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SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato Brasília, DF, Brasil — CEP
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1ª edição, 2020
O propósito de Rute
Não podemos determinar completamente o objetivo de Rute
sem ter estudado o livro em si, mas podemos oferecer um esboço
em miniatura dos eventos do livro. A posição de Rute no cânon nos
diz algo sobre o propósito do livro. Talvez não estejamos
acostumados a atribuir qualquer significado à posição de um livro no
cânon bíblico; afinal, Deus não nos deu um índice inspirado que
prescreve exatamente como os escritos canônicos devem ser
organizados. Mas, considere como a ordem do cânon chega a nós.
Primeiro, temos o Pentateuco, os chamados cinco livros de
Moisés: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
Algumas partes de Gênesis provavelmente antecederam Moisés,
mas ele parece ser responsável por reunir os cinco livros em uma
unidade. Então temos Josué, que é escrito aproximadamente no
mesmo período, não muito depois da morte de Moisés, e que
registra o que acontece na próxima geração, a saber, a conquista da
terra prometida sob Josué, sucessor de Moisés. Em seguida, temos
Juízes, que é o sétimo livro; Rute segue como o oitavo livro. Agora,
pense nesses livros nas sexta, sétima e oitava posições. Josué é o
sexto livro e inclui muitas referências sobre entrar na terra, que
também é descrito como entrar no descanso de Deus. As pessoas
entram em um tipo de Shabbath permanente quando se
estabelecem na terra. Mas, Josué é o sexto livro, que nos diz que
esse descanso do Shabbath não será o Shabbath final que Deus
planejou para o seu povo; pelo contrário, será apenas um tipo ou
sombra dele. O livro de Hebreus no Novo Testamento reforça essa
ideia. O povo entrou no descanso de Deus quando entraram na
terra, mas somente de forma tipológica. Somente na Nova Aliança
saímos do sexto para o sétimo dia prometido, o descanso prometido
de Deus. Assim, Josué era apenas uma sombra daquele que viria, o
Josué maior, que conduziria o povo a uma herança prometida maior
e que daria o descanso de Shabbath prometido ao conduzir-nos do
sexto para o sétimo dia (Mt 11.28-29).
Juízes é o sétimo livro. O número sete, é claro, é o número da
perfeição. Mas o livro de Juízes não tem nada a ver com perfeição,
a menos que você queira pensar nele como Israel “aperfeiçoando”
várias maneiras de se rebelar contra Deus. A única coisa
aperfeiçoada no livro de Juízes é o pecado da idolatria de Israel.
Mas há uma conexão interessante aqui. Se alguém ler Gênesis 1-3
como uma narrativa histórica e sequencial (como deveríamos), Gn
1.1-2.4 oferece um relato global da criação até o sétimo dia, quando
Deus descansou. Gênesis 2.5 ss. nos leva de volta ao sexto dia e
coloca a criação do homem sob um microscópio. Agora, recebemos
muitos detalhes sobre o sexto dia da criação que foram omitidos no
macro-relato inicial. O dia seis, devido à sua importância, recebe
atenção especial em Gênesis 2, ao focar no homem como cabeça e
coroa de Deus na criação. Mas, se continuarmos lendo (e
ignorarmos as quebras de capítulos, que foram adicionadas mais
tarde por conveniência), chegamos ao relato da Queda. Gênesis 3
parece detalhar as ocorrências daquele primeiro sábado. Há várias
razões para ver Gênesis 3 como o primeiro Shabbath. Este é o dia
em que Adão e Eva entraram naquela área central do santuário do
Jardim do Éden para se encontrar com Deus. Em outras palavras,
este era claramente o tempo de adoração especial, que, no restante
da Antiga Aliança, é um evento do sétimo dia. Assim, faz muito
sentido ver esse dia como o dia em que o Senhor vai caminhar no
jardim e encontrar-se com eles. O dia do Shabbath é o dia de
encontro entre Deus e seu povo. Infelizmente, antes que o Senhor
chegue lá, Adão e Eva colocam o carro na frente dos bois e roubam
da árvore do conhecimento do bem e do mal. Eles comem o fruto
proibido e, é claro, sabemos o que acontece depois disso.
Assim, o sétimo dia era o dia de descanso na presença de
Deus, o dia da renovação da aliança com Deus, o dia de alegrar-se
na presença de Deus e de receber os dons da mão de Deus. Mas,
Adão e Eva caíram no sétimo dia. Eles cometeram traição no
santuário. À luz desse padrão criacional, considere Juízes, o sétimo
livro do cânon. Que correspondências vemos entre os sete primeiros
livros do cânon e a primeira semana de história descrita em Gênesis
1-3? Em um sentido, você poderia dizer que a queda alcança sua
culminação no livro de Juízes. No livro de Juízes, as coisas tornam-
se as piores possíveis. Juízes nos mostra a queda de Adão e Eva
levada à sua forma mais extrema, quando o povo de Deus completa
sua rebelião contra ele. Lembre-se: este é Israel, a nação escolhida
de Yahweh, uma raça de novos Adãos e novas Evas. Essas são as
pessoas que devem servir como representantes de Deus para a
humanidade e que devem representar a humanidade diante de
Deus. Quando lemos o livro de Juízes, encontramos o povo de Deus
com as coisas completamente invertidas. Eles estão chamando o
preto de branco; eles estão chamando a luz de escuridão. Tudo está
invertido no livro dos Juízes. Os próprios Juízes, é claro, são fiéis
(na maior parte do tempo) e redimem o povo. Mas mesmo assim,
logo que resgatam as pessoas, quase invariavelmente dentro de
uma geração, o povo cai em uma idolatria ainda pior do que antes.
E, ao progredirmos no livro, os bons tempos não são mais tão bons
e as épocas ruins ficam ainda piores. Os sacerdotes, que deveriam
conduzir o povo no conhecimento de Deus, os conduzem na
verdade à uma idolatria grosseira. O livro de Juízes é uma história
muito triste; é uma coletânea muito triste de histórias sobre a queda
de Israel.
Juízes como velha criação
Como termina o livro de juízes? Nós temos uma análise do
problema fundamental de Israel em 21.25: “Naqueles dias, não
havia rei em Israel; cada um fazia o que achava mais reto”.
Esse é um período sombrio na história de Israel, mas essa
avaliação do problema é altamente irônica. Havia um rei em Israel
durante o tempo dos juízes? Sim, é claro que havia um rei. O
próprio Yahweh era o rei de Israel. Eles teriam tudo o que
precisavam caso se submetessem ao reinado e senhorio de Yahweh
sobre eles. Mas porque continuamente rejeitavam o Senhor e não
queriam que o Senhor fosse rei sobre eles, tudo em Israel é um
desastre. E, assim, o que Yahweh precisa fazer? Ele precisa
estabelecer um representante humano de sua própria realeza sobre
o povo. Ele precisa dar ao seu povo um ícone humano de seu
senhorio para lembrá-los de seu caráter, propósito e presença.
O livro de Juízes termina com este tom muito triste. Ele
termina com esta declaração de que não há rei em Israel, então
todo mundo está fazendo o que é certo aos seus próprios olhos.
Mas é precisamente neste período de caos ético e desordem
teológica que a salvação de Deus explode. Deste sétimo dia
sombrio, vem um raio de luz brilhante, um oitavo dia, um oitavo livro.
É claro, o número 8 é o número da nova criação. A velha criação é
caída e está se despedaçando, então precisamos de uma nova
criação. É por isso que o número 8 é tão significativo nas Escrituras.
Oito é o número de um novo nascimento, uma nova semana e um
novo começo. A circuncisão ocorre no oitavo dia. A criança passa
por toda a velha semana da criação, mas, porque a primeira criação
é caída, no oitavo dia ela deve ser completamente incorporada à
nova humanidade de Israel. O oitavo dia é o dia da ressurreição. É
no primeiro dia de uma nova semana que Deus ressuscita Jesus.
Os relatos da ressurreição nos evangelhos estão repletos de
imagens da criação conduzindo-nos ao fato de que Jesus realmente
inaugurou uma nova ordem mundial em sua ressurreição no oitavo
dia. Por exemplo, no final do evangelho de João, quando Maria
chega ao túmulo (que fica em um jardim), ela vê Jesus, mas o
confunde com o jardineiro. Mas isso não é nenhum engano — ele é
o novo jardineiro, o novo Adão. Então, o Senhor ressuscitado se
reúne com seus discípulos em oitavos dias consecutivos. Tomé não
estava presente na primeira vez. Com certamente, Jesus poderia ter
aparecido a Tomé na segunda-feira, na terça-feira ou na quarta-
feira, mas ele optou por fazer isso no primeiro dia da semana
seguinte, no oitavo dia. Ao fazer isso, nosso Senhor deu a seus
discípulos um padrão que eles seguiriam ao encontrar-se com o
Cristo ressurreto no primeiro dia da semana em adoração coletiva.
Assim como Deus veio e teve comunhão com Adão e Eva no
santuário-jardim do Éden no sétimo dia, os discípulos também se
comunicavam com seu Deus no oitavo dia.
O reino messiânico
Podemos começar a ver algumas das maneiras como Rute
aplica-se às nossas vidas hoje. Não é muito bom falar sobre o
objetivo do livro, a menos que isso se traduza em prática. Assim
como houve desafios ao governo legítimo de Davi, também há
desafios ao reino legítimo do rei Jesus. Deste modo, temos que
defender seu reino, assim como o livro de Rute defendeu a realeza
de Davi. O livro de Rute é uma aula de apologética. Uma das
melhores maneiras de defender o evangelho é contando histórias.
Por meio da arte de uma narrativa cativante, podemos mostrar a
beleza e a glória de como Deus congregou todas as coisas em
Cristo. Todos os propósitos de Deus para a criação são levados a
um clímax e a seu ponto culminante em Jesus. Rute nos dá um
vislumbre disso.
Defender a fé em Cristo não é apenas uma questão de
argumentos e silogismos. Muitas vezes, é uma questão de contar
histórias. Precisamos aprender a contar a história do evangelho à
nossa cultura de maneira que a história do evangelho exponha o
que há de errado com a nossa cultura e corrija as coisas. O apóstolo
Pedro diz que devemos dar uma resposta sobre a esperança que
temos. Devemos viver nossas vidas de tal maneira que
provoquemos perguntas dos espectadores não-cristãos. Nossas
vidas servem para demonstrar esperança. Quando perguntarem
sobre a esperança que temos, estaremos prontos para dar uma
resposta. Devemos ter uma defesa pronta de porque temos a
esperança que temos. Rute é um modelo útil: o livro mostra por que
os israelitas estavam certos em ter esperança em Davi e se
submeterem ao seu reinado. Embora os desafios que enfrentamos
na defesa do reino de Jesus não sejam idênticos aos apresentados
contra o reino de Davi, Rute nos mostra uma estratégia apologética
eficaz.
Quem escreveu o livro de Rute estava respondendo em nome
da esperança davídica. Se a questão atual fosse: “Por que você tem
esperança no rei Davi?”, o livro de Rute dá uma resposta. E se a
questão hoje é “Por que você tem esperança no rei Jesus?”,
devemos dar uma resposta que declare que Jesus é o cumprimento
de todos os propósitos de Deus e que ele trouxe um novo mundo.
De Israel a Moabe
Por causa da fome, essa família deixa a terra prometida e
ruma a Moabe. Este é um destino surpreendente, para dizer o
mínimo. Os moabitas tinham uma reputação muito ruim na história
da redenção, sendo pouco amigáveis com a nação israelita. De fato,
eles foram alguns dos inimigos mais ferrenhos dos israelitas.
De onde veio Moabe? Como traçar suas origens? Perguntas
como essas não são apenas curiosidades bíblicas; na verdade, elas
lançam muita luz sobre o que está acontecendo na história.
Descendentes de Ló, Moabe era parente de Israel por sangue.
Moabe, porém, nasceu de um relacionamento incestuoso entre Ló e
uma de suas filhas.
Considerando suas origens, não surpreende que o povo de
Moabe tenha sido entregue ao pecado sexual. Os moabitas eram
conhecidos por sua imoralidade descarada a serviço de seu deus
Quemos. Em Números 25, as moabitas levam os israelitas à
apostasia e prostituição. E, quando Israel estava a caminho da terra
prometida, Moabe se recusou a dar pão e água a Israel. Na
verdade, eles contrataram Balaão para pronunciar uma maldição
sobre Israel.
Assim, imagine a situação. Quando Israel estava em uma
situação de fome, caminhando pelo deserto e precisando de pão e
água, eles procuraram Moabe para ajudar, mas Moabe os
amaldiçoou, em vez de abençoar. Para piorar, as moabitas já eram
conhecidas por desviar os homens israelitas. Considerando esse
histórico, pense na decisão diante de Elimeleque. Sua família está
faminta. Seus filhos estão crescendo e precisam de esposas. Por
que Elimeleque escolhe levar sua família para uma região
conhecida por se recusar a dar pão aos israelitas? Por que ele entra
em uma região onde se sabe que as mulheres levam os homens
israelitas ao pecado? Este é um ato de traição por parte de
Elimeleque — e ele pagará por sua tolice.
A fome de justiça
A fome acontece por causa do pecado. A morte chega a
Elimeleque e seus filhos por causa do pecado. A fome é
especificamente apontada como forma de juízo sobre Israel em
Levítico 26 e Deuteronômio 28: é um sinal da ira de Deus contra o
povo da aliança. Deus revela aos israelitas como seu
relacionamento especial com eles funcionará. Quando começassem
a ver as maldições da aliança, como doenças ou fome, sobre eles,
eles deveriam se arrepender. Se não se arrependessem, seriam
completamente expulsos da terra.
Ao levar sua família ao exílio, Elimeleque, em um certo
sentido, impõe sobre si a maldição definitiva da aliança. Ele é
expulso da terra onde Deus colocou seu nome e sua presença. É
muito difícil evitar a conclusão de que, quando Elimeleque deixou a
terra, pelo menos nessas circunstâncias, ele estava pecando. É
verdade que Abraão também deixou a terra por causa da fome, mas
isso aconteceu antes de a terra ser dada à família de Abraão como
uma possessão. Quando Elimeleque deixa a terra, sua partida é um
sinal de que algo deu errado. Você poderia dizer que ele seguiu seu
estômago e não sua fé. Em vez de restaurar a comida no cesto de
pão por meio do arrependimento, ele pega o que parece ser o
caminho mais fácil ao ir para Moabe. Quem pode imaginar que
concessões estão implícitas em sua decisão? Onde eles adorariam
o Deus verdadeiro? Que tipo de comunidade eles esperavam
encontrar? Elimeleque parece estar fazendo o que bem entende, e
não o que é certo. Pode ser por isso que todos os homens da
família morrem em Moabe, uma punição pelo pecado de
Elimeleque. Eles escolheram o exílio da terra e acabaram sendo
exilados da face da terra.
Elimeleque não esperou que Deus o expulsasse da terra; ele
escolheu sair por conta própria. Em vez de implorar por misericórdia
ao Senhor, ele voltou-se para a misericórdia dos moabitas. Não
podemos dizer com certeza que, ao atravessar as fronteiras da terra
prometida, Elimeleque se tornou um apóstata completo, mas
certamente parece isso. Se isso não é violar a aliança, está muito
próximo. Se fôssemos traduzir as ações de Elimeleque para o
cenário da Nova Aliança, seria como se Elimeleque deixasse a
igreja. Ele deixou a comunhão do povo de Deus e o lugar onde
Deus colocou seu nome. É uma auto-excomunhão.
Deixando a terra
Algumas pessoas podem defender Elimeleque e se opor a
uma interpretação tão negativa, dizendo: “Um homem deve fazer o
que é necessário para alimentar sua família. Deixar a terra era
perfeitamente compreensível”. O contra-argumento para essa linha
de raciocínio é simples. Obviamente, nem todo mundo em Belém
deixou a terra, e ainda assim conseguiram sobreviver. Boaz
certamente não viu a necessidade de tirar sua família da terra, e
mesmo assim sua família não morreu de fome.
Uma objeção mais poderosa é: “Abraão deixou a terra da
promessa durante o período de fome e Jacó o fez também. Por que
não podemos dizer que Elimeleque está apenas imitando as ações
dos patriarcas? Elimeleque não está apenas repetindo as ações de
Abraão e Jacó? Não parece não haver desaprovação divina das
ações de Abraão e Jacó". Porém, esse argumento deixa de tratar as
principais diferenças entre a situação dos patriarcas e a situação de
Elimeleque. Abraão e Jacó podem ter deixado a terra prometida a
eles por causa da fome, mas a terra da promessa permaneceu sem
ser conquistada. Abraão não habitou na terra como residente
permanente. Ele sabia que era apenas um peregrino. E o mesmo
vale para Jacó. Ambos sabiam que levaria séculos e gerações até
seus descendentes chegarem à posse completa da terra. Os
pecados dos cananeus tinham que chegar à medida da iniquidade
antes de eles serem expulsos da terra. A terra pertenceria a Israel
enquanto eles fossem fiéis. Porém, a herança completa da terra
ainda não tinha acontecido no tempo de Abraão e Jacó. Eles
partiram antes da conquista da terra e antes que Deus colocasse
seu nome ali. Assim, para os patriarcas, deixar a terra não tinha o
mesmo significado de Elimeleque deixar a terra.
O retorno de Abraão à terra também é digno de nota. Em
Gênesis 12-13, é verdade que Abraão deixa a terra por causa da
fome, mas ele não é abençoado até que volte para a terra. Então,
ele deixa o Egito com espólios. É como se a saída de Abraão fosse
um tipo de exílio. Mas, quando ele volta para a terra, é um êxodo
completo com o espólio dos egípcios.
O tema da terra
Para entender completamente a dinâmica de Rute 1, é
importante traçarmos o tema da terra. Desde a primeira promessa
sobre a terra nas Escrituras, até a nova criação glorificada, a aliança
de Deus está ligada à terra (o Apêndice A tem um extenso
tratamento da Teologia da Terra). A criação é a arena na qual a
redenção acontece; a criação é aquilo que Deus usa para trazer
redenção, e as coisas da criação são redimidas.
Temos a tendência de pensar na esperança cristã como algo
que nos retira da criação como se redenção significasse escapar
deste mundo. Mas, na verdade, isso é muito mais platônico (ou até
gnóstico) do que cristão. A esperança bíblica está ancorada na terra
e na criação. Foi este mundo que caiu; foi este mundo que sofreu a
maldição do pecado; é esta terra que deve ser redimida. Doutro
modo, Satanás obteve a vitória. Se a criação não for redimida,
Satanás reivindicou a criação para si e Deus o deixou possui-la.
Mas, a narrativa bíblica dá à redenção um foco neste mundo.
Na narrativa bíblica, redenção significa que Deus está reivindicando
novamente o que Satanás reivindicou para si. Deus trouxe a
maldição sobre o mundo e Deus pode retirar a maldição do mundo.
Deus pode revogar a maldição e substituí-la por bênção.
Essa verdade tem implicações enormes em como vivemos
nossas vidas e como pensamos no futuro. Com demasiada
frequência, pensamos na esperança cristã futura como o céu. Mas o
que geralmente pensamos como o céu não é nosso destino final.
Pelo contrário, é o que os teólogos chamam de “estado
intermediário”. É verdade que a alma do crente estará com o Senhor
no céu após a morte e isso é uma coisa gloriosa (Fp 1.23), mas não
é o final da história. A alma aguarda sua redenção final e a
ressurreição do corpo no último dia. Quando nossos corpos forem
ressuscitados, a própria criação será glorificada. Se nossa
esperança futura termina no céu, então somos platônicos em vez de
paulinos. Platão disse que o corpo é uma prisão para a alma e, na
morte, a alma é liberada para que possa flutuar para o alto em um
reino etéreo.
Essa visão platônica da salvação teve muita influência no
pensamento, na prática e na piedade cristã. A esperança cristã é
certamente celestial, mas ela também é deste mundo. Ela envolve o
corpo ressuscitado habitando em um novo céu e nova terra por toda
a eternidade. Nossa esperança está no mundo futuro, mas não em
outro mundo. É este mundo que será redimido. O corpo que você
tem agora será o corpo em que você habitará por toda a eternidade
(embora em forma glorificada). Esta é a esperança cristã: o próprio
corpo que sofreu a maldição do pecado e sofreu por causa do
Salvador agora receberá todo o peso da bênção, da glória, do
esplendor e da majestade. Pode parecer que isso não tem muito a
ver com o livro de Rute, mas tem. O livro de Rute não apenas
ensina a salvação pela graça, mas ensina uma salvação
abrangente.
2. Fazendo aliança com estrangeiros
Rute 1.1-5
Um raio de esperança
Rute 1.6-7
O padrão êxodo/exílio
Há outro importante padrão bíblico a ser observado. Nas
Escrituras, deixar a terra é se exilar. Retornar à terra é passar por
um êxodo. Abraão passa por um exílio/êxodo em Gênesis 12. Ele
deixa a terra por causa da fome, vai para o Egito e depois volta com
despojos. Deus protege Abraão enquanto ele está no exílio,
atormentando Faraó quando ele procura atacar a noiva de Abraão, e
quando Abraão parte, ele o faz com um grande tesouro. Claro, está
é uma prévia do que vai acontecer no próprio livro de Êxodo. A
experiência de Abraão se repetirá em escala nacional. No Egito,
toda a nação será atacada e escravizada por Faraó. Em vez de
atacar a noiva, o Faraó (uma figura da serpente) atacará a semente
da noiva ao buscar matar os bebês judeus do sexo masculino. Deus
atormentará Faraó com pragas e depois levará seu povo para fora
do Egito com uma pilhagem tremenda. Há muitos ciclos de exílio e
êxodo na Bíblia.
De fato, toda a Bíblia pode ser lida como a história de exílio e
êxodo. Adão e Eva começam no jardim do Éden com acesso à
Árvore da Vida, mas porque se recusam a exercer uma fé paciente,
antecipam-se e apoderam-se dos privilégios reais em vez de
esperar que Deus os conceda. Como consequência de seu pecado,
eles são exilados do Jardim do Éden. Todo o resto da Bíblia pode
ser entendido como a história de Deus realizando um êxodo para
seu povo, restaurando-o ao santuário. O ciclo final de exílio/êxodo
acontece na cruz. Em Lucas 9, Jesus é transfigurado no monte e
começa a discutir seu “êxodo” futuro com Moisés e Elias. Como isso
acontecerá? Ele será exilado na cruz — exilado da cidade de
Jerusalém, exilado da comunidade de Israel, exilado até da
presença de seu Pai. Mas então ele retorna (êxodo) à terra dos
vivos em sua ressurreição e traz consigo os espólios finais, a saber,
todos os santos redimidos por seu sangue.
Com tudo isso em mente, deve ser evidente que o movimento
geográfico no livro de Rute não é arbitrário. Ele é integral para a
história. Rute descreve outro ciclo de exílio/êxodo. Entretanto, o
êxodo de Rute parece diferente. Nesses outros casos, o êxodo
significa trazer de volta uma grande pilhagem, o que parece não
acontecer quando Noemi começa seu retorno a Judá. Peter Leithart
observa a irregularidade em Rute 1:
No capítulo um, claramente temos um padrão de êxodo. Elimeleque
e Noemi deixam a terra, e Noemi volta com Rute. Mas, sob muitos
aspectos, é um êxodo incomum. Em vez de multiplicarem-se na
terra da peregrinação, como Jacó fez em Padã-Arã e Israel fez no
Egito, Elimeleque e seus filhos morrem, deixando Noemi sem
semente. Em vez de tornarem-se enriquecidos como Abraão,
Isaque, Jacó e Israel fizeram, Elimeleque e Noemi estão
empobrecidos. Jacó foge de Esaú com apenas um bordão e volta
com duas comitivas ricas; ele sai vazio e volta cheio. Noemi sai
cheia e volta vazia. Embora Noemi esteja de volta à terra, não houve
êxodo, nem redenção. Este contraste com os êxodos patriarcais
apoia a noção rabínica tradicional de que Elimeleque pecou ao
deixar a terra.[8]
A transformação de Noemi
Se pensarmos em Noemi como um personagem positivo o
tempo todo, não há muita mudança para acontecer na história. Com
essa interpretação, a própria Noemi não precisa de redenção.
Entretanto, a história faz mais sentido se há uma transformação
dinâmica acontecendo.
Flannery O'Connor, em muitos aspectos a rainha dos
contadores de histórias, disse certa vez que todas as narrativas são
sobre conversão. Em outras palavras, histórias dignas de serem
contadas tratam de redenção. Se Noemi não está agindo mal neste
momento da história, ela não precisa muito de redenção. Membros
da tradição calvinista tendem a atenuar essas narrativas do Antigo
Testamento, tornando-as muito estáticas. Por exemplo, dizemos que
Saul, em 1 Samuel 15, não perdeu nada quando o reino lhe foi
tirado, porque certamente ele era um lobo em pele de cordeiro o
tempo todo. O texto diz que o Espírito se retirou dele, mas como ele
nunca teve realmente o Espírito, então não houve uma perda real
aqui. Ele disfarçou sua incredulidade e apostasia por um tempo,
mas a queda não foi grande porque ele nunca esteve na graça para
começar. Mas a narrativa intepreta isso de maneira muito diferente.
Ela diz que Saul era um novo homem, recebeu um novo coração,
tinha o Espírito e foi adotado por Deus. Mas, em 1 Samuel 15 ele
perde tudo isso. Esta história é o contrário do tipo de narrativa
mencionado por Flannery O'Connor. É uma história sobre perder
tudo.
A história de Judas também pode ser entendia de uma
maneira semelhante e atenuada. Poderíamos dizer que Judas era
mau o tempo todo, então não houve apostasia real. Judas era
simplesmente ímpio, mas sua verdadeira natureza não foi revelada
até mais tarde. Ora, com certeza, às vezes havia sinais sugerindo
que havia algo de errado com Judas. Mas Judas não era um
personagem estático. Afinal, nenhum dos outros discípulos
suspeitava que ele traísse o mestre. Ele também conseguiu fazer
tudo o que os discípulos conseguiam fazer, até realizar milagres.
Podemos ser tentados a ler o livro de Ester de maneira
semelhante. Achamos que Mardoqueu e Ester devem ter sido justos
o tempo todo. Mas, parece claro que Mardoqueu e Ester estavam
em um pecado muito profundo no início do livro. Eles são infiéis e
estão comprometidos Eles se recusam a testemunhar o verdadeiro
Deus e sua aliança. Somente quando há uma grande crise no meio
da história, quando são confrontados com a morte e a extinção, eles
se arrependem e mudam de atitude.
Nesta história, vamos ver a transformação radical de Noemi.
Vamos ver Deus operar em sua vida de tal maneira que ela se
converterá. É claro, isso se torna ainda mais importante quando
vemos que a própria Noemi é um tipo, símbolo ou figura da nação
de Israel. É o povo de Deus que precisa de conversão e redenção.
Se o livro trata da redenção de Noemi, que representa o povo de
Deus, ele também trata de nossa transformação e redenção.
Estamos inclinados a afirmar que Noemi está em profundo
pecado, embora Yahweh lentamente a atraia de volta. Ele a
transformará, assim como fará com Israel.
Rute 1.14-15
O retorno de Noemi
Há bastante comoção quando Noemi finalmente volta para
Belém. Ela esteve fora por quase dez anos, como descobrimos em
Rute 1.4. Você consegue imaginar a aparência dela voltando,
basicamente indigente, tendo perdido o marido, dois filhos e todo
seu sustento? As mulheres perguntam: “Não é esta Noemi?”.
Rumores correm por Belém e não há dúvida de que o que ela
passou afetou sua aparência. Quando elas a reconhecem, ela
insiste em mudar de nome. Ela diz: “Não me chameis Noemi;
chamai-me Mara”. Ou seja, não me chamem de Sra. Agradável, me
chamem de Sra. Amarga. De fato, devemos pensar nesses dois
nomes como antônimos. Se você perguntasse a um garoto hebreu
“qual o oposto de Noemi?”, ele diria: “Mara”.
Como devemos entender a resposta dela nos versículos 20-
21, onde ela descreve a situação? Que tipo de discurso é esse? O
discurso é cheio de autopiedade. Ele expressa uma teologia “ai de
mim”. Em vez de confessar seu pecado, Noemi reclama sobre como
Deus tem sido duro e tirânico ao lidar com ela. Ela se vê como
vítima da severa providência de Deus. Diferente de Rute, Noemi usa
o nome pacutal íntimo de Deus, Yahweh, mas é claro que ela está
pensando em Deus mais como El Shaddai. Ela fala do Todo-
Poderoso algumas vezes como se quisesse distanciar-se de Deus.
Ao chamá-lo de El Shaddai, o Todo-Poderoso, ela está dizendo que
Deus é esse valentão grande e poderoso, e ele está empurrando-a
por aí. Noemi não parece ter qualquer confiança na bondade, graça
e benevolência de Deus. Pelo contrário, é como se ela pensasse
que Deus está usando todo o seu poder contra ela. Ela se retrata
como uma vítima.
Alguns podem dizer: “Isso não é meio como Jó?”. Jó reclamou
contra Deus e, no entanto, Jó foi justificado. No fim do livro, Jó faz
discursos que parecem soar como se Deus o tivesse abandonado, e
ele parece ser justificado. Ou você pode observar o Saltério. Há
vários lugares em que o salmista clama: “Deus, por que me
abandonastes?”, “Por que estou abatido?” ou “Por que estás
distante de mim?”. Poderíamos interpretar as palavras de Noemi à
luz do livro de Jó ou do Saltério e talvez chegar a uma leitura mais
positiva? Isso é possível, e certamente os crentes às vezes se
sentem distantes de Deus, e certamente às vezes se sentem como
se Deus estivesse contra eles. Porém, a linguagem de Noemi vai
além do que encontramos no livro de Jó ou no Saltério, quando
consideramos os contextos mais amplos dessas passagens. Aqui
Noemi está amarga e ressentida. Ela parece ter perdido toda a fé na
bondade de Deus. Precisamos ser sensíveis à sua situação,
percebendo o que ela passou pela perda dos três homens de sua
vida. Pelo menos, ela reconhece que tudo isso é obra de Deus. Ela
entende que Deus é soberano e que foi ele quem levou seu marido
e seus dois filhos. Entretanto, ela dificilmente é um modelo de fé.
Ela se recusa a conformar-se à providência de Deus; ela se recusa
a acatar a vontade de Deus.
Dois elementos estão faltando nesta fase da vida de Noemi. O
primeiro é a confissão de pecados. Ela esteve em pecado, e deveria
ter confessado, e não vemos nenhuma indicação disso. O outro
elemento é que ela parece completamente desatenta à grande
bênção que Deus lhe deu ao enviar Rute com ela. Ela acha que
voltou de mãos vazias. Ela sugere que partiu cheia (“ditosa”) e
voltou sem absolutamente nada. Quando Rute insistiu em ir com
Noemi, e quando esta viu que aquela estava decidida a acompanhá-
la, Noemi parou de falar com Rute. Ela ignorou Rute. Noemi tirou
Rute da história neste momento e não está prestando atenção à
provisão divina de Rute na vida dela.
Ela não entende que houve um êxodo, que Deus a trouxe de
Moabe para a terra prometida com uma grande pilhagem. De fato,
ela fala sobre perder seu marido e seus dois filhos, mas
descobriremos no fim do livro que ela dirá que ter Rute é melhor que
ter sete filhos. Se este é o caso, então ela está mais cheia agora do
que quando partiu. Ela saiu com dois filhos e voltou com alguém que
é melhor que sete, o que significa que ela teve um lucro de cinco.
Rute 1.22
O resgatador
No versículo 1 do Capítulo 2, somos apresentados a Boaz.
Somos informados que ele é parente do marido de Noemi. A palavra
usada não é a palavra para resgatador (essa palavra aparecerá
mais tarde na história). Neste ponto, sabemos que ele é algum tipo
de parente, mas não temos certeza se ele é um candidato válido
para servir como resgatador. É como se o autor quisesse nos
provocar com possibilidades no início do Capítulo 2. E no fim do
capítulo, é revelado que Boaz é um parente próximo o bastante que
possivelmente pode servir como resgatador.
Também aprendemos sobre o grande patrimônio de Boaz. O
termo tem conotações de riqueza, poder e heroísmo. Veremos como
ele usa essa riqueza, status e privilégios em favor dos outros,
principalmente Rute.
Através da introdução de Boaz, o autor fornece um contraste
marcante com os homens fracos que morreram no capítulo 1. O
nome “Boaz” também se encontra em 1 Reis 7.21: é o nome dado a
uma das colunas no pórtico do templo de Salomão. Quando
Salomão construiu seu templo, ele levantou dois grandes pilares na
frente do templo. Um desses pilares foi chamado de Boaz,
significando força. A outra coluna foi chamada de Jaquim, um nome
que significa algo como “estabelecido”. Evidentemente, era uma
grande honra para Boaz ter uma das colunas na casa de Deus com
o seu nome.
Há várias implicações no significado do nome de Boaz. Uma
conexão encontra-se em Ap 3.12. São João nos traz sete cartas
para as sete igrejas. Jesus, escrevendo para a igreja da Filadélfia,
diz a eles que, se vencerem, se tornarão colunas na casa de Deus.
Isto é, se eles vencerem, se tornarão Boazes. Assim, se você quer
ser uma coluna na casa de Deus, não há ninguém melhor para
estudar e imitar que o próprio Boaz — exceto, é claro, a fundação
sobre a qual as colunas da casa de Deus se encontram, o próprio
Jesus Cristo. Se você quer saber que tipo de material Deus usa
para construir sua casa, olhe para Boaz. Nós veremos por que isso
é verdade à medida que a história se desenrola.
Se você observar a genealogia do evangelho de Mateus, verá
que Salmom gerou Boaz através de Raabe, e Boaz gerou Obede
por Rute, Obede gerou Jessé, e Jessé gerou o rei Davi. Boaz está
na linhagem messiânica; ele nos aponta para o Messias. O que
também é digno de nota é que a mãe de Boaz é uma das cinco
mulheres citadas na genealogia. Ela é Raabe, que também era uma
estrangeira incorporada a Israel por casamento, assim como Rute
será. E, se a mãe de Boaz era uma cananeia que foi enxertada em
Israel, ele saberia algo sobre as dificuldades de um estrangeiro
dentro da nação de israel, particularmente uma mulher estrangeira.
Essa é uma das razões pelas quais ele teria se inclinado a cuidar de
Rute. Ele saberia algo sobre a situação de estrangeiros e forasteiros
na comunidade de Israel. Ele estava ciente de quão importante era
cuidar do marginalizado e do estrangeiro. A lei do Antigo
Testamento enfatizava muito o cuidado do estrangeiro, do pobre e
das viúvas, e Boaz estaria intimamente familiarizado com essas
coisas porque sua própria mãe esteve nessa situação.
No capítulo 2, a história começa a caminhar para sua
resolução, e Deus começa a mostrar como ele proverá para essas
duas mulheres.
Rute 2.1-2
A teologia da coleta
Antes de continuar esta seção, é crucial que o leitor entenda o
que está por trás das leis de recolhimento do Antigo Testamento.
Em Lv 19.9-10, lemos:
Quando também segares a messe da tua terra, o canto do teu campo não
segarás totalmente, nem as espigas caídas colherás da tua messe. Não
rebuscarás a tua vinha, nem colherás os bagos caídos da tua vinha; deixá-los-
ás ao pobre e ao estrangeiro. Eu sou o Senhor, vosso Deus.
O dono do campo passaria uma vez por ele, mas deixaria para
trás parte da colheita. Aquelas espigas caídas deveriam ser
deixadas no campo, tanto para os pobres quanto para os
estrangeiros, os quais poderiam colher e comer livremente.
Lv 23.22 enfatiza a mesma ideia:
Quando segardes a messe da vossa terra, não rebuscareis os
cantos do vosso campo, nem colhereis as espigas caídas da vossa
sega; para o pobre e para o estrangeiro as deixareis. Eu sou o
Senhor, vosso Deus.
Dt 24.19-22 oferece o básico da lei da colheita:
Quando, no teu campo, segares a messe e, nele, esqueceres um
feixe de espigas, não voltarás a tomá-lo; para o estrangeiro, para o
órfão e para a viúva será; para que o Senhor, teu Deus, te abençoe
em toda obra das tuas mãos. Quando sacudires a tua oliveira, não
voltarás a colher o fruto dos ramos; para o estrangeiro, para o órfão
e para a viúva será. Quando vindimares a tua vinha, não tornarás a
rebuscá-la; para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva será o
restante. Lembrar-te-ás de que foste escravo na terra do Egito; pelo
que te ordeno que faças isso.
Deus aponta para o passado de Israel como escravos e para
como ele cuidou deles. Os israelitas eram órfãos, destituídos, na
condição de uma víuva que não tem ninguém para cuidar dela ou
sustentá-la, e Deus os redimiu. Agora, por sua vez, Deus ordena
que Israel faça o mesmo pelos outros que estão em uma posição
semelhante: você deve imitar minha graça para com você,
demonstrando esse tipo de graça e misericórdia para os que estão
no mesmo tipo de situação, aqueles que são escravizados ou
oprimidos de alguma forma.
Essas leis de coleta são muito importantes porque nos dão um
modelo de caridade bíblica. A seguir, alguns pontos adicionais sobre
esse princípio.
Rute 2.3
Rute 2.4-7
Eis que Boaz veio de Belém e disse aos segadores: O Senhor seja
convosco! Responderam-lhe eles: O Senhor te abençoe! Depois,
perguntou Boaz ao servo encarregado dos segadores: De quem é
esta moça? Respondeu-lhe o servo: Esta é a moça moabita que veio
com Noemi da terra de Moabe. Disseme ela: Deixa-me rebuscar
espigas e ajuntá-las entre as gavelas após os segadores. Assim, ela
veio; desde pela manhã até agora está aqui, menos um pouco que
esteve na choça.
No versículo quatro, Boaz vem conferir os segadores em seu
campo e usa uma saudação formal para saudá-los. A saudação e a
resposta, “O Senhor seja convosco” e “o Senhor te abençoe”,
devem soar familiares a pessoas de tradições litúrgicas. Liturgias
ocidentais e orientais retiraram a saudação e resposta entre Boaz e
seus servos do livro de Rute e a tornaram parte de suas liturgias
como um tipo de saudação formalizada e estilizada no começo de
um culto.
A saudação aponta para o caráter de Boaz. Que tipo de
homem cumprimenta seus servos e trabalhadores dessa maneira?
Boaz está revelando como um homem piedoso trata aqueles que
estão sob sua autoridade. Aqueles entre nós em posições de
autoridade — seja como marido, pai ou chefe — devem aprender
com Boaz como a autoridade deve ser exercida. A humildade de
Boaz nos aponta para a de outro, especificamente em Filipenses 2,
onde Jesus, como o Deus-homem que, subsistindo em forma de
Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus, colocou-se a
serviço do seu povo. Boaz não usa sua autoridade para tirar
proveito ou explorar os outros. Pelo contrário, Boaz usa seu poder e
influência, riqueza e grandeza para servi-los. Nós veremos que ele
age da mesma forma com Rute. Ele usa toda essa autoridade para
servi-la.
Em Rute 2.5, descobrimos que Rute já chamou a atenção de
Boaz. Ele pergunta sobre ela: “Quem é essa jovem? A quem ela
pertence?". Poderíamos enfatizar demais o interesse de Boaz,
principalmente à luz do romance da história. Isso é amor à primeira
vista? Boaz vê Rute e imediatamente quer saber quem ela é.
Porém, algo mais está acontecendo aqui.
Primeiramente, lembre-se de que a coleta é uma forma de
caridade altamente pessoal. Muito provavelmente, Boaz conhecia
todos os coletores em seu campo porque a caridade bíblica é
pessoal. Ele conheceria as pessoas que estava ajudando. É natural,
portanto, que ele quisesse saber mais sobre a jovem colhendo em
seus campos.
Em segundo lugar, Boaz percebe que Rute está descansando
(v. 7). Nós descobrimos o que Rute tinha dito; este é o relatório do
segundo em comando no campo de Boaz. Ela tinha descansado um
pouco "no abrigo" (A21). É claramente enfatizado que Rute esteve
trabalhando muito. Isso parece ser o que chamou a atenção de
Boaz. Ele quer saber quem veio coletar em seu campo, para que
haja contato entre o benfeitor e quem é ajudado. Boaz descobre que
essa mulher voltou de Moabe com Noemi. Ela pediu permissão para
colher.
Rute 2.10-13
Rute 2.14
Na hora da refeição, Boaz lhe disse: Aproxima-te, come do pão e molha o teu
pedaço no vinagre. Ela se sentou ao lado dos ceifeiros, e Boaz lhe ofereceu
grãos tostados. Ela comeu até ficar satisfeita, e ainda sobrou.
Quando ela se levantou para recolher espigas, Boaz deu ordem aos
seus servos: Deixai que recolha até entre os feixes; não a impeçais.
Tirai também dos feixes algumas espigas e deixai-as cair, para que
ela as recolha, e não a impeçais.
Boaz toma cuidado especial para garantir que Rute tenha
sucesso na coleta. Normalmente, todo o grão seria empacotado
após a colheita, mas Boaz quer garantir que restem alguns por lá,
fáceis de serem colhidos. Assim como ela obteve comida de sua
mesa, agora ela terá grãos de sua colheita. Neste ponto, Rute não é
mais uma coletora. Ela não é mais uma forasteira. Boaz a incluiu na
família da aliança; ele está dando a ela de seu suprimento. Boaz vai
muito além das exigências de caridade estabelecidas pela Torá. Ele
está demonstrando a ela amor e graça incríveis.
Rute 2.17-20
O Goel
Rute 2.20 conclui identificando Boaz como um potencial
resgatador. Noemi diz a Rute: “Esse homem é nosso parente
chegado e um dentre os nossos resgatadores”. Ele é um parente
próximo. Na verdade, a palavra que é usada no texto para “nosso
parente chegado” é goel, ou resgatador.
Um resgatador era um parente que fazia por você o que você
não pode fazer por conta própria. Ele vem resgatá-lo. Como
consequência, ele tinha toda uma rede de deveres obrigações em
relação à pessoa em necessidade. Por exemplo, se você fosse
assassinado, era responsabilidade do resgatador rastrear o
assassino e vingar seu sangue. Ele executaria vingança contra
alguém que ilegalmente tirou sua vida. Se você fosse vendido como
escravo, ele o compraria de volta. O conceito de redenção deriva-se
desse vocabulário.
Se você tivesse que vender sua herança, ele resgataria sua
herança por você. Se o marido de uma mulher morresse sem deixar
um herdeiro masculino, o resgatador poderia cumprir a obrigação do
levirato e ele agiria como um marido substituto para suscitar um
herdeiro homem e substituir o falecido. Claro, isso acontecia porque
ter um filho na Antiga Aliança era crucial, visto quie toda a razão de
Israel existir era trazer a semente prometida da mulher, o filho da
aliança, ao mundo.
Noemi fala da benevolência de Deus para com os vivos e os
mortos. Como é essa benevolência para com os mortos? Ela está
pensando em seu marido e filhos falecidos porque, com a morte dos
três no Capítulo 1, sua linhagem e herança familiares foram
prejudicadas. Mas, se há alguém que pode cumprir a lei do levirato
e ser um marido de levirato, também é possível que um novo filho
para substituir Elimeleque, Malom e Quiliom seja gerado.
Em última análise, todos esses aspectos do resgatador
apontam para a obra de Jesus por nós. O primeiro Adão nos deixou
viúvos, desperdiçou nossa herança e deixou de suscitar a semente
da mulher. Ele nos escravizou ao pecado. Como o segundo Adão,
Jesus produz um descendente frutífero, recupera nossa herança,
resgata-nos da escravidão e vinga aqueles que procuram nos matar.
Em todas essas maneiras, Jesus é nosso verdadeiro levir e nosso
goel, nosso resgatador.
Rute 2.21
Rute 2.22
Disse Noemi a sua nora, Rute: Bom será, filha minha, que saias com as servas
dele, para que, noutro campo, não te molestem.
Boaz mostrou a Rute que ele proverá. As instruções de Noemi
em Rute 2.22 não são apenas práticas, mas buscam lembrar Rute
da opção mais segura e produtiva diante dela. Se Rute pensasse:
“Será que estou abusando das boas-vindas? Talvez eu deva ir a
outra parte do campo", ela acabaria insultando Boaz e mostrando
que não confia nele. Novamente, há uma lição para nós também.
Devemos confiar em Cristo, o Boaz maior, para prover nosso pão
diário. Não devemos procurar em outros campos, por assim dizer.
Depois de tudo o que Cristo fez por nós, como ousaríamos ir a outro
lugar? Precisamos continuar buscando nele; precisamos
permanecer em seu campo trabalhando e confiando nele.
Rute 2.23
Assim, passou ela à companhia das servas de Boaz, para colher, até
que a sega da cevada e do trigo se acabou; e ficou com a sua sogra.
Esse versículo é um sumário. Assim como o Capítulo 1
terminou com um resumo e apontou para o que estava por vir,
encontramos a mesma coisa no versículo final do Capítulo 2.
Era tempo de colheita, o que durava cerca de dois meses.
Alguns dos problemas nesta história foram resolvidos. Lembre-se:
havia vários problemas no Capítulo 1. A estrutura básica deste livro
é carência, reparação de carência ou necessidade, necessidade
satisfeita. Algumas dessas necessidades já foram atendidas. Elas
podiam comer; elas podem sobreviver. Agora, elas têm uma colheita
completa para satisfazer suas necessidades.
Porém, também há algo que ainda não foi tratado, e o leitor
pode ver essa questão surgir no final desta passagem, quando se
diz que "ela morava com a sogra". Embora Rute tenha prometido
sempre pousar onde Noemi pousasse, a declaração no versículo
lembra o leitor que Rute ainda não foi totalmente incorporada à casa
de outro homem. Ela ainda vive com a sogra, o que significa que
ainda precisa de um marido. Ela ainda precisa de uma semente
para ser herdeira. Assim, embora algumas questões tenham sido
resolvidas neste ponto, ainda há a questão do marido para Rute. É
claro, neste momento, parece claro que Boaz é o “escolhido”, mas
como isso acontecerá? É o que veremos nos próximos capítulos.
4. Um pedido de casamento simbólico
Rute 3.1-10
Rute 3.11-12
Agora, pois, minha filha, não tenhas receio; tudo quanto disseste eu
te farei, pois toda a cidade do meu povo sabe que és mulher
virtuosa. Ora, é muito verdade que eu sou resgatador; mas ainda
outro resgatador há mais chegado do que eu.
Um resgatador mais chegado
Nos versículos 11 e 12, Boaz promete fazer o que Rute
solicitou e louva sua virtude. A excelência de Rute e sua grande
virtude são bem conhecidas na comunidade. O vocabulário usado
para louvar Rute é o mesmo tipo encontrado em Provérbios 31, em
que Salomão louva a esposa virtuosa. Boaz elogia Rute de maneira
semelhante. Mas, há uma reviravolta na trama. Tudo parece estar
seguindo o planejado, e agora as coisas mudam bastante. Há uma
falha no plano de Noemi. No versículo 12, descobrimos que há um
parente mais próximo que Boaz, alguém tem a prioridade em
assumir o honrado papel de goel. Isso é parte do que torna Rute
uma história tão bonita. A forma como a história é elaborada a cada
passo cria suspense e introduz várias surpresas.
O fato de que há um resgatador mais próximo explica outros
detalhes da história. A existência de um parente mais chegado
explicaria por que Boaz ainda não agiu com iniciativa ao pedir a mão
de Rute em casamento. Noemi e Rute poderiam estar se
perguntando por que Boaz não agiu para colocar as coisas em
andamento. Por que a iniciativa deve estar sobre Rute? Boaz é um
homem honrado; ele não vai agir de forma errônea. Boaz vai
esperar e ver o que o outro homem, o parente mais próximo, faz.
Boaz pode querer desesperadamente se casar com Rute, mas ele
se contém porque, de acordo com a lei de Deus, há uma ordem a
ser seguida.
Também podemos questionar se Noemi sabia sobre o parente
mais próximo. Boaz é identificado como um parente próximo, mas
Noemi pode ter deixado de seguir os registros familiares durante
todos os anos em que esteve em Moabe. Quando ela volta, é óbvio
que ela não está completamente informada sobre Boaz. Assim, é
provável que ela saiba desse parente mais próximo. Também
devemos observar que, se Boaz fosse o parente mais próximo, ele
poderia ter consumado o casamento naquela mesma noite. É isso
que Rute está pedindo para ele fazer. Quando ela se senta aos pés
dele e propõe um casamento, não há necessidade de um longo
período de noivado ou de uma grande cerimônia de casamento. O
casamento poderia ser consumado ali, em privado. Isso nos ajuda a
entender as ações de Rute.
Quando Rute vai até ele, ela está pedindo que ele se case
com ela naquela noite e consuma o casamento. Boaz não está
pronto para fazer isso porque há um parente mais próximo que tem
prioridade. Está claro que Boaz quer resgatar Rute, mas obedecer à
lei é ainda mais importante para ele. Ele pratica a autodisciplina. Ele
coloca a obediência acima de seus interesses românticos.
Rute 3.13
Fica-te aqui esta noite, e será que, pela manhã, se ele te quiser
resgatar, bem está, que te resgate; porém, se não lhe apraz
resgatar-te, eu o farei, tão certo como vive o Senhor; Deita-te aqui
até à manhã.
Rute 3.14-15
Rute 3.16-18
O simbolismo de Rute
Uma outra observação sobre o simbolismo da história: Boaz
faz sua promessa a Rute, mas depois sai sozinho. Rute não estará
presente quando ele agir decisivamente para resgatá-la no próximo
capítulo. O padrão deve conduzir o leitor, de uma forma simbólica,
para o que Jesus realiza. Pense em Jesus enquanto ele finalmente
realiza a redenção. Os discípulos se dispersam. Eles não estão
presentes. Ele passa por tudo sozinho. Em um sentido, os
discípulos descansam. Eles se deitam e dormem. Você pode até
pensar em Jesus com os discípulos no jardim antes de ele ir para a
cruz. Eles estão descansando enquanto ele está trabalhando. Ele
opera redenção enquanto eles repousam. Da mesma forma, Boaz
vai partir e completar a redenção de Rute enquanto ela descansa.
Noemi diz para Rute: “Descanse, ele vai resolver a questão. Ele vai
operar seu resgate por você, totalmente sem sua participação,
sozinho”. Novamente, isso nos aponta para Jesus como nosso único
resgatador.
Às vezes, é fácil ler as narrativas bíblicas como se fossem as
Fábulas de Êsopo. Então você chega ao fim e diz: “Ok, qual era a
moral da história?”. Existem todos os tipos de lições morais no livro
de Rute, sem dúvida, mas a característica mais importante da
história é ver como Deus traz a salvação ao seu povo e os leva ao
descanso prometido.
Se há uma moral, é que essa história nos mostra que Deus é
aquele que age para nos resgatar. Esta é uma história sobre o que
Deus faz por você, não o que você faz por Deus.
5. Um Nome lembrado
Toda a história do livro de Rute ocorreu durante aquele
período caótico e rebelde da história de Israel. O período dos juízes
termina com estas palavras: “não havia rei em Israel”. A verdade, no
entanto, é que Israel tem um Rei — Yahweh é o Rei de Israel. Mas,
como ninguém reconhece sua realeza, não há rei em Israel e,
portanto, como o final do livro de juízes diz, “cada um fazia o que
achava mais reto”. Elimeleque faz o que é reto aos seus olhos no
início de Rute. É irônico que seu nome signifique “Deus é Rei”
porque ele não age assim.
O livro de Rute é a resposta ao dilema da monarquia de Israel.
Deus proverá um rei para o povo. Ele proverá um rei segundo o seu
coração, um leão da tribo de Judá que liderará o povo em retidão. E
Davi, a última palavra do livro de Rute, será esse rei, em contraste
com o fim do livro de Juízes. O livro funciona como uma ponte do
período dos patriarcas e juízes para essa nova fase monárquica da
história de Deus, na qual eles terão um rei.
Ao nos voltarmos para Rute 4, devemos ter em mente os
eventos do fim de Rute 3. Há a certeza de que Rute será resgatada,
mas há incerteza sobre se esse resgate incluirá Boaz, que de
acordo com todas as sugestões, gostaria de conceder esse
descanso à própria Rute cansando-se com ela e suscitando uma
semente para Noemi como substituto para Elimeleque. Mas, Rute 3
revela que há um obstáculo na forma de um parente mais próximo
que tem prioridade para desempenhar o papel de goel. Uma parte
desta história foi resolvida: Rute se casará.
Mas há outro aspecto da história que não está resolvido, e
essa é a identidade do resgatador. O narrador estabelece o drama
de forma que todo mundo na audiência está esperando um
casamento entre Rute e Boaz. O parente mais próximo se torna
uma ameaça para o final feliz da história que todos queremos ver.
Assim, o que vai acontecer? O parente mais chegado vai se casar
com Rute ou ele deixará passar a honra e permitirá que Boaz o
faça? Essa é a questão, quando entramos em Rute 4.
Rute 4.1
Boaz subiu à porta da cidade e assentou-se ali. Eis que o resgatador
de que Boaz havia falado ia passando; então, lhe disse: Ó fulano,
chega-te para aqui e assenta-te; ele se virou e se assentou.
Rute 4.2
Então, Boaz tomou dez homens dos anciãos da cidade e disse:
Assentai-vos aqui. E assentaram-se.
Rute 4.3-4
Rute 4.5-6
A estratégia de Boaz
Apesar da declaração do parente mais próximo de que ele
resgatará a terra, Boaz não vacila; seu plano é muito parecido com
o plano de Noemi no capítulo anterior. No versículo 5, Boaz
apresenta seu trunfo, sua cartada final. Você pode observar que
Boaz quer obedecer à lei; foi por isso que ele disse a Rute na eira
que ele deveria primeiro consultar o resgatador mais próximo, mas
Boaz também quer se casar com Rute. Se ele puder obedecer à lei
e conseguir Rute também, essa seria a melhor situação de todas.
No versículo 5, Boaz acrescenta que Rute vem com a
propriedade de Elimeleque. Há uma mulher com idade para casar-
se que suscitará uma semente para substituir Elimeleque.
Claramente, então, quando a semente tiver idade suficiente, ela
assumirá a propriedade de Elimeleque mais uma vez e esta será
sua herança. O parente mais chegado terá que pagar pela terra
enquanto o filho cresce, mas ele não poderá mantê-la em sua
família e passá-la para seus filhos. Em vez disso, ela reverterá para
o filho que ele tiver com Rute. Isso significa que ele terá o custo
adicional de cuidar não apenas de Noemi, mas também de Rute e
dos filhos que ela tiver. De repente, o que parecia um negócio muito
bom agora começa a parecer um risco financeiro. Assim, o parente
refaz os cálculos rapidamente e decide que não é um investimento
tão bom assim, afinal. E, no versículo 6, o parente mais próximo diz
que não pode fazê-lo porque seria muito caro a longo prazo. Para a
alegria de Boaz, o parente mais próximo dispensa a propriedade de
Rute e Noemi; ele renuncia ao seu direito de resgate.
Poderíamos perguntar: “Por que Boaz apresentou esse acordo
em duas etapas, deixando a parte do casamento, a parte em que o
homem teria que se casar com Rute, para o final?”. Parece que o
narrador quer que vejamos isso como um ato muito astuto da parte
de Boaz. É relativamente difícil articular a estratégia de Boaz.
Provavelmente precisaríamos estar lá para ver a genialidade disso.
Mas, talvez, se ele tivesse apresentado a aquisição da terra e Rute
de uma vez, o homem não teria sido tão cuidadoso ao considerar o
quanto o casamento com Rute lhe custaria. Ou, talvez, mencionar
Rute depois permitiu que Boaz chamasse atenção para a
nacionalidade dela, tornando a possibilidade de casar-se com ela
pouco atraente para aquele homem. Seja qual for o caso, a cena
mostra claramente que Boaz é inteligente e sábio — e talvez esteja
apaixonado por uma moabita.
O Parente Anônimo
Antes de prosseguir, há outro detalhe a considerar na
passagem. Já observamos como os nomes são importantes em
todo o livro de Rute, particularmente em como revelam a
personalidade. Mas, o parente mais próximo não tem nome algum.
Ele é um resgatador chamado de “fulano”. Por que ele não recebe
um nome? Todo mundo na história tem um nome. Quando o Espírito
Santo dá um nome a um personagem, esse nome tem significado.
Quando o Espírito Santo oculta um nome, esse fato também é
importante.
O autor provavelmente escondeu a identidade desse homem
para não envergonhar sua família ou seus descendentes na época
da redação do livro. Como o livro está estabelecendo Boaz e sua
família, não há razão para diminuir esse outro homem. Em relação
ao desenrolar da história, o parente mais próximo não tem nome
porque seu nome não é digno de ser mencionado. Ele se recusou a
perpetuar o nome de seu irmão em Israel, e assim seu nome não
será perpetuado na história.
Há um tipo de lex talionis (uma lei de retaliação) na narrativa.
Ele não edificou a casa de seu irmão e não conservou o nome de
seu irmão, então seu nome não será conservado. Ele não se torna
um goel, porque teme que isso comprometa sua herança e nome.
Como resultado, seu nome se perde. Ele perdeu a chance de
exaltar seu nome em Israel. O homem parece estar preocupado
apenas com dinheiro. Ele vê o resgate do outro como algo muito
caro. A lição do exemplo deste homem seria algo assim: Não deixe
que a ganância o impeça de ajudar membros carentes da aliança.
Se você permitir que sua ganância o atrapalhe de ajudar os
membros carentes da aliança, você corre o risco de Deus apagar
seu nome. Você ficará sem nome e será esquecido. A maneira de
ter seu nome lembrado e perpetuado pelo povo da aliança é tornar-
se uma pessoa generosa, ser um resgatador das pessoas em
necessidade. O parente mais chegado revela-se um falso
resgatador.
Rute 4.7-8
Rute 4.9-10
Rute 4.11-12
Rute 4.13
Assim, tomou Boaz a Rute, e ela passou a ser sua mulher; coabitou
com ela, e o Senhor lhe concedeu que concebesse, e teve um filho.
Descobrimos que o casamento de Rute e Boaz, de fato,
produziu um filho. A criança foi um dom do Senhor, como todas as
crianças são. Concepção, nas Escrituras, sempre se deve à ação do
Senhor. O palavreado no versículo 13 apresenta essa ideia. Não é
Boaz, mas o Senhor que finalmente a faz conceber. É importante
lembrar que Rute foi casada anteriormente, mas não tinha
concebido um filho. O fato de o texto mencionar o Senhor lhe
concedendo a concepção sugere que Rute teria sido estéril à parte
de alguma intervenção especial do Senhor. Como todas as outras
matriarcas do livro de Gênesis que são estéreis até que Deus
intervenha e abra seu ventre, o mesmo acontece com Rute. O
Senhor age através de Boaz da forma como ele agiu através de
Abraão. Ele faz por Rute o que ele fez por Sara. Essas são as
conexões que devemos fazer. Ela já tinha sido casada por dez anos,
por isso é seguro assumir que ela era estéril. Mas aqui o Senhor
age em seu favor.
Rute 4.14-17
O nome da criança
O nome da criança nascida de Boaz e Rute é Obede. O nome
não era comum em Israel. As mulheres da cidade lhe deram o
nome. O nome Obede significa "servo". É provavelmente uma forma
abreviada de Obadias, que significa "servo de Yahweh". Quando
pensamos no servo do Senhor, nossos pensamentos podem voltar-
se para Isaías e sua profecia de um servo futuro que cumprirá a
vontade do Senhor. Ele resgatará o povo ao sofrer pelo povo, como
descreve Isaías 53. Ele também será vitorioso, conforme descrito
em Isaías 60-62. O nome, então, é um título messiânico. E isso é
apropriado porque Obede é um tipo do Messias. Ele é uma espécie
de figura do resgatador. Podemos dizer que Jesus é o Obede final.
O próprio Davi é chamado de Obede do Senhor
repetidamente. Em mais de 30 vezes no Antigo Testamento e
diversas vezes no Novo Testamento, a Bíblia identifica Davi como o
Obede do Senhor. Obebe aponta para Davi, que, por sua vez, nos
leva a Jesus. Marcos 10 diz que Jesus não veio para ser servido,
mas para ser um Obede para seu povo.
Rute 4.18-22
Terra de confusão
Para entender completamente o papel da terra em Rute 1,
precisamos completar uma pesquisa bíblico-teológica. Vamos
começar com a terra da Palestina. Esta terra certamente teve uma
posição especial durante um período específico da história na
Antiga Aliança, antes da vinda de Cristo. Mas, ela ainda é especial
ou única de alguma forma hoje?
Há muita confusão sobre Palestina na igreja de hoje. Como
resultado, muitos de nossos políticos ficam confusos quando se
trata da política do Oriente Médio. O estado geopolítico de Israel
não tem uma posição pactual especial, nenhuma promessa
especial, e deveria ser tratado pelos cristãos como qualquer outra
nação. Os Estados Unidos podem ou não considerar Israel um
aliado útil, mas não há motivo teológico para Israel ser favorecido
acima de qualquer outra nação que negue Cristo. Se os Estados
Unidos mantêm uma aliança com Israel, deve ser porque Israel
compartilha mais de nossos valores culturais e interesses
econômicos que as outras nações da região, embora deva
permanecer uma preocupação cristã o fato de o evangelismo ser
proibido pela lei israelense.
É possível fazer diversas perguntas: Por que a terra tinha uma
posição especial sob a Antiga Aliança e não sob a nova? Há alguma
contraparte tipológica na Nova Aliança para a terra santa da Antiga
Aliança? A perda de uma terra santa especial significa que a
transição da Antiga Aliança para a Nova Aliança implica uma
mudança do físico para o não-físico? As próximas sete proposições
são apresentadas para responder a essas perguntas. Essas sete
proposições nos conduzirão pela história da terra da promessa.
Primeiro, a terra foi incluída na promessa de Deus a Abraão.
Vemos essa promessa repetida várias vezes (Gn 12.1; Gn 15.18;
Gn 17.8). A terra é uma das bênçãos que Deus promete conceder a
Abraão e seus descendentes. É claro, à luz da história de Gênesis,
isso deve ser visto como uma renovação ou restauração do Jardim
do Éden. Adão foi expulso do Jardim do Éden, mas agora Deus
promete restaurar a posse do santuário-jardim. Ele reverterá o exílio
de Adão.
Segundo, embora Abraão e outros patriarcas tenham
ocasionalmente vagado pela terra como estrangeiros, a terra
finalmente se tornou propriedade dos descendentes de Abraão após
o êxodo. Josué liderou a conquista da terra, e isso se tornou um
privilégio distinto para Israel: habitar no lugar onde Deus colocou
seu nome, no novo Éden. Os gentios podiam vir e habitar na terra,
mas mesmo assim os gentios não podiam tornar-se residentes
permanentes porque as porções de terra revertiam para o antigo
dono de vez em quando, segundo as leis que Deus deu ao seu
povo. A terra era uma propriedade permanente de Israel, e os
gentios não podiam viver nela do mesmo jeito. É claro, a grande
maioria dos gentios foi totalmente excluída. Isso não significa que os
gentios não pudessem ser salvos na Antiga Aliança. O livro de Rute
refuta essa ideia pois a própria Rute é gentia. De fato, existem
outros exemplos de gentios tementes a Deus na Antiga Aliança.[11]
Entretanto, em relação à proximidade de Deus e privilégios
especiais da aliança, essas bênçãos pertencem a Israel, e não às
nações da era da Antiga Aliança.
Terceiro, em Dt 28.64-66, Deus prometeu expulsar o povo de
Israel da terra se eles fossem infiéis:
O Senhor vos espalhará entre todos os povos, de uma até à outra
extremidade da terra. Servirás ali a outros deuses que não
conheceste, nem tu, nem teus pais; servirás à madeira e à pedra.
Nem ainda entre estas nações descansarás, nem a planta de teu pé
terá repouso, porquanto o Senhor ali te dará coração tremente,
olhos mortiços e desmaio de alma. A tua vida estará suspensa como
por um fio diante de ti; terás pavor de noite e de dia e não crerás na
tua vida.
De fato, foi isso que aconteceu. Primeiro aconteceu com Israel
no norte em 722 a.C. e então com Judá no sul em 586 a.C. A ideia é
que a terra santa não pode tolerar um povo profano.
Quarto, os mesmos profetas que anunciaram que o exílio era
iminente também prometeram um retorno do exílio em um novo
êxodo. Assim como o primeiro êxodo levou à posse da terra, os
profetas descreveram um retorno à terra usando a linguagem de um
novo êxodo. Isso aconteceu, em certo sentido, sob o imperador
Ciro, por volta de 516 a.C. Esdras, Neemias, Ageu e outros livros do
Antigo Testamento descrevem as pessoas sendo restauradas na
terra. Há uma certa reconquista. O templo é reconstruído e as
pessoas habitam na terra de novo. Mas, nem todos os israelitas
voltaram, e Israel nunca foi uma entidade geopolítica, pelo menos
nunca foi por muito tempo. Israel jamais teve de novo o tipo de
independência geopolítica que tinha anteriormente em sua história
sob os gloriosos reinados do rei Davi e do rei Salomão. Na Aliança
da Restauração (uma maneira de designar melhor esta era), a glória
de Israel era maior, mas também mais oculta que antes e, embora a
base de operações de Israel fosse certamente Jerusalém, a nação
continuou a interagir fortemente com nações gentias de uma
maneira missional. Deus estava fazendo seu povo habitar em um
império gentio.
Quinto, em 70 d.C., os israelitas foram novamente expulsos da
terra e espalhados pelas nações. Esse julgamento foi uma punição
por crucificar Jesus e perseguir sua igreja. O que aconteceu em 70
d.C. foi significativo porque encerrou a situação especial de Israel
como nação escolhida de Deus. O sacerdócio real foi tirado de
Israel e dado a um novo povo que daria frutos, que é o novo Israel
(Gl 6.16). Os eventos de 70 d.C. marcaram o fim da antiga criação,
com um santuário centralmente localizado.
Nos relatos do evangelho, Jesus faz muitas previsões sobre a
destruição do templo e suas consequências. Essas previsões são
claras no Discurso do Monte das Oliveiras, encontrado em Mateus
24, Marcos 13 e Lucas 21. Seus discípulos ficaram muito
impressionados ao passear pelas construções em Jerusalém. Eles
dizem para Jesus: “Veja que construções maravilhosas”. Jesus
responde: “Não ficará pedra sobre pedra”. Então, ele começa uma
descrição de como o templo será destruído pelos romanos como
juízo de Deus. Este não é apenas um juízo comum; este é o juízo
sobre toda a ordem da Antiga Aliança. Em Mateus 23, Jesus diz que
a geração atual de judeus será responsabilizada pelo sangue dos
justos que ela derramou, não somente sob a aliança mosaica, mas
retroativamente até Abel, primeiro mártir da história (Mt 23.35-36).
Toda a era da antiga criação, que se estende desde a criação do
mundo até o ano 70 d.C., termina quando o templo é destruído.
Todo o sistema da antiga criação, que incluía a circuncisão, a
divisão judeus/gentios, o sistema sacrificial, um calendário regulado
pela lua e o espaço geográfico sagrado na Palestina (e todas as leis
pertencentes a esse espaço), chegariam ao fim. Assim, devemos
concluir que a terra da Palestina não tem mais uma posição
especial, certamente não mais que a circuncisão na era da Nova
Aliança. A terra não possui mais significado pactual. Não há nada de
especial nesse espaço físico particular do Oriente Médio. Aquele
sistema inteiro foi cumprido, julgado e removido.
Por fim, devemos dizer que a aliança de Deus com seu povo
continua a ser ligada à herança da terra. Não é como se tivéssemos
saído da terra para uma esperança etérea e imaterial. Pelo
contrário, na Nova Aliança, a promessa da terra foi expandida para
incluir toda a terra. Agora o mundo inteiro é declarado santo em
Cristo. A terra na Palestina que Deus prometeu a Abraão era
apenas um sinal de uma herança muito maior, a saber, todo o
cosmos. A conquista e posse da terra por Israel era apenas uma
prefiguração da herança muito maior que Deus daria ao seu povo. A
igreja está destinada a herdar a terra enquanto ela cresce e
discipula as nações da terra. Quando Cristo voltar, ele libertará
completamente esta criação física dos efeitos do pecado e da
queda, e viveremos com Deus em uma criação física renovada por
toda a eternidade. Isso e nada menos que isso é a esperança
bíblica que temos diante de nós. Assim como seremos
ressuscitados e viveremos por toda a eternidade nos corpos da
ressurreição, a própria criação passará por uma espécie de
ressurreição. Apocalipse 21-22 descreve o céu e a terra sendo
unidos. Esta é a visão que devemos ter: o céu e a terra se tornarão
um. Essa sempre foi a intenção de Deus: casar-se com seu povo e
tornar o céu e a terra um. Esta é a bendita esperança final do povo
de Deus.
Nossa esperança não é apenas eterna, mas também histórica.
Mesmo agora, a igreja tem a promessa de que “os mansos herdarão
a terra”. Mesmo agora, a promessa que Deus fez a Abraão de uma
família global está se cumprindo. Essa promessa é consistente com
a Grande Comissão de ir e discipular as nações (Mt 28.18-20). Na
Grande Comissão, Jesus diz, em essência: “Eu prometi a vocês o
mundo inteiro; agora vão e o reivindiquem. Vão pegar o que é de
vocês”. A comissão da igreja é ir e encher a terra com os discípulos
de Cristo. Mas, o mandamento é apoiado por uma promessa. A
promessa que Deus nos deu inclui não apenas um pedaço de terra,
mas a terra em sua totalidade. Um exemplo disso é Paulo
reformulando o quinto mandamento em Éfesios 6. Enquanto as
crianças judias sob a Antiga Aliança tinham a promessa de vida
longa na terra da promessa, as crianças cristãs em Éfeso têm a
promessa de uma vida longa na terra. A promessa se aplica não
apenas às crianças judias na terra da promessa, mas às gentias
onde quer que elas vivam. O escopo da promessa mudou de um
pedaço de terra restrito para englobar todo o mundo, assim como se
expandiu de crianças judias a crianças cristãs gentias.
Pó santo
Lembre-se de que o primeiro princípio da interpretação bíblica
de Agostinho era totus Christus, o Cristo total, cabeça e corpo. Tipos
são cumpridos em Cristo, mas não terminam com Cristo; eles têm
um “acompanhamento” no povo de Cristo, a igreja. Assim, devemos
perguntar: como a terra também é um tipo da igreja? Devemos
pensar em nós mesmos como a verdadeira terra santa. Somos a
terra santa que ganha vida. Como Deus formou o primeiro homem?
A partir do pó da terra. O que era Adão? Adão era terra na qual
Deus soprou vida.
Somos feitos do pó da terra. As Escrituras dizem que maldição
da serpente era comer poeira. Entretanto, as Escrituras também nos
dizem que Satanás é como um leão buscando a quem devorar.
Satanás está procurando um pouco de terra para comer.
Que tipo de terra nós somos? A Bíblia nos chama de santos, o
que significa que somos poeira santa. Nós somos terra santa. Nós
somos a personificação viva da terra santa. Na Nova Aliança, você e
seus irmãos cristãos são um espaço sagrado. Você é a terra, a
cidade e o templo.
Considere como o espaço sagrado funcionava na Antiga
Aliança. O sistema de santidade da Antiga Aliança tinha uma
fundação geográfica, pelo menos simbolicamente. Se você quisesse
se aproximar de Deus, teria de ir ao templo em Jerusalém. Na Nova
Aliança, Jesus diz: “onde estiverem dois ou três reunidos em meu
nome, aí estou eu no meio deles”. O lugar sagrado é onde nos
reunimos. Por quê? Porque nós somos o espaço sagrado. Vimos
que estar em Cristo cumpre o que estar na terra significava para
Israel. Também podemos dizer que estar na igreja cumpre o
significado de estar na terra santa. As Escrituras nos apontam para
essa verdade de maneira bastante explícita. Em Hb 11.16, temos
um sumário do que esses santos da Antiga Aliança procuravam
enquanto olhavam para o futuro com os olhos da fé: “Mas, agora,
aspiram a uma pátria superior, isto é, celestial”. A fé deles
enxergava além da terra da Palestina e via algo maior. “Por isso”,
Hebreus diz, “Deus não se envergonha deles, de ser chamado o seu
Deus, porquanto lhes preparou uma cidade”. Em Hebreus, essa
pátria e cidade celestial são praticamente intercambiáveis. Assim,
devemos perguntar: “O que é a pátria celestial? O que é a cidade
celestial que nos foi prometida?”. No Novo Testamento, descobrimos
que é a igreja.
A igreja é a Jerusalém celestial (Gálatas 4, Apocalipse 21-22).
Hebreus 12 diz que quando vamos à igreja, chegamos “ao monte
Sião e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial”. Qual era o
país e cidade celestial que os patriarcas desejavam ver? A igreja.
Todas aquelas entidades geográficas e políticas da Antiga Aliança
encontram seu cumprimento na comunidade da Nova Aliança. A
terra foi o lugar de habitação de Deus, o lugar onde ele colocou seu
nome; agora, a igreja é o lugar de habitação de Deus, o lugar onde
Deus coloca seu nome.
Por fim, podemos dizer que a terra, considerada
tipologicamente, foi um sinal da posse muito maior que Deus daria
ao seu povo, a saber, toda a terra. Agora, toda a terra foi purificada
e é uma morada adequada para Deus. Falar da terra da Palestina
como “a terra santa” é sugerir que o resto da terra ainda é profano e
impuro e, portanto, está sob a maldição de Deus. Se ficarmos
tentados a pensar assim, precisamos lembrar que Deus disse a
Cornélio: “Não chame impuro ao que Deus purificou” (NVI). Jesus
Cristo reivindicou o mundo inteiro. Se ele não parece santo ainda,
apenas espere. É só uma questão de tempo. O mundo pode não
parecer um país celestial ou uma cidade santa, mas Deus promete
torná-lo assim.
A universalidade da Terra
No período em que a história de Rute ocorre, a presença e
promessa de Deus estavam, em certo sentido, ligados à terra da
Palestina. Considere a história de Naamã, o sírio, encontrada em 2
Reis 5. Naamã era um sírio que contraiu lepra. Seguindo as
instruções do profeta Eliseu, ele é purificado no rio Jordão. Então
ele insiste em levar um pouco de terra da terra prometida de volta
para casa (2 Reis 5.17). Isso nos parece um pouco supersticioso, e
seria supersticioso fazer algo assim hoje. Mas nos dias de Naamã,
fazia todo sentido, e é por isso que Eliseu abençoa sua ação.
Naquela época, Naamã sabia que a presença e as promessas de
Deus estavam ligadas a esse pedaço de terra. Ao levar terra de
Israel, ele está levando a presença e santidade de Deus com ele. É
um ato de fé, um sinal de que ele confia no Deus de Israel. É claro,
isso também é tipológico, prenunciando a extensão do espaço
sagrado até os confins da terra.
Traga tudo isso de volta a Rute 1 e a decisão de Elimeleque
de deixar a terra. Na Nova Aliança, somos livres para nos mudar de
um lugar para o outro, nação a nação, sem qualquer efeito sobre
nosso relacionamento com Deus. Podemos nos encontrar com Deus
em qualquer lugar. É claro, há um sentido em que isso era verdade
sob a Antiga Aliança. Entretanto, também é verdade que, sob a
Antiga Aliança, a terra de Deus simbolizava a presença de Deus, e
Israel viver na terra era um sinal de que eles desfrutavam da bênção
de Deus de uma maneira especial. Deixar deliberadamente a terra
após a conquista era levar a maldição do exílio sobre si mesmo.
Tipologicamente falando, Elimeleque sair da terra era
essencialmente o equivalente a abandonar a Cristo e a igreja.
Elimeleque abandonou sua herança na terra, o que era um sinal de
abandonar sua herança eterna. Previsivelmente, viver fora da terra
trouxe morte.
Apêndice B — Uma teologia das asas
Rute 2.12 nos prepara o cenário quando Boaz diz a Rute: “O
Senhor retribua o teu feito, e seja cumprida a tua recompensa do
Senhor, Deus de Israel, sob cujas asas vieste buscar refúgio”. O que
o texto quer dizer quando fala de Rute vindo encontrar refúgio sob
as asas do Senhor? Boaz ora para que Rute seja recompensada
pelo Senhor debaixo de suas asas, onde ela encontrou refúgio. O
que isso nos diz sobre Deus? O que isso diz sobre a natureza da
nossa salvação?
Mais tarde no livro (Rute 3.9), Rute dará a Boaz a
oportunidade de responder sua própria oração. Na eira à noite, ela
virá até ele dirá: “Estende a tua capa [tuas asas] sobre a tua serva,
porque tu és go'el, tu és resgatador”. O que essa imagem da asa
significa?
Estender as asas sobre outro era formar um laço pactual com
essa pessoa. Ezequiel 16 fornece um vislumbre desse tema,
descrevendo o casamento de Deus com Israel da maneira como ele
se uniu em amor ao seu povo. A passagem diz que, quando Israel
nasceu, Deus o batizou; ele o lavou. Provavelmente, isso é uma
referência ao êxodo e à travessia do Mar Vermelho. Deus a lavou na
água e depois a nutriu para que ela crescesse, amadurecesse e se
tornasse bonita. Então, quando chegou a hora, ele se casou com
ela. Isso pode ser uma referência ao que aconteceu no Sinai ou a
algum outro ponto da história de Israel quando Deus entrou em
aliança com eles. Ele fez um juramento de casamento para sua
noiva. E, em Ez 16.8, lemos:
“Passando eu por junto de ti, vi-te, e eis que o teu tempo era tempo
de amores; estendi sobre ti as abas do meu manto e cobri a tua
nudez; dei-te juramento e entrei em aliança contigo, diz o Senhor
Deus; e passaste a ser minha”, diz o Senhor Deus.
Esta é uma descrição poética do casamento de Deus com
Israel. É como se Deus fosse um pássaro que estende suas asas
sobre sua noiva para protegê-la e guardá-la. Deus abrir suas asas
sobre Israel significa entrar em aliança com eles. É claro, é
exatamente isso que Rute pede que Boaz faça em Rute 3. “Estende
tuas asas ou manto sobre mim” é basicamente a forma de ela dizer:
“Case-se comigo. Faça-me tua. Faça um juramento de tornar-me
sua esposa por aliança”.
Um rápido exame bíblico do conceito de asas revela que os
tradutores nos fizeram um grande desserviço ao não traduzirem a
palavra consistentemente. A palavra traduzida como “asa” em Rute
2, Rute 3 e Ezequiel 16 é, às vezes, traduzida por outros termos.
A origem da figura das asas começa no relato da criação em
Gênesis 1, onde lemos que o Espírito paraiva ou movia-se sobre a
terra vazia e sem forma. Encontramos a figura de um pássaro sendo
usada para descrever Deus, particularmente o Espírito Santo. Em
Deuteronômio 32, Deus tira os israelitas do Egito e o texto refere-se
a Deus pairando sobre o povo. É o mesmo palavreado usado no
relato da criação de Gênesis 1. O êxodo é uma nova criação; Israel
se torna como uma nova criação. Novamente, Deus paira sobre sua
criação, seu povo recém-formado.
Outro exemplo desse tema encontra-se em Nm 15.37-41:
Disse o Senhor a Moisés: Fala aos filhos de Israel e dize-lhes que
nos cantos das suas vestes façam borlas pelas suas gerações; e as
borlas em cada canto, presas por um cordão azul. E as borlas
estarão ali para que, vendo-as, vos lembreis de todos os
mandamentos do Senhor e os cumprais; não seguireis os desejos
do vosso coração, nem os dos vossos olhos, após os quais andais
adulterando, Para que vos lembreis de todos os meus
mandamentos, e os cumprais, e santos sereis a vosso Deus. Eu sou
o Senhor, vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito, para vos ser
por Deus. Eu sou o Senhor, vosso Deus.
Quando o texto fala dos cantos da veste, na verdade está
falando das asas das vestes. Todo israelita deveria vestir uma roupa
com quatro cantos, ou quatro asas, e em cada canto ou asa da
roupa haveria uma borla azul. Essas borlas azuis eram sinais ou
memoriais ao Senhor e à aliança que ele havia feito com Israel.
Talvez você tenha ouvido falar de “leis azuis”,[12] como as leis do
sábado, por exemplo. Parece que essas leis azuis se originaram
com os protestantes escoceses, que escolheram usar a cor azul
como símbolo da aliança. Os presbiterianos da Escócia ficaram
conhecidos como as pessoas que eram true blue [azul verdadeiro],
uma expressão que é utilizada até hoje.
Os israelitas tinham borlas azuis em cada canto ou asa de
suas vestes para lembrá-los de sua aliança com Deus e de como
eles deveriam ser leais a ele. Suas asas serviam como lembretes
simbólicos constantes de que eles eram seu povo especial, que foi
redimido no êxodo. Eles eram o seu povo celestial (e o azul é a cor
dos céus, claro).
Em Ez 1.6, encontramos os querubins, os guardiões angélicos
do trono de Deus, com quatro asas. Se um israelita veste uma roupa
com quatro asas, podemos ver imediatamente uma conexão entre o
israelita e o querubim. A principal função dos querubins era guardar
a santidade de Deus (por exemplo, havia querubins de ouro na Arca
da Aliança guardando glória-shekinah de Deus). Israel, em certo
sentido, deveria ser uma nação de querubins. Eles deveriam ser um
povo semelhante aos querubins, um sacerdócio real guardando o
trono e a santidade de Deus.
Em Ez 1.8, há uma conexão simbólica entre as asas dos
querubins e suas mãos. É claro, por toda a Escritura, as mãos têm
relação com poder, autoridade e auxílio. Em Ageu 2, há um paralelo
entre as asas — nesse contexto específico, as asas das vestes — e
as mãos da pessoa. É como se as asas das vestes fossem mãos
simbólicas. Eles são símbolos de poder, autoridade e auxílio.
Há numerosas passagens por todo o Saltério e os Profetas
que falam de Deus tendo asas. Algumas dessas passagens estão
entre os textos mais bonitos e poéticos de todas as Escrituras.
Salmo 17.8, por exemplo, diz: “Guarda-me como a menina dos
olhos, esconde-me à sombra das tuas asas”. Assim como alguém
faria qualquer coisa para proteger a pupila dos seus olhos, aqueles
que se escondem à sombra das asas de Deus estão em um lugar
de proteção.
Salmos 36.7 diz: “Como é preciosa, ó Deus, a tua
benignidade! Por isso, os filhos dos homens se acolhem à sombra
das tuas asas”. Assim, a benignidade de Deus, seu hesed, é um
amor pactual forte e indestrutível. O que significa ser protegido e
guardado por esse amor pactual? Significa segurança e proteção
total. Estar sob a proteção das asas de Deus é glorioso. É salvação.
Como Salmos 57.1 diz: “Tem misericórdia de mim, ó Deus, tem
misericórdia, pois em ti a minha alma se refugia; à sombra das tuas
asas me abrigo, até que passem as calamidades”. Onde você se
esconde em tempos de calamidade, angústia e problemas? Você se
refugia sob as asas de Deus. Ali você encontra sua misericórdia e
provisão.
Em Salmos 61.4, Davi diz: “Assista eu no teu tabernáculo,
para sempre; no esconderijo das tuas asas, eu me abrigos.
Obviamente, Davi era um rei, não um sacerdote, então não poderia
habitar no tabernáculo. Davi está falando escatologicamente ao
prenunciar a Nova Aliança, quando todos formos levados à
presença-templo de Deus. Isso é equivalente a se abrigar sob as
asas de Deus. Estar sob as asas de Deus é ser incorporado ao seu
tabernáculo ou à sua presença no templo. Há um tipo de
proximidade com Deus que vem com isso.
Outro exemplo se encontra em Salmos 63.7: “Porque tu me
tens sido auxílio; à sombra das tuas asas, eu canto jubiloso”. Assim,
as asas são um lugar de auxílio; é o lugar onde o poder de Deus se
manifesta para nossa proteção. De forma semelhante, veja Salmos
91.4: “Cobrir-te-á com as suas penas, e, sob suas asas, estarás
seguro; a sua verdade é pavês e escudo”. Deus é como um pássaro
poderoso que desce sobre nós e protege-nos com suas asas.
Passando para o Novo Testamento, Jesus retoma esse tema
como parte do seu ensino também. Por exemplo, em Mt 23.37, no
contexto de todas as maldições que ele derrama sobre os fariseus,
Jesus olha para Jerusalém e diz: “Jerusalém, Jerusalém, que matas
os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes
quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos
debaixo das asas, e vós não o quisestes!”. Então, ele diz: “Eis que a
vossa casa” — isto é, o templo — “vos ficará deserta. Declaro-vos,
pois, que, desde agora, já não me vereis, até que venhais a dizer:
Bendito o que vem em nome do Senhor!”. Nosso Senhor chora por
Jerusalém porque esta é uma cidade rebelde e ímpia. Ela matou os
profetas no passado e está prestes a crucificar Jesus, que é o
profeta final e supremo. Jesus diz: “Eu anseio por cobrir vocês com
minhas asas, como uma galinha faz seus filhotes. Esse tem sido
meu desejo, protegê-los e guardá-los”. Como Deus no Antigo
Testamento, Jesus tem asas.
Há outras passagens que não usam esse vocabulário
específico, mas estão claramente relacionadas. Por exemplo, o
Salmo 133 fala do sacerdote sendo ungido e do óleo da unção
escorrendo sobre o sacerdote, da barba de Arão, até a borda de sua
vestimenta, até a barra de sua túnica. Isso significa, é claro, as asas
da roupa. A própria veste é um símbolo do povo. Significa que o
povo, como um todo, será coberto com essa unção sacerdotal.
Outras passagens também levam isso em consideração. Em 1
Samuel 15, quando Saul é rejeitado como rei sobre Israel, ele
agarra a asa, ou canto, da veste de Samuel e a rasga. E Samuel
diz: “O Senhor rasgou, hoje, de ti o reino de Israel”. Isto é, rasgar o
canto das vestes significava que o reino tinha sido rasgado de Saul.
Ele perdeu sua autoridade como regente do reino. Mais tarde, em 1
Samuel 24, Davi secretamente vai até Saul em uma caverna,
esconde-se em um lugar perto de Saul e corta a asa de seu manto,
que é um ato altamente simbólico.
A asa simboliza o reino; ela simboliza a posição semelhante à
de um querubim que Saul tem como regente sobre a nação. Davi
tomando o canto da veste é um símbolo de que Davi tomará o reino
de Saul. Mais tarde, Davi se arrepende desse ato porque sabe que
atacou prematuramente a autoridade do ungido do Senhor. Davi tem
que esperar o tempo de Deus para receber o reino. Ele reconhece
que apoderar-se da asa foi um ato desonroso. Mas, permanece a
ideia de que o reino será retirado de Saul e entregue a Davi.
Assim, o que temos visto até agora? O canto (asa) da veste
representa a aliança. Representa justiça e proteção. Está associado
à mão de uma pessoa, o que tem a ver com poder, autoridade e
auxílio, e com o reino. Todas essas coisas se unem no tema das
asas.
Em Rute 3, Rute vai segurar as asas de um judeu. Ela
receberá bênção e proteção dessa maneira. Em Rute 2, ela busca
refúgio sob as asas do Senhor e, em Rute 3, ela toma posse do
cuidado de Boaz e encontra segurança pactual ali.
Estamos construindo uma imagem composta de tudo o que
está associado a essas imagens de asas, e certamente há outras
coisas que poderíamos adicionar a esta lista. Mas há uma história
em particular no Novo Testamento que reúne tudo isso. Em Lucas
8.40-55, lemos sobre uma mulher que teve fluxo de sangue por
doze anos. É claro, esse fluxo de sangue a tornava ritualmente
impura segundo a lei do Antigo Testamento. Sob o código levítico,
quando o sangue flui, a vida flui e o resultado é a morte (simbólica).
A mulher de Lucas é uma morta-viva. Ela é imunda ou
simbolicamente morta, o que significa que ela está excluída do culto
em Israel. Sua vida tem sido um inferno. Por doze anos, ela esteve
no exílio; ela foi afastada da comunidade da aliança, incapaz de
participar do culto no templo. E o pior, ela não podia ter qualquer
comunhão real com as pessoas porque, como alguém impuro, tudo
o que ela tocava tornava-se impuro. Sua impureza se espalharia
para os outros. Na Antiga Aliança, a morte se espalha (Rm 5.12ss).
Porque ela teve o fluxo de sangue por doze anos, podemos ter
justificativa para ver sua condição como um retrato das doze tribos
de Israel sob a lei, sem vida e impuras.
O que ela faz? Quando Jesus passa, ela aparece por trás e
toca a orla com asas das vestes de Jesus. Ela o agarrou pela asa.
Deveríamos pensar em Zacarias 8, e talvez também em Ml 4.2. Esta
é provavelmente a passagem que ela tinha em sua mente. Ela sabe
que encontrará a cura nas asas do “Sol da justiça”. Certamente, de
acordo com a lei do Antigo Testamento, o que teria acontecido
quando essa mulher impura tocou Jesus é que a impureza dela teria
passado para ele. Ele deveria ficar contaminado naquele momento.
Mas, em vez de a impureza e a morte dela passarem para ele, a
santidade dele passa para ela e derrota a morte dela.
Assim, com a vinda de Jesus, todo o sistema em que a morte
se espalha para todos os homens é revertido. Agora a santidade, a
vida e a justiça se espalham porque Jesus veio e o Espírito veio. Em
Lucas 8.46, Jesus diz “de mim saiu poder”. E ele quer saber quem o
tocou. Em Lucas, o poder está quase sempre associado ao Espírito
Santo. É como se, quando a mulher o toca, o Espírito Santo fluísse
através da borda da veste de Jesus para ela e a restaurasse,
trazendo vida a ela e vencendo a morte que estava fluindo dela.
Esta mulher encontra cura nas asas de Jesus
Apêndice C — Graça e boas obras: Um
panorama teológico
Em Rute 2, Rute deixa muito claro que ela está impressionada
com a graça de Boaz. Ela pergunta: “Por que encontrei favor aos
seus olhos?”. Boaz responde em Rute 2.11 com uma linguagem que
indica que Rute é como Abraão: ela deixou sua terra natal e chegou
a um povo/terra que não conhecia. Em Rute 2.12, Boaz diz: “O
Senhor retribua o teu feito, e seja cumprida a tua recompensa do
Senhor, Deus de Israel, sob cujas asas vieste buscar refúgio”.
Boaz descreve a recompensa que Rute receberá como um
pagamento. “O Senhor retribua o teu feito.” Como devemos
entender isso? O que significa o Senhor retribuir nosso trabalho?
Isso significa que, quando fazemos boas obras para Deus, estamos
pagando a Deus — como colocar uma ficha numa máquina — para
que Deus então nos pague quando a recompensa surgir? Nossas
obras pagam Deus? Nós trabalhamos para Deus para que ele nos
dê um salário em troca? É este o tipo de relacionamento descrito
aqui?
De fato, Boaz também diz que Rute buscou refúgio sob as
asas do Senhor. Nós já vimos que esse vocabulário indica uma
profunda relação pactual, semelhante ao de um marido e sua
esposa. É a linguagem do amor, da fé e da graça. Porém, ainda
precisamos perguntar: Por que essa linguagem de retribuição em
Rute 2.12? Como isso se encaixa?
Este não é o único lugar onde esse tipo de linguagem ocorre.
Sob a Nova Aliança, Hb 6.9-10 diz:
Quanto a vós outros, todavia, ó amados, estamos persuadidos das
coisas que são melhores e pertencentes à salvação, ainda que
falamos desta maneira. Porque Deus não é injusto para ficar
esquecido do vosso trabalho e do amor que evidenciastes para com
o seu nome, pois servistes e ainda servis aos santos. Desejamos,
porém, continue cada um de vós mostrando, até ao fim, a mesma
diligência para a plena certeza da esperança; para que não vos
torneis indolentes, mas imitadores daqueles que, pela fé e pela
longanimidade, herdam as promessas.
Paulo (ou algum outro escritor inspirado) diz que Deus não é
injusto para esquecer o trabalho de amor dos santos. O que isso
poderia significar e como se encaixa com o que sabemos da graça e
justiça de Deus?
Hebreus 6 diz que Deus não será injusto; sua justiça inclui ter
consideração por aqueles que trabalharam em amor. Deus não vai
esquecer de retribuir, poderíamos dizer, pelo trabalho que eles
fizeram por ele. A recompensa dada pelas obras realizadas é
considerada uma questão de justiça (como é considerada uma
questão de retribuição em Rute 2).
Há alguns na história da igreja que consideram isso um tipo de
sistema de débito e pagamento. Nossos pecados são dívidas,
nossas boas obras são pagamento e, com sorte, as coisas se
equilibrarão a nosso favor no final, com mais crédito do que débito.
Porém, sabemos que tudo na Bíblia vai contra essa interpretação.
Mas, ainda precisamos perguntar: “Como explicamos esse
vocabulário?”. A menos que desejemos concluir que Boaz é um
herege — uma ideia absurda —, precisamos entender como sua
declaração se encaixa em uma estrutura soteriológica ortodoxa.
A chave para a linguagem de retribuição é que, quando anda
com Deus, você caminha no caminho da obediência. E, quando
você caminha no caminho da obediência, encontra favor, bênção e
recompensa. A bênção não é merecida de forma alguma. Não há
teologia de mérito na Bíblia. Não há nada que possamos merecer de
Deus, nenhuma maneira de comprar o favor de Deus por nossas
boas obras. Não podemos arrancar o favor de Deus. A linguagem
de retribuição deve ser entendida como linguagem pactual. É a
forma de Deus dizer que aqueles que andam fielmente em
obediência estão andando no caminho da salvação, e Deus fará o
bem para eles.
Nada aqui é incompatível com a graça. Mas a graça bíblica, a
verdadeira graça, não apenas concede perdão gratuito, mas
também traz transformação. Pela graça, somos salvos sem obras. E
pela graça, começamos a fazer boas obras. Pela graça, somos
perdoados. E pela graça, somos transformados. Pela graça, somos
aceitos. E, pela graça, nossas obras boas, mas imperfeitas, são
aceitas e recompensadas também. O Catecismo maior de
Westminster (R. 32) chama isso de “santa obediência”, onde seu
povo caminha no “caminho que Deus lhes designou para a
salvação”.
João Calvino observa: “O ensino da Escritura é que nossas
boas obras estão sempre salpicadas de muitas manchas…
Entretanto, porque as examina em função de sua indulgência, não
de seu direito supremo, as aceita exatamente como se fossem as
mais puras possíveis”.[13] Se Deus examinasse nossas obras
segundo um padrão de retidão absoluta, nossas obras sempre
estariam em falta e seriam sempre condenadas. Não importa o
quanto você esteja sendo correto em um determinado momento,
você não está fazendo isso perfeitamente para a glória de Deus,
perfeitamente com uma fé madura, e perfeitamente por amor.
Assim, isso seria digno de condenação se fosse julgado pelo juízo
supremo de Deus. Mas, como Deus julga seu povo, que está unido
a seu Filho pela fé? Ele é um pai para o seu povo. Calvino diz que
Deus os julga como um pai julga o trabalho de uma criança. Ele
julga as obras de seu povo com certa benignidade. “Entretanto”,
Calvino diz, ele as examina “como se fossem as mais puras
possíveis; e por isso, ainda que destituídas de mérito, as galardoa
com infinitos benefícios, tanto da presente vida, quanto também da
vida futura”.[14] Calvino entende a salvação, em certo sentido, como
uma recompensa por boas obras.
Alguns dirão que essa linguagem sobre retribuição tem a ver
com Deus dando benefícios temporais nesta vida como recompensa
por boas obras. Às vezes, eles indicam o livro de Provérbios e
afirmam: se você é piedoso, experimentará as bênçãos de Deus
nesta vida. Mas, essas passagens, eles argumentam, não têm nada
a ver com salvação. Essa visão se aproxima perigosamente do
“evangelho da prosperidade”. Muitas pessoas obedecem a Deus,
mas não experimentam bênçãos terrenas.
Além disso, não é isso que Calvino diz. Ele diz que essas
boas obras certamente podem ser recompensadas com benefícios
na vida atual ocasionalmente, mas são especialmente
recompensadas na vida futura. Calvino observa:
Pois não aceito a distinção feita por varões de outra sorte doutos e
pios de que as boas obras são merecedoras dessas graças que nos
são conferidas nesta vida, que o único prêmio da fé eé a salvação
eterna, porquanto o Senhor quase sempre coloca no céu a
recompensa dos labores e a coroa do combate.[15]
Calvino diz que a salvação eterna não é apenas a
recompensa da fé; é a recompensa de uma fé operante e em amor,
ou fé e seus frutos. Ao mesmo tempo, Calvino se guarda de certo
mal-entendido. De acordo com ele, seria contrário às Escrituras
afirmar que essas obras merecem algo:
Portanto, tudo quanto agora se confere aos piedosos em ajuda à
salvação, ainda mesmo a própria bem-aventurança, é mera
beneficência de Deus. Contudo, tanto nesta, quanto naqueles, ele
testifica que tem consideração pelas obras, porquanto, para atestar
a magnitude de seu amor para conosco, digna de tal honra não
apenas a nós mesmos, mas também aos dons que nos prodigalizou.
[16]
As responsabilidades de um resgatador
Quais eram as responsabilidades potenciais de um
resgatador? De acordo com Lv 25.48-49, um resgatador era um
parente de sangue próximo. Pode ser um irmão, um tio ou um
primo. Aparentemente, haveria alguma ordem sobre quem assumiria
a responsabilidade pela pessoa necessitada ou que estava com
problemas, começando com o parente mais próximo. Um resgatador
teria de ser rico o bastante para pagar um resgate pelo parente
pobre, fraco, indefeso ou vulnerável. Ou ele teria que ser forte o
bastante para vingar o sangue de seu parente assassinado.
Um resgatador tinha cinco deveres principais. Vamos
examinar brevemente cada um.
Primeiro, o resgatador tinha que resgatar um parente que se
vendeu como escravo. Sua primeira responsabilidade é libertação.
Encontramos isso em Lv 25.47:
Quando o estrangeiro ou peregrino que está contigo se tornar rico, e
teu irmão junto dele empobrecer e vender-se ao estrangeiro, ou
peregrino que está contigo, ou a alguém da família do estrangeiro...
Assim, se um israelita precisa vender-se como escravo, o
israelita está passando pelo êxodo ao contrário. Ele está voltando a
uma situação semelhante à escravidão da nação no Egito. Assim,
ele precisa de uma figura semelhante a Moisés que será um
resgatador e o livrará dessa situação. É assim que Lv 25.48-55
descreve:
Depois de haver-se vendido, haverá ainda resgate para ele; um de
seus irmãos poderá resgatá-lo: seu tio ou primo o resgatará; ou um
dos seus, parente da sua família, o resgatará; ou, se lograr meios,
se resgatará a si mesmo. Com aquele que o comprou acertará
contas desde o ano em que se vendeu a ele até ao Ano do Jubileu;
o preço da sua venda será segundo o número dos anos, conforme
se paga a um jornaleiro. Se ainda faltarem muitos anos, devolverá
proporcionalmente a eles, do dinheiro pelo qual foi comprado, o
preço do seu resgate. Se restarem poucos anos até ao Ano do
Jubileu, então, fará contas com ele e pagará, em proporção aos
anos restantes, o preço do seu resgate. Como jornaleiro, de ano em
ano, estará com ele; não se assenhoreará dele com tirania à tua
vista. Se desta sorte se não resgatar, sairá no Ano do Jubileu, ele e
seus filhos com ele. Porque os filhos de Israel me são servos; meus
servos são eles, os quais tirei da terra do Egito. Eu sou o Senhor,
vosso Deus.
Aqui, descobrimos a lógica das responsabilidades do
resgatador. Deus diz que os israelitas são meus servos, então eles
não podem ser escravizados por mais ninguém. Se um israelita é
escravo de um estrangeiro, seu parente próximo tem a
responsabilidade de comprá-lo e retirá-lo dessa situação. Ao fazer
isso, o resgatador estará replicando o êxodo, fazendo por seu irmão
o que Deus fez pela nação quando ele os retirou do Egito.
A segunda responsabilidade do resgatador é vingar o nome de
um parente oprimido ou assassinado. Isto é, ele deve agir como o
vingador de sangue. Encontramos esses deveres descritos em
vários lugares na lei do Antigo Testamento, particularmente em Dt
19.11-13:
Mas, havendo alguém que aborrece a seu próximo, e lhe arma
ciladas, e se levanta contra ele, e o fere de golpe mortal, e se acolhe
em uma dessas cidades, os anciãos da sua cidade enviarão a tirá-lo
dali e a entregá-lo na mão do vingador do sangue, para que morra.
Não o olharás com piedade; antes, exterminarás de Israel a culpa do
sangue inocente, para que te vá bem.
Essencialmente, o resgatador atuará como o vingador de
sangue e fará contra uma figura de Caim o que ninguém foi
autorizado a fazer em Gênesis 4. Lembre-se: o sangue de Abel
clamou da terra. Ele era inocente e, no entanto, foi assassinado por
seu irmão. Seu sangue clamou por vingança. Mas, não havia
vingador de sangue naquela fase da história. Agora os israelitas
receberam a responsabilidade de serem vingadores de sangue, de
executar juízos contra os Cains no meio deles.
É crucial entender que quando o vingador de sangue parte
para vingar a morte de seu parente, isso não é um tipo de conflito
mortal entre famílias. É uma vingança lícita, controlada e regulada
pela Palavra de Deus. Na verdade, fica muito claro que o goel não
está fazendo justiça com as próprias mãos. Não é um sistema de
vingança de vigilantes. Está claro que o goel está agindo como um
agente de estado. É por isso que se o assassino foge para uma das
cidades de refúgio, os anciãos são responsáveis por entregar o
assassino. Os representantes oficiais, os governadores daquela
cidade, entregam o homem para ser executado. O goel, em certo
sentido, torna-se um agente da justiça do estado e, claro, também
um agente da justiça de Deus.
Nm 35.16-21 diz:
Todavia, se alguém ferir a outrem com instrumento de ferro, e este
morrer, é homicida; o homicida será morto. Ou se alguém ferir a
outrem, com pedra na mão, que possa causar a morte, e este
morrer, é homicida; o homicida será morto. Ou se alguém ferir a
outrem com instrumento de pau que tiver na mão, que possa causar
a morte, e este morrer, é homicida; o homicida será morto. O
vingador do sangue, ao encontrar o homicida, matá-lo-á. Se alguém
empurrar a outrem com ódio ou com mau intento lançar contra ele
alguma coisa, e ele morrer, ou, por inimizade, o ferir com a mão, e
este morrer, será morto aquele que o feriu; É homicida; o vingador
do sangue, ao encontrar o homicida, matá-lo-á.
A terceira responsabilidade é recuperar a herança perdida de
um parente. Isto é, comprar de volta a terras para ele. Lembre-se, a
terra era tipológica; ela apontava para o reino de Deus e, finalmente,
para a nova criação escatológica. Assim, como israelita, manter sua
participação na terra prometida era um símbolo de sua participação
no reino de Deus. Portanto, era importante não desistir dessa
herança. Se você tivesse abandonado aquela herança por algum
motivo, o resgatador garantiria que ela fosse devolvida a você. Se
um parente próximo tem que desistir de sua porção da terra
prometida, isso é o contrário da conquista. A terra que foi
conquistada e dividida sob Josué foi perdida. O resgatador reencena
a conquista ao recuperar a terra perdida para o parente pobre.
Quarto, o resgatador tinha o papel de advogado de defesa. O
resgatador deveria checar se a justiça foi feita em várias situações.
No livro de Jó, Jó clama por um resgatador que atuará como um
mediador que se colocará diante de Deus e fará sua defesa. O
próprio Jó, é claro, é uma figura de Cristo. Ele é um servo sofredor
que finalmente vence e silencia Satanás. Mas Jó também clama por
uma figura de Cristo, um resgatador que virá como um mediador
entre ele e Deus, que o defenderá diante de Deus e fará com que a
justiça seja feita.
Por fim, em quinto lugar, o resgatador tem a responsabilidade
de cumprir o papel de um levir. A lei do levirato dizia basicamente
que o resgatador se casaria com a esposa de um parente falecido
se ele não deixasse filhos. No levirato, ele suscitaria uma semente
através da mulher para continuar o nome e a herança do falecido.
Este é o cenário que temos no livro de Rute: um homem se casa
com uma mulher, morre sem produzir um filho do sexo masculino
que possa manter seu nome e manter sua herança, de forma que há
necessidade de um marido substituto.
Tipicamente, o irmão do falecido se casaria com a viúva e, por
meio dela, suscitaria um filho para substituir seu irmão falecido.
Aquele primeiro filho que ele suscitasse através dela tomaria o lugar
de seu irmão falecido e o marido falecido da esposa, e perpeturaria
seu nome e herança. É claro, os outros filhos que ele tivesse com
ela, agora que ela é sua esposa, serão seus filhos. Mas o primeiro
filho se torna um substituto para o irmão falecido. A estrutura do
levirato é essencialmente a teologia bíblica dos dois Adãos. O
apóstolo Paulo deixa isso claro em diversos lugares de seus
escritos. Se o primeiro Adão morre sem multiplicar-se, sem encher a
terra, por assim dizer, então um segundo Adão deve vir e cumprir
suas tarefas. Isso é o que temos com o levirato. O primeiro Adão (o
primeiro marido) caiu, de forma que um segundo Adão (o
resgatador) vem tomar seu lugar. É isso que vemos acontecendo
em Rute 3-4.
Deveria ser óbvio que, quando um homem agia como
resgatador, ele estava agindo como um tipo do Senhor Jesus Cristo.
Cristo é aquele que, em última análise, realiza esses cinco deveres
em favor de seu povo. De fato, em vários lugares do Novo
Testamento, vemos Jesus explicitamente apresentado como o
nosso resgatador. Obviamente, toda a linguagem de redenção que
está espalhada por todo o Novo Testamento aponta para Jesus
como nosso goel. Porém, há uma passagem em particular que
aponta para essa instituição. Em Hb 2.14-17, lemos:
Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e
sangue, destes também ele, igualmente, participou, para que, por
sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o
diabo, e livrasse todos que, pelo pavor da morte, estavam sujeitos à
escravidão por toda a vida. Pois ele, evidentemente, não socorre
anjos, mas socorre a descendência de Abraão. Por isso mesmo,
convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos
irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas
referentes a Deus e para fazer propiciação pelos pecados do povo.
Deus se encarnou — ele se tornou nosso parente — para nos
redimir.
Hebreus 2 enfatiza que Jesus compartilha da carne de
Abraão. Ele veio para ajudar a semente de Abraão. Ele é um
resgatador para a linhagem de Abraão. Podemos então perguntar:
“Que benefício isso traz para os gentios que não fazem parte da
família de Abraão?”.
Paulo nos mostra, especialmente em Romanos, Gálatas e
Efésios, que os gentios estão agora sendo enxertados em Israel e
se tornando parte da linhagem do verdadeiro Israel. Nós vemos isso
antecipado no livro de Rute, quando a própria Rute é enxertada em
Israel e se torna uma espécie de israelita honorária (cf. Romanos
11).
A Lei do Levirato
Agora vamos passar para uma discussão mais específica da
lei do levirato. O primeiro ponto é dizer que a instituição do levirato
não tem relação direta com Levi ou com os levitas. A palavra
“levirato” vem de uma palavra latina (levir) que significa “cunhado”.
Como já vimos, o dever do levirato é apenas uma das
responsabilidades que um goel deve cumprir. A lei básica aqui
encontra-se em Dt 25.5-10:
Se irmãos morarem juntos, e um deles morrer sem filhos, então, a
mulher do que morreu não se casará com outro estranho, fora da
família; seu cunhado a tomará, e a receberá por mulher, e exercerá
para com ela a obrigação de cunhado. O primogênito que ela lhe der
será sucessor do nome do seu irmão falecido, para que o nome
deste não se apague em Israel. Porém, se o homem não quiser
tomar sua cunhada, subirá esta à porta, aos anciãos, e dirá: Meu
cunhado recusa suscitar a seu irmão nome em Israel; não quer
exercer para comigo a obrigação de cunhado. Então, os anciãos da
sua cidade devem chamá-lo e falar-lhe; e, se ele persistir e disser:
Não quero tomá-la, então, sua cunhada se chegará a ele na
presença dos anciãos, e lhe descalçará a sandália do pé, e lhe
cuspirá no rosto, E protestará, e dirá: Assim se fará ao homem que
não quer edificar a casa de seu irmão; e o nome de sua casa se
chamará em Israel: A casa do descalçado.
A ideia por trás dessa lei não é tão complicada quanto parece:
quando o marido de alguém morre, deixando a esposa sem filhos,
sem um herdeiro do sexo masculino, seu irmão deveria casar-se
com a viúva, e o primogênito dessa união assumiria o nome e a
herança do falecido. O homem que cumpria o dever de cunhado
fazia isso com um grande custo para si. Era um ato sacrificial de
amor: construir a casa de seu irmão com seus recursos.
Essa lei aparece no Novo Testamento em Marcos 12.18 ss.,
onde os saduceus a usam em uma tentativa de enganar Jesus. Eles
tentam jogar a doutrina da instituição do levirato contra a
ressurreição corporal. Eles descrevem uma situação em que uma
mulher passa por uma série de maridos que morrem
sucessivamente. Cada levir morre, tornando-a viúva novamente. Os
saduceus perguntam então de quem ela será esposa na
ressurreição. É claro, Jesus passa a explicar que eles entenderam
mal a natureza da vida da ressurreição.
Há uma série de reviravoltas no livro de Rute que tornam o
uso da instituição do levirato complexo. Antes de entrarmos nisso,
várias questões práticas surgem ao discutirmos esta lei. Primeiro, Dt
25.5 deixa claro que a lei só se aplica a irmãos (ou parentes
próximos) vivendo juntos, que provavelmente indica que era uma
responsabilidade apenas para aqueles que tinham
aproximadamente a mesma idade. Não é difícil imaginar situações
em que a lei teria sido praticamente impossível de ser executada.
Por exemplo, digamos que um homem casado morra sem ter filhos
e seu irmão mais novo tenha, digamos, dois anos de idade. Ela tem
que esperar até ele ter idade suficiente para se casar? Se ela
tivesse que esperar, isso a faria casar-se com uma idade em que
não pode mais ter filhos, o que iria contra o propósito da lei.
Considerando que a obrigação se aplica a irmãos que moram
juntos, isso também sugere que havia algum tipo de aprovação da
família para o casamento. Se você é um irmão mais novo e seu
irmão mais velho se casa, você deve considerar pelo menos uma
vez que, se ele morrer sem ter um menino, ela se tornaria sua
esposa. Assim, o fato de eles estarem morando juntos
provavelmente indica que os irmãos podem ter alguma influência na
escolha do irmão mais velho. Isto é, eles podem ter alguma opinião
sobre o assunto, ou pelo menos a escolha do irmão mais velho
precisaria de uma aprovação geral da família.
Além disso, como os irmãos precisam morar juntos, é provável
que nenhum dos outros irmãos seja casado. Há outra questão que
surge. E se um irmão é casado e ele morre sem ter um filho, mas
todos os outros irmãos são casados? Um deles precisa tomá-la
como uma segunda esposa? Isso cria um tipo de situação legítima
de poligamia? Os comentaristas realmente debatem esta questão.
Alguns dizem que isso deve validar um cenário de poligamia. Mas
isso parece muito improvável. A ideia de irmãos morando juntos
indica que são irmãos que não se casaram ainda, assim a poligamia
não era necessária. Afinal, embora às vezes vejamos a prática da
poligamia no Antigo Testamento, não há dúvida de que isso era
considerado uma violação da lei de Deus. A poligamia é contrária à
ordenança da criação estabelecida em Gênesis 1-2. Não devemos
pensar que a lei do levirato exigia que o povo de Deus fizesse
coisas que eram completamente impraticáveis ou contrárias a outras
leis divinas.
Alguns também se perguntam: uma união por levirato produz
um casamento real e permanente? Ou apenas um casamento
temporário para suscitar um filho no lugar do falecido?
Considerando a alta estima do casamento em toda a Escritura, é
difícil imaginar um arranjo sexual temporário. Muito provavelmente,
os casamentos de levirato eram casamentos reais.
O que acontece com o homem que se recusa a realizar seu
dever de levir ? Deuteronômio 25 implica que ele será humilhado
publicamente por se recusar a perpetuar o nome de seu irmão. Ao
recusar isso, ele ganha um nome de vergonha. Dt 25.10 diz: “e o
nome de sua casa se chamará em Israel: A casa do descalçado”.
Ele é envergonhado de duas maneiras: primeiro, sua sandália é
retirada de seus pés e, segundo, cospem em seu rosto.
Há um tipo de lex talonis em vigor aqui. Em vez de olho por
olho, dente por dente, o princípio em vigor na lei do levirato é nome
por nome. Ele se recusou a edificar o nome de seu irmão e, assim,
seu nome foi demolido. Ele se recusou a construir a casa de seu
irmão, e assim sua casa será demolida.
O que significa ter o rosto cuspido? Isso não acontece em
Rute, mas o significado é óbvio. Cuspir na cara é um sinal óbvio de
desrespeito. Pense naqueles que cuspiram em Jesus quando ele
estava sendo crucificado. Eles estavam tentando mostrar que ele
não era o verdadeiro resgatador, que ele não poderia ser um novo
Adão, substituindo o Adão caído. É claro, eles estavam errados.
E quanto ao costume descrito em Deuteronômio 25 de um
homem ter suas sandálias retiradas? As Escrituras usam os pés
como eufemismo para as partes íntimas. (Isso pode estar
acontecendo em Rute 3). Assim, é possível que retirar a sandália
seja uma maneira simbólica de expor as partes íntimas desse
homem. Retirar a sandália do pé — se os pés forem entendidos
eufemisticamente como um símbolo das partes íntimas — seria
como despir o homem. Seria uma forma de humilhação pública, pelo
menos simbolicamente. Tirar a sandália seria como puxar as calças
em público e dizer que esse homem não pode fazer o que foi
chamado a fazer e, assim, que ele não é um homem de verdade.
Também pode haver uma referência aqui à sua recusa de
permanecer calçado e assumir a responsabilidade por suas ações,
como Adão faz em Gênesis 3. Em Gênesis, Adão não assume
responsabilidade pelo que fez. Ele se recusa a se apresentar, por
assim dizer, e assumir a responsabilidade por suas ações.
No livro de Rute, quando Boaz negocia com o parente mais
próximo para ver quem vai realizar a obrigação do levirato, eles
trocam sandálias, o que é um pouco diferente do descrito em
Deuteronômio 25. Mas claramente eles estão trocando papéis e
responsabilidades, então parece ser uma aplicação da lei a essa
situação específica. Ainda há vergonha envolvida, no entanto, o que
é visto com mais clareza no texto pelo fato de o homem que não
desempenha a responsabilidade do levirato com Rute não ter nome.
O texto apenas o chama de “fulano” e nunca lhe dá um nome. Ele
não tem nome porque não perpetuará o nome do irmão falecido.
Seu nome foi perdido, enquanto o nome de Boaz é engrandecido.
A vindicação de Tamar
Gênesis 38 é um daqueles capítulos perturbadores das
Escrituras. Em meio à história da grande fidelidade de José,
encontramos essa história sobre a infidelidade de Judá em Canaã.
José está no Egito vivendo fielmente; Judá está em Canaã, na terra
da promessa, vivendo infielmente. Esse é o contraste feito no texto.
Judá está perdendo sua posição e lugar na família como filho real e,
de certo modo, José está tomando seu lugar (embora Judá acabe
sendo redimido e restaurado.). Como Gênesis 38 lida com a tribo de
Judá e com o levirato, isso é fundamental para a nossa
compreensão de Rute.
Quando chegamos a Gênesis 38, sabemos que Judá é a tribo
escolhida. Os três primeiros filhos de Jacó já tinham se
desqualificado em Gênesis 34-35, então agora o foco está em Judá.
O que Judá fará? Ele será um homem fiel e provará ser digno de ser
o líder real, a tribo da qual o rei virá? Em Gênesis 38, Judá casa-se
fora da linhagem pactual, assim como os filhos de Sete em Gênesis
6, em vez de seguir o exemplo de Isaque e Jacó. Judá tem um filho
chamado Er que se casa com Tamar, mas Er morre sem deixar um
filho para Tamar. Assim, a instituição do levirato entra em ação
(obviamente, era uma instituição pré-mosaica).
Er morreu sem gerar um filho. Seu irmão mais novo, Onã,
deve cumprir o dever de levir. Onã finge ser um levir, mas sempre
que dorme com Tamar, ele faz sua semente cair na terra. (Ao
contrário de algumas interpretações da história, ele não é morto por
praticar um método anticoncepcional em si, mas por violar o dever
do levirato.) Mas, por que ele está fazendo isso? É porque ele é
egoísta. Ele não quer edificar a casa de seu irmão. Ele quer, na
verdade, roubar a herança de seu irmão. Se ele tivesse um filho,
esse filho tomaria o lugar de Er e receberia a herança do
primogênito. Mas se Tamar não tiver um filho, Onã se tornaria o
primogênito porque seu irmão mais velho está morto e, assim, ele
receberia uma parcela dupla. Ele precisa garantir que Tamar não
tenha filhos. Mas, ele não pode simplesmente dizer que não quer
ser um levir, porque Tamar iria para o próximo irmão e ela ainda
poderia ter um filho com ele. Assim, este é o dilema de Onã: por um
lado, ele não pode simplesmente recusar as responsabilidades do
levirato sem passar Tamar para o próximo irmão, mas ele também
não quer ter um filho com Tamar. A solução de Onã é dormir com
ela, mas evitar que ela engravide. É claro, Deus vê a maldade dele
e o mata.
Assim, cabe ao filho de Judá, Selá, cumprir a obrigação do
levirato. Neste ponto da história, Judá está agindo de maneira muito
perversa. Ele não vê que seus dois filhos morreram porque
desagradaram ao Senhor. Em vez disso, ele começa a achar que
tem algo errado com Tamar. Se Deus continua matando seus
maridos, obviamente ela está em pecado. Ela deve trazer azar. Judá
faz falsas promessas a Tamar. Ele diz que vai dar Selá, mas ele não
pretende fazê-lo. Ele continua adiando as coisas, adiando o
casamento. Quando Selá é finalmente um adulto, Tamar percebe
que o casamento não vai acontecer. Tamar sabe neste momento
que Judá é a tribo escolhida e que a semente prometida virá através
da linhagem de Judá. Ela sabe que deve haver uma semente de
Judá. Assim, ela decide resolver o assunto com as próprias mãos, e
age de maneira inteligente e enganosa para garantir a existência de
um herdeiro. Ela se veste como uma prostituta, engana Judá e o
leva a ser o próprio levir, dormindo com ele. Ela dá à luz o filho de
Judá e depois comprova isso para ele.
É fácil criticar Tamar pelo que ela faz aqui. Mas, precisamos
ter cuidado. A própria história não condena Tamar por suas ações.
Tamar agiu dessa maneira porque se preocupava com a linhagem
da semente. Ela provavelmente estava tão enojada com o que
estava fazendo quanto nós quando lemos a história. Ela não fez isso
por qualquer sentimento de amor apaixonado por Judá ou por
luxúria desenfreada. Ela só faz o que faz porque se preocupa com a
aliança e com a geração de um filho que manterá a linhagem da
semente prometida.
Os leitores precisam ter cuidado ao ler essas histórias em um
sentido moralista; devemos lê-las teologicamente. Quando fazemos
isso, vemos que o que Tamar faz em Gênesis 38 não é tão diferente
do que Rute fará em Rute 3. Está claro no livro de Rute que suas
ações são justificadas. Quando ela se deita na cama com Boaz e
diz: “Seja um goel e levir para mim”, ela está fazendo a mesma
coisa que Tamar fez com Judá, mas sem o disfarce.
Está claro que Tamar e Rute agem corretamente ao buscar
um levir. A ideia dessas histórias não é fazer de qualquer uma delas
um exemplo moral a ser seguido (especialmente porque a instituição
do levirato expirou). Em vez disso, temos que examinar isso
teologicamente e perguntar como essas ações se encaixam no
plano redentor de Deus. A preocupação delas é suscitar uma
semente para tomar o lugar do falecido, de fazer com que a
linhagem da aliança continue. Rute e Tamar não estão ensinando
como conseguir maridos assim como Abraão não nos ensina como
criar filhos em Gênesis 22 ao levar Isaque para a montanha e
preparar-se para esfaqueá-lo até a morte.
Tamar, Rute e Abraão são vistos como justos, mesmo que
suas ações não se encaixem perfeitamente em nenhum código de
ética. No caso de Tamar, em Gn 38.26, Judá reconhece a justiça da
ação de Tamar. Quando é revelado que Judá não dormiu com uma
prostituta, mas dormiu com sua nora, a quem ele deveria ter dado
um filho como marido, ele percebe que ficou preso em seu pecado.
Ele percebe o que Tamar fez e diz que ela é mais justa que ele. Ele
a justifica e se condena por seus atos. Ele foi enganado por ela a
fazer a coisa certa.
Em Rute 4.12, a comunidade considera Tamar uma matriarca
ideal. Ela é comparada à Rute. Ela é um modelo para Rute; um
modelo de virtude por causa de seu amor pela aliança e seu desejo
de honrá-la. Como Rute e Raabe, Tamar é uma das gentias justas
que são incluídas e destacadas ao serem incluídas na genealogia
de Jesus Cristo no evangelho de Mateus. Tudo parece apontar para
sua justificação. Rute e Tamar são mulheres que são “preservadas
através de sua missão de mãe” (1 Tm 2.15).
Certamente há muito mais a se dizer sobre Gênesis 38, mas,
para nossos propósitos, é suficiente ver que deixar de cumprir o
dever do levirato é o que coloca Judá em apuros. Judá não cumpriu
a responsabilidade do levirato e deixou de dar seus filhos a Tamar,
manifestando sua infidelidade. Perez, o filho de Tamar nascido fora
do casamento, é um sinal da justiça dela e da vergonha do pecado
de Judá.
Uma defesa do reinado davídico
Entretanto, de acordo com Dt 23.2, um filho ilegítimo, nascido
fora do casamento (como Perez), devia ser excluído do ofício na
comunidade de Israel. Em Gn 49.19, Judá recebe a promessa de
ser a tribo de quem o rei messiânico virá. Há um sentido em que a
promessa em Gn 49.10 é cheia de amarga ironia para Judá, visto
que ele já tinha desqualificado seus descendentes de qualquer
governo sobre as gerações futuras. Mas é aqui que entra a história
de Rute.
Assim como a falha de realizar a obrigação do levirato meteu
Judá em apuros e desqualificou a tribo de Judá do ofício real, é o
cumprimento do levirato por outro membro de Judá, Boaz, que
preserva a linhagem real da tribo e, por fim, produz o rei que
cumpriu a promessa de Gênesis 49. E, claro, este é Davi. Por essa
razão, o livro de Rute termina com uma genealogia. Judá
desqualificou sua linha de qualquer ofício real em Israel até a
décima geração (Dt 23.2) porque ele dormiu com Tamar fora do
casamento.
Mas se contarmos as gerações na genealogia de Rute 4,
descobrimos que a décima geração é Davi. Esta é a primeira
geração da linhagem de Judá que poderia ocupar o cargo real em
Israel. O levirato de Boaz desfaz o dano da recusa de Judá de ser
um verdadeiro levir e produz um filho real. Boaz é o que Judá
deveria ter sido. E Davi é o homem supremo de Judá, o leão da tribo
de Judá.
Há uma beleza profunda no que Deus faz: assim como Judá
cai em pecado ao deixar de cumprir o levirato, quando Boaz
aparece e o cumpre, a tribo de Judá é restaurada. E, é claro, a
linhagem de Jesus Cristo é traçada através desta genealogia em
Rute 4.
O levirato é a base de toda a história de Rute. Para entender o
que está acontecendo em Rute, temos que conectar o livro com
Deuteronômio 25 e Gênesis 38. Rute reverte a maldição sobre Judá
de Gênesis 38 e nos mostra a restauração completa de Judá. O livro
fornece motivos legítimos para o reinado de Davi e, claro, o reino do
filho maior de Davi, Jesus Cristo.
Sobre os autores
[1]C.S. Lewis, “Myth Became Fact”, em God in the Dock: Essays on Theology and Ethics,
ed. Walter Hooper (Grand Rapids, MI: Wm B. Eerdmans Publishing Co., 1944; reimpressão
2001), 63-67.
“Mas os cristãos também precisam ser lembrados... que o que se tornou Fato era um Mito,
que ele de fato traz consigo para o mundo todas as propriedades de um mito. Deus é mais
do que um deus, não menos; Cristo é mais do que Balder, não menos. Não devemos nos
envergonhar do brilho mítico repousando em nossa teologia... Não devemos, por falsa
espiritualidade, conter nossas boas-vindas imaginativas. Se Deus escolher ser
mitopoético... devemos nos recusar a ser mitopáticos? Pois este é o casamento do céu e
da terra: Mito Perfeito e Fato Perfeito — reivindicando não só nosso amor e nossa
obediência, mas também nosso assombro e deleite...”.
[2] Frederic W. Bush, Ruth/Esther, World Biblical Commentary Book 9 (Dallas, Texas:
Thomas Nelson Inc., 1996), 514.
[3] Isso se encaixa com o padrão comum no Antigo Testamento de mulheres justas lutando
contra homens tirânicos usando o engano, como Rebeca, as parteiras egípcias, Jael e
Raabe.
[4] Curiosamente, Tamar é outra mulher nomeada na genealogia de Mateus. As duas
mulheres eram gentias, enxertadas em Judá e as duas precisavam de maridos por levirato.
[5] O anonimato também é importante no livro de Rute.
[6] Nomes alternativos são dados aos filhos de Saul, como fica evidente se compararmos
1-2 Reis com 1-2 Crônicas.
[7] Sincretismo é a mistura de duas ou mais religiões.
[8] “No. 45: The Structures of Ruth”, Biblical Horizons, acessado em 14 de novembro de
2018, http://www.biblicalhorizons.com/biblicalhorizons/no-45-the-structures-of-ruth/
[9] E na Almeida Revista e Corrigida, em português. [N. do T.]
[10] Uma longa introdução à teologia das asas encontra-se no Apêndice B. Talvez seja útil
ler esse ensaio antes de continuar.
[11]Gentios tementes a Deus são gentios que adoravam o Deus de Israel sem se tornarem
judeus.
[12] Blue laws é uma expressão inglesa para leis que lidam com a redução da atividade
comercial no fim de semana, especialmente, no domingo. [N. do T.]
[13] John Calvin, As Institutas, 3.15.4. Tradução Waldyr Carvalho Luz.
[14] Ibid.
[15] Ibid.
[16] Ibid.
[17] Ibid., 3.17.3.
[18] Ibid.
[19] Calvino, As Intitutas, 3.15.7.
[20] Um paralelismo hebraico acontece quando duas linhas do Saltério são sinônimas e
mutuamente interpretadas.