ou falsificáveis em abstrato, o processo
a delimitação do campo do proibível somente às ações penal pode consistir na sua verificação ou falsificação
nas quais o efeito consiste em um dano a terceiros. em concreto, dando lugar a um juízo fundado sobre o
Com base nisto, a lei não pode qualificar como delito estabelecimento da verdade processual. Tal determina-
um comportamento não lesivo de direitos de outros, ção, dizendo respeito aos fatos do passado, baseia a sua
porque na tutela dos direitos reside de fato a finalidade atendibilidade no respeito a um procedimento heurís-
do direito penal. Os atos moralmente reprováveis de tico de tipo indutivo, por provas e contraprovas. As
qualquer sujeito não são, portanto, penalmente relevan- garantias processuais exigidas pelo garantismo penal
tes se não quando ofendem a esfera jurídica de outros como condições da correta verificação do fato deno-
sujeitos. É claro que um similar princípio normativo tado como delito na hipótese acusatória consistem de
tanto restringe a autoridade punitiva do Estado, quanto fato em regras jurídicas que correspondem aos crité-
expande a liberdade dos indivíduos, limitados somente rios epistêmicos do raciocínio indutivo. A presunção
pela recíproca compatibilidade. O princípio da materia- da inocência equivale à presunção de falsidade de uma
lidade é estreitamente coligado ao precedente na deter- tese não provada; o ônus da prova sob responsabili-
minação da classe dos comportamentos suscetíveis de dade da acusação é o ônus de produzir confirmações
proibições legítimas, afirmando que somente as ações empíricas da hipótese acusatória idôneas para sufragar
externas estão em grau de produzir danos a terceiros a sua aceitação como verdade; o contraditório com pa-
e que, portanto, não pode dar-se ofensividade sem ex- ridade das partes antagonistas representa a colocação
terioridade. Trata-se, evidentemente, de um princípio de à prova da hipótese de acusação através da sua exposi-
laicidade jurídica que subtrai ao disciplinamento penal ção às confutações e às contraprovas produzidas pela
a intimidade da pessoa, levantando uma barreira em defesa; atuação como terceiro (terzietà) e a indepen-
defesa da liberdade individual de consciência e de pen- dência do juiz, a oralidade e a publicidade do procedi-
samento contra as pretensões potestativas do Estado, mento, o dever de motivação das sentenças e o direito
para as quais a afirmação pode dizer respeito somen- ao recurso são as regras que asseguram a correção
te aos comportamentos materiais e não às identidades do juízo e a possibilidade de um controle sobre esse.
subjetivas. O princípio da responsabilidade pessoal iden- No seu complexo, estas garantias compõem o modelo
tifica na culpabilidade o elemento subjetivo necessário à cognitivo do processo penal orientado à procura da
qualificação jurídica de uma ação ofensiva como delito, verdade e tendem, portanto, a proteger o inocente de
excluindo do horizonte do direito penal a responsabili- punições injustas (Ferrajoli, 1989, 2006a, 2006b).
dade ou objetiva ou sem culpa. A redução da jurisdição à sua função intrínseca
O conjunto das garantias vale para vincular as de declaração das violações da lei, através da cognição
proibições legais apenas aos comportamentos empíri- do fato e do reconhecimento do direito, é também a
cos danosos, exatamente determinados, atribuíveis à condição da sua legitimidade, em que o único fundamen-
culpabilidade de um sujeito. Em particular, todas juntas to reside na verdade das decisões judiciais, assegurada
convergem para interditar ao legislador penal a produ- pelas garantias penais (como condições de verificabili-
ção de normas constitutivas de estatutos criminais, isto dade ou falsidade) e das garantias processuais (como

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regras de verificação e falsificação). Deste específico tulado juspositivista “auctoritas non veritas facit legem”,
fundamento de legitimidade, de todo distinto daquele somente este último, ou seja, o princípio da legalidade
consensual expresso no circuito institucional de repre- no Estado de direito, está em condições de assegurar,
sentação política, deriva a necessidade da independência juntamente com a soberania da lei, aquela precondição
dos órgãos jurisdicionais dedicados às funções de go- da liberdade e da igualdade que é a certeza do direito,
verno. O paradigma garantista, tendendo a neutralizar onde o critério da intrínseca racionalidade e da justiça
o arbítrio potestativo dos juízes, sujeitado somente à lei, tende a se resolver, como mostra a experiência jurídica
edifica a jurisdição como instituição de garantia, estra- pré-moderna, no caos normativo e no arbítrio potes-
nha à lógica democrático-majoritária do poder político, tativo, não seria o ius dedutível da iustitia, nem a iustitia
mas igualmente e profundamente democrática, enquan- predicável de veritas.
to finalizada à proteção dos direitos de todos. Neste sen- O Estado de legal, todavia, não constitui a com-
tido, e não como expressão da vontade geral, a justiça é pleta institucionalização do paradigma ideal do Estado
administrada em nome do povo, isto é, no interesse de de direito, no qual o ordenamento jurídico impõe aos
cada um dos singulares indivíduos que empiricamente poderes públicos o escopo de salvaguardar os direitos
constituem o povo (Ferrajoli, 1997). subjetivos. A sua incompletude em relação a um símile
Além da mais completa e sistemática concep- modelo estatal consiste no fato que o caráter mera-
ção do garantismo como filosofia da justiça penal, a mente formal do princípio de legalidade não vincula a
Ferrajoli se deve a maior contribuição analítica para lei a nenhum fim determinado e não lhe circunscreve
a definição de garantismo como teoria do Estado em nenhuma maneira o raio de intervenção. A lei, que
democrático-constitucional, em relação ao qual o di- condiciona os atos jurídicos a essa subordinados, sujei-
reito penal se apresenta como uma específica decli- tando os poderes jurisdicionais, administrativos, execu-
nação; historicamente mais antiga (mas, mesmo assim, tivos e de autonomia privada dos quais os atos são o
recente), juridicamente mais enraizada (mas, contudo, exercício, não sofre condicionamento algum: o poder do
sempre frágil), culturalmente mais compartilhada (mas, qual esta decorre, portanto, resta um poder absoluto,
contudo, ainda minoritária). Na sua apreensão global de cuja vontade discricionária imperativa vão depender
da teoria do Estado, o garantismo tematiza a mutação a existência e a tutela dos direitos subjetivos. O Estado
de paradigma juspolítico liberada, na configuração do legislativo de direito, portanto, pode ser definido como
ordenamento jurídico e na estrutura da democracia, um Estado legal mais que um Estado de direito em sen-
na evolução do Estado legislativo de direito para o Es- tido estrito, enquanto formaliza um sistema de governo
tado constitucional de direito: dois modelos distintos de per leges, mas não sub lege (Ferrajoli, 2002).
organização política, tendentes, em medidas diversas, A sujeição de todos os poderes ao direito (po-
à realização do antigo ideal do “governo das leis”, ou der legislativo compreendido) se cumpre somente com
seja, à constituição de uma forma estatal na qual os po- a passagem ao Estado constitucional de direito (ou Es-
deres públicos são regulados e limitados pelo direito tado de direito em senso estrito) caracterizado pelo
em função da tutela dos indivíduos. ordenamento jurídico da constituição rígida. A rigidez e
O Estado legislativo de direito representa a a superioridade hierárquica das normas constitucionais,
primeira aproximação desta meta política. O seu nas- asseguradas pela predisposição de um procedimento
cimento coincide, de fato, com a afirmação do princí- agravado de revisão constitucional e, sobretudo, a insti-
pio da legalidade como norma de reconhecimento do tuição do controle jurisdicional de constitucionalidade,
direito existente/válido. Com base nisto, é direito tudo condicionam a lei à coerência com os significados das
e somente o conjunto de normas produzidas pelos ór- normas de grau supraordenado, introduzindo um prin-
gãos competentes em conformidade às normas sobre a cípio de legalidade substancial que integra às formas de
sua produção. O Estado adquire assim o monopólio da produção legislativa. Esta dúplice dimensão da legalida-
produção jurídica, pondo fim à época do direito juris- de cria uma dissociação entre existência e validade das
prudencial, caracterizada pela centralidade da doutrina normas de lei, vindo esta última a depender não mais
e da jurisdição como fontes do direito e pela prevalên- somente, como a primeira (com a qual o Estado legal
cia de um critério de individuação das normas jurídicas coincidia), da observância das normas formais sobre a
de tipo substancialista, voltado à concepção ético-cog- criação do direito, mas também da adequação dos con-
nitivista pela qual “veritas non auctoritas facit legem”. teúdos normativos das leis aos conteúdos normativos
Mesmo que tal princípio jusnaturalístico possa aparecer da constituição. Assim, a positivação dos princípios e va-
intuitivamente mais justo e mais racional do que o pos- lores de papel supraordenando à lei, e, especificamente,

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dos direitos fundamentais, estabelece, internamente no mente às expectativas jurídicas positivas ou negativas,
ordenamento, um dever ser constitucional que recon- as quais, se não satisfeitas ou violadas, legitimam a ex-
duz sub lege também o poder legislativo. pectativa de reparação, à qual (por sua vez) correspon-
Para completar o Estado de direito, mercê da ex- de um dever jurisdicional de reparação, que representa
pansão do princípio da legalidade e da juridicização da uma garantia de segundo grau em relação àquelas de
summa potestas (ainda legibus soluta no Estado legal), cor- primeiro grau integradas pelos deveres e pelas vedações
responde uma mutação na natureza da democracia, que correlativas aos direitos.
cessa de identificar-se com somente a dimensão política Invertendo a tradicional concepção imperativa
do sufrágio universal, da representatividade e do princí- do direito, que afirma a inexistência jurídica de direitos
pio da maioria, isto é, com as modalidades, os procedi- subjetivos privados de garantias, a teoria do garantis-
mentos e os sujeitos das decisões, e adquire uma dimen- mo, no reconhecimento do caráter normativo e supra-
são constitucional de determinação jurídica do poder, ordenado dos direitos constitucionais, postula o nexo
relativa ao conteúdo das decisões políticas, submetidas de implicação deôntica entre direitos e garantias. Estas,
à observância dos direitos fundamentais, os quais, com o quando não são previstas, devem ser introduzidas por-
princípio da igualdade, constituem os fundamentos axio- que os direitos, que as exigem, tanto existem quanto
lógicos positivos da democracia constitucional, ou seja, são estabelecidos.
daquela forma de democracia que incorpora os princí- O garantismo, portanto, se configura como
pios e os escopos do Estado de direito como elementos a teoria do sistema das garantias dos direitos funda-
constitutivos do próprio ordenamento. mentais, que analisa, valoriza e elabora os dispositivos
Os direitos fundamentais atribuídos pelas nor- jurídicos necessários à tutela dos direitos civis, políti-
mas constitucionais (às pessoas e/ou aos cidadãos e/ou cos, sociais e de liberdade sobre os quais se fundam as
aos sujeitos capazes de agir), e, em particular, os direitos hodiernas democracias constitucionais (Ferrajoli, 1993,
de liberdade, consistentes em expectativas jurídicas ne- 1999a, 1999b, 2001, 2006c6): para as quais a vitalidade
e o desenvolvimento dependem – como nos ensina
gativas (de não lesão), e os direitos sociais, consisten-
Luigi Ferrajoli – do empenho civil de cada um de nós,
tes em expectativas jurídicas positivas (a prestações),
enquanto juristas, enquanto estudiosos e, sobretudo,
são subtraídos, em virtude da sua posição no vértice
enquanto cidadãos.
da hierarquia das fontes, à disponibilidade (não somente
dos seus titulares, mas também) do poder político, em
relação ao qual se impõem como outros tantos limi- Referências
tes e vínculos, para os quais a violação e a não obser-
ANDRÉS IBAÑEZ, P. 2005. Garantismo: una teoría crítica de la juris-
vância se manifestam como antinomias e como lacunas dicción. In: M. CARBONELL; P. SALAZAR (org.), Garantismo: estudios
do ser legislativo do direito em relação ao seu dever sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli, Madrid, Trotta.
constitucional. É, portanto, evidente que, dado o cará- CARBONELL, M.; SALAZAR, P. 2005. Garantismo: estudios sobre el pen-
samiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid, Trotta, 542 p.
ter nomodinâmico do ordenamento jurídico, o grau de
CATTANEO, M. 1974. La filosofia della pena nei secoli XVII e XVII. Fer-
efetividade dos princípios e dos direitos estipulados a rara, Editrice Universitaria.
nível constitucional depende, em larga medida, das cor- DE RUGGIERO, G. 1984 [1925]. Storia del liberalismo in Europa. Roma-
relativas garantias e da sua atitude para constranger os Bari, Laterza, 458 p.
FERRAJOLI, L. 1989. Diritto e ragione: teoria del garantismo penale. Ro-
poderes públicos à observância dos direitos. ma-Bari, Laterza, 1024 p.
A perspectiva teórica do garantismo ferrajoliano FERRAJOLI, L. 1993. Il diritto come sistema di garanzie. Ragion pratica,
– que em Principia iuris alcança a máxima expressão (Fer- 1:143-161.
rajoli, 2007)5 – é uma concepção do Estado de direito e FERRAJOLI, L. 1997. Giurisdizione e democrazia. Democrazia e diritto,
1:284-304.
da democracia constitucional que, levando os direitos a FERRAJOLI, L. 1998. Garantismo e diritto penale. Dei delitti e delle pene,
sério, põe no centro da reflexão jurídica e dos projetos 3:107-123.
políticos o tema das garantias, isto é, daquelas técnicas FERRAJOLI, L. 1999. Garanzie. Parolechiave, 19:15-32.
FERRAJOLI, L. 1999b. Derechos y garantías: La ley del más débil. Madrid,
normativas finalizadas à salvaguarda dos direitos subje-
Trotta, 180 p.
tivos e consistentes em deveres positivos (a comissões) FERRAJOLI, L. 2001. Diritti fondamentali:un dibattito teorico. Roma-Bari,
ou negativos (a omissões) correspondentes respectiva- Laterza, 377 p.

5
Sobre isso vejam-se os artigos recolhidos em Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, (2008, p. 31).
6
Em resposta aos artigos recolhidos em Carbonell e Salazar (2005).

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Ippolito | O garantismo de Luigi Ferrajoli

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