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Resumo: Além de ser tema relativamente pouco abordado pelas instituições psicanalíticas,
apesar de se tratar de importante forma de expressão do inconsciente, parece haver certa
resistência em muitos psicanalistas a seu próprio estudo. Este trabalho propõe-se a uma
investigação inicial sobre esta censura.
Com certa freqüência nos últimos tar lançar alguma luz sobre este fenô-
tempos, venho-me interessando por meno particular.
questões que parecem despertar censu- O humor e, mais especificamente,
ra em psicanalistas. Enquanto profissi- a categoria dos chistes faz parte dos
onais, estamos em geral alerta para quatro grandes grupos de formações do
aquilo que nossos analisandos rejeitam, inconsciente. Sonhos, atos falhos e sin-
o que chamam bobagens e sabemos ser tomas têm sido extensa e longamente
fundamental para a descoberta do in- estudados. Não se dá o mesmo com os
consciente. Acredito que aquilo que os chistes e o livro de Freud que lhes
próprios psicanalistas consideram bo- corresponde, com honrosas exceções.
bagem ou censurável pode muito bem Em Laughing: a psychology of humor,
ter importância equivalente e, portan- Holland afirma sobre o riso que nós não
to, merece ser investigado. Como o o compreendemos e não confiamos
tema da Jornada deste ano do Círculo nele. Desconfiança esta presente des-
Psicanalítico da Bahia será o Humor, de de a Antiguidade, já que os filósofos
imediato me impressionou o comentá- pré-socráticos afirmavam que gracejar
rio, por Carlos Pinto Correa, de que é inconsistente com a piedade, prefe-
esta seria a primeira vez que ele conse- rindo esta última.
guia convencer uma instituição psica- Mas o humor se constitui, em seu
nalítica a abordar tal tema, e que mui- campo próprio, fenômeno tão rico e
tos convidados a participar do evento, irrepresentável como o da arte. E não
apesar de fascinados, parecem ter tido é por acaso que não confiamos no hu-
que superar alguma resistência interna mor. Nosso riso é certamente subversi-
inicial. Proponho-me, portanto, a ten- vo. Ao rirmos, desafiamos as leis de
psíquicos que fazem parte das demais desta forma é dada uma autorização
formações do inconsciente. Freud com- para a expressão daquilo que permane-
para os chistes e o humor à elaboração cia sob restrição. A terceira pessoa fun-
dos sonhos. O que emerge da elabora- ciona, portanto, como um Outro que
ção tem a característica infantil, e é pre- de fato com sua permissão torna mais
cisamente o formato de jogo infantil de leve, para si e para o contador do chiste,
palavras que irá permitir o prazer do o peso da lei.
chiste, fazendo-se economia da ener- Já no segundo texto, escrito vinte
gia psíquica habitualmente utilizada e dois anos depois, apesar do enfoque
para manter uma linguagem lógica, co- econômico ainda ser importante, ao
erente e correta, enfim, ‘adulta’ e ade- abordar não apenas os chistes mas o
quada à realidade. sentimento de humor em si, Freud pas-
A segunda se refere ao conteúdo do sa a uma visão estrutural. A divisão ago-
chiste em si, o qual, a não ser nos casos ra se dá entre instâncias psíquicas, com
que envolvem puramente nonsense e/ou o supereu surpreendentemente em um
jogos de palavras, está sempre sujeito a papel condescendente e protetor. Diz,
algum grau de censura. Freud classifica como se fosse, ao eu assoberbado pelas
estes chistes, de acordo com seu propósi- dificuldades e sofrimentos trazidos pela
to, em cínicos (a livre vazão ao desejo realidade: “Olhem! Aqui está o mun-
em detrimento das normas sociais e da do que parece tão perigoso! Não passa
ética), tendenciosos (expressão e des- de um jogo de crianças, digno apenas
carga de impulsos hostis e libidinosos de que sobre ele se faça uma pilhéria!”
dirigidos a outro) e céticos (atacam ‘a (FREUD, 1977a, p. 194).
própria certeza de nosso conhecimen- Neste trabalho, o humor é inseri-
to’ – a estes últimos é conferida uma do na “série de métodos que a mente
posição especial). O mecanismo funda- humana construiu a fim de fugir à
mental por trás de todos eles, no en- compulsão para sofrer – uma série que
tanto, é o mesmo: começa com a neurose e culmina na
Aqui finalmente compreendemos o que loucura, incluindo a intoxicação, a
é que os chistes executam a serviço de auto-absorção e o êxtase” (FREUD,
seu propósito. Tornam possível a satis- 1977a, p. 191). Nesta série, no entan-
fação de um instinto (seja libidinoso ou to, o humor tem posição privilegiada.
hostil) face a um obstáculo. Evitam esse Afasta ou desvia o sofrimento, “dá ên-
obstáculo e assim extraem prazer de fase à invencibilidade do ego pelo mun-
uma fonte que o obstáculo tornara ina- do real, sustenta vitoriosamente o prin-
cessível. (FREUD, 1977b, p. 121). cípio do prazer – e tudo isso em
Há ainda uma condição externa contraste com outros métodos que têm
sem a qual o chiste não ocorre: a pre- os mesmos intuitos, sem ultrapassar os
sença de um outro. No caso do chiste, limites da saúde mental” (FREUD,
são necessárias três pessoas, sendo a se- 1977a, p. 191).
gunda o alvo ou vítima do chiste e a Aqui está um ponto de interesse.
terceira é aquela para quem o chiste é O que há de especial no humor que lhe
contado. Ao rir, a terceira pessoa vali- permite tal privilégio, e terá isto rela-
da o chiste, e com este o desejo ou pro- ção com a pergunta inicial? Nos textos
pósito por trás deste. Com o riso, é freudianos há uma observação que
como se estivesse dizendo ‘penso como pode ajudar a esclarecer a questão:
você’, ou ‘desejo o mesmo que você’, e “Pois, diferentemente dos sonhos, os
Estudos de Psicanálise • Salvador • n. 31 • p. 136 - 140 • Outubro. 2008 139
Do porque da censura ao riso
chistes não criam compromissos; eles Outro motivo para, digamos assim,
não evitam a inibição mas insistem em não se querer brincar com o humor, é
manter inalterado o jogo com as pala- que, diferente de uma faca, não se pode
vras ou com o nonsense. Restringem-se, segurá-lo pelo cabo. Não há segurança
entretanto, a uma escolha das ocasi- no seu uso, que tão facilmente corta
ões em que esse jogo ou esse nonsense uma autoridade ou instituição como
possam ao mesmo tempo parecer per- aquele mesmo que o produz, pela pró-
missíveis (nos gracejos) ou sensatos pria natureza dividida e infantil de seu
(nos chistes), graças à ambigüidade das nascimento. O escritor Anton Tchekov
palavras ou à multiplicidade das rela- ensinou que o trágico e o cômico são
ções conceptuais. Nada distingue os apenas duas janelas diferentes, que dão
chistes mais nitidamente de todas as para a mesma paisagem atormentada.
outras estruturas psíquicas que essa Nem sempre desejamos ver o que nos
bilateralidade e essa duplicidade verbal” rodeia, e menos ainda o que nos com-
(FREUD, 1977b, p. 197). põe, mas é nossa própria perda se man-
Não é de admirar que desconfie- tivermos tão clara e ampla janela fe-
mos do humor e tentemos diminuí-lo chada ao nosso conhecimento.
de todas as formas. Certamente é o mais
eficaz dos métodos de expressão do in-
consciente, mas também talvez o mais
perigoso, socialmente falando. Diferen-
te dos sintomas, sonhos ou atos falhos,
o humor não é uma solução de compro-
misso. Permite, com pouco ou nenhum
custo, não a atuação mas a expressão
do inconsciente e a suspensão psíquica
das leis humanas, da linguagem, da re-
alidade e da morte. Mais ainda, como
isto é conseguido através da autoriza-
ção de um outro, o riso é altamente con-
tagioso.
E aí está seu perigo. Como seria
possível dar curso irrestrito ou reconhe-
cimento adequado a um fenômeno que
libera aqueles que envolve das amarras
convencionais da sociedade e os reme-
te a um funcionamento infantil, ao
mesmo tempo em que os une num mes-
mo movimento interno? A questão
central do jogo é que ele não tem cen-
tro, e o humor certamente des-centra
o sujeito, elidindo os nós da linguagem
que o ancoram sem com isto deixá-lo à
deriva. O jogo em si tem suas regras,
que não são as da realidade, e é contra
esta que o humor se rebela.
Recebido em 02/05/2008.