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Sob suas asas

O evangelho segundo Rute


Rich Lusk e Uri Brito
Copyright @ 2018, de Athanasius Press
Publicado originalmente em inglês sob o título
Under His Wings: The Gospel According to Ruth
pela Athanasius Press,
715 Cypress Street West Monroe, Louisiana, 71291, EUA.


Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
E M
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato Brasília, DF, Brasil — CEP
70.760-620
www.editoramonergismo.com.br

1ª edição, 2020

Tradução: Josaías Cardoso Ribeiro Jr.


Revisão: Felipe Sabino de Araújo
Conteúdo
Agradecimentos
Prefácio ao leitor
O menor evangelho: apresentando Rute
1. O exílio de Elimeleque
2. Fazendo aliança com estrangeiros
3. Boaz, um Segundo Adão
4. Um pedido de casamento simbólico
5. Um Nome lembrado
6. Um final doxológico
Apêndice A — Uma teologia da Terra
Apêndice B — Uma teologia das asas
Apêndice C — Graça e boas obras: Um panorama teológico
Apêndice D — O Goel e o Levir: Uma análise do Resgatador
Sobre os autores
Agradecimentos
Este projeto começou há seis anos com uma transcrição dos
estudos da Escola Dominical sobre Rute do pastor Lusk. Nossos
agradecimentos a Cathy Honeycutt, que transcreveu essas
palestras em áudio. Se não fossem seus esforços, é provável que
este comentário não existisse. Essas primeiras transcrições
forneceram a base para o corpo deste trabalho.
Além disso, mal conseguimos expressar nossa gratidão a
James B. Jordan, cujo gênio exegético em suas palestras sobre
Rute nos inspirou a preparar esse comentário. A influência de Jim
pode ser vista por toda parte e honramos, com razão, seus fiéis
esforços.
Queremos agradecer aos muitos amigos talentosos que
examinaram os rascunhos iniciais e ofereceram ideias frutíferas,
especialmente Heather Johnson, Rob Hadding, Dustin Messer e
Ron Gilley.
Por fim, nossos agradecimentos à Athanasius Press, que viu o
potencial desse projeto e nos incentivou a perseverar.
Prefácio ao leitor
É preciso saber algumas coisas sobre este livro antes de
começar. Primeiro, os dois autores gostariam de agradecer a James
B. Jordan por seu trabalho pioneiro no Antigo Testamento, incluindo
o livro de Rute. Suas impressões digitais estão espalhadas por todo
esse mini-comentário. Assumimos total responsabilidade pela obra,
mas Jordan merece muito crédito por tudo que tenhamos acertado.
Em segundo lugar, este comentário não pretende ser uma
obra rigorosamente acadêmica. Esperamos que resista ao
escrutínio acadêmico, mas ele também presume muitas coisas que
são discutidas em outros lugares. Em particular, a teologia bíblica e
canônica de James B. Jordan é fundamental para este trabalho.
Aqueles que desejam aprofundar-se nas questões da posição e
tipologia canônicas de Rute devem consultar as várias obras de
Jordan, especialmente suas palestras no wordmp3.com.
Em terceiro lugar, este comentário foi produzido a partir de
transcrições das lições da Escola Dominical dadas pelo Pastor Lusk
em 2004. Embora tenhamos corrigido boa parte da linguagem e
deixado um pouco mais formal, é sempre um desafio transformar a
palavra falada em palavra escrita. Estilisticamente, nem sempre
tentamos esconder o fato de que esta obra surgiu nas aulas da
Escola Dominical, que eram bastante informais e continham
bastante diálogos. Isso também explica algumas repetições
ocasionais.
Por fim, esperamos produzir um comentário sobre Rute que,
embora não lide exaustivamente com o texto em todas as suas
dimensões, dê ao leitor uma compreensão firme do “evangelho
segundo Rute”. Esperamos que pastores e professores que estejam
pregando e ensinando Rute achem esta obra útil, mas também
esperamos que ela seja útil para crentes fiéis que procuram
maneiras de estudar as Escrituras de uma forma ricamente
devocional, e também teologicamente profunda. Com demasiada
frequência, leituras devocionais carecem de conteúdo teológico e
exegético, enquanto as obras exegéticas e teológicas carecem de
devoção prática. Esperamos que esta breve obra possa ajudar a
preencher essa lacuna infeliz.
— Uri Brito
O menor evangelho: apresentando Rute
Rute é uma história cuidadosamente elaborada. Qualquer
leitor concordaria que é uma pequena narrativa maravilhosa. Alguns
comentaristas até a chamam de “novela”, um romance curto. Alguns
classificaram seu gênero como “conto” ou mesmo “conto popular”.
Esses tipos de rótulos são bons, desde que mantenhamos a
historicidade do livro. Toda a evidência interna deste livro indica que
ele foi escrito como uma história verdadeira. Ele não é apresentado
meramente como uma pequena narrativa encantadora ou uma
fantasia romântica folclórica, mas como uma história da redenção.
C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien chamam o evangelho de “mito real”.[1]
Podemos pensar em Rute como o “romance real” ou a “novela real”.
A Bíblia é um livro de histórias. Ela nos traz uma história
abrangente de Deus e sua criação. De Gênesis a Apocalipse, as
Escrituras fornecem uma narrativa que engloba criação, queda e re-
criação. É uma história que percorre todo o curso da história
humana, das primeiras às últimas coisas. Mas, dentro da grande
história da Bíblia, há diversas histórias pequenas que refletem a
história completa, que nos dão a Bíblia em resumo. Essas micro-
narrativas cristalizam a meta-narrativa bíblica.
Rute é uma dessas micro-narrativas. Em pouco mais de 80
versículos, todo o programa redentivo de Deus para a criação é
resumido e dramatizado em miniatura. Esta história, em outras
palavras, nos dá o evangelho em forma de conto. Rute é uma lente
através da qual podemos ver toda a história da redenção. É claro, “o
evangelho segundo Rute” é o mesmo evangelho encontrado em
qualquer outra parte da Escritura. Rute é um drama tipológico e
também uma narrativa profética e cristocêntrica que nos mostra
como Deus resgatará seu povo. Pode ser uma história romântica,
mas é fundamentalmente um romance teológico, pois aponta além
do amor que Rute e Boaz têm um pelo outro para o caso de amor
entre Cristo e sua igreja. O significado deste relato está no cerne da
história, a saber, o amor redentor de Deus por sua noiva.
A autoria de Rute
Antes de começarmos a examinar como o livro de Rute
funciona como uma história do evangelho, precisamos considerar
alguns itens básicos. Começamos com a questão da autoria. Quem
escreveu o livro de Rute? Sabemos que o livro é divinamente
inspirado, mas podemos identificar o agente humano do Espírito?
Rute chega até nós anonimamente, e identificar o autor com
segurança não é uma tarefa fácil. Um comentarista descreve isso
como “um exercício de futilidade”.[2] Mas os acadêmicos bíblicos
raramente se contentam em deixar essas perguntas sem resposta,
de forma que muitos candidatos já foram identificados. Samuel e
Salomão são os palpites mais populares.
A tradição rabínica, incluindo o Talmude, atribui o livro a
Samuel. Nós conhecemos Samuel pelo livro que leva seu nome. Ele
era filho de Ana, criado no templo e chamado para ser o profeta do
Senhor. Ele ungiu Saul como rei de Israel e depois ungiu Davi como
rei. Samuel, sem dúvida, teria uma razão para escrever; ele
precisava mostrar por que Davi era uma escolha legítima para
suplantar Saul. Se a transição da casa de Saul (e a possível dinastia
que fracassou por causa do pecado de Saul) para a casa de Davi
(um desconhecido, sequer respeitado em sua própria família
durante sua juventude) deve ser realizada sem problemas, uma
defesa do histórico de Davi é necessária. Rute foi escrito, pelo
menos em parte, para satisfazer esse propósito — mostrar por que
Davi tem o direito legítimo de ter este ofício em Israel, apesar de vir
da linhagem bastarda de Judá e de uma ancestral moabita.
Algumas das evidências de autoria certamente se aplicam a
Samuel, mas há alguns problemas em sugerir que ele é o autor.
Muitas das objeções à sua autoria têm relação com o momento em
que foi escrito. Muito significativamente, a genealogia final do livro
de Rute pressupõe que Davi é uma figura bem conhecida e, de fato,
parece assumir que ele já se tornou rei em um sentido oficial e
aberto. Por exemplo, Samuel unge Davi como rei em 1 Samuel 16,
mas Davi não se torna rei sobre Israel até muito mais tarde — na
verdade, não até depois da morte de Samuel.
Há também a matéria do costume explicado em Rute 4.7:
como se confirma o negócio entre Boaz e o parente anônimo de
Noemi. O fato de que o ritual pede uma explicação no texto poderia
indicar que o livro foi escrito muito depois, como se o costume
tivesse caído em desuso na época da composição.
Todas essas objeções podem ser superadas. Elas podem
afetar a ideia de que Samuel era o autor, mas nenhuma delas a
refuta por completo. Por exemplo, a unção de Davi por Samuel, bem
como seu conhecimento de que Davi um dia chegaria à fama real,
podem justificar que ele escrevesse a genealogia como fez. Além
disso, não é como se Davi fosse uma figura completamente
desconhecida depois de 1 Samuel 16.
E mais: a explicação do costume em Rute 4.7 poderia ter sido
adicionada mais tarde por um editor inspirado. Há muitos lugares
nas Escrituras em que uma geração posterior de editores inspirados
altera levemente um texto canônico. Por exemplo, em Gênesis 14,
encontramos alguns comentários explicativos sobre detalhes que
provavelmente não foram incluídos no texto original de Gênesis. Os
comentários adicionais em Gênesis 14 foram adicionados mais
tarde por outro autor inspirado para fazer correlações com outros
textos bíblicos ou permitir que uma audiência posterior entendesse
com mais clareza o que estava acontecendo. O registro da morte de
Moisés no fim de Deuteronômio é outra possibilidade de edições
inspiradas. É possível que essas edições tenham sido feitas no livro
de Rute, embora seja difícil dizer com certeza.
Se Rute foi escrito depois do tempo dos juízes, então Salomão
se torna um candidato viável para a autoria. Salomão poderia ter
escrito Rute com o objetivo de justificar a realeza de seu pai contra
vários desafios e, claro, por implicação, defender sua própria
realeza. Note que Salomão supervisionou a construção do templo e
um dos grandes pilares no templo que Salomão construiu se chama
Boaz. É possível que Salomão tenha escrito este livro para mostrar
por que um dos pilares do templo recebeu o nome de seu ancestral.
De fato, em algumas versões do cânon hebraico, o livro de Rute é
agrupado com vários escritos de Salomão, particularmente com
Cântico dos Cânticos e Eclesiastes.
Uma terceira possibilidade, mas menos popular, é o próprio
Davi. Novamente, Davi estaria escrevendo para justificar seu ofício
real e a transição da casa de Saul para sua casa. De fato, se Davi
foi o autor, é possível que ele escreveu o livro como um tipo de
manual de instruções para seu filho Salomão, como se dissesse:
“Filho, observe Boaz. Esse é o tipo de homem que Israel precisa.
Veja o que Boaz fez por Rute e Noemi. Israel precisa de um rei que
cuide da nação da mesma maneira. Israel precisa de um rei como
Boaz. Seja esse tipo de rei”. A autoria davídica se torna improvável
quando se examina o final do livro. A última palavra no livro de Rute
é o nome de Davi. Seria incomum para Davi, como autor, encerrar o
livro com seu próprio nome. Talvez pudesse ter acontecido com
humildade apropriada, mas parece improvável.
No fim, temos de admitir que não sabemos com certeza a
identidade do autor humano. O mais importante é lembrarmos que,
por trás do autor humano, quem quer que ele fosse, está o autor
divino. Rute é história de Deus; é a palavra de Deus para nós, para
o nosso bem.

As circunstâncias e data de Rute


Quando datamos o livro de Rute, encontramos o mesmo tipo
de ambiguidade de sua autoria. Primeiro, devemos determinar
quando a história ocorreu. Rute se passa durante uma fome no
período dos juízes, que se estende de aproximadamente 1400 a
1050 a.C.
Certos segmentos de tempo dentro do período dos juízes
podem ser descartados. Por exemplo, Juízes 3 descreve um
período em que os moabitas oprimiram Israel. Considerando que
Elimeleque leva sua família para a região de Moabe, parece
implausível que a história tenha ocorrido durante o período de
Juízes 3, quando os moabitas perseguiam e atacavam Israel.
Considerando a evidência circunstancial, a história
provavelmente ocorre no período das invasões midianitas descritas
em Juízes 6. Os midianitas eram agentes do castigo divino,
oprimindo Israel por causa de seu pecado até que Gideão
finalmente os expulsou. Os midianitas viriam, particularmente
durante o período de colheita, para destruir e roubar a produção de
Israel. Os poucos detalhes no livro de Juízes possivelmente
explicam como poderia haver fome em Belém, mas não na terra
vizinha de Moabe. A fome em Belém poderia ter acontecido por
causa da invasão midianita, em vez de causas naturais como
padrões climáticos.
Se a história aconteceu junto aos eventos descritos em Juízes
6, quando a história foi escrita? Alguns estudiosos sugerem uma
data muito tardia, até o período pós-exílico, mas as razões
apresentadas são geralmente muito fracas. Faz muito mais sentido
datar o livro durante a época do reinado de Davi, uma vez que ele
termina com Davi como rei. Além disso, Rute provavelmente foi
escrito, pelo menos até certo ponto, para justificar a transferência de
poder da casa de Saul para a linhagem de Davi. Assim, é provável
que o livro de Rute tenha sido composto não muito tempo depois
dos eventos que registra, provavelmente durante o reinado de Davi
ou Salomão (aproximadamente 1000 a.C.).

O propósito de Rute
Não podemos determinar completamente o objetivo de Rute
sem ter estudado o livro em si, mas podemos oferecer um esboço
em miniatura dos eventos do livro. A posição de Rute no cânon nos
diz algo sobre o propósito do livro. Talvez não estejamos
acostumados a atribuir qualquer significado à posição de um livro no
cânon bíblico; afinal, Deus não nos deu um índice inspirado que
prescreve exatamente como os escritos canônicos devem ser
organizados. Mas, considere como a ordem do cânon chega a nós.
Primeiro, temos o Pentateuco, os chamados cinco livros de
Moisés: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
Algumas partes de Gênesis provavelmente antecederam Moisés,
mas ele parece ser responsável por reunir os cinco livros em uma
unidade. Então temos Josué, que é escrito aproximadamente no
mesmo período, não muito depois da morte de Moisés, e que
registra o que acontece na próxima geração, a saber, a conquista da
terra prometida sob Josué, sucessor de Moisés. Em seguida, temos
Juízes, que é o sétimo livro; Rute segue como o oitavo livro. Agora,
pense nesses livros nas sexta, sétima e oitava posições. Josué é o
sexto livro e inclui muitas referências sobre entrar na terra, que
também é descrito como entrar no descanso de Deus. As pessoas
entram em um tipo de Shabbath permanente quando se
estabelecem na terra. Mas, Josué é o sexto livro, que nos diz que
esse descanso do Shabbath não será o Shabbath final que Deus
planejou para o seu povo; pelo contrário, será apenas um tipo ou
sombra dele. O livro de Hebreus no Novo Testamento reforça essa
ideia. O povo entrou no descanso de Deus quando entraram na
terra, mas somente de forma tipológica. Somente na Nova Aliança
saímos do sexto para o sétimo dia prometido, o descanso prometido
de Deus. Assim, Josué era apenas uma sombra daquele que viria, o
Josué maior, que conduziria o povo a uma herança prometida maior
e que daria o descanso de Shabbath prometido ao conduzir-nos do
sexto para o sétimo dia (Mt 11.28-29).
Juízes é o sétimo livro. O número sete, é claro, é o número da
perfeição. Mas o livro de Juízes não tem nada a ver com perfeição,
a menos que você queira pensar nele como Israel “aperfeiçoando”
várias maneiras de se rebelar contra Deus. A única coisa
aperfeiçoada no livro de Juízes é o pecado da idolatria de Israel.
Mas há uma conexão interessante aqui. Se alguém ler Gênesis 1-3
como uma narrativa histórica e sequencial (como deveríamos), Gn
1.1-2.4 oferece um relato global da criação até o sétimo dia, quando
Deus descansou. Gênesis 2.5 ss. nos leva de volta ao sexto dia e
coloca a criação do homem sob um microscópio. Agora, recebemos
muitos detalhes sobre o sexto dia da criação que foram omitidos no
macro-relato inicial. O dia seis, devido à sua importância, recebe
atenção especial em Gênesis 2, ao focar no homem como cabeça e
coroa de Deus na criação. Mas, se continuarmos lendo (e
ignorarmos as quebras de capítulos, que foram adicionadas mais
tarde por conveniência), chegamos ao relato da Queda. Gênesis 3
parece detalhar as ocorrências daquele primeiro sábado. Há várias
razões para ver Gênesis 3 como o primeiro Shabbath. Este é o dia
em que Adão e Eva entraram naquela área central do santuário do
Jardim do Éden para se encontrar com Deus. Em outras palavras,
este era claramente o tempo de adoração especial, que, no restante
da Antiga Aliança, é um evento do sétimo dia. Assim, faz muito
sentido ver esse dia como o dia em que o Senhor vai caminhar no
jardim e encontrar-se com eles. O dia do Shabbath é o dia de
encontro entre Deus e seu povo. Infelizmente, antes que o Senhor
chegue lá, Adão e Eva colocam o carro na frente dos bois e roubam
da árvore do conhecimento do bem e do mal. Eles comem o fruto
proibido e, é claro, sabemos o que acontece depois disso.
Assim, o sétimo dia era o dia de descanso na presença de
Deus, o dia da renovação da aliança com Deus, o dia de alegrar-se
na presença de Deus e de receber os dons da mão de Deus. Mas,
Adão e Eva caíram no sétimo dia. Eles cometeram traição no
santuário. À luz desse padrão criacional, considere Juízes, o sétimo
livro do cânon. Que correspondências vemos entre os sete primeiros
livros do cânon e a primeira semana de história descrita em Gênesis
1-3? Em um sentido, você poderia dizer que a queda alcança sua
culminação no livro de Juízes. No livro de Juízes, as coisas tornam-
se as piores possíveis. Juízes nos mostra a queda de Adão e Eva
levada à sua forma mais extrema, quando o povo de Deus completa
sua rebelião contra ele. Lembre-se: este é Israel, a nação escolhida
de Yahweh, uma raça de novos Adãos e novas Evas. Essas são as
pessoas que devem servir como representantes de Deus para a
humanidade e que devem representar a humanidade diante de
Deus. Quando lemos o livro de Juízes, encontramos o povo de Deus
com as coisas completamente invertidas. Eles estão chamando o
preto de branco; eles estão chamando a luz de escuridão. Tudo está
invertido no livro dos Juízes. Os próprios Juízes, é claro, são fiéis
(na maior parte do tempo) e redimem o povo. Mas mesmo assim,
logo que resgatam as pessoas, quase invariavelmente dentro de
uma geração, o povo cai em uma idolatria ainda pior do que antes.
E, ao progredirmos no livro, os bons tempos não são mais tão bons
e as épocas ruins ficam ainda piores. Os sacerdotes, que deveriam
conduzir o povo no conhecimento de Deus, os conduzem na
verdade à uma idolatria grosseira. O livro de Juízes é uma história
muito triste; é uma coletânea muito triste de histórias sobre a queda
de Israel.
Juízes como velha criação
Como termina o livro de juízes? Nós temos uma análise do
problema fundamental de Israel em 21.25: “Naqueles dias, não
havia rei em Israel; cada um fazia o que achava mais reto”.
Esse é um período sombrio na história de Israel, mas essa
avaliação do problema é altamente irônica. Havia um rei em Israel
durante o tempo dos juízes? Sim, é claro que havia um rei. O
próprio Yahweh era o rei de Israel. Eles teriam tudo o que
precisavam caso se submetessem ao reinado e senhorio de Yahweh
sobre eles. Mas porque continuamente rejeitavam o Senhor e não
queriam que o Senhor fosse rei sobre eles, tudo em Israel é um
desastre. E, assim, o que Yahweh precisa fazer? Ele precisa
estabelecer um representante humano de sua própria realeza sobre
o povo. Ele precisa dar ao seu povo um ícone humano de seu
senhorio para lembrá-los de seu caráter, propósito e presença.
O livro de Juízes termina com este tom muito triste. Ele
termina com esta declaração de que não há rei em Israel, então
todo mundo está fazendo o que é certo aos seus próprios olhos.
Mas é precisamente neste período de caos ético e desordem
teológica que a salvação de Deus explode. Deste sétimo dia
sombrio, vem um raio de luz brilhante, um oitavo dia, um oitavo livro.
É claro, o número 8 é o número da nova criação. A velha criação é
caída e está se despedaçando, então precisamos de uma nova
criação. É por isso que o número 8 é tão significativo nas Escrituras.
Oito é o número de um novo nascimento, uma nova semana e um
novo começo. A circuncisão ocorre no oitavo dia. A criança passa
por toda a velha semana da criação, mas, porque a primeira criação
é caída, no oitavo dia ela deve ser completamente incorporada à
nova humanidade de Israel. O oitavo dia é o dia da ressurreição. É
no primeiro dia de uma nova semana que Deus ressuscita Jesus.
Os relatos da ressurreição nos evangelhos estão repletos de
imagens da criação conduzindo-nos ao fato de que Jesus realmente
inaugurou uma nova ordem mundial em sua ressurreição no oitavo
dia. Por exemplo, no final do evangelho de João, quando Maria
chega ao túmulo (que fica em um jardim), ela vê Jesus, mas o
confunde com o jardineiro. Mas isso não é nenhum engano — ele é
o novo jardineiro, o novo Adão. Então, o Senhor ressuscitado se
reúne com seus discípulos em oitavos dias consecutivos. Tomé não
estava presente na primeira vez. Com certamente, Jesus poderia ter
aparecido a Tomé na segunda-feira, na terça-feira ou na quarta-
feira, mas ele optou por fazer isso no primeiro dia da semana
seguinte, no oitavo dia. Ao fazer isso, nosso Senhor deu a seus
discípulos um padrão que eles seguiriam ao encontrar-se com o
Cristo ressurreto no primeiro dia da semana em adoração coletiva.
Assim como Deus veio e teve comunhão com Adão e Eva no
santuário-jardim do Éden no sétimo dia, os discípulos também se
comunicavam com seu Deus no oitavo dia.

Rute como nova criação


Esse padrão de oitavo dia nos dá uma ideia do que está
acontecendo no livro de Rute. O livro de Rute vem em oitavo no
cânon. Ele sinaliza um novo começo. Sim, a nação de Israel entrou
em colapso sob os juízes e afundou no mais profundo poço de
idolatria. Mesmo os sacerdotes estão perdidos. Mas Deus trará um
novo Israel, uma nova criação. E ele vai cumprir essa nova obra por
meio de Rute, Noemi e, especialmente, Boaz. Quando compara o
final de Juízes com o final do livro de Rute, você pode enxergar o
contraste. Juízes termina com a declaração de que não havia rei em
Israel, enquanto a última palavra no livro de Rute é simplesmente
um nome, Davi. Todas as esperanças de todo Israel estão
resumidas nesse nome. Esse nome único relembra o rei ideal de
Israel. Ele responde ao problema apresentado pela conclusão do
livro de Juízes. Aqui está o evangelho diante das más notícias dos
Juízes. Deus resolveu o problema descrito no livro de Juízes neste
homem, Davi, um nome sinônimo de realeza. O povo não tinha rei;
agora eles têm. Eles esqueceram que Yahweh era seu rei; agora
eles têm um lembrete contínuo, um representante humano do
senhorio divino de Yahweh. Rute, então, nos mostra como Deus
resolverá o problema da idolatria de Israel. Ele lhes dá um
governante segundo seu próprio coração.
O começo da monarquia aponta para uma importante
transição na história de Israel. O governo por juízes foi bom por um
período, mas o mundo dos juízes entrou em colapso. As pessoas
precisavam de algo novo — ou, mais especificamente, elas
precisavam de alguém novo. Elas precisavam de um rei. Elas
precisavam de um rei segundo o coração de Deus, assim Deus lhes
deu Davi.
Em seu contexto histórico, o livro de Rute também responde a
outro conjunto de problemas relacionados à realeza de Davi. O
reinado de Davi não deixou de ser desafiado em Israel. Não é como
se Davi tenha virado rei e todos se alinharam a seu regime. Afinal,
muitas pessoas investiram no reino de Saul antes de Davi ascender
ao trono, e elas certamente tinham objeções contra Davi ter a coroa.
Em particular, havia questionamentos sobre o histórico familiar de
Davi, como veremos. Rute responde esses desafios. Neste sentido,
o livro de Rute não é apenas uma obra de história ou mesmo de
teologia; é uma obra de apologética, projetada para defender o rei
escolhido de Deus. Às vezes, a melhor forma de defender a verdade
é com uma história.

O desafio à realeza de Davi


Quais foram algumas das objeções ao domínio davídico no
antigo Israel? Primeiro, Davi era descendente de uma união
ilegítima. Em Gênesis, os filhos de Judá não cumprem a lei do
levirato (cf. Dt 25.5 ss.). O filho mais velho de Judá, Er, casou-se
com Tamar, mas morreu antes de ter um descendente do gênero
masculino. Sob a disposição do levirato, seu irmão deveria tomar
Tamar para si e ter um descendente masculino com ela para
substituir o falecido. Mas, Onã se recusou a cumprir seu dever e foi
morto (Gn 38.3-10). Judá disse a Tamar que esperasse que outro
filho, Selá, crescesse, mas não tinha intenção de dar Selá a ela.
Quando Tamar percebeu que a família de Judá a abandonara, ela
utilizou um ardil.[3] Tamar induziu Judá a cumprir com ela o levirato.
Quando é revelado que Tamar estava grávida de Judá, Judá
percebe o quanto estava errado por ter deixado de prover para
Tamar. Judá admite que Deus foi de fato justo em matar seus filhos,
e também que Tamar era mais justa que ele. Nada na história
condena Tamar por suas ações; ela queria preservar a linhagem da
semente e seu lugar no povo da aliança. Devemos ler essa história
em termos da história da redenção e da linhagem messiânica
prometida em vez de fazer juízos morais descontextualizados. Mas,
isso não nega o fato de que, por causa do pecado de Judá, o filho
que nasceu de Tamar é ilegítimo. Na medida em que Tamar
pretendia obter um herdeiro legítimo para assumir o lugar de Er, ela
estava correta; mas, na medida em que Judá nada fazia além de
satisfazer suas concupiscências, ele trouxe vergonha à sua família.
Assim, o filho nascido da união de Tamar e Judá, Perez, é um
bastardo e é considerado como tal nos termos da lei.
Perceba duas coisas aqui. Primeiro, é a falha da família de
Judá em cumprir a lei do levirato que faz com que a tribo de Judá
seja envergonhada. Descobriremos no livro de Rute que a tribo de
Judá é redimida, exaltada e preservada por causa de um
cumprimento da lei do levirato. Boaz desempenha o papel de marido
para Rute (e, por extensão, para Noemi) por meio do levirato. Ele é
o verdadeiro Judá.
Mas, em segundo lugar, considere Dt 23.2 neste contexto:
“Nenhum bastardo entrará na assembleia do Senhor; nem ainda a
sua décima geração entrará nela”. A “assembleia do Senhor” neste
contexto, refere-se ao domínio político. Quando a lei diz que ele não
deve “entrar na assembleia do Senhor”, isso não significa que eles
não pudessem participar da vida da sinagoga, mas que não tinham
cidadania plena e certamente não podiam ocupar nenhum tipo de
cargo na comunidade de Israel até a décima geração. Para a família
de Judá, esse período de exclusão começa com Perez. Mas, veja a
genealogia no final do livro. Que maneira curiosa de terminar um
conto tão doce e romântico. Que curioso! Alguns até se perguntam
se a genealogia serve a algum propósito real na história; ela parece
ser inexplicavelmente abordada no final do livro. Mas, tenha em
mente Gênesis 38 e Deuteronômio 23 e conte as gerações que
começam em Rute 4.18:
1. Perez
2. Esrom
3. Rão
4. Aminadabe
5. Naassom
6. Salmom
7. Boaz
8. Obede
9. Jessé
10. Davi

Há dez gerações de Perez a Davi. Você quer ver como a lei de


Deus e a promessa de Deus se juntam? Deus havia prometido à
tribo de Judá que o cetro não se afastaria de sua casa (Gn 49.10).
Isto é, a tribo de Judá produziria o rei de Israel. Judá era a tribo real.
E, ainda assim, por causa do pecado de Judá e da lei de Dt 23.2,
nenhum filho da tribo de Judá poderia ser rei até a décima geração.
Como esse conflito será resolvido? O final de Rute nos mostra. Na
primeira geração de Judá qualificada, a geração de Davi, um filho de
Judá se torna rei. A bênção em Gn 49.10 é cumprida sem violar Dt
23.2.
Isso também lança luz sobre o pedido de Israel por um rei em
1 Samuel 8. O que há de tão ruim em Israel querer um rei em 1
Samuel 8? Não há nada errado em ter um rei. Já havia a promessa
de que a tribo de Judá produziria um rei para reinar sobre Israel. Em
Deuteronômio 17, Moisés se antecipou e deu leis relativas ao rei. É
óbvio que Deus queria que seu povo tivesse um rei quando a hora
chegasse. Mas, o pedido de Israel por um rei chegou em um
momento em que não havia filhos qualificados para cumprir esse
ofício. Os filhos de Judá estavam excluídos até a décima geração.
Assim, Israel está pedindo um rei prematuramente — e eles
deveriam saber disso. Quando eles pedem um rei em 1 Samuel 8, o
problema não é que eles querem um rei; é que eles querem um rei
antes da hora. Eles querem um rei que lhes será dado em violação
à promessa de Deus e à lei de Deus. Eles deveriam saber que
simplesmente não havia como as coisas darem certo com Saul, o
benjamita. A nação de Israel apoderou-se da glória real
prematuramente da mesma forma como Adão e Eva fizeram.
Mas, havia uma segunda objeção ao reinado de Davi sobre
Israel. Ele tinha sangue estrangeiro nas veias. Ora, esta objeção
não pode ser respondida com tanta nitidez quanto a outra que
acabamos de tratar, mas há uma resposta. De acordo com Dt 17.15,
nenhum estrangeiro deveria se tornar rei de Israel. Além disso, em
Dt 23.3 s. (em seguida ao verso proibindo que filhos ilegítimos
tenham direitos plenos de cidadania), os moabitas são proibidos de
ter cidadania em Israel até a décima geração porque eles se
recusaram a prover pão e água para os israelitas no deserto. Os
moabitas amaldiçoaram mais do que abençoaram. Davi era
claramente o descendente de terceira geração de Rute, que era
moabita. Então, como? Como Davi pode ser rei? O livro de Rute nos
mostra uma maneira de contornar Dt 23.3 s.: Rute era uma
convertida. Rute foi trazida à linhagem da aliança pela graça de
Deus e por sua fidelidade à sua sogra. Rute é enxertada no povo da
aliança por meio de um casamento legítimo por levirato e recebe a
bênção de Deus para provar isso. Seu casamento e seu enxerto em
Israel estão em harmonia com a lei do Antigo Testamento. E, assim,
o livro de Rute mostra que Rute não era mais uma moabita. Ela
trocou sua identidade como moabita para tornar-se membro de
Israel Ela disse a Noemi: “o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o
meu Deus”. Ela deixa para trás a velha família moabita para entrar
na nova família de Israel. Essa transformação é posteriormente
selada em seu casamento com um israelita chamado Boaz; pelo
casamento, ela é incorporada à família e linhagem de Boaz. Ela se
torna membro de Israel; de fato, ela se torna membro da linhagem
da semente real. Em vez de ser um obstáculo à realeza de Davi,
podemos dizer que ela abriu caminho para isso, na verdade. De
fato, talvez mais do que qualquer outra pessoa no Antigo
Testamento, ela nos mostra o que significa ter a fé de Abraão, ser
um verdadeiro judeu como Paulo identifica em Romanos 2: ela não
possui a lei por natureza, mas cumpre as coisas da lei pela fé.
O livro de Rute, portanto, defende Davi e sua linhagem como
a escolha de Deus para governar Israel, o que, é claro, leva
finalmente a Jesus. Na genealogia de Mateus, Rute é uma das
poucas mulheres selecionadas que são incluídas nessa genealogia
conduzindo ao nascimento de Cristo.[4] Não somente Davi vem dela,
mas o Davi Maior, o Boaz Maior, Jesus, vem dela.

O reino messiânico
Podemos começar a ver algumas das maneiras como Rute
aplica-se às nossas vidas hoje. Não é muito bom falar sobre o
objetivo do livro, a menos que isso se traduza em prática. Assim
como houve desafios ao governo legítimo de Davi, também há
desafios ao reino legítimo do rei Jesus. Deste modo, temos que
defender seu reino, assim como o livro de Rute defendeu a realeza
de Davi. O livro de Rute é uma aula de apologética. Uma das
melhores maneiras de defender o evangelho é contando histórias.
Por meio da arte de uma narrativa cativante, podemos mostrar a
beleza e a glória de como Deus congregou todas as coisas em
Cristo. Todos os propósitos de Deus para a criação são levados a
um clímax e a seu ponto culminante em Jesus. Rute nos dá um
vislumbre disso.
Defender a fé em Cristo não é apenas uma questão de
argumentos e silogismos. Muitas vezes, é uma questão de contar
histórias. Precisamos aprender a contar a história do evangelho à
nossa cultura de maneira que a história do evangelho exponha o
que há de errado com a nossa cultura e corrija as coisas. O apóstolo
Pedro diz que devemos dar uma resposta sobre a esperança que
temos. Devemos viver nossas vidas de tal maneira que
provoquemos perguntas dos espectadores não-cristãos. Nossas
vidas servem para demonstrar esperança. Quando perguntarem
sobre a esperança que temos, estaremos prontos para dar uma
resposta. Devemos ter uma defesa pronta de porque temos a
esperança que temos. Rute é um modelo útil: o livro mostra por que
os israelitas estavam certos em ter esperança em Davi e se
submeterem ao seu reinado. Embora os desafios que enfrentamos
na defesa do reino de Jesus não sejam idênticos aos apresentados
contra o reino de Davi, Rute nos mostra uma estratégia apologética
eficaz.
Quem escreveu o livro de Rute estava respondendo em nome
da esperança davídica. Se a questão atual fosse: “Por que você tem
esperança no rei Davi?”, o livro de Rute dá uma resposta. E se a
questão hoje é “Por que você tem esperança no rei Jesus?”,
devemos dar uma resposta que declare que Jesus é o cumprimento
de todos os propósitos de Deus e que ele trouxe um novo mundo.

A solução: o evangelho segundo Rute


O que exatamente é o evangelho segundo Rute? Rute mostra
ao mundo exatamente o que ele precisa. Neste livro, a situação de
Noemi e Rute representa de modo emblemático a situação de Israel.
Onde estão Noemi e Rute no início do livro? Elas não têm um rei;
elas não têm um marido; elas estão desoladas, destituídas de tudo e
desesperadas. Onde elas estão no final do livro? Satisfeitas,
cuidadas e protegidas. A história de Rute é a prova de que Deus
não abandonará sua noiva pactual, mas proverá, dando-lhe por fim
um Boaz superior e um Davi superior, um Resgatador maior e um
Rei maior. Do que Israel precisa? Precisa de um rei, mas não como
Elimeleque e Saul; eles precisam de um rei como Boaz e Davi. É
claro, nossa situação também é como a de Israel/Noemi/Rute. O
mundo está perdido, sem rei e sem esperança. Do que o mundo
precisa? Do Boaz Maior, do Davi Maior. O mundo precisa do rei
Jesus. O mundo precisa de um resgatador, alguém que possa fazer
por nós o que não podemos fazer por nós mesmos, que proverá,
nos protegerá e cuidará de nós. Rute é um modelo do evangelho; o
evangelho cumpre os tipos e sombras encontrados no livro de Rute.
É muito interessante ver como os americanos são fascinados
com a realeza. Sim, nossa nação teve como premissa a rejeição da
monarquia. Nós lutamos uma guerra para nos libertar da tirania do
rei Jorge. Contudo, não conseguimos escapar do apelo da realeza.
Há algo em nosso íntimo que se identifica com ela. Um dos filmes
mais populares de todos os tempos é O Retorno do Rei, o terceiro
da trilogia O Senhor dos Anéis. Por quê? Por que somos tão
fascinados com a realeza? Deus nos criou de tal maneira que
almejamos a realeza. O pecado distorce nosso desejo pelo tipo
certo de rei, mas o desejo persiste. A razão por que tantos contos
de fada giram em torno de bons reis derrotando reis maus, do bom
rei resgatando e tomando a noiva para si ou do tema “O Retorno do
Rei” é que fomos criados precisamente para esse tipo de história.
Nunca nos cansamos desse tipo de história. Deus projetou a alma
humana e a história humana para combinar uma com a outra. A
alma humana anseia pelo tipo de rei que Deus enviou ao mundo.
Seu nome é Jesus. Ele é nosso rei.
1. O exílio de Elimeleque
Rute 1.1-5

Nos dias em que julgavam os juízes, houve fome na terra; e um


homem de Belém de Judá saiu a habitar na terra de Moabe, com
sua mulher e seus dois filhos. Este homem se chamava Elimeleque,
e sua mulher, Noemi; os filhos se chamavam Malom e Quiliom,
efrateus, de Belém de Judá; vieram à terra de Moabe e ficaram ali.
Morreu Elimeleque, marido de Noemi; e ficou ela com seus dois
filhos, os quais casaram com mulheres moabitas; era o nome de
uma Orfa, e o nome da outra, Rute; E ficaram ali quase dez anos.
Morreram também ambos, Malom e Quiliom, ficando, assim, a
mulher desamparada de seus dois filhos e de seu marido.

Observando a estrutura do livro, descobrimos que Rute é


dividido em quatro seções, que correspondem muito bem. Este é um
daqueles raros livros bíblicos em que as divisões dos capítulos se
encaixam muito bem com o fluxo da história. Rute 1 mostra a
necessidade de um resgatador. Rute 2 revela a busca e o desejo
por um resgatador. Rute 3 cumpre a promessa de um resgatador. E,
por fim, em Rute 4, nós vemos a realização do resgatador. Tudo
depende desse resgatador. E, é claro, tudo nesta história é
simbólico e tipológico. O que Boaz faz por Rute e Noemi representa
de forma emblemática o que Deus faz por Israel e pela igreja por
meio de Jesus. Nós estamos mortos e precisamos de alguém que
possa nos reviver. Estamos perdidos e precisamos de alguém que
possa nos encontrar. Estamos empobrecidos e precisamos de
alguém que possa nos enriquecer. Estamos desabrigados e
precisamos de alguém que possa nos dar morada. Estamos com
fome e precisamos de alguém que possa nos alimentar.
A cena inicial de Rute 1.1-5 é crítica porque estabelece toda a
narrativa. Tudo flui do que acontece nesses versos repletos de
informações. Se você pensar em Rute como um tipo de peça, os
versos 1-5 colocam os atores em suas posições.
A importância dos nomes
Os nomes das pessoas e lugares revelam muito. Nomes são
altamente significativos ao longo do livro de Rute.[5] Muitas vezes,
abusamos da etimologia e, às vezes, o significado dos nomes não é
tão certo quanto gostaríamos. Não devemos tornar a etimologia
decisiva na interpretação de uma passagem, mas a etimologia pode
enriquecer nossa leitura de um texto.
Descobrimos que esta família é de Belém. Belém significa
“casa do pão”, o que nos leva de volta ao local original de comida
abundante e gratuita, o Jardim do Éden. Em Gênesis 2, a ênfase
está na disponibilidade de comida. O jardim está repleto de árvores.
É a casa da comida. Belém é uma nova casa de comida em Israel.
Deveria ser um novo Éden. Isso não é um exagero, porque
sabemos que isso era, em certo sentido, verdadeiro para a terra
prometida como um todo. Quando Deus diz a Israel que lhes dará
uma terra de onde flui leite e mel, ele está indicando que a própria
terra é um novo ambiente edênico. Mas a situação no livro de Rute
apresenta um problema: uma fome atingiu Israel, até Belém. A casa
do pão está vazia. A terra fluindo com leite e mel agora enfrenta
escassez.
A dissonância entre o nome de Belém e a situação só pode
significar uma coisa: a terra está sob maldição. Mais
especificamente, o povo da terra está amaldiçoado. A terra está
morta, o que significa que o povo está morto também. A fome da
terra tem relação com a fome do povo. Eles abandonaram o Senhor
e, portanto, têm fome de comida verdadeira. Precisamos entender
que a fome não acontece do nada. Estes não são eventos
aleatórios, ao acaso. Quer esta fome se devesse à seca ou à guerra
(esta última é mais provável, considerando a invasão midianita), era
um castigo de Deus.
Deus prometeu fazer de Belém uma casa cheia de pão, cheia
de comida. Se isso não está acontecendo, se as promessas não
estão sendo cumpridas, há um problema. O problema não pode ser
que Deus é infiel; o problema deve ser que Israel pecou. E é
exatamente isso que descobrimos.
Somos informados de que a história acontece durante a época
em que os juízes reinavam sobre Israel. O livro de Juízes explica
por que Deus está trazendo fome contra a terra. Elimeleque deveria
ter raciocinado algo assim: “Se há uma fome aqui na cesta de pães,
isso significa que Deus está irado conosco, e Deus deve ter um bom
motivo para sua ira, e assim a solução para a fome é que nos
arrependamos". Em toda a Escritura, sempre que ocorrem
desastres, esses eventos trágicos são ocasiões para o
arrependimento. De fato, mesmo quando os desastres não estão
diretamente ligados a algum pecado em particular, eles lembram
que devemos continuamente deixar o pecado para servir ao Deus
vivo. Nem sempre existe uma correspondência exata entre
desastres que atingem nossas vidas e algum ato particular de
pecado, mas qualquer evento que revele a queda do mundo deve
ser visto como uma ocasião de arrependimento. Elimeleque não
raciocina dessa maneira. Em vez de arrepender-se, ele foge. Em
vez de voltar-se para Deus, ele se voltar para Moabe.
A pequena cidade de Belém normalmente sugere associações
positivas para o leitor da Bíblia. Quando ouvimos falar de Belém,
pensamos automaticamente no Natal e em tudo o que está
associado a esse evento alegre. Mas, Belém não tinha associações
tão agradáveis na época de Rute. A cidade era o lugar do sepulcro
de Raquel, a noiva da aliança, em Gn 35.19. Em Juízes 17 e 19,
Belém está associada às formas mais grotescas de idolatria e
imoralidade. Belém, pelo menos neste momento da história, é um
lugar marcado por infidelidade, idolatria e imoralidade. Elimeleque
não faz nada para mudar isso. Na verdade, ele parece fazer parte
do problema de Belém.
Atentar aos nomes das pessoas no livro de Rute traz mais
clareza à situação. Na Bíblia, os nomes não eram escolhidos
simplesmente por motivos estéticos; pelo contrário, eles revelavam
o caráter e propósito daquela pessoa. A analogia mais próxima que
talvez tenhamos são os nomes indígenas, que normalmente serviam
como apelidos para revelar algo sobre a pessoa. Ou, se você já leu
algum conto de Flannery O'Connor, sem dúvida percebeu que ela
usa nomes de uma maneira altamente simbólica para revelar o
caráter interior de uma pessoa. Embora existam algumas perguntas
sobre a etimologia precisa de alguns dos nomes em Rute 1, a
compreensão de seus significados contribui para nossa
compreensão geral da história.
O nome Elimeleque significa “Deus é Rei”, o que é altamente
irônico considerando a situação. Lembre-se: Elimeleque vive no
tempo dos juízes, um período em que “não havia rei em Israel; cada
um fazia o que achava mais reto”. O nome de Elimeleque deveria
lembrar-lhe de que Yahweh (ou El) era seu rei, mas ele não se
submeteu a Yahweh. Em vez disso, ele fez o que achava mais reto.
Assim, Elimeleque não fez jus a seu nome. Em outras palavras, ele
era um hipócrita. Quando Elimeleque tirou sua família da terra
prometida, longe do lugar onde Deus habitava entre seu povo, ele
estava pecando contra o verdadeiro Rei do céu e da terra. Ele não
se arrependeu de seu pecado e não confiou no Senhor como seu
Rei.
A esposa de Elimeleque é Noemi. Seu nome significa
“agradável”. Este nome também tem uma reviravolta irônica e
contraditória, porque, para Noemi, a vida é tudo, menos agradável.
Ela é exilada de sua terra natal pela fome e perde os três homens
de sua vida. Ela está cercada de morte por todos os lados. Assim,
no final de Rute 1, ela muda seu nome para um que corresponda à
sua situação. Ela se autodenomina “Mara”, que significa “amarga”,
porque a vida se tornou amarga para ela. Ela não está mais vivendo
uma vida “agradável”, mas uma vida “amarga”. Tratar sua tristeza e
tragédia é o que impulsiona a narrativa do livro.
É claro, no final da história, a amargura de Noemi volta a ser
alegria. Seu nome muda, mas, no fim, volta ao que era. Traçar o
nome dela é uma maneira de traçar a trama do livro inteiro. E, é
claro, há dimensões mais profundas na situação dela. A forma como
Deus lida com Noemi são um símbolo de como Deus lida com Israel
(e com a igreja, como novo Israel). Em outras palavras, o que Deus
faz através de Noemi, por ela e ao redor dela é um símbolo e tipo do
tratamento de Deus para Israel. De muitas maneiras, Noemi é mais
central para a história que Rute (o que é mais óbvio em hebraico
que nas traduções para o inglês). Se este livro recebesse o nome de
Noemi, seria tão adequado quanto o nome de Rute. Noemi é o
ponto focal de perda e ganho, de morte e de nova vida. Noemi é a
noiva da aliança. É ela quem é abandonada como uma viúva sem
filhos por causa da apostasia de seu marido. Ela se torna vazia,
desamparada e sem esperança. Rute 1.3, na verdade, sugere sua
posição central e crucial na narrativa: “Morreu Elimeleque, marido
de Noemi; e ficou ela com seus dois filhos”. O foco deste texto está
nela — seu marido, seus filhos, sua perda tripla. Com esses versos
iniciais, temos a impressão de que a história será contada a partir de
sua perspectiva. De fato, quando examinamos essa história através
dos olhos dela, vemos verdadeiramente a graça salvífica de Deus
quando Noemi é salva da morte e trazida à nova vida. Deus não vai
deixar Noemi exilada em Moabe, desamparada e sem marido. Ele
vai resgatá-la e restaurá-la — e, ao fazer isso, mostrará que está
determinado a resgatar Israel.
No decorrer da história, Rute se torna mais e mais
profundamente ligada a Noemi, de forma que, no fim da história, o
que acontece com uma delas acontece com a outra. Quando a
história avança, Rute tem mais e mais oportunidades para agir no
lugar de Noemi. Esses papéis na história, por fim, unem-se em um.
Quando Rute se casa novamente, este é funcionalmente um novo
casamento para Noemi, e o filho de Rute e Boaz substitui o marido
falecido de Noemi.
Os nomes dos filhos de Elimeleque não são exatamente
lisonjeiros. Quiliom significa algo como “doente” ou “definhando”.
Seu nome pode trazer o sentido de que ele está sofrendo pela terra
enquanto está longe dela ou pode significar que ele está sendo
consumido por algum tipo de doença que leva à sua morte. Malom
significa “perecendo”. É um nome adequado para ele não apenas
porque ele perece, mas porque o nome de sua família corre o risco
de perecer. É improvável que os pais realmente tenham dado esses
nomes para seus filhos. Esses poderiam ser apelidos dados a eles
posteriormente, talvez pelo autor inspirado.[6]
Os nomes desses filhos também são adequados, pois ambos
morrem quase imediatamente na história. Seus nomes sugerem não
apenas a posição vulnerável de Israel, mas a ameaça da maldição
pairando sobre o país. Esses dois jovens são tirados da terra da
promessa; separados da presença de Deus e do povo de Deus, eles
estão fadados a definhar e perecer.
Mas, não para aqui. A palavra hebraica usada para descrever
os filhos é um termo muito específico. Provavelmente poderia ser
melhor traduzido como “rapazes”. A palavra aparece novamente no
final da história para descrever o bebê de Rute, Obede. Claramente,
então, Obede vai tomar o lugar dos filhos falecidos; ele é criado
como seu substituto para reivindicar sua herança e perpetuar o
sobrenome da família.
Alguns estudiosos acham que o nome de Rute significa
“amizade”, o que é adequado, dado o papel que ela desempenha
nesta história. O nome de sua concunhada, Orfa, se relaciona com a
palavra para “nuca”. Seu nome pode significar que ela tem “dura
cerviz” porque recusa-se a curvar-se diante do Deus de Israel, como
Rute faz. Ou pode significar que ela deu as costas para Noemi. De
qualquer maneira, os nomes das duas mulheres formam um
contraste nítido. Enquanto Rute faz amizade com Noemi, Orfa dá as
costas para Noemi e a abandona.
Os membros da família de Elimeleque são identificados como
efrateus, o que é provavelmente o nome de um clã (cf. 1Sm 17.12).
Provavelmente significa que eles são descendentes de Calebe e
indica que eles eram uma família aristocrática. Essa era uma família
de destaque na região; logo, fugir por causa da fome teria sido algo
notável. Um comentarista diz que isso seria como dizer que os
Kardashians subitamente se tornaram arrendatários pobres.

De Israel a Moabe
Por causa da fome, essa família deixa a terra prometida e
ruma a Moabe. Este é um destino surpreendente, para dizer o
mínimo. Os moabitas tinham uma reputação muito ruim na história
da redenção, sendo pouco amigáveis com a nação israelita. De fato,
eles foram alguns dos inimigos mais ferrenhos dos israelitas.
De onde veio Moabe? Como traçar suas origens? Perguntas
como essas não são apenas curiosidades bíblicas; na verdade, elas
lançam muita luz sobre o que está acontecendo na história.
Descendentes de Ló, Moabe era parente de Israel por sangue.
Moabe, porém, nasceu de um relacionamento incestuoso entre Ló e
uma de suas filhas.
Considerando suas origens, não surpreende que o povo de
Moabe tenha sido entregue ao pecado sexual. Os moabitas eram
conhecidos por sua imoralidade descarada a serviço de seu deus
Quemos. Em Números 25, as moabitas levam os israelitas à
apostasia e prostituição. E, quando Israel estava a caminho da terra
prometida, Moabe se recusou a dar pão e água a Israel. Na
verdade, eles contrataram Balaão para pronunciar uma maldição
sobre Israel.
Assim, imagine a situação. Quando Israel estava em uma
situação de fome, caminhando pelo deserto e precisando de pão e
água, eles procuraram Moabe para ajudar, mas Moabe os
amaldiçoou, em vez de abençoar. Para piorar, as moabitas já eram
conhecidas por desviar os homens israelitas. Considerando esse
histórico, pense na decisão diante de Elimeleque. Sua família está
faminta. Seus filhos estão crescendo e precisam de esposas. Por
que Elimeleque escolhe levar sua família para uma região
conhecida por se recusar a dar pão aos israelitas? Por que ele entra
em uma região onde se sabe que as mulheres levam os homens
israelitas ao pecado? Este é um ato de traição por parte de
Elimeleque — e ele pagará por sua tolice.

Carência, reparação da carência


Rute é uma história magistral com uma requintada estrutura
literária. Conhecido por seu estudo clássico de contos folclóricos,
Vladimir Propp observou que as histórias folclóricas costumam ter a
mesma estrutura básica: carência, reparação da carência ou
necessidade, necessidade satisfeita. Pense na Cinderela. No início
da história, Cinderela se encontra sob o domínio de sua madrasta
malvada. Ela carece de uma boa casa. Ela precisa ser resgatada da
crueldade de sua madrasta. No fim da história, sua carência é
reparada e sua necessidade é satisfeita. Rute vai funcionar de
maneira semelhante. Os versículos introdutórios mostram-nos qual
é a carência. A necessidades das protagonistas femininas serão
atendidas, uma a uma, até que chegamos ao final da história e a
reviravolta está completa.
Quais são as necessidades identificadas nessas linhas de
abertura da história? Primeiro, há carência de pão; há fome. No fim
de Rute 1, a fome acabou e, em Rute 2, encontramos Deus dando
grande provisão para Rute e Noemi por meio de Boaz. A carência
de pão será reparada.
Em segundo lugar, há carência de um lar. A família de
Elimeleque deixa a terra prometida e parte em um exílio
autoimposto. Mais tarde, Noemi e Rute retornam à terra e
encontram um lar ali. Por fim, eles encontrarão descanso em Boaz,
que as recebe em sua família.
E, então, há a carência de um herdeiro. Os dois filhos
morreram sem filhos, deixando para trás duas viúvas. Novamente,
no fim da história, tudo que é necessário será providenciado. Rute
vai encontrar um marido melhor do que aquele que morreu. Através
dele, ela terá um filho para substituir o falecido. Boaz e Obede
reparam a carência de homens no início da história.
O livro de Rute passa do vazio para a plenitude, da morte para
a vida da ressurreição, da amargura para a alegria, e do exílio para
a restauração. Poderíamos até dizer que é uma história de “Mara” a
“Noemi”, da amargura ao prazer.

A fome de justiça
A fome acontece por causa do pecado. A morte chega a
Elimeleque e seus filhos por causa do pecado. A fome é
especificamente apontada como forma de juízo sobre Israel em
Levítico 26 e Deuteronômio 28: é um sinal da ira de Deus contra o
povo da aliança. Deus revela aos israelitas como seu
relacionamento especial com eles funcionará. Quando começassem
a ver as maldições da aliança, como doenças ou fome, sobre eles,
eles deveriam se arrepender. Se não se arrependessem, seriam
completamente expulsos da terra.
Ao levar sua família ao exílio, Elimeleque, em um certo
sentido, impõe sobre si a maldição definitiva da aliança. Ele é
expulso da terra onde Deus colocou seu nome e sua presença. É
muito difícil evitar a conclusão de que, quando Elimeleque deixou a
terra, pelo menos nessas circunstâncias, ele estava pecando. É
verdade que Abraão também deixou a terra por causa da fome, mas
isso aconteceu antes de a terra ser dada à família de Abraão como
uma possessão. Quando Elimeleque deixa a terra, sua partida é um
sinal de que algo deu errado. Você poderia dizer que ele seguiu seu
estômago e não sua fé. Em vez de restaurar a comida no cesto de
pão por meio do arrependimento, ele pega o que parece ser o
caminho mais fácil ao ir para Moabe. Quem pode imaginar que
concessões estão implícitas em sua decisão? Onde eles adorariam
o Deus verdadeiro? Que tipo de comunidade eles esperavam
encontrar? Elimeleque parece estar fazendo o que bem entende, e
não o que é certo. Pode ser por isso que todos os homens da
família morrem em Moabe, uma punição pelo pecado de
Elimeleque. Eles escolheram o exílio da terra e acabaram sendo
exilados da face da terra.
Elimeleque não esperou que Deus o expulsasse da terra; ele
escolheu sair por conta própria. Em vez de implorar por misericórdia
ao Senhor, ele voltou-se para a misericórdia dos moabitas. Não
podemos dizer com certeza que, ao atravessar as fronteiras da terra
prometida, Elimeleque se tornou um apóstata completo, mas
certamente parece isso. Se isso não é violar a aliança, está muito
próximo. Se fôssemos traduzir as ações de Elimeleque para o
cenário da Nova Aliança, seria como se Elimeleque deixasse a
igreja. Ele deixou a comunhão do povo de Deus e o lugar onde
Deus colocou seu nome. É uma auto-excomunhão.

A igreja como esfera de vida


A lição para nós é clara: não seja um Elimeleque. Não
abandone a casa e o povo de Deus. Vivemos em uma época em
que muitas pessoas olham para a igreja e não vêem muito valor ali.
A igreja não as impressiona. Mas, pense bem: se você olhasse para
a terra da promessa nos dias de Elimeleque, também não pareceria
muita coisa. O que há de especial nessa terra? Há fome ali. O que
há de especial na igreja? Parece que há muito pouco fruto. Deus
frequentemente opera de maneiras ocultas e surpreendentes.
Devemos aprender a nos submeter ao plano e padrão de Deus para
nós. Devemos aprender a submeter-se aos juízos de Deus e não
fugir para os Moabes do mundo pedindo ajuda. Precisamos confiar
em Deus, arrepender-se, orar pelo pão diário e continuar
caminhando com o Senhor e seu povo. Devemos buscar a Deus
onde Ele prometeu ser achado. Para Elimeleque, isso significava as
assembleias locais, as sinagogas, espalhadas por toda a terra de
Israel e que se reuniam todos os sábados (Lv 23.3). Para nós,
significa não abandonar a assembleia dos santos (Hb 10.25). Assim
que algo ruim aconteceu, Elimeleque abandonou o navio e seguiu
para Moabe. Quando coisas ruins acontecem conosco, somos
tentados a fugir de Deus e da igreja. Mas é exatamente isso que
não devemos fazer. Pelo contrário, deveríamos correr para a igreja.
Devemos correr para a presença de Deus, reivindicando as bênçãos
que Ele prometeu estender a nós no meio de seu povo. Devemos
implorar a ele que nos conceda arrependimento e que nos abençoe
em vez de nos amaldiçoar.
Elimeleque já está, de certo modo, sob a maldição da fome na
terra, mas, ao deixar a terra, ele intensifica a maldição, e a fome se
torna morte. Fora da igreja, fora do lugar onde Deus prometeu fazer-
se presente através dos meios da graça (Palavra e sacramento),
não há nada além da morte. Se você deixa a esfera da vida, você
entra na esfera da morte.

Deixando a terra
Algumas pessoas podem defender Elimeleque e se opor a
uma interpretação tão negativa, dizendo: “Um homem deve fazer o
que é necessário para alimentar sua família. Deixar a terra era
perfeitamente compreensível”. O contra-argumento para essa linha
de raciocínio é simples. Obviamente, nem todo mundo em Belém
deixou a terra, e ainda assim conseguiram sobreviver. Boaz
certamente não viu a necessidade de tirar sua família da terra, e
mesmo assim sua família não morreu de fome.
Uma objeção mais poderosa é: “Abraão deixou a terra da
promessa durante o período de fome e Jacó o fez também. Por que
não podemos dizer que Elimeleque está apenas imitando as ações
dos patriarcas? Elimeleque não está apenas repetindo as ações de
Abraão e Jacó? Não parece não haver desaprovação divina das
ações de Abraão e Jacó". Porém, esse argumento deixa de tratar as
principais diferenças entre a situação dos patriarcas e a situação de
Elimeleque. Abraão e Jacó podem ter deixado a terra prometida a
eles por causa da fome, mas a terra da promessa permaneceu sem
ser conquistada. Abraão não habitou na terra como residente
permanente. Ele sabia que era apenas um peregrino. E o mesmo
vale para Jacó. Ambos sabiam que levaria séculos e gerações até
seus descendentes chegarem à posse completa da terra. Os
pecados dos cananeus tinham que chegar à medida da iniquidade
antes de eles serem expulsos da terra. A terra pertenceria a Israel
enquanto eles fossem fiéis. Porém, a herança completa da terra
ainda não tinha acontecido no tempo de Abraão e Jacó. Eles
partiram antes da conquista da terra e antes que Deus colocasse
seu nome ali. Assim, para os patriarcas, deixar a terra não tinha o
mesmo significado de Elimeleque deixar a terra.
O retorno de Abraão à terra também é digno de nota. Em
Gênesis 12-13, é verdade que Abraão deixa a terra por causa da
fome, mas ele não é abençoado até que volte para a terra. Então,
ele deixa o Egito com espólios. É como se a saída de Abraão fosse
um tipo de exílio. Mas, quando ele volta para a terra, é um êxodo
completo com o espólio dos egípcios.

O tema da terra
Para entender completamente a dinâmica de Rute 1, é
importante traçarmos o tema da terra. Desde a primeira promessa
sobre a terra nas Escrituras, até a nova criação glorificada, a aliança
de Deus está ligada à terra (o Apêndice A tem um extenso
tratamento da Teologia da Terra). A criação é a arena na qual a
redenção acontece; a criação é aquilo que Deus usa para trazer
redenção, e as coisas da criação são redimidas.
Temos a tendência de pensar na esperança cristã como algo
que nos retira da criação como se redenção significasse escapar
deste mundo. Mas, na verdade, isso é muito mais platônico (ou até
gnóstico) do que cristão. A esperança bíblica está ancorada na terra
e na criação. Foi este mundo que caiu; foi este mundo que sofreu a
maldição do pecado; é esta terra que deve ser redimida. Doutro
modo, Satanás obteve a vitória. Se a criação não for redimida,
Satanás reivindicou a criação para si e Deus o deixou possui-la.
Mas, a narrativa bíblica dá à redenção um foco neste mundo.
Na narrativa bíblica, redenção significa que Deus está reivindicando
novamente o que Satanás reivindicou para si. Deus trouxe a
maldição sobre o mundo e Deus pode retirar a maldição do mundo.
Deus pode revogar a maldição e substituí-la por bênção.
Essa verdade tem implicações enormes em como vivemos
nossas vidas e como pensamos no futuro. Com demasiada
frequência, pensamos na esperança cristã futura como o céu. Mas o
que geralmente pensamos como o céu não é nosso destino final.
Pelo contrário, é o que os teólogos chamam de “estado
intermediário”. É verdade que a alma do crente estará com o Senhor
no céu após a morte e isso é uma coisa gloriosa (Fp 1.23), mas não
é o final da história. A alma aguarda sua redenção final e a
ressurreição do corpo no último dia. Quando nossos corpos forem
ressuscitados, a própria criação será glorificada. Se nossa
esperança futura termina no céu, então somos platônicos em vez de
paulinos. Platão disse que o corpo é uma prisão para a alma e, na
morte, a alma é liberada para que possa flutuar para o alto em um
reino etéreo.
Essa visão platônica da salvação teve muita influência no
pensamento, na prática e na piedade cristã. A esperança cristã é
certamente celestial, mas ela também é deste mundo. Ela envolve o
corpo ressuscitado habitando em um novo céu e nova terra por toda
a eternidade. Nossa esperança está no mundo futuro, mas não em
outro mundo. É este mundo que será redimido. O corpo que você
tem agora será o corpo em que você habitará por toda a eternidade
(embora em forma glorificada). Esta é a esperança cristã: o próprio
corpo que sofreu a maldição do pecado e sofreu por causa do
Salvador agora receberá todo o peso da bênção, da glória, do
esplendor e da majestade. Pode parecer que isso não tem muito a
ver com o livro de Rute, mas tem. O livro de Rute não apenas
ensina a salvação pela graça, mas ensina uma salvação
abrangente.
2. Fazendo aliança com estrangeiros
Rute 1.1-5

Nos dias em que julgavam os juízes, houve fome na terra; e um


homem de Belém de Judá saiu a habitar na terra de Moabe, com
sua mulher e seus dois filhos. Este homem se chamava Elimeleque,
e sua mulher, Noemi; os filhos se chamavam Malom e Quiliom,
Efrateus, de Belém de Judá; Vieram à terra de Moabe e ficaram ali.
Morreu Elimeleque, marido de Noemi; e ficou ela com seus dois
filhos, os quais casaram com mulheres moabitas; era o nome de
uma Orfa, e o nome da outra, Rute; E ficaram ali quase dez anos.
Morreram também ambos, Malom e Quiliom, ficando, assim, a
mulher desamparada de seus dois filhos e de seu marido.

Em Moabe, os filhos de Elimeleque tornaram-se adultos e


tomaram esposas moabitas para si. Isso foi pecado? A Bíblia não
proíbe casamento inter-racial ou inter-étnico, mas ela proíbe o
casamento inter-religioso ou inter-pactual (2 Co 6.14). Há uma razão
para pensar, considerando o histórico anterior, que assim como
Elimeleque cometeu um erro ao buscar pão em Moabe (cf. Dt 23.3-
6), seus filhos também não deveriam ter buscado esposas moabitas.
Esse é um caso da história se repetindo? Números 25 registra um
grande fiasco na história de Israel, quando homens israelitas se
prostituíram com mulheres moabitas. Como resultado, Deus matou
24.000 homens israelitas. O mesmo tipo de coisa acontece aqui,
embora em escala menor. Não há indício de fornicação em Rute 1,
mas também não há razão para pensar que as moabitas se
converteram à fé no Senhor quando se casaram com Malom e
Quiliom. O resultado? Os dois homens israelitas são mortos em
juízo. Eles são executados por se casarem fora da aliança. Embora
não haja indicação de fornicação, parece que há uma violação da
santidade da aliança.
Deus disse a seu povo no livro de Deuteronômio que, quando
“o Senhor, teu Deus, as tiver dado diante de ti [isto é, as nações
cananeias], para as ferir, totalmente as destruirás” (Dt 7.2). Deus
proibiu especificamente seu povo de fazer um pacto com os
cananeus. Obviamente, isso se aplicaria também aos pagãos que
vivem fora da terra da promessa. Deus diz que seu povo não deve
entrar em um relacionamento profundo de aliança com os
incrédulos. Dt 22.10 ensina o mesmo princípio em lei simbólica:
“Não lavrarás com junta de boi e jumento”. Por que Deus daria essa
lei ao seu povo? Não é que os agricultores tenham tentado arar com
um boi e um jumento juntos. Os animais acabariam andando em
círculos por causa das diferenças de peso e tamanho. Pelo
contrário, a ideia da lei é mostrar a Israel o quanto seria
incongruente e infrutífero ligar-se em jugo a nações e povos
impuros. O boi é um animal sacrificial e o jumento não é; eles não
devem estar sob o mesmo jugo. Israel não deve entrar em uma
comunhão pactual profunda com aqueles que estão fora da aliança.
Essas leis não proibiam Israel de fazer amizade com
estrangeiros ou estranhos que passassem pela terra. Essas leis não
proibiam hospitalidade, ministério de misericórdia ou evangelismo.
Os israelitas não foram proibidos de comer com gentios, apesar de,
com o tempo, os judeus estabelecerem cercas mais altas entre si e
os gentios, o que tornou compartilhar uma refeição impossível. Mas
essas leis significavam que os israelitas não podiam estabelecer
laços profundos de aliança com um pagão, como o casamento. Se
um pagão se converte à fé no Senhor e é integrado à comunidade
da aliança, então o casamento é lícito. Caso contrário, não é.
Assim, é provável que os filhos de Elimeleque tenham entrado
em jugo desigual com as moabitas. Não há indicação de que eles
exigiram que Orfa e Rute se convertessem antes do casamento. As
ações dos filhos aqui diferem das de Moisés, que tomou uma noiva
etíope, ou Sansão, que, sob a direção do Espírito, ofereceu
casamento a uma filisteia enquanto também a chamou para
transferir sua lealdade ao povo de Deus.
Portanto, em vez de converter Orfa e Rute à fé no Senhor, a
família de Elimeleque tornou-se sincrética enquanto estava em
Moabe.[7] Provavelmente, eles mantiveram muitos de seus
costumes e práticas israelitas enquanto “faziam como os moabitas
fazem em Moabe”. Eles provavelmente incorporaram a adoração ao
deus moabita Quemos em sua piedade familiar. De que outra forma
eles teriam conseguido pão e terra para cultivar entre os moabitas?
Assim, se há alguma transferência de lealdade, ela está na direção
errada. Em vez de converter os moabitas à sua fé, a verdadeira fé,
eles estão sendo convertidos a uma fé falsa.
No fim da primeira seção, os homens estão mortos.
Elimeleque, Malom e Quiliom são julgados. Noemi ficou isolada,
uma israelita em terra estrangeira. Seu marido a conduziu ao
pecado, deixando a terra e, como consequência, a morte dominou e
a família de Elimeleque enfrenta a extinção. O nome da família corre
risco de desaparecer.

Um raio de esperança
Rute 1.6-7

Então, se dispôs ela com as suas noras e voltou da terra de Moabe,


porquanto, nesta, ouviu que o Senhor se lembrara do seu povo,
dando-lhe pão. Saiu, pois, ela com suas duas noras do lugar onde
estivera; e, indo elas caminhando, de volta para a terra de Judá.

O que acontece a seguir? Versículos seis e sete oferecem um


raio de esperança. A situação de Belém aparentemente mudou.
Belém não está mais sob a disciplina de Deus; Deus visitou seu
povo e restaurou o pão na casa do pão. As boas novas chegam a
Noemi enquanto ela ainda mora na região de Moabe, e ela e suas
duas noras começam a voltar para a terra prometida.
O versículo sete menciona a terra de Judá, lembrando-nos
que o foco da história não é Israel como um todo, mas a tribo de
Judá em especial. Lembre-se de que Judá foi amaldiçoado porque
não exigiu que seus filhos cumprissem seus deveres de levirato, o
que acabou levando ao nascimento de um filho ilegítimo chamado
Perez (Gn 38.29). E lembre-se também de que sabemos, pelo livro
de Deuteronômio, que por dez gerações a linhagem de Judá está
desqualificada da cidadania plena em Israel por causa desse
pecado. Todo o livro de Rute vai depender da redenção e
restauração da tribo de Judá.

O padrão êxodo/exílio
Há outro importante padrão bíblico a ser observado. Nas
Escrituras, deixar a terra é se exilar. Retornar à terra é passar por
um êxodo. Abraão passa por um exílio/êxodo em Gênesis 12. Ele
deixa a terra por causa da fome, vai para o Egito e depois volta com
despojos. Deus protege Abraão enquanto ele está no exílio,
atormentando Faraó quando ele procura atacar a noiva de Abraão, e
quando Abraão parte, ele o faz com um grande tesouro. Claro, está
é uma prévia do que vai acontecer no próprio livro de Êxodo. A
experiência de Abraão se repetirá em escala nacional. No Egito,
toda a nação será atacada e escravizada por Faraó. Em vez de
atacar a noiva, o Faraó (uma figura da serpente) atacará a semente
da noiva ao buscar matar os bebês judeus do sexo masculino. Deus
atormentará Faraó com pragas e depois levará seu povo para fora
do Egito com uma pilhagem tremenda. Há muitos ciclos de exílio e
êxodo na Bíblia.
De fato, toda a Bíblia pode ser lida como a história de exílio e
êxodo. Adão e Eva começam no jardim do Éden com acesso à
Árvore da Vida, mas porque se recusam a exercer uma fé paciente,
antecipam-se e apoderam-se dos privilégios reais em vez de
esperar que Deus os conceda. Como consequência de seu pecado,
eles são exilados do Jardim do Éden. Todo o resto da Bíblia pode
ser entendido como a história de Deus realizando um êxodo para
seu povo, restaurando-o ao santuário. O ciclo final de exílio/êxodo
acontece na cruz. Em Lucas 9, Jesus é transfigurado no monte e
começa a discutir seu “êxodo” futuro com Moisés e Elias. Como isso
acontecerá? Ele será exilado na cruz — exilado da cidade de
Jerusalém, exilado da comunidade de Israel, exilado até da
presença de seu Pai. Mas então ele retorna (êxodo) à terra dos
vivos em sua ressurreição e traz consigo os espólios finais, a saber,
todos os santos redimidos por seu sangue.
Com tudo isso em mente, deve ser evidente que o movimento
geográfico no livro de Rute não é arbitrário. Ele é integral para a
história. Rute descreve outro ciclo de exílio/êxodo. Entretanto, o
êxodo de Rute parece diferente. Nesses outros casos, o êxodo
significa trazer de volta uma grande pilhagem, o que parece não
acontecer quando Noemi começa seu retorno a Judá. Peter Leithart
observa a irregularidade em Rute 1:
No capítulo um, claramente temos um padrão de êxodo. Elimeleque
e Noemi deixam a terra, e Noemi volta com Rute. Mas, sob muitos
aspectos, é um êxodo incomum. Em vez de multiplicarem-se na
terra da peregrinação, como Jacó fez em Padã-Arã e Israel fez no
Egito, Elimeleque e seus filhos morrem, deixando Noemi sem
semente. Em vez de tornarem-se enriquecidos como Abraão,
Isaque, Jacó e Israel fizeram, Elimeleque e Noemi estão
empobrecidos. Jacó foge de Esaú com apenas um bordão e volta
com duas comitivas ricas; ele sai vazio e volta cheio. Noemi sai
cheia e volta vazia. Embora Noemi esteja de volta à terra, não houve
êxodo, nem redenção. Este contraste com os êxodos patriarcais
apoia a noção rabínica tradicional de que Elimeleque pecou ao
deixar a terra.[8]

Em Rute 1, o êxodo parece vazio, pois Noemi volta de mãos


vazias. Ou não? Na verdade, ela volta de Moabe com pelo menos
um espólio, a saber, Rute. Noemi diz que ela não tem nada no fim
de Rute 1, mas descobriremos, enquanto a história se desenrola,
que ela não está realmente de mãos vazias. Noemi desceu a Moabe
com dois filhos. No final do livro, ela dirá que Rute foi mais valiosa
para ela que sete filhos. Neste ponto, Noemi não percebe como
Deus a abençoou. Mas ela perceberá.
Pense em como fazemos a mesma coisa que Noemi com
frequência. Nós gememos e reclamamos, vendo apenas o lado
escuro da nossa situação. Nós deixamos de ver o sol escondido
atrás das nuvens de tempestade que se juntam sobre nós. Esta é a
situação de Noemi neste momento da história. Ela não vê o que
Deus providenciou para ela.
Embora um pouco diferente, esse evento do êxodo em Rute 1
se encaixa no padrão bíblico, afinal. Ela volta com o melhor espólio
de todos. Ela volta com o melhor que Moabe tem para oferecer, que
é Rute.

Noemi como anti-evangelista


Rute 1.8-13

Disselhes Noemi: Ide, voltai cada uma à casa de sua mãe; E o


Senhor use convosco de benevolência, como vós usastes com os
que morreram e comigo. O Senhor vos dê que sejais felizes, cada
uma em casa de seu marido. E beijou-as. Elas, porém, choraram em
alta voz e lhe disseram: Não! Iremos contigo ao teu povo. 11 Porém
Noemi disse: Voltai, minhas filhas! Por que iríeis comigo? Tenho eu
ainda no ventre filhos, para que vos sejam por maridos? Tornai,
filhas minhas! Ide-vos embora, porque sou velha demais para ter
marido. Ainda quando eu dissesse: tenho esperança ou ainda que
esta noite tivesse marido e houvesse filhos, esperá-los-íeis até que
viessem a ser grandes? Abster-vos-íeis de tomardes marido? Não,
filhas minhas! Porque, por vossa causa, a mim me amarga o ter o
Senhor descarregado contra mim a sua mão.

Por que Noemi tenta desencorajar as duas viúvas de irem a


Judá com ela? Ela lhes dá duas razões. Primeiro, ela diz que não
pode gerar filhos para que se casem, por causa de sua idade
avançada. Além disso, ela argumenta que, mesmo que pudesse
milagrosamente dar à luz, mesmo que ela fosse como outra Sara e
tivesse o útero aberto em uma idade muito avançada, na época em
que os filhos crescessem, Orfa e Rute estariam velhas demais para
o casamento. Estes parecem argumentos convincentes,
especialmente em uma cultura na qual o bem-estar de uma mulher
estava ligado a um marido.
A apologética de Noemi é bastante problemática, entretanto,
visto que ela está enviando essas duas mulheres para longe de
Deus e de seu povo. Ela está levando as duas de volta à idolatria,
de volta à terra de Moabe, de volta à adoração do falso deus
Quemos. Por que Noemi está fazendo isso? Há uma longa e
venerável interpretação deste livro que vê todas as ações de Noemi
sob o melhor ângulo possível. Nesta interpretação do livro, Noemi
está testando as mulheres para ver se elas são realmente
convertidas. Ela está chamando as duas a levar em conta o custo
do discipulado, para ver se eles abandonarão sua antiga pátria e
famílias.
Mas, essa não parece ser a melhor interpretação. Pelo
contrário, parece que Noemi está, em primeiro lugar, libertando Rute
e Orfa de quaisquer obrigações para com ela. Se Rute e Orfa se
unirem a Noemi de alguma forma, será inteiramente voluntário. Mais
do que isso, o que vemos aqui é o quanto Noemi se tornou incrédula
no exílio. Ela está endurecida. Lembre-se de que, quando
Elimeleque foi a Moabe, ele estava levando sua família para longe
da igreja e da presença de Deus. Noemi está longe do povo de
Deus há algum tempo. Como resultado, não é de surpreender que
ela tenha se tornado uma representante infiel de Yahweh. Ela se
desesperou e, desanimada, afasta potenciais convertidas. Ela
perdeu a esperança. Nós vemos isso no final do capítulo, onde ela
muda seu nome de Noemi para Mara e diz: “O Senhor está contra
mim”. As tentativas de Noemi de enviar as viúvas para longe
revelam seu desejo de desistir de Deus. É como se ela lhes
dissesse: “Vocês podem servir o deus de vocês. O deus de vocês
provavelmente as tratará melhor que nosso Deus tratou vocês.
Vejam o que nosso Deus fez com minha família e comigo”.
Noemi também pode ter tido razões pragmáticas para mandar
as mulheres embora, pensando que talvez fosse mais fácil para uma
viúva encontrar provisões do que três. Novamente, isso revelaria
falta de confiança em Deus. Quaisquer que sejam as razões, a
conclusão é que ela as incentiva a voltar a uma vida de idolatria em
vez de se aventurar na terra da promessa.
Na verdade, Noemi até contempla a possibilidade de que Rute
e Orfa poderiam encontrar descanso na terra de Moabe, mas
sabemos que a terra prometida é o lugar de descanso. É como se
ela lhes dissesse: “Talvez um moabita possa lhes dar o descanso
que meus filhos não puderam dar. Talvez Quemos possa lhes
conceder descanso, pois o Senhor não o fez”.
O papel da Lei do Levirato em Rute
No versículo 11, descobrimos um dos temas centrais do livro
de Rute. Quando Noemi fala em gerar filhos para essas duas
moças, ela está apontando para a lei do levirato do Antigo
Testamento, que podemos encontrar descrita em Gênesis 38. Sob a
lei do levirato, se um homem morresse deixando uma viúva sem
filhos, seu irmão era obrigado a casar-se com a viúva e a gerar um
filho para seu irmão falecido. A primeira criança que eles tivessem
juntos tomaria o lugar do irmão falecido. Essa criança receberia a
herança do falecido e transmitira o nome de sua família. Noemi não
acredita que haja esperança para um casamento de levirato. Parece
que a casa de Elimeleque, afinal, chegará ao fim. Não houve filhos
antes da morte dos dois filhos de Noemi, Malom e Quiliom. Noemi
está perdendo a esperança de que a família de seu marido continue.
Não há semente que possa vir e destruir a semente da serpente por
eles, ninguém para reivindicá-los e resgatar seus bens perdidos.
Essa é a desolação da situação.
Orfa concorda com Noemi que esta é uma situação
desesperadora. Assim Orfa parte. O significado de seu nome refere-
se à nuca, assim não é surpreendente quando ela dá as costas a
Noemi e volta para Quemos.
Como Orfa pode ser responsabilizada por isso? Afinal, ela não
recebeu o melhor testemunho evangélico da família de Elimeleque.
Toda a família mostrou para ela que eles não confiam que Deus
cuidará deles. Assim, por que não voltar com ela? De fato, o que
Noemi acabou de lhe dizer é que ela tem tanta chance de encontrar
descanso na casa de um adorador de Quemos quanto na terra da
promessa. Entretanto, precisamos dizer que Orfa ainda é
responsável por voltar e ela faz isso para sua condenação eterna.
Enquanto Rute (cujo nome significa “amigo” ou “companheira”)
segue com Noemi e encontra a salvação, Orfa rejeita essa oferta de
salvação e volta ao culto a um ídolo. Ela estava perto da salvação,
mas deixou escapar.
Alguns se perguntaram como Rute poderia saber se apegar a
Noemi e seu povo, e por que ela estaria atraída nessa direção se,
afinal, o testemunho dessa família não era positivo ou claro. Rute
pode ter se tornado parte de uma família infiel, mas alguns
remanescentes da adoração verdadeira ainda teriam permanecido.
A família de Elimeleque teria contado histórias de Yahweh, do
grande êxodo e da conquista. Ela teria ouvido essas histórias.
Assim, quando os israelitas chegaram, ela sabia que o Deus que
eles serviam era o verdadeiro Deus, e ela estava pronta para juntar-
se a eles, seguir o Deus deles e abrir mão do deus de seu povo. Ela
está vivendo entre pessoas infiéis, mas aprendeu verdade suficiente
para ser convertida e trazida à fé.

A transformação de Noemi
Se pensarmos em Noemi como um personagem positivo o
tempo todo, não há muita mudança para acontecer na história. Com
essa interpretação, a própria Noemi não precisa de redenção.
Entretanto, a história faz mais sentido se há uma transformação
dinâmica acontecendo.
Flannery O'Connor, em muitos aspectos a rainha dos
contadores de histórias, disse certa vez que todas as narrativas são
sobre conversão. Em outras palavras, histórias dignas de serem
contadas tratam de redenção. Se Noemi não está agindo mal neste
momento da história, ela não precisa muito de redenção. Membros
da tradição calvinista tendem a atenuar essas narrativas do Antigo
Testamento, tornando-as muito estáticas. Por exemplo, dizemos que
Saul, em 1 Samuel 15, não perdeu nada quando o reino lhe foi
tirado, porque certamente ele era um lobo em pele de cordeiro o
tempo todo. O texto diz que o Espírito se retirou dele, mas como ele
nunca teve realmente o Espírito, então não houve uma perda real
aqui. Ele disfarçou sua incredulidade e apostasia por um tempo,
mas a queda não foi grande porque ele nunca esteve na graça para
começar. Mas a narrativa intepreta isso de maneira muito diferente.
Ela diz que Saul era um novo homem, recebeu um novo coração,
tinha o Espírito e foi adotado por Deus. Mas, em 1 Samuel 15 ele
perde tudo isso. Esta história é o contrário do tipo de narrativa
mencionado por Flannery O'Connor. É uma história sobre perder
tudo.
A história de Judas também pode ser entendia de uma
maneira semelhante e atenuada. Poderíamos dizer que Judas era
mau o tempo todo, então não houve apostasia real. Judas era
simplesmente ímpio, mas sua verdadeira natureza não foi revelada
até mais tarde. Ora, com certeza, às vezes havia sinais sugerindo
que havia algo de errado com Judas. Mas Judas não era um
personagem estático. Afinal, nenhum dos outros discípulos
suspeitava que ele traísse o mestre. Ele também conseguiu fazer
tudo o que os discípulos conseguiam fazer, até realizar milagres.
Podemos ser tentados a ler o livro de Ester de maneira
semelhante. Achamos que Mardoqueu e Ester devem ter sido justos
o tempo todo. Mas, parece claro que Mardoqueu e Ester estavam
em um pecado muito profundo no início do livro. Eles são infiéis e
estão comprometidos Eles se recusam a testemunhar o verdadeiro
Deus e sua aliança. Somente quando há uma grande crise no meio
da história, quando são confrontados com a morte e a extinção, eles
se arrependem e mudam de atitude.
Nesta história, vamos ver a transformação radical de Noemi.
Vamos ver Deus operar em sua vida de tal maneira que ela se
converterá. É claro, isso se torna ainda mais importante quando
vemos que a própria Noemi é um tipo, símbolo ou figura da nação
de Israel. É o povo de Deus que precisa de conversão e redenção.
Se o livro trata da redenção de Noemi, que representa o povo de
Deus, ele também trata de nossa transformação e redenção.
Estamos inclinados a afirmar que Noemi está em profundo
pecado, embora Yahweh lentamente a atraia de volta. Ele a
transformará, assim como fará com Israel.

Rute 1.14-15

Então, de novo, choraram em voz alta; Orfa, com um beijo, se


despediu de sua sogra, porém Rute se apegou a ela. Disse Noemi:
Eis que tua cunhada voltou ao seu povo e aos seus deuses; também
tu, volta após a tua cunhada.
Orfa partiu; Rute se apega a Noemi. Orfa escolheu o falso
deus e agora Noemi diz para Rute: “Bom, você também deve partir”.
Mas Rute se recusa; ela tem fé. Nada pode detê-la. Ela está
determinada a fazer parte de Israel e a ser incorporada ao povo
sacerdotal. Ela aprendeu o suficiente ao longo do caminho para
saber que Yahweh deve ser o Deus verdadeiro e que sua terra é o
local de bênção.
A palavra “apegar” usada para se referir a Rute se apegando a
Noemi é o mesmo termo usado em Gn 2.24 para o casamento de
Adão e Eva. Um homem e uma mulher devem deixar pai e mãe, e
devem apegar-se um ao outro. Rute está se unindo por meio da
aliança a Noemi. A escolha dela é literalmente o exato oposto da
escolha de Orfa. Orfa voltou para o seu povo e para seus deuses,
mas Rute volta para o Deus de Noemi e para seu povo. Ela está
deixando sua terra natal e sua família para trás para viajar para a
terra da promessa pela fé.

Incorporação em uma Nova Comunidade


Através de Noemi, Rute está se juntando a Israel. Ela está se
tornando israelita, por assim dizer. Ela está se unindo ao povo da
aliança e ao Deus da aliança. Nesse ponto, poderíamos dizer que
Rute sabe mais teologia, mesmo nesta fase de sua vida, do que
muitos cristãos americanos individualistas que pensam que alguém
pode ter um relacionamento com Deus separado de seu povo.
Escute ao discurso de Rute nos versos 16-17:
Não me instes para que te deixe e me obrigue a não seguir-te;
Porque, aonde quer que fores, irei eu e, onde quer que pousares, ali
pousarei eu; O teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus.
Onde quer que morreres, morrerei eu e aí serei sepultada; Faça-me
o Senhor o que bem lhe aprouver, se outra coisa que não seja a
morte me separar de ti.
A verdadeira conversão inclui incorporação ao povo de Deus.
Não se pode ter um sem o outro. Você não pode adorar e servir a
esse Deus sem se juntar ao seu povo.
Essa promessa a Noemi forma um vínculo de “até que a morte
nos separe”. Mas, na verdade, é ainda mais forte que isso. Ela diz
que nem a morte as separará. “Mesmo depois que você morrer,
Noemi, eu não vou deixar seu povo ou essa terra, ou parar de servir
esse Deus”. Nem mesmo a morte daria fim a esse relacionamento.
Por mais fortes que fossem os laços naturais de afeto entre Rute e a
sogra, por trás disso estava o amor dela pelo Deus de Israel.
A referência ao sepultamento também é importante. No
versículo 17, ela diz: “Onde quer que morreres, morrerei eu e aí
serei sepultada". Mesmo que Rute provavelmente sobreviva a
Noemi por muitos anos, ela não vai deixar aquele lugar. Ela está
abertamente rejeitando Moabe e Quemos por completo. Ela
permanecerá em Israel pelo resto da vida. Rute quer ser enterrada
lá, o que, é claro, nos remete a outros eventos funerários
importantes, como Gênesis 23, onde Abraão negocia algumas
propriedades dentro dos limites da terra da promessa para ter um
lugar para enterrar Sara. Rute quer ser enterrada na terra prometida
como Sara e os outros grandes patriarcas de Israel porque ela quer
descansar em Cristo.
Rute também faz um juramento que traz maldição sobre si Ela
afirma que nada, nem mesmo a morte, a separará da igreja, do povo
de Deus. Se ela quebrar essa promessa, ela sofrerá a ira de Deus.
Em outras palavras, “Que eu morra e ainda mais se abandonar esta
aliança”.
Há outros detalhes no discurso de Rute que precisam ser
considerados. Ela diz a Noemi: “onde quer que pousares, ali
pousarei eu”. A ironia aqui é que Noemi é sem-teto. Noemi não tem
um lugar para pousar. Assim, novamente, você vê que o desejo de
ser parte do povo da aliança supera tudo. Rute vai seguir Noemi,
não importa o que aconteça. Ela está contando o custo. Ela até
sofrerá para provar sua fé e seu amor. Ela tem confiança — muito
mais, de fato, do que Noemi tem neste ponto da história — de que
Deus providenciará para elas. Noemi parece ter abandonado toda a
esperança, mas Rute fala até de encontrar um lugar para pousar.
Ela está olhando adiante e, pela fé, acredita que Deus proverá de
uma maneira ou de outra. Assim, desta forma, ela é um modelo de
discípulo.
Até onde ela sabe neste momento, ela está aceitando a viuvez
e a falta de filhos, o que, novamente, era uma tragédia notável para
uma mulher naquela época. Ela ainda tem idade para se casar. Ela
poderia ter se casado e gerado filhos; ela não precisava fazer isso.
Noemi já indicou que não há um parente disponível — que ela
conheça — que possa cumprir o dever do levirato. Assim, parece
que Rute está aceitando ser viúva e sem filhos pelo resto da vida.

Juramentos e sacramentos na nova comunidade


Será útil traduzirmos este discurso para a nossa situação,
nosso relacionamento com Deus e com seu povo. Ao fazer isso,
temos que reconhecer que o juramento auto-imprecatório que Rute
faz para Noemi, seu Deus e seu povo é muito parecido com os
juramentos a que nos submetemos como povo de Deus. Todos nós
fizemos juramentos semelhantes. O batismo é um juramento
desses. Quando nos unimos à igreja por meio do batismo,
prometemos ser fiéis a Deus. Quando as águas do batismo são
derramadas sobre nós, estamos fazendo o compromisso: “Deus,
você pode me afogar nessas mesmas águas batismais que me
purificaram se eu não for fiel a você”. A ceia do Senhor nos fornece
um exemplo semelhante. Na mesa do Senhor, fazemos um
compromisso com Deus e com seu serviço. Comprometemo-nos a
viver em comunhão com o seu povo. Mas se formos infiéis a essa
promessa, “Deus, que meu corpo e meu sangue sejam dilacerados,
que eu possa ser dilacerado, da mesma maneira, se não for fiel às
obrigações desta aliança”. Desta forma, assim como Rute,
rompemos de maneira irrevogável com a idolatria; não há como
voltar atrás. Temos que continuar, dispostos a sofrer como Rute fez.
Como Rute, podemos não ser judeus segundo a carne, mas
nos tornamos verdadeiros judeus porque fomos enxertados na
linhagem da aliança pela graça através da fé. Portanto, devemos
perseverar na aliança pela graça por meio da fé. Rute é um modelo
de discipulado para nós. Ela prefere se apegar a Noemi, a sem-teto,
a voltar à idolatria e buscar bênçãos ali. Ela ama a Deus mais do
que qualquer outra coisa.
Rute 1.19-21

Então, ambas se foram, até que chegaram a Belém; sucedeu que,


ao chegarem ali, toda a cidade se comoveu por causa delas, e as
mulheres diziam: Não é esta Noemi? Porém ela lhes dizia: Não me
chameis Noemi; chamai-me Mara, porque grande amargura me tem
dado o Todo-Poderoso. Ditosa eu parti, porém o Senhor me fez
voltar pobre; por que, pois, me chamareis Noemi, visto que o Senhor
se manifestou contra mim e o Todo-Poderoso me tem afligido?

O retorno de Noemi
Há bastante comoção quando Noemi finalmente volta para
Belém. Ela esteve fora por quase dez anos, como descobrimos em
Rute 1.4. Você consegue imaginar a aparência dela voltando,
basicamente indigente, tendo perdido o marido, dois filhos e todo
seu sustento? As mulheres perguntam: “Não é esta Noemi?”.
Rumores correm por Belém e não há dúvida de que o que ela
passou afetou sua aparência. Quando elas a reconhecem, ela
insiste em mudar de nome. Ela diz: “Não me chameis Noemi;
chamai-me Mara”. Ou seja, não me chamem de Sra. Agradável, me
chamem de Sra. Amarga. De fato, devemos pensar nesses dois
nomes como antônimos. Se você perguntasse a um garoto hebreu
“qual o oposto de Noemi?”, ele diria: “Mara”.
Como devemos entender a resposta dela nos versículos 20-
21, onde ela descreve a situação? Que tipo de discurso é esse? O
discurso é cheio de autopiedade. Ele expressa uma teologia “ai de
mim”. Em vez de confessar seu pecado, Noemi reclama sobre como
Deus tem sido duro e tirânico ao lidar com ela. Ela se vê como
vítima da severa providência de Deus. Diferente de Rute, Noemi usa
o nome pacutal íntimo de Deus, Yahweh, mas é claro que ela está
pensando em Deus mais como El Shaddai. Ela fala do Todo-
Poderoso algumas vezes como se quisesse distanciar-se de Deus.
Ao chamá-lo de El Shaddai, o Todo-Poderoso, ela está dizendo que
Deus é esse valentão grande e poderoso, e ele está empurrando-a
por aí. Noemi não parece ter qualquer confiança na bondade, graça
e benevolência de Deus. Pelo contrário, é como se ela pensasse
que Deus está usando todo o seu poder contra ela. Ela se retrata
como uma vítima.
Alguns podem dizer: “Isso não é meio como Jó?”. Jó reclamou
contra Deus e, no entanto, Jó foi justificado. No fim do livro, Jó faz
discursos que parecem soar como se Deus o tivesse abandonado, e
ele parece ser justificado. Ou você pode observar o Saltério. Há
vários lugares em que o salmista clama: “Deus, por que me
abandonastes?”, “Por que estou abatido?” ou “Por que estás
distante de mim?”. Poderíamos interpretar as palavras de Noemi à
luz do livro de Jó ou do Saltério e talvez chegar a uma leitura mais
positiva? Isso é possível, e certamente os crentes às vezes se
sentem distantes de Deus, e certamente às vezes se sentem como
se Deus estivesse contra eles. Porém, a linguagem de Noemi vai
além do que encontramos no livro de Jó ou no Saltério, quando
consideramos os contextos mais amplos dessas passagens. Aqui
Noemi está amarga e ressentida. Ela parece ter perdido toda a fé na
bondade de Deus. Precisamos ser sensíveis à sua situação,
percebendo o que ela passou pela perda dos três homens de sua
vida. Pelo menos, ela reconhece que tudo isso é obra de Deus. Ela
entende que Deus é soberano e que foi ele quem levou seu marido
e seus dois filhos. Entretanto, ela dificilmente é um modelo de fé.
Ela se recusa a conformar-se à providência de Deus; ela se recusa
a acatar a vontade de Deus.
Dois elementos estão faltando nesta fase da vida de Noemi. O
primeiro é a confissão de pecados. Ela esteve em pecado, e deveria
ter confessado, e não vemos nenhuma indicação disso. O outro
elemento é que ela parece completamente desatenta à grande
bênção que Deus lhe deu ao enviar Rute com ela. Ela acha que
voltou de mãos vazias. Ela sugere que partiu cheia (“ditosa”) e
voltou sem absolutamente nada. Quando Rute insistiu em ir com
Noemi, e quando esta viu que aquela estava decidida a acompanhá-
la, Noemi parou de falar com Rute. Ela ignorou Rute. Noemi tirou
Rute da história neste momento e não está prestando atenção à
provisão divina de Rute na vida dela.
Ela não entende que houve um êxodo, que Deus a trouxe de
Moabe para a terra prometida com uma grande pilhagem. De fato,
ela fala sobre perder seu marido e seus dois filhos, mas
descobriremos no fim do livro que ela dirá que ter Rute é melhor que
ter sete filhos. Se este é o caso, então ela está mais cheia agora do
que quando partiu. Ela saiu com dois filhos e voltou com alguém que
é melhor que sete, o que significa que ela teve um lucro de cinco.

Rute 1.22

Assim, voltou Noemi da terra de Moabe, com Rute, sua nora, a


moabita; e chegaram a Belém no princípio da sega da cevada.

Então, por fim, no versículo 22 lemos um resumo de tudo o


que aconteceu até este ponto e uma prévia do que está por vir.
Primeiro, o texto diz que ela voltou “com” Rute. Noemi pode pensar
que voltou sozinha, mas o narrador nos lembra que ela tem Rute
consigo. Noemi pode achar que ela voltou vazia, mas o narrador
não vai nos deixar esquecer que ela não está sozinha. Na verdade,
há uma verdadeira bizarrice gramatical no texto. Isso ocorre na
maioria das traduções para o inglês.[9]
No versículo 22, diz-se que Rute voltou à terra da promessa.
O mesmo verbo é usado para Noemi, que já viveu na terra da
promessa, partiu, e então retornou. Como Rute pode retornar à terra
da promessa quando ela nunca esteve lá?
Por que está escrito dessa maneira? Rute, mesmo não sendo
judia por natureza, torna-se verdadeira judia por causa de sua fé. O
texto indica que Rute finalmente encontrou um lugar onde Deus
pode concender descanso. No versículo 9, Noemi estava mandando
Rute voltar a Moabe para achar descanso. Mas, no final do capítulo
1, descobrimos que Rute agora encontrará descanso na terra da
promessa. Ela está retornando porque, espiritualmente falando, é
seu verdadeiro lar. Esse é um retorno porque ela pertence a Yahweh
pela fé. Em um sentido, poderíamos dizer que a jornada de Abraão
para a terra da promessa foi um tipo de retorno mesmo que ele
nunca tenha estado lá — ele pertencia àquele lugar. Pode-se dizer o
mesmo de Rute.
O versículo 22 também fornece uma prévia do que está por
vir. No final do capítulo 1, o texto diz: “e chegaram a Belém no
princípio da sega da cevada”. O capítulo começa com uma fome em
Judá e Belém e termina com a colheita. Isto é um prenúncio do que
virá na história. Elas voltam para casa durante a colheita da cevada.
Isso teria acontecido por volta de abril e maio. Considere todas as
ressonâncias simbólicas que vêm com a primavera: uma nova
estação, uma nova vida, sair da escuridão e da morte do inverno
para um novo começo. É hora de alegrar-se. O capítulo termina com
um raio de esperança. O sol finalmente irrompe por entre as nuvens
escuras. Noemi pode não saber o que Deus está fazendo, mas
claramente algo novo está acontecendo.
3. Boaz, um Segundo Adão
A maneira como Deus reverte a sorte de Noemi e Rute é um
tipo, ou um símbolo, da forma como ele muda a sorte de Israel. As
ações de Boaz neste livro, como veremos, são tipológicas da obra
de Cristo como nosso resgatador. Substitua o primeiro Adão por
Elimeleque, Malom e Quiliom. Elimeleque engana sua noiva da
mesma maneira que Adão enganou Eva no Jardim. Substitua Boaz
por Jesus; ele é o segundo Adão, aquele que vem e toma o lugar do
primeiro Adão caído. Então, coloque a igreja no lugar de Rute e
Noemi. Essas duas personagens se fundem na história e se tornam
uma figura composta. Agora, você pode ver como o livro funciona
como uma história do evangelho. O primeiro Adão trouxe a morte.
Por meio do segundo Adão, por meio de Boaz, haverá restauração e
redenção. Deus restaurará Rute e Noemi à sua herança, seu lugar
na terra e sua participação no reino.

O resgatador
No versículo 1 do Capítulo 2, somos apresentados a Boaz.
Somos informados que ele é parente do marido de Noemi. A palavra
usada não é a palavra para resgatador (essa palavra aparecerá
mais tarde na história). Neste ponto, sabemos que ele é algum tipo
de parente, mas não temos certeza se ele é um candidato válido
para servir como resgatador. É como se o autor quisesse nos
provocar com possibilidades no início do Capítulo 2. E no fim do
capítulo, é revelado que Boaz é um parente próximo o bastante que
possivelmente pode servir como resgatador.
Também aprendemos sobre o grande patrimônio de Boaz. O
termo tem conotações de riqueza, poder e heroísmo. Veremos como
ele usa essa riqueza, status e privilégios em favor dos outros,
principalmente Rute.
Através da introdução de Boaz, o autor fornece um contraste
marcante com os homens fracos que morreram no capítulo 1. O
nome “Boaz” também se encontra em 1 Reis 7.21: é o nome dado a
uma das colunas no pórtico do templo de Salomão. Quando
Salomão construiu seu templo, ele levantou dois grandes pilares na
frente do templo. Um desses pilares foi chamado de Boaz,
significando força. A outra coluna foi chamada de Jaquim, um nome
que significa algo como “estabelecido”. Evidentemente, era uma
grande honra para Boaz ter uma das colunas na casa de Deus com
o seu nome.
Há várias implicações no significado do nome de Boaz. Uma
conexão encontra-se em Ap 3.12. São João nos traz sete cartas
para as sete igrejas. Jesus, escrevendo para a igreja da Filadélfia,
diz a eles que, se vencerem, se tornarão colunas na casa de Deus.
Isto é, se eles vencerem, se tornarão Boazes. Assim, se você quer
ser uma coluna na casa de Deus, não há ninguém melhor para
estudar e imitar que o próprio Boaz — exceto, é claro, a fundação
sobre a qual as colunas da casa de Deus se encontram, o próprio
Jesus Cristo. Se você quer saber que tipo de material Deus usa
para construir sua casa, olhe para Boaz. Nós veremos por que isso
é verdade à medida que a história se desenrola.
Se você observar a genealogia do evangelho de Mateus, verá
que Salmom gerou Boaz através de Raabe, e Boaz gerou Obede
por Rute, Obede gerou Jessé, e Jessé gerou o rei Davi. Boaz está
na linhagem messiânica; ele nos aponta para o Messias. O que
também é digno de nota é que a mãe de Boaz é uma das cinco
mulheres citadas na genealogia. Ela é Raabe, que também era uma
estrangeira incorporada a Israel por casamento, assim como Rute
será. E, se a mãe de Boaz era uma cananeia que foi enxertada em
Israel, ele saberia algo sobre as dificuldades de um estrangeiro
dentro da nação de israel, particularmente uma mulher estrangeira.
Essa é uma das razões pelas quais ele teria se inclinado a cuidar de
Rute. Ele saberia algo sobre a situação de estrangeiros e forasteiros
na comunidade de Israel. Ele estava ciente de quão importante era
cuidar do marginalizado e do estrangeiro. A lei do Antigo
Testamento enfatizava muito o cuidado do estrangeiro, do pobre e
das viúvas, e Boaz estaria intimamente familiarizado com essas
coisas porque sua própria mãe esteve nessa situação.
No capítulo 2, a história começa a caminhar para sua
resolução, e Deus começa a mostrar como ele proverá para essas
duas mulheres.

Rute 2.1-2

Tinha Noemi um parente de seu marido, senhor de muitos bens, da


família de Elimeleque, o qual se chamava Boaz. Rute, a moabita,
disse a Noemi: Deixa-me ir ao campo, e apanharei espigas atrás
daquele que mo favorecer. Ela lhe disse: Vai, minha filha!
O texto refere-se não apenas à abundância econômica de
Boaz, mas à sua grandeza geral em caráter e valor. Você poderia
até dizer que ele é um poderoso guerreiro.
No verso 2, Rute está tentando entrar no campo. O campo
específico é importante e traz um contraste com outro detalhe
anterior do livro. Quando Elimeleque deixa Israel, o texto diz que ele
vai para outro campo, embora a maioria das traduções não capte
essa nuance. Uma leitura literal do versículo no Capítulo 1 revela
que “Elimeleque levou sua família ao campo de Moabe”. A mesma
palavra aparece em Rute 1.1 e Rute 1.6, quando a palavra se refere
a uma família voltando do “campo” de Moabe. Quando Rute pede
permissão para entrar no campo de Boaz, o texto indica uma
reversão. Assim como Elimeleque partiu da presença de Deus — ou
do campo de Deus — para o campo de Moabe, agora Rute deixa
para trás o campo de Moabe e entra em um campo na terra
prometida. O campo traz toda a dignidade da terra prometida,
porque é o campo de Boaz.

A teologia da coleta
Antes de continuar esta seção, é crucial que o leitor entenda o
que está por trás das leis de recolhimento do Antigo Testamento.
Em Lv 19.9-10, lemos:
Quando também segares a messe da tua terra, o canto do teu campo não
segarás totalmente, nem as espigas caídas colherás da tua messe. Não
rebuscarás a tua vinha, nem colherás os bagos caídos da tua vinha; deixá-los-
ás ao pobre e ao estrangeiro. Eu sou o Senhor, vosso Deus.
O dono do campo passaria uma vez por ele, mas deixaria para
trás parte da colheita. Aquelas espigas caídas deveriam ser
deixadas no campo, tanto para os pobres quanto para os
estrangeiros, os quais poderiam colher e comer livremente.
Lv 23.22 enfatiza a mesma ideia:
Quando segardes a messe da vossa terra, não rebuscareis os
cantos do vosso campo, nem colhereis as espigas caídas da vossa
sega; para o pobre e para o estrangeiro as deixareis. Eu sou o
Senhor, vosso Deus.
Dt 24.19-22 oferece o básico da lei da colheita:
Quando, no teu campo, segares a messe e, nele, esqueceres um
feixe de espigas, não voltarás a tomá-lo; para o estrangeiro, para o
órfão e para a viúva será; para que o Senhor, teu Deus, te abençoe
em toda obra das tuas mãos. Quando sacudires a tua oliveira, não
voltarás a colher o fruto dos ramos; para o estrangeiro, para o órfão
e para a viúva será. Quando vindimares a tua vinha, não tornarás a
rebuscá-la; para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva será o
restante. Lembrar-te-ás de que foste escravo na terra do Egito; pelo
que te ordeno que faças isso.
Deus aponta para o passado de Israel como escravos e para
como ele cuidou deles. Os israelitas eram órfãos, destituídos, na
condição de uma víuva que não tem ninguém para cuidar dela ou
sustentá-la, e Deus os redimiu. Agora, por sua vez, Deus ordena
que Israel faça o mesmo pelos outros que estão em uma posição
semelhante: você deve imitar minha graça para com você,
demonstrando esse tipo de graça e misericórdia para os que estão
no mesmo tipo de situação, aqueles que são escravizados ou
oprimidos de alguma forma.
Essas leis de coleta são muito importantes porque nos dão um
modelo de caridade bíblica. A seguir, alguns pontos adicionais sobre
esse princípio.

A graça das Leis da Coleta


Embora as leis de coleta sejam mandamentos, elas são
voluntárias. Não havia punição civil, por exemplo, por não cumprir a
lei. A verdadeira caridade flui do coração, não é algo coagido. As
leis de coleta estão enraizadas nos relacionamentos, especialmente
nos relacionamentos familiares. Isso não é uma questão de
compulsão, como no caso do estado de bem-estar social, onde uma
burocracia impessoal doutrina as pessoas. As pessoas estão
entrando no seu campo e propriedade. Isso é bem diferente de usar
a força da espada para coletar dinheiro dos impostos com o objetivo
de distribuir aos pobres.
Em Mateus 25, Jesus fala sobre dar um copo de água fria em
seu nome. Escrever um cheque à Receita Federal, mesmo que
parte desse dinheiro seja para ajudar os pobres, não é o mesmo
que dar um copo de água fria ao necessitado em nome de Cristo.
Isso é pessoal; é cara-a-cara e está enraizado em um
relacionamento que flui do amor.
Também há um princípio de sabedoria aqui. Há um fator
discriminador embutido: os pobres que merecem são os que se
beneficiam do auxílio. Como? Pense no sistema de coleta. Há
diferentes tipos de pobres e diferentes razões por que as pessoas
acabam em situação de pobreza. Às vezes, é porque elas são
deficientes, mental ou fisicamente, e simplesmente não podem
trabalhar e os outros precisam se apresentar e ajudar com suas
necessidades. Certamente, essas são as pessoas que deveriam ser
objetos de nossa misericórdia. Outras pessoas são pobres
simplesmente porque são preguiçosas e não querem trabalhar. O
princípio da coleta ajuda aqueles que estão dispostos a trabalhar.
Afinal, ir ao campo pegar as espigas ou colher nos cantos do campo
seria um trabalho árduo. Somente aqueles que estavam aptos a
trabalhar e dispostos a trabalhar poderiam se beneficiar desse
sistema. O sistema de coleta não subsidia qualquer tipo de
preguiça, imoralidade ou cobiça.
O sistema de coleta ajudava apenas aqueles que estavam
dispostos a trabalhar. Essa é uma qualificação importante porque há
uma forma de caridade que se torna imoral. As Escrituras falam
disso quando afirmam que mesmo as misericórdias do ímpio são
cruéis. Há uma maneira de demonstrar compaixão que, na
realidade, é cruel porque é desumanizante. É por isso que a Bíblia
diz que quem não quer trabalhar, que também não coma; há uma
conexão entre trabalho e alimentação, entre o esforço e os frutos
desse esforço. Uma pessoa que não pode ter nenhum dinheiro ou
nenhuma propriedade em seu nome estaria em uma posição muito
precária, mas as leis de coleta lhe dava uma oportunidade de
trabalhar e comer. Se ela estivesse disposta a se esforçar e ir para o
campo, prover para si mesma, trabalhar e ganhar seu próprio
sustento, ela seria recompensada.
Os dois princípios da coleta são: 1) É um mandamento, mas
voluntário, pois é baseado no amor e enraizado nos
relacionamentos. E 2) é discriminatório. Dá aos pobres que
merecem.

Rute 2.3

Ela se foi, chegou ao campo e apanhava após os segadores; por casualidade


entrou na parte que pertencia a Boaz, o qual era da família de Elimeleque.

A ironia da história da redenção


Rute parte para colher, e acontece de ela passar pela parte do
campo que pertence a Boaz. Novamente, este é um daqueles
lugares em que os tradutores de inglês nos prestaram um pouco de
desserviço. A ESV diz que “aconteceu de ela” entrar na parte do
campo que pertencia a Boaz. O texto realmente diz algo como a
ARA, “por casualidade” ou até “caiu-lhe em sorte uma parte do
campo” de Boaz (ARC). Obviamente, Deus planejou tudo, até o
movimento das partículas subatômicas. Não há casualidade ou
sorte no mundo de Deus.
O escritor usa um dispositivo literário para mostrar ao leitor
que isso não foi algo que Rute fez, não foi algo que Boaz fez.
Humanamente falando, este foi um evento casual, o que significa
que — sem sombra de dúvida — foi a providência de Deus que o
fez acontecer. Não é humanamente orquestrado. Rute sai para
recolher e encontra uma longa fila de campos. Porém, muitos
israelitas não tinham consideração pela lei do jubileu e
provavelmente também não tinham consideração pelas leis da
coleta. Assim, haveria muitos campos em que ela não seria bem-
vinda, onde não haveria nada para colher ou onde ela correria
grande risco. Ela procurava um campo que era convidativo e “por
acaso” chegou à parte do campo que pertencia a Boaz.

Rute 2.4-7

Eis que Boaz veio de Belém e disse aos segadores: O Senhor seja
convosco! Responderam-lhe eles: O Senhor te abençoe! Depois,
perguntou Boaz ao servo encarregado dos segadores: De quem é
esta moça? Respondeu-lhe o servo: Esta é a moça moabita que veio
com Noemi da terra de Moabe. Disseme ela: Deixa-me rebuscar
espigas e ajuntá-las entre as gavelas após os segadores. Assim, ela
veio; desde pela manhã até agora está aqui, menos um pouco que
esteve na choça.
No versículo quatro, Boaz vem conferir os segadores em seu
campo e usa uma saudação formal para saudá-los. A saudação e a
resposta, “O Senhor seja convosco” e “o Senhor te abençoe”,
devem soar familiares a pessoas de tradições litúrgicas. Liturgias
ocidentais e orientais retiraram a saudação e resposta entre Boaz e
seus servos do livro de Rute e a tornaram parte de suas liturgias
como um tipo de saudação formalizada e estilizada no começo de
um culto.
A saudação aponta para o caráter de Boaz. Que tipo de
homem cumprimenta seus servos e trabalhadores dessa maneira?
Boaz está revelando como um homem piedoso trata aqueles que
estão sob sua autoridade. Aqueles entre nós em posições de
autoridade — seja como marido, pai ou chefe — devem aprender
com Boaz como a autoridade deve ser exercida. A humildade de
Boaz nos aponta para a de outro, especificamente em Filipenses 2,
onde Jesus, como o Deus-homem que, subsistindo em forma de
Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus, colocou-se a
serviço do seu povo. Boaz não usa sua autoridade para tirar
proveito ou explorar os outros. Pelo contrário, Boaz usa seu poder e
influência, riqueza e grandeza para servi-los. Nós veremos que ele
age da mesma forma com Rute. Ele usa toda essa autoridade para
servi-la.
Em Rute 2.5, descobrimos que Rute já chamou a atenção de
Boaz. Ele pergunta sobre ela: “Quem é essa jovem? A quem ela
pertence?". Poderíamos enfatizar demais o interesse de Boaz,
principalmente à luz do romance da história. Isso é amor à primeira
vista? Boaz vê Rute e imediatamente quer saber quem ela é.
Porém, algo mais está acontecendo aqui.
Primeiramente, lembre-se de que a coleta é uma forma de
caridade altamente pessoal. Muito provavelmente, Boaz conhecia
todos os coletores em seu campo porque a caridade bíblica é
pessoal. Ele conheceria as pessoas que estava ajudando. É natural,
portanto, que ele quisesse saber mais sobre a jovem colhendo em
seus campos.
Em segundo lugar, Boaz percebe que Rute está descansando
(v. 7). Nós descobrimos o que Rute tinha dito; este é o relatório do
segundo em comando no campo de Boaz. Ela tinha descansado um
pouco "no abrigo" (A21). É claramente enfatizado que Rute esteve
trabalhando muito. Isso parece ser o que chamou a atenção de
Boaz. Ele quer saber quem veio coletar em seu campo, para que
haja contato entre o benfeitor e quem é ajudado. Boaz descobre que
essa mulher voltou de Moabe com Noemi. Ela pediu permissão para
colher.

Bondade demonstrada aos estrangeiros


Nós vimos o caráter de Rute no capítulo 1, mas o capítulo 2
fornece mais informações. Ela é uma mulher e ela é uma gentia. Na
cultura de sua época, ela já tinha dois pontos contrários. Mas, ainda
assim, em vez de desesperar-se, ela decide colher, porque é o que
ela precisa fazer. Ela mostra que está se colocando em risco,
considerando tudo o que poderia acontecer com ela no campo. Mas,
ela confia em Deus. Ela não deixa que esses obstáculos a
atrapalhem. Ela trabalha duro e conta com Deus para cuidar dela.
Então Boaz disse a Rute: Escuta, minha filha; não vás colher em
outro campo, nem te afastes daqui, mas fica com as minhas servas.
Fica atenta para onde estão ceifando e vai atrás das moças. Estou
dando ordens aos moços para que não te incomodem. Quando
tiveres sede, vai até os potes e bebe do que os moços tiverem
tirado.
Em Rute 2.8-9, Boaz aborda Rute e deixa claro que ele quer
prover para ela. Ele quer que ela fique em sua parte do campo e
garante a segurança e proteção dela. É interessante ver como ele a
trata no versículo oito. Ele diz: “Você vai me escutar, não vai, minha
filha? Não vá colher em outro campo, nem saia daqui, mas fique
perto de minhas moças". Ele chama a filha. Alguns comentaristas
entendem isso como uma pista de que talvez exista uma grande
diferença de idade entre Boaz e Rute, indicando que ela é uma
mulher relativamente jovem, e ele é um homem mais velho, com
uma grande propriedade. É claro que, apesar do custo, Boaz
pretende sustentar Rute. Boaz está cumprindo seu dever de prover
para os pobres. Isso também envolve cumprir as obrigações
familiares que ele teria, já que Rute faz parte de sua família por
meio de Noemi, e Rute se identificou com Noemi.
Boaz está indo além do que você normalmente deveria fazer.
Ele garante a Rute que ela pode colher sem medo de ser atacada, o
que certamente seria um problema para uma mulher naquela época
e naquela cultura. Poderia haver algum risco envolvido, mas ele
promete protegê-la. Ele também lhe dá o direito de colher
permanentemente em seu campo e diz a ela para ficar com suas
jovens. Essas jovens seriam ajudantes ou auxiliares em todo o
processo de colheita. Assim, Rute está recebendo privilégios
especiais.
Boaz também permite que Rute tenha acesso à sua água. É
claro, isso teria sido uma grande bênção do ponto de vista prático.
Para os segadores, era difícil encontrar água. Isso a impediria de
fazer um trabalho cansativo.

A graça esbanjadora de Boaz


Boaz está claramente cobrindo Rute com graça e proteção.
Ele está fazendo promessas a ela; ele está indo além das
disposições comuns da lei da caridade para com pessoas nessa
situação e colocando-a na mesma categoria que seus empregados
domésticos. De fato, Rute até reconhece esses benefícios no
versículo 13, quando ela diz que não é digna de ser uma das servas
dele.
Evidentemente, ao fazer essas coisas, Boaz é uma figura do
rei e marido que Israel precisa, aquele que protegerá e proverá,
aquele que dará gratuitamente comida e água para o povo sob seus
cuidados. Ele está fazendo tudo para atender às necessidades de
Rute, mostrando o tipo de homem que é. Ele eleva a posição dos
humildes e dos párias. Ele inclui o estrangeiro em sua própria casa.
É importante ver esse desenvolvimento à luz da jornada de
Elimeleque buscando pão em Moabe, com o povo que
anteriormente se recusou a dar pão e água a Israel enquanto estes
passavam por seu país. Aqui, Boaz é a antítese de Moabe.

Rute 2.10-13

Então, ela, inclinando-se, rosto em terra, lhe disse: Como é que me


favoreces e fazes caso de mim, sendo eu estrangeira? Respondeu
Boaz e lhe disse: Bem me contaram tudo quanto fizeste a tua sogra,
depois da morte de teu marido, e como deixaste a teu pai, e a tua
mãe, e a terra onde nasceste e vieste para um povo que dantes não
conhecias. O Senhor retribua o teu feito, e seja cumprida a tua
recompensa do Senhor, Deus de Israel, sob cujas asas vieste
buscar refúgio. Disse ela: Tu me favoreces muito, senhor meu, pois
me consolaste e falaste ao coração de tua serva, não sendo eu nem
ainda como uma das tuas servas.
Como Rute responde a essa graça? No versículo 10, ela se
lança ao chão. O texto indica uma expressão física de reverência,
temor e gratidão por Boaz. Então, ela diz: “Como é que me
favoreces e fazes caso de mim, sendo eu estrangeira?”. Essa é uma
humildade incrível da parte dela. A pergunta dela é a pergunta que
todo cristão faz a Deus: “Por que me favoreces?”. A verdadeira
graça sempre assombra o arrependido. Nós sabemos que não
fizemos nada para ganhar o favor de Deus. Não fizemos nada para
merecer nossa posição. Não ganhamos nenhum dos dons que Deus
nos dá. A graça nos torna humildes. A graça é surpreendente,
porque sabemos que não a merecemos. Rute dá a única resposta
adequada à graça exibida por outro.
A humildade de Rute
Boaz responde à pergunta de Rute da mesma maneira que o
Senhor responde a perguntas semelhantes de nós. Boaz não diz
que está estendendo caridade e proteção a Rute porque ela é
fisicamente atraente, o que podemos esperar em uma versão
hollywoodiana da história. O que Boaz diz que percebeu foi a
lealdade pactual dela. A palavra usada para descrever as ações
dela é hesed — devoção e lealdade à aliança. Hesed, é claro, é um
tema central no livro de Rute. Boaz notou que Rute era
pactualmente leal. Isso é o que a torna tão atraente para ele.
Rute fica constrangida pela demonstração de graça. Ela está
maravilhada com a graça dele, poderíamos dizer. Ele, por sua vez,
diz que Rute é leal à aliança, e é por isso que está concedendo essa
graça a ela. Graça sobre graça. Também é interessante a linguagem
precisa que ele usa aqui. No verso 11, lemos:
Ao que lhe respondeu Boaz: Contaram-me tudo que tens feito pela
tua sogra, depois da morte de teu marido: como deixaste teu pai e
tua mãe, e a terra onde nasceste, e vieste para um povo que antes
não conhecias.
A linguagem de deixar pai e mãe, deixar a terra natal e ir a
uma terra estrangeira, é um eco muito claro de Gênesis 12. Em
Gênesis, Abraão recebe o mandamento de deixar para trás a terra
de seu pai e sua mãe, e partir para um lugar estranho, que é a terra
da promessa. Rute está sendo colocada no lugar de Abraão. Rute
tem a fé de Abraão.

Rute 2.14

Na hora da refeição, Boaz lhe disse: Aproxima-te, come do pão e molha o teu
pedaço no vinagre. Ela se sentou ao lado dos ceifeiros, e Boaz lhe ofereceu
grãos tostados. Ela comeu até ficar satisfeita, e ainda sobrou.

Uma mesa sacramental


Na hora da refeição Boaz convida Rute para vir e comer com
eles. Como a mulher gentia de Mateus 15, Rute provavelmente
ficaria feliz em comer as migalhas que caíam da mesa do mestre.
Mas, neste caso, novamente, quando há graça sobre a graça, ela é
convidada a comer à mesa.
O significado da ritualização é que a refeição é composta de
pão e vinho. A palavra usada aqui, traduzida como vinagre,
descreve vinho ácido. No verso anterior, vimos Boaz descrever Rute
em termos abraâmicos. Como Abraão, ela deixou a terra de seu pai
e mãe para ir a esse lugar estranho por causa da graça de Deus.
Boaz a alimenta com pão e vinho, aludindo à refeição que
Melquisedeque serviu a Abraão. Rute está se tornando uma nova
matriarca, uma nova Sara. Ela está cumprindo o papel de Abraão
nessa história. É claro, também poderíamos fazer conexões entre
Gênesis 14 e a ceia do Senhor. Nós nos refugiamos sob as asas do
Senhor, e parte disso significa ser alimentado à sua mesa, assim
como Rute é alimentada à mesa de Boaz. Temos comunhão com
Jesus, assim como ela tem com Boaz aqui. Além disso, isso coloca
o próprio Boaz no lugar de Melquisedeque. Ele é uma figura de rei-
sacerdote para ela. É assim que ele está agindo em favor e servindo
Rute.
Compartilhar uma refeição como essa tem muito significado.
Obviamente, houve muita hospitalidade e amor por parte de Boaz.
Mas, também é uma maneira de dizer: “Você faz parte da minha
casa”. Essa é uma ação altamente simbólica e pactual. Eles estão
tendo comunhão juntos e à mesa. Nós já vimos como ele a inclui
entre as servas. Agora ele está indo um passo além. Ele a está
incluindo em sua família. Boaz lhe dá tanto que ela está satisfeita e
até tem excesso. Ela tem algumas sobras que pode levar para
Noemi.
Novamente, tipologicamente, isso nos mostra o tipo de rei que
Davi será e, é claro, por fim, o tipo de rei que Cristo será. Essas
conexões precisam ser mantidas em nossas mentes. O primeiro
Adão é como Elimeleque, como o rei Saul no livro de Samuel. O
primeiro Adão não proveu para a noiva. Mas Boaz, que é um
precursor de Davi, e finalmente nos aponta para o segundo Adão,
Jesus Cristo, provê abundantemente para a mulher que se tornará
sua noiva.
Rute 2.15-16

Quando ela se levantou para recolher espigas, Boaz deu ordem aos
seus servos: Deixai que recolha até entre os feixes; não a impeçais.
Tirai também dos feixes algumas espigas e deixai-as cair, para que
ela as recolha, e não a impeçais.
Boaz toma cuidado especial para garantir que Rute tenha
sucesso na coleta. Normalmente, todo o grão seria empacotado
após a colheita, mas Boaz quer garantir que restem alguns por lá,
fáceis de serem colhidos. Assim como ela obteve comida de sua
mesa, agora ela terá grãos de sua colheita. Neste ponto, Rute não é
mais uma coletora. Ela não é mais uma forasteira. Boaz a incluiu na
família da aliança; ele está dando a ela de seu suprimento. Boaz vai
muito além das exigências de caridade estabelecidas pela Torá. Ele
está demonstrando a ela amor e graça incríveis.

Rute 2.17-20

Assim ela recolheu espigas naquele campo até a tarde. Depois,


debulhou o que havia recolhido, e havia quase um efa de cevada.
Então, ela carregou a cevada e foi à cidade. E sua sogra viu o que
ela havia recolhido. Rute pegou o que havia sobrado da sua refeição
e ofereceu a ela. Então sua sogra perguntou: Onde colheste hoje?
Onde trabalhaste? Bendito seja aquele que se importou contigo! E
ela relatou à sua sogra com quem havia trabalhado: O nome do
homem com quem trabalhei hoje é Boaz. E Noemi disse à sua nora:
Seja ele abençoado pelo S , que não deixou de mostrar
benevolência nem para com os vivos nem para com os mortos.
Noemi ainda lhe disse: Esse homem é parente nosso, um dos
nossos resgatadores.
Um efa é o equivalente a quase 36 litros. Com essa
quantidade de comida e grão, Noemi pôde perceber que Rute
recebeu tratamento especial. Rute recebeu o suficiente para
alimentá-las por várias semanas. Rute dá a Noemi o pão restante de
sua refeição com Boaz. Fica evidente que Boaz está provendo de
sua mesa e seu campo para Rute e Noemi. Agora, Noemi
compartilha dessa bênção.
Noemi abençoa o homem que concedeu esse favor a Rute.
Em Deuteronômio 24, aqueles que demonstram graça aos
estrangeiros são abençoados. Rute identifica esse homem como
Boaz. De fato, os versos 19-22 são um quiasmo, e no meio desse
quiasmo está o próprio Boaz. O texto fornece uma estrutura A-B-A'
com Boaz bem no centro para mostrar como ele agiu em favor de
Rute e Noemi. Mas, em última análise, por trás de tudo, está a
bondade do Senhor.
O versículo 20 é um pouco ambíguo porque há uma disputa
entre os tradutores sobre o significado da frase: “sua benevolência”.
A palavra benevolência, hesed, é usada para descrever uma forte
lealdade pactual. Mas de quem é essa benevolência? É a
benevolência do Senhor ou a benevolência de Boaz? A resposta
para esta pergunta é a benevolência do Senhor através de Boaz. Na
verdade, essa interpretação fica clara na A21, que diz: “Seja ele
abençoado pelo S ”. Os tradutores acreditam que é uma
referência ao próprio Senhor. O Senhor não abandonou sua
benevolência para com os vivos e os mortos. Mas como o Senhor
mostrou essa benevolência a Rute e Noemi? Ele mostra
benevolência ao conceder Boaz, uma figura de rei-sacerdote que
demonstrará a fidelidade à aliança e o hesed que elas precisam.
O versículo 20 é muito diferente das declarações anteriores de
Noemi. A declaração dela representa uma confissão de fé em nítido
contraste com suas queixas anteriores no Capítulo 1, onde Noemi
refere-se ao Senhor a afligindo. Ela nem o chamou de “Yahweh”. Ela
falou de El Shaddai, o Todo-Poderoso. Agora, ela fala da hesed do
Senhor. “O Senhor está me mostrando esse vigoroso favor pactual.”
Ela mudou de tom porque o Senhor a ganhou para si por meio da
providência de Boaz. Ela encontra alegria no Senhor mais uma vez.
Ela tem certeza do favor pactual de Deus para com ela. É seguro
concluir que Noemi pode ter passado por um lapso de fé temporário
ou, pelo menos, um lapso de segurança da salvação. Mas agora ela
voltou. Ela não é mais amarga. Ela passou por uma crise de morte e
agora, em certo sentido, ressuscitou. Ela tem a verdadeira fé mais
uma vez.

O Goel
Rute 2.20 conclui identificando Boaz como um potencial
resgatador. Noemi diz a Rute: “Esse homem é nosso parente
chegado e um dentre os nossos resgatadores”. Ele é um parente
próximo. Na verdade, a palavra que é usada no texto para “nosso
parente chegado” é goel, ou resgatador.
Um resgatador era um parente que fazia por você o que você
não pode fazer por conta própria. Ele vem resgatá-lo. Como
consequência, ele tinha toda uma rede de deveres obrigações em
relação à pessoa em necessidade. Por exemplo, se você fosse
assassinado, era responsabilidade do resgatador rastrear o
assassino e vingar seu sangue. Ele executaria vingança contra
alguém que ilegalmente tirou sua vida. Se você fosse vendido como
escravo, ele o compraria de volta. O conceito de redenção deriva-se
desse vocabulário.
Se você tivesse que vender sua herança, ele resgataria sua
herança por você. Se o marido de uma mulher morresse sem deixar
um herdeiro masculino, o resgatador poderia cumprir a obrigação do
levirato e ele agiria como um marido substituto para suscitar um
herdeiro homem e substituir o falecido. Claro, isso acontecia porque
ter um filho na Antiga Aliança era crucial, visto quie toda a razão de
Israel existir era trazer a semente prometida da mulher, o filho da
aliança, ao mundo.
Noemi fala da benevolência de Deus para com os vivos e os
mortos. Como é essa benevolência para com os mortos? Ela está
pensando em seu marido e filhos falecidos porque, com a morte dos
três no Capítulo 1, sua linhagem e herança familiares foram
prejudicadas. Mas, se há alguém que pode cumprir a lei do levirato
e ser um marido de levirato, também é possível que um novo filho
para substituir Elimeleque, Malom e Quiliom seja gerado.
Em última análise, todos esses aspectos do resgatador
apontam para a obra de Jesus por nós. O primeiro Adão nos deixou
viúvos, desperdiçou nossa herança e deixou de suscitar a semente
da mulher. Ele nos escravizou ao pecado. Como o segundo Adão,
Jesus produz um descendente frutífero, recupera nossa herança,
resgata-nos da escravidão e vinga aqueles que procuram nos matar.
Em todas essas maneiras, Jesus é nosso verdadeiro levir e nosso
goel, nosso resgatador.

Rute 2.21

Continuou Rute, a moabita: Também ainda me disse: Com os meus


servos ficarás, até que acabem toda a sega que tenho.
Rute transmite as instruções especiais de Boaz para Noemi.
Ela ainda é chamada de Rute, a moabita. Nós somos lembrados do
fato de que ela era uma forasteira que foi incluída. Ela foi enxertada
em Israel. Por causa de sua fé e da graça de Boaz, ela está se
tornando israelita.

Rute 2.22

Disse Noemi a sua nora, Rute: Bom será, filha minha, que saias com as servas
dele, para que, noutro campo, não te molestem.
Boaz mostrou a Rute que ele proverá. As instruções de Noemi
em Rute 2.22 não são apenas práticas, mas buscam lembrar Rute
da opção mais segura e produtiva diante dela. Se Rute pensasse:
“Será que estou abusando das boas-vindas? Talvez eu deva ir a
outra parte do campo", ela acabaria insultando Boaz e mostrando
que não confia nele. Novamente, há uma lição para nós também.
Devemos confiar em Cristo, o Boaz maior, para prover nosso pão
diário. Não devemos procurar em outros campos, por assim dizer.
Depois de tudo o que Cristo fez por nós, como ousaríamos ir a outro
lugar? Precisamos continuar buscando nele; precisamos
permanecer em seu campo trabalhando e confiando nele.

Rute 2.23

Assim, passou ela à companhia das servas de Boaz, para colher, até
que a sega da cevada e do trigo se acabou; e ficou com a sua sogra.
Esse versículo é um sumário. Assim como o Capítulo 1
terminou com um resumo e apontou para o que estava por vir,
encontramos a mesma coisa no versículo final do Capítulo 2.
Era tempo de colheita, o que durava cerca de dois meses.
Alguns dos problemas nesta história foram resolvidos. Lembre-se:
havia vários problemas no Capítulo 1. A estrutura básica deste livro
é carência, reparação de carência ou necessidade, necessidade
satisfeita. Algumas dessas necessidades já foram atendidas. Elas
podiam comer; elas podem sobreviver. Agora, elas têm uma colheita
completa para satisfazer suas necessidades.
Porém, também há algo que ainda não foi tratado, e o leitor
pode ver essa questão surgir no final desta passagem, quando se
diz que "ela morava com a sogra". Embora Rute tenha prometido
sempre pousar onde Noemi pousasse, a declaração no versículo
lembra o leitor que Rute ainda não foi totalmente incorporada à casa
de outro homem. Ela ainda vive com a sogra, o que significa que
ainda precisa de um marido. Ela ainda precisa de uma semente
para ser herdeira. Assim, embora algumas questões tenham sido
resolvidas neste ponto, ainda há a questão do marido para Rute. É
claro, neste momento, parece claro que Boaz é o “escolhido”, mas
como isso acontecerá? É o que veremos nos próximos capítulos.
4. Um pedido de casamento simbólico
Rute 3.1-10

Disse-lhe Noemi, sua sogra: Minha filha, não hei de eu buscar-te um


lar, para que sejas feliz? Ora, pois, não é Boaz, na companhia de
cujas servas estiveste, um dos nossos parentes? Eis que esta noite
alimpará a cevada na eira. Banha-te, e unge-te, e põe os teus
melhores vestidos, e desce à eira; porém não te dês a conhecer ao
homem, até que tenha acabado de comer e beber. Quando ele
repousar, notarás o lugar em que se deita; então, chegarás, e lhe
descobrirás os pés, e te deitarás; ele te dirá o que deves fazer.
Respondeu-lhe Rute: Tudo quanto me disseres farei. Então, foi para
a eira e fez conforme tudo quanto sua sogra lhe havia ordenado.
Havendo, pois, Boaz comido e bebido e estando já de coração um
tanto alegre, veio deitar-se ao pé de um monte de cereais; então,
chegou ela de mansinho, e lhe descobriu os pés, e se deitou.
Sucedeu que, pela meia-noite, assustando-se o homem, sentou-se;
e eis que uma mulher estava deitada a seus pés. Disse ele: Quem
és tu? Ela respondeu: Sou Rute, tua serva; estende a tua capa
sobre a tua serva, porque tu és resgatador. Disse ele: Bendita sejas
tu do Senhor, minha filha; melhor fizeste a tua última benevolência
que a primeira, pois não foste após jovens, quer pobres, quer ricos.

É importante lembrar como Rute 2 termina. Rute esteve


recolhendo no campo de Boaz, que tomou medidas especiais para
protegê-la, prover para ela e incluí-la até em sua família. Quando
Rute chega em casa, Noemi pode ver o quanto Rute coletou.
Alguém em Belém demonstrou grande favor a ela. Ela voltou com
mais do que uma pessoa comum. O Senhor levou alguém a tratá-la
com grande benevolência. Quando Noemi descobre que foi Boaz,
um parente próximo e, portanto, um possível candidato a
desempenhar o papel de goel e cumprir a lei do levirato, ela começa
a desenvolver um plano. No fim da estação da colheita, ela criou
uma estratégia para Rute sutilmente aproximar-se de Boaz e pedir
que ele aja como resgatador.
Proposta indecente ou recurso legal?
A questão que tipicamente surge se relaciona com Rute indo
até Boaz à noite. Isso foi alguma proposta indecente ou um recurso
legal? O tema deste capítulo, assim como do livro todo, é buscar
segurança. Este é o descanso holístico que Deus promete ao seu
povo, que, nesse caso, envolveria um marido para garantir a
segurança, um lar e um herdeiro. Antes, Noemi queria descanso
para Rute e, por isso, tentou mandá-la de volta para Moabe. Ela
disse: “Talvez você encontre descanso ali”. A realidade é que Noemi
queria um descanso falso para Rute. Em última análise, foi um ato
de infidelidade da parte de Noemi sequer cogitar achar descanso na
terra idólatra de Quemos. Agora descobrimos que ela pensa que um
homem piedoso como Boaz poderia dar descanso a Rute.
Novamente, devemos ver esse desenvolvimento tipologicamente: é
uma figura do descanso e da segurança que Deus fornece ao seu
povo.
O que exatamente Noemi manda Rute fazer? No verso 2,
Noemi sabe que Boaz estará fazendo hora-extra naquela noite.
Aparentemente, eles se revezavam na eira da comunidade e,
eventualmente, seria a vez de Boaz. Quando eles debulhavam a
cevada, eles também participavam de uma celebração festival:
comer e beber. A eira, no paganismo, era um lugar de imoralidade
sexual e estava ligado à religião cananeia. À luz de algumas
tradições pagãs, alguns comentaristas tentam lançar uma luz
desfavorável sobre a celebração de Rute. Mas, é importante notar
que o templo é construído em uma eira. Como o evento em Rute
ocorre em uma eira, talvez tenhamos uma razão ainda mais forte
para explicar por que uma das grandes colunas do templo de
Salomão era chamada de Boaz. Afinal, um dos maiores atos de
piedade de Boaz ocorreu na eira.

Um pedido de casamento simbólico


Em Rute 3.3-4, Noemi manda Rute lavar-se e vestir-se como
uma noiva. As ações são: banhar, ungir e vestir. Por toda a
Escritura, essas três ações representam os passos da noiva
enquanto ela se prepara para encontrar seu marido. Rute deve ir ao
lugar onde Boaz está deitado para dormir e descobrir seus pés.
Boaz saberá o que fazer a seguir.
No versículo 5, Rute promete fazer o que Noemi ordenar.
Noemi quer que Rute vá até Boaz e gentilmente o lembre de que ele
é um candidato a resgatador. Assim, ele pode tomar Rute como sua
noiva e suscitar um substituto para Elimeleque.
Um dos argumentos mais fortes para Rute estar agindo
perversamente é suposição de que o vocabulário indica que Rute
está descobrindo as pernas de Boaz. Mas, isso não parece fluir da
lógica da narrativa até agora. Toda a história aponta para Boaz
como resgatador. E, se Rute está agindo imoralmente, suas ações
vão contra o propósito do livro de defender a realeza de Davi e
justificar seu direito a reinar. Se este fosse um ato imoral, o livro de
Rute teria sido suprimido em vez de publicado por aqueles que
defendiam o reinado de Davi.
Se Rute está fazendo algo imoral, então o caráter de Boaz é
profundamente falho, porque ele seguiu com a proposta de Rute. O
ato de Rute é um símbolo de seu pedido. É um tipo de pedido de
casamento. Mas, é um tipo especial de pedido de casamento, pois é
para um casamento de levirato. Rute está pedindo que Boaz atue
como resgatador em seu nome e, é claro, também no nome de
Noemi.
Novamente, tudo isso é muito estranho para nós e certamente
não deve ser entendido como algum tipo de modelo para as jovens
de nosso tempo seguirem na busca de um marido. No pedido de
Rute para que Boaz contraia um casamento de levirato, podemos
ver uma conexão com Tamar. Assim como Tamar foi justificada,
Rute também será justificada. A grande diferença, é claro, é que
Tamar vestiu-se de prostituta, enquanto Rute vestiu-se de noiva. O
princípio em cada história é o mesmo.
Enquanto Noemi pensava que Boaz era obviamente um bom
candidato para ser o resgatador, Boaz é tão escrupulosamente
honesto e um homem tão fiel que ele não procede de forma
inadequada. Boaz está ciente de toda a situação e talvez saiba de
algo que Noemi não sabe, a saber, que há um parente mais
próximo. Esse parente mais próximo deve primeiro ter a
oportunidade de desempenhar essas responsabilidades em relação
a Rute.
Em Rute 3.6-7, vemos Rute fazendo exatamente o que Noemi
a mandou fazer. Boaz está celebrando com seus servos e depois se
acomoda para uma boa noite de sono. Rute vai até ele. Ela
descobre os pés dele e permanece ali. Em alguns casos, essa
linguagem para pés era um eufemismo para as partes íntimas do
homem, mas, neste caso, é um gesto simbólico. Ela descobre os
pés dele e espera que ele acorde. Ele acorda assustado no meio da
noite e percebe que há uma mulher presente. Assim, ele diz: “Quem
é você?”. Rute responde: “Eu sou Rute, sua serva”. Ela se identifica
de uma maneira humilde e dá instruções a Boaz. Ela pede um favor:
“Estende a tua capa sobre a tua serva, porque tu és resgatador”.
Esse vocabulário nos indica o que está acontecendo. Alguns
comentaristas assumem que Rute está resolvendo o assunto com
as próprias mãos. Afinal, as instruções de Noemi no início do
capítulo são para Rute fazer essas coisas, e Boaz lhe dirá o que
fazer. Mas, aqui, é Rute quem diz a Boaz o que fazer. O narrador
resolve questão essa em Rute 3.6, quando afirma que Rute fez tudo
o que sua sogra lhe ordenou. Em outras palavras, ela segue o plano
perfeitamente, assim como Noemi a instruiu. As instruções de
Noemi, conforme detalhadas na passagem, não são abrangentes,
mas Rute tinha conhecimento completo do pedido que estava
fazendo.
A linguagem em Rute 3.9 é crucial. É importante lembrar que
o pedido de Rute a Boaz ecoa a oração de Boaz ao Senhor em Rute
2. Rute está dando a Boaz a oportunidade de responder sua própria
oração. Boaz tinha orado pelo bem-estar dela, e agora ele terá a
oportunidade de cumprir essa oração.

O encontro e um pedido de casamento


Rute pede que Boaz estenda sua capa sobre ela. Esse é um
pedido de casamento de levirato. Isso é linguagem conjugal,
indicando que eles estariam unidos. Agora, eles estão unidos por
este tecido único. Compartilhar uma peça de roupa é um sinal do
marido e da mulher tornando-se uma só carne. Rute está
convidando Boaz a desempenhar essas responsabilidades de
levirato, o que inclui o casamento.[10]

A base legal para o pedido de Rute


O pedido que Rute faz — esse convite de casamento — é
inadequado? Este não é um processo típico, mas existe uma base
legal para o pedido nas instituições do levirato e do goel. Ela está
agindo de acordo com os princípios bíblicos que eram aplicados em
seu tempo. Ela tem o direito de fazer o pedido, porque as
instituições do levirato e do goel estão em vigor. Ela está
simplesmente pedindo a Boaz que faça o que a lei o chamou a
fazer. Ela não está, como alguns sugeriram, repetindo o pecado das
mulheres moabitas: quando os homens israelitas deixaram a
escravidão do Egito, as mulheres moabitas os seduziram para
cometer o pecado sexual. Este não é o caso em Rute. De fato, o
pedido de Rute é uma reversão da história dos homens israelitas
cometendo imoralidade sexual com as moabitas. O que Rute faz é
obviamente virtuoso, e Boaz chama atenção para esse aspecto de
seus atos em Rute 3.10-13:
Bendita sejas tu do Senhor, minha filha; melhor fizeste a tua última
benevolência que a primeira, pois não foste após jovens, quer
pobres, quer ricos. Agora, pois, minha filha, não tenhas receio; tudo
quanto disseste eu te farei, pois toda a cidade do meu povo sabe
que és mulher virtuosa. Ora, é muito verdade que eu sou resgatador;
mas ainda outro resgatador há mais chegado do que eu. Fica-te aqui
esta noite, e será que, pela manhã, se ele te quiser resgatar, bem
está, que te resgate; Porém, se não lhe apraz resgatar-te, eu o farei,
tão certo como vive o Senhor; deita-te aqui até à manhã.
Boaz entendeu corretamente o pedido de Rute. Nós já
tínhamos sido apresentados a Boaz como um homem virtuoso e
temente a Deus. Ele não acorda com essa mulher aos seus pés e
diz: "Sai de perto de mim". Ele entende o ato simbólico porque,
como Noemi e, agora, como Rute, ele conhece a lei de Deus e as
responsabilidades que recairiam sobre um parente próximo. De fato,
é por isso que ele identifica o ato de Rute como um ato de hesed.
Toda essa cena não é sobre eros, mas sobre hesed. O foco da
história está na fidelidade pactual e na benevolência pactual.
Boaz diz que este é um ato maior de bondade do que o
primeiro ato de bondade dela. O primeiro ato de bondade foi voltar
da terra de Moabe para Judá com Noemi, deixando sua terra natal e
os falsos deuses para trás a fim de tornar-se parte do povo de Israel
com ela. Mas, agora, esse segundo ato de bondade é ainda maior.
Boaz entende que esta é uma proposta de casamento com o
resgatador. Ele sabe que Rute poderia ter procurado um cônjuge de
sua escolha. Ela poderia ter procurado um homem mais próximo da
idade dela. Em vez disso, ela procurou casar-se com Boaz porque,
assim, e somente assim, até onde ela sabe, haveria um casamento
de levirato na qual uma criança seria suscitada para herdar a
propriedade de Noemi e preservar o nome de Elimeleque. Noemi
precisa de um novo Adão; Rute pede que Boaz seja esse novo
Adão. Ela está agindo não por interesse próprio, mas em favor de
Noemi. Qualquer que seja o aspecto romântico envolvido nisso, tudo
se trata principalmente de Rute agindo em favor de Noemi para
assegurar-lhe um herdeiro.
Além disso, Boaz reconhece que Rute não era obrigada a
procurar um casamento de levirato. De acordo com a instituição de
levirato, se houvesse outro irmão no lar, haveria obrigação ali. Mas,
como Elimeleque não tinha irmãos, e não havia outros filhos na
família para Rute se casar, ela não precisa se casar por levirato. Ela
poderia buscar outros homens da comunidade. Contudo,
novamente, porque ela está agindo em hesed e se ligou a Noemi,
ela vai se casar dentro da família para que o primeiro filho do sexo
masculino seja aquele que tomará o lugar de Elimeleque. E, claro,
tudo isso está de acordo com o juramento que ela fez em Rute 1.

Rute 3.11-12

Agora, pois, minha filha, não tenhas receio; tudo quanto disseste eu
te farei, pois toda a cidade do meu povo sabe que és mulher
virtuosa. Ora, é muito verdade que eu sou resgatador; mas ainda
outro resgatador há mais chegado do que eu.
Um resgatador mais chegado
Nos versículos 11 e 12, Boaz promete fazer o que Rute
solicitou e louva sua virtude. A excelência de Rute e sua grande
virtude são bem conhecidas na comunidade. O vocabulário usado
para louvar Rute é o mesmo tipo encontrado em Provérbios 31, em
que Salomão louva a esposa virtuosa. Boaz elogia Rute de maneira
semelhante. Mas, há uma reviravolta na trama. Tudo parece estar
seguindo o planejado, e agora as coisas mudam bastante. Há uma
falha no plano de Noemi. No versículo 12, descobrimos que há um
parente mais próximo que Boaz, alguém tem a prioridade em
assumir o honrado papel de goel. Isso é parte do que torna Rute
uma história tão bonita. A forma como a história é elaborada a cada
passo cria suspense e introduz várias surpresas.
O fato de que há um resgatador mais próximo explica outros
detalhes da história. A existência de um parente mais chegado
explicaria por que Boaz ainda não agiu com iniciativa ao pedir a mão
de Rute em casamento. Noemi e Rute poderiam estar se
perguntando por que Boaz não agiu para colocar as coisas em
andamento. Por que a iniciativa deve estar sobre Rute? Boaz é um
homem honrado; ele não vai agir de forma errônea. Boaz vai
esperar e ver o que o outro homem, o parente mais próximo, faz.
Boaz pode querer desesperadamente se casar com Rute, mas ele
se contém porque, de acordo com a lei de Deus, há uma ordem a
ser seguida.
Também podemos questionar se Noemi sabia sobre o parente
mais próximo. Boaz é identificado como um parente próximo, mas
Noemi pode ter deixado de seguir os registros familiares durante
todos os anos em que esteve em Moabe. Quando ela volta, é óbvio
que ela não está completamente informada sobre Boaz. Assim, é
provável que ela saiba desse parente mais próximo. Também
devemos observar que, se Boaz fosse o parente mais próximo, ele
poderia ter consumado o casamento naquela mesma noite. É isso
que Rute está pedindo para ele fazer. Quando ela se senta aos pés
dele e propõe um casamento, não há necessidade de um longo
período de noivado ou de uma grande cerimônia de casamento. O
casamento poderia ser consumado ali, em privado. Isso nos ajuda a
entender as ações de Rute.
Quando Rute vai até ele, ela está pedindo que ele se case
com ela naquela noite e consuma o casamento. Boaz não está
pronto para fazer isso porque há um parente mais próximo que tem
prioridade. Está claro que Boaz quer resgatar Rute, mas obedecer à
lei é ainda mais importante para ele. Ele pratica a autodisciplina. Ele
coloca a obediência acima de seus interesses românticos.

Rute 3.13

Fica-te aqui esta noite, e será que, pela manhã, se ele te quiser
resgatar, bem está, que te resgate; porém, se não lhe apraz
resgatar-te, eu o farei, tão certo como vive o Senhor; Deita-te aqui
até à manhã.

O que vemos a seguir? No versículo 13, Boaz promete agir


em favor de Rute. Ele cuidará para que a obrigação de goel seja
cumprida. Ele promete dar preferência ao parente mais próximo. Se
o parente mais chegado agir, Rute terá o cuidado que precisa e
acabará com um parente mais próximo que a conduzirá ao
descanso do qual Noemi falou no início do capítulo. As coisas serão
restauradas, mas através deste outro homem. Embora exista uma
expectativa de que Boaz se case com Rute, ela recebe garantia de
que, de uma forma ou de outra, terá segurança. Boaz é uma
imagem verdadeira e clara da masculinidade piedosa. Quando a
oportunidade chega, Boaz procura ávida e agressivamente cumprir
suas responsabilidades. Ele se propõe a fazer o que precisa ser
feito e promete que o fará.
De um ponto de vista literário, uma das coisas mais
interessantes sobre esse aspecto da história é que não somos
informados sobre as emoções de Rute e Boaz neste momento. Se
um escritor moderno escrevesse a história de Rute, provavelmente
prosseguira por páginas falando sobre cada pequeno detalhe de
seus sentimentos. Não é que esses detalhes sejam desnecessários;
eles certamente têm um lugar. Mas a Bíblia raramente nos diz o que
seus personagens estão pensando e sentindo. Se há algum
momento em que gostaríamos de saber, seria aqui.
A Bíblia deixa esses detalhes à nossa imaginação santificada.
Essas são lacunas na história que nossa imaginação é livre para
preencher. Além disso, o narrador não quer que nos concentremos
no romance, embora seja um subtexto da história. Não é explícito,
mas você pode detectar algumas sugestões de que Boaz e Rute se
gostam. Contudo, o livro de Rute é sobre hesed. Na Bíblia, a retidão
satisfaz as obrigações pactuais. Quando Boaz fala da virtude de
Rute, é isso que ele tem em mente. Ela é virtuosa porque cumpre
suas obrigações relacionais. Suas obrigações neste caso são para
com Noemi e, por isso, ela vai fazer o que puder para agir em favor
de Noemi. Boaz, por sua vez, vai agir em favor dela (e também em
favor de Noemi) para garantir que elas encontrem a segurança de
que precisam. Embora haja conotações românticas, a lealdade à
aliança é central no livro de Rute.

Rute 3.14-15

Ficou-se, pois, deitada a seus pés até pela manhã e levantou-se


antes que pudessem conhecer um ao outro; porque ele disse: Não
se saiba que veio mulher à eira. Disse mais: Dá-me o manto que
tens sobre ti e segura-o. Ela o segurou, ele o encheu com seis
medidas de cevada e lho pôs às costas; então, entrou ela na cidade.

No versículo 14, Boaz envia Rute de volta para Noemi cedo de


manhã para proteger a integridade e reputação dela. Ele não quer
provocar fofocas na cidade. Eles não fizeram nada de errado, mas
Boaz quer toma o cuidado de evitar a aparência do mal.

Noite e dia em Rute


O tempo em que o ponto decisivo do livro de Rute acontece
dirige nossa atenção para um tema bíblico interessante relacionado
a toda a história da redenção. Nós já vimos como o livro é uma
história de dois Adãos. O primeiro Adão (Elimeleque e seus dois
filhos) parte da Terra Prometida em um exílio autoimposto. Eles são
amaldiçoados e morrem, deixando a noiva abandonada. O segundo
Adão (Boaz) chega como resgatador.
Com essa tipologia em mente, o momento decisivo do livro de
Rute acontece à noite. De fato, somos informados de que é meia-
noite. A noiva é escolhida à noite.
Mas, à medida que a história se desenrola, veremos que o
casamento não é consumado até ser dia. O texto claramente chama
atenção para o horário dos eventos.
O texto revela uma progressão. No versículo 2, somos
informados de que é noite. No versículo 8, lemos que é meia-noite,
e o versículo 13 menciona — duas vezes — que é manhã. No
versículo 18, Noemi refere-se diretamente àquele mesmo dia,
especificamente o horário em que há sol, como o tempo em que o
assunto seria resolvido.
Todo o período da Antiga Aliança acontece durante a noite. É
quando Deus está preparando seu povo para a redenção. A noiva,
Israel, é escolhida durante esse período, mas o casamento não
acontece até o romper do dia. Quando a luz do dia irrompe? A vinda
de Jesus é o alvorecer de um novo dia e o começo do período de
luz na história. Quando Jesus chega, ele é a luz do mundo. Agora o
sol está nascendo, de acordo com a profecia de Malaquias. João 1
fala da luz que agora entrou no mundo. A Antiga Aliança foi um
período de trevas.
Podemos ver esse tema em João 3, onde Nicodemos, um
grande professor da Antiga Aliança, vem a Jesus à noite porque ele
ainda está no escuro. Ele representa os judeus da Antiga Aliança
que não conseguem compreender a luz que agora chegou. E Jesus
fala desse novo nascimento, dirigindo Nicodemos para uma nova
era na história que está prestes a nascer, a regeneração de todas as
coisas quando a luz irromper. É por isso que os dias em Gênesis 1
procedem das trevas para a luz. O movimento é das trevas para a
luz — não apenas no princípio quando tudo é trevas e Deus
adiciona a luz. Antes, o dia em si é estruturado em termos de um
período sombrio e, depois, um período luminoso. É assim que os
dias funcionam, pois este é um símbolo da história da redenção,
passar das trevas para a luz. Paulo fala disso em Rm 13.12, quando
ele se refere à noite estar quase acabando. Ele está falando sobre a
Antiga Aliança terminando. O dia está prestes a nascer, a nova era
está prestes a chegar à plenitude, e o sol está nascendo sobre o
mundo.
Em Rute 3, a salvação, ou redenção, é obtida à noite, e é
cumprida de dia. Isso é um símbolo ou figura da história da
redenção. A promessa de redenção é feita à noite; ela é cumprida
de dia. Essa é a estrutura da história da redenção, passar das
trevas para a luz, da promessa para a realização, da madrugada
para a manhã, da noite para o dia.
Por exemplo, podemos observar a Páscoa. É durante a noite
que o anjo da morte passa por eles. O êxodo acontece no dia
seguinte. A travessia do Mar Vermelho representa o casamento
batismal de Israel em união com Moisés como representante de
Deus. O mesmo tipo de estrutura é encontrado na cruz. Ela não
acontece durante a noite segundo o relógio, mas Deus faz tornar-se
noite. E, então, é claro, a ressurreição acontece ao amanhecer.
Assim, há um evento à meia-noite e um evento no amanhecer. No
nascer do dia, Jesus encontra Maria Madalena, uma mulher. Em um
sentido, esse encontro representa o casamento com sua igreja.
Assim como Adão dormiu e acordou para encontrar sua noiva,
Jesus dorme na cruz e no sepulcro, e acorda no terceiro dia para
encontrá-la. Dessa maneira, Boaz dorme a noite toda com Rute a
seus pés e no dia seguinte ele encontrará sua noiva, e tudo será
cumprido.

Sinais e selos da promessa


Em Rute 3.15, Boaz dá um sinal a Rute. Ele realiza um gesto
simbólico para materializar sua promessa de encontrar um
resgatador para ela, ainda que, no fim, este seja ele. Ele lhe dá não
apenas palavras, mas um sinal. É assim que Deus opera com seu
povo, e é como Boaz opera com Rute. Este é um sinal que lhe dará
uma confiança ainda maior, selando a promessa de resgate.
Como um sinal, Boaz dá a Rute seis medidas de cevada. A
palavra “medidas” não é parte do texto hebraico. Os tradutores
acrescentaram a palavra para ajudar a frase a fazer mais sentido
para os leitores. Literalmente, ela diz: “Dá-me o manto que tens
sobre ti e segura-o. Ela o segurou, ele mediu seis de cevada e lho
pôs às costas; então, entrou ela na cidade”. O escritor quer chamar
a atenção para o número seis.
No versículo 17, Rute observa que há seis medidas de
cevada, mas, novamente, a palavra “medida” não está lá. Por que
seis? O seis garante que haverá um sétimo. Se Boaz deu seis,
certamente ele dará sete. Ele completará o que começou. O número
seis representa a situação no momento e sugere seu possível
resultado.

O descanso de Shabbath de Rute


É difícil absorver toda a arte literária presente no texto. No
início do capítulo, Noemi encoraja Rute a buscar descanso. A
palavra é traduzida como “lar”, mas ela diz, na verdade, “descanso’.
O capítulo termina com Boaz dando “seis” para Rute. É a forma de
Boaz mostrar a Rute que ele dará descanso.
De fato, em Rute 3.18, a palavra para “descanso” é repetida.
Noemi diz: “Espera, minha filha, até que saibas em que darão as
coisas, porque aquele homem não descansará, enquanto não se
resolver este caso ainda hoje”. Rute pode descansar porque Boaz
não descansará até resolver a questão.
O capítulo inteiro gira em torno da busca de descanso para
Rute, primeiro com Noemi, depois com Boaz. O seis simbolicamente
antecipa o sétimo. Assim como a noite antecipa o dia, o seis
antecipa a sétima medida que vem — o sábado de descanso para
Rute. A história não estará completa até Rute entrar neste descanso
holístico, quando ela receber um marido assim como um filho e
herdeiro, e um lar entre o povo de Deus. Todas as carências que
encontramos no início da história serão finalmente reparadas. Todas
essas necessidades serão finalmente satisfeitas. Tudo o que foi
perdido será restaurado e muito mais. O ciclo estará completo e as
maldições pactuais serão transformadas em bênçãos pactuais. As
seis medidas de cevada apontam para o fato de que o período de
espera está quase no fim. Em um sentido, poderíamos dizer que a
noite está quase acabando, o dia está próximo. Os seis estão aqui,
o sétimo, o descanso do Shabbath, está prestes a chegar.

Rute 3.16-18

Em chegando à casa de sua sogra, esta lhe disse: Como se te


passaram as coisas, filha minha? Ela lhe contou tudo quanto aquele
homem lhe fizera. E disse ainda: Estas seis medidas de cevada, ele
mas deu e me disse: Não voltes para a tua sogra sem nada. Então,
lhe disse Noemi: Espera, minha filha, até que saibas em que darão
as coisas, porque aquele homem não descansará, enquanto não se
resolver este caso ainda hoje.

Podemos perder o sentido real da pergunta no versículo 16.


Em vez de “Como se te passaram as coisas, filha minha?”, a
pergunta é traduzida com maior precisão como “Quem é você, filha
minha?”. Você partiu como Rute, uma mulher solteira; você está
voltando como a amada de Boaz? Noemi esperava que o
casamento fosse consumado naquela noite. Se ele era o resgatador
mais chegado e ela foi até ele, ou ele cumprirá essa obrigação ou
não. Se ele cumpriu, estaria consumado, e ela se tornaria a esposa
dele logo ali na eira. Isso era o que Noemi esperava que
acontecesse, então, quando Rute volta, ela diz: “Quem é você?
Como quem você está voltando? Agora você é a esposa de Boaz?”.
No versículo 17, Rute explica: "Estas seis medidas de cevada,
ele mas deu e me disse: Não voltes para a tua sogra sem nada".
Isso se equilibra com Rute 1, versículo 21, em que Noemi reclamou
que partiu ditosa e o Senhor a trouxe de volta vazia. Ela voltou para
casa de mãos vazias; agora, suas mãos estão cheias — de fato, ela
recebeu seis medidas de cevada. O vazio foi revertido. Há uma
transição da ira para a graça, da maldição para a bênção. Essa é
uma história em forma de ferradura. Você começa com Elimeleque e
sua família morando em Belém; eles vão para Moabe, onde
enfrentam maldição e morte. Mas, então eles saem do outro lado, e
Noemi e Rute são resgatadas por Boaz, e tudo é restaurado, até
extra-restaurado, você poderia dizer. Isso é uma comédia, não uma
tragédia. Comédias, no sentido clássico, não são apenas histórias
que nos fazem rir; são histórias que acabam bem, que têm um final
feliz, por assim dizer. E, certamente, o livro de Rute é uma comédia
assim.
Como cristãos, podemos dizer que as comédias revelam o
evangelho. O próprio evangelho é a comédia/drama supremo, e as
outras histórias que se encaixam no padrão são cópias do
evangelho de alguma maneira. A história de Rute é a história do
evangelho. Deus entra em um mundo cheio de dor, sofrimento,
vazio, morte, solidão e desespero. E ele fornece descanso,
segurança, vida e alegria por meio de um resgatador, um segundo
Adão que vem e reverte a maldição. A história de Rute é a nossa
história. É a história da igreja. Esta história é a nossa história se
tivermos sido enxertados em Cristo, que é Boaz maior e o goel
último, o marido supremo.

O simbolismo de Rute
Uma outra observação sobre o simbolismo da história: Boaz
faz sua promessa a Rute, mas depois sai sozinho. Rute não estará
presente quando ele agir decisivamente para resgatá-la no próximo
capítulo. O padrão deve conduzir o leitor, de uma forma simbólica,
para o que Jesus realiza. Pense em Jesus enquanto ele finalmente
realiza a redenção. Os discípulos se dispersam. Eles não estão
presentes. Ele passa por tudo sozinho. Em um sentido, os
discípulos descansam. Eles se deitam e dormem. Você pode até
pensar em Jesus com os discípulos no jardim antes de ele ir para a
cruz. Eles estão descansando enquanto ele está trabalhando. Ele
opera redenção enquanto eles repousam. Da mesma forma, Boaz
vai partir e completar a redenção de Rute enquanto ela descansa.
Noemi diz para Rute: “Descanse, ele vai resolver a questão. Ele vai
operar seu resgate por você, totalmente sem sua participação,
sozinho”. Novamente, isso nos aponta para Jesus como nosso único
resgatador.
Às vezes, é fácil ler as narrativas bíblicas como se fossem as
Fábulas de Êsopo. Então você chega ao fim e diz: “Ok, qual era a
moral da história?”. Existem todos os tipos de lições morais no livro
de Rute, sem dúvida, mas a característica mais importante da
história é ver como Deus traz a salvação ao seu povo e os leva ao
descanso prometido.
Se há uma moral, é que essa história nos mostra que Deus é
aquele que age para nos resgatar. Esta é uma história sobre o que
Deus faz por você, não o que você faz por Deus.
5. Um Nome lembrado
Toda a história do livro de Rute ocorreu durante aquele
período caótico e rebelde da história de Israel. O período dos juízes
termina com estas palavras: “não havia rei em Israel”. A verdade, no
entanto, é que Israel tem um Rei — Yahweh é o Rei de Israel. Mas,
como ninguém reconhece sua realeza, não há rei em Israel e,
portanto, como o final do livro de juízes diz, “cada um fazia o que
achava mais reto”. Elimeleque faz o que é reto aos seus olhos no
início de Rute. É irônico que seu nome signifique “Deus é Rei”
porque ele não age assim.
O livro de Rute é a resposta ao dilema da monarquia de Israel.
Deus proverá um rei para o povo. Ele proverá um rei segundo o seu
coração, um leão da tribo de Judá que liderará o povo em retidão. E
Davi, a última palavra do livro de Rute, será esse rei, em contraste
com o fim do livro de Juízes. O livro funciona como uma ponte do
período dos patriarcas e juízes para essa nova fase monárquica da
história de Deus, na qual eles terão um rei.
Ao nos voltarmos para Rute 4, devemos ter em mente os
eventos do fim de Rute 3. Há a certeza de que Rute será resgatada,
mas há incerteza sobre se esse resgate incluirá Boaz, que de
acordo com todas as sugestões, gostaria de conceder esse
descanso à própria Rute cansando-se com ela e suscitando uma
semente para Noemi como substituto para Elimeleque. Mas, Rute 3
revela que há um obstáculo na forma de um parente mais próximo
que tem prioridade para desempenhar o papel de goel. Uma parte
desta história foi resolvida: Rute se casará.
Mas há outro aspecto da história que não está resolvido, e
essa é a identidade do resgatador. O narrador estabelece o drama
de forma que todo mundo na audiência está esperando um
casamento entre Rute e Boaz. O parente mais próximo se torna
uma ameaça para o final feliz da história que todos queremos ver.
Assim, o que vai acontecer? O parente mais chegado vai se casar
com Rute ou ele deixará passar a honra e permitirá que Boaz o
faça? Essa é a questão, quando entramos em Rute 4.
Rute 4.1
Boaz subiu à porta da cidade e assentou-se ali. Eis que o resgatador
de que Boaz havia falado ia passando; então, lhe disse: Ó fulano,
chega-te para aqui e assenta-te; ele se virou e se assentou.

A porta da cidade não era apenas a entrada e saída da


cidade, mas também o lugar onde os anciãos se reuniam para julgar
(cf. Pv 31.23).

Rute 4.2
Então, Boaz tomou dez homens dos anciãos da cidade e disse:
Assentai-vos aqui. E assentaram-se.

Boaz reúne dez homens para formar um tribunal. De acordo


com a tradição judaica, são necessários dez homens para formar
uma corte oficial. Esses homens se assentarão e julgarão o assunto.
Essa é a origem da palavra “sessão”. Significa sentar-se em
julgamento ou para governar, e é isso que eles vão fazer.

Rute 4.3-4

Disse ao resgatador: Aquela parte da terra que foi de Elimeleque,


nosso irmão, Noemi, que tornou da terra dos moabitas, a tem para
venda. Resolvi, pois, informar-te disso e dizer-te: compra-a na
presença destes que estão sentados aqui e na de meu povo; se
queres resgatá-la, resgata-a; Se não, declara-mo para que eu o
saiba, pois outro não há senão tu que a resgate, e eu, depois de ti.
Respondeu ele: Eu a resgatarei.
Boaz resume a situação. Noemi tem de vender a parte da
terra de Elimeleque. Esse é um detalhe que o narrador suprimiu até
agora, mas de repente se torna essencial. Os israelitas não
deveriam vender seus lotes de terra dados por Deus (cf. Lv 25). Se
eles tivessem que fazer isso, a terra deveria ser resgatada
(comprada de volta) o mais rápido possível. Se isso não
acontecesse, voltaria à família original no ano do Jubileu (a cada 50
anos). Mas era muito melhor recuperar a terra da família antes
disso. Idealmente, se a terra fosse vendida, digamos, por
necessidade econômica, um resgatador apareceria e a resgataria
imediatamente.
O resgatador mais chegado diz que resgatará esta parcela da
terra. É claro, essa parte é onde toda a audiência deveria suspirar e
dizer: “Oh não, isso é terrível”. O raciocínio do parente mais próximo
é provavelmente algo assim: Noemi é uma mulher idosa agora e
não há possibilidade de ela ter filhos, que algo que Noemi admitiu
em Rute 1. Não haverá um herdeiro de Elimeleque para crescer e
retomar a terra para sua família, então esse parente mais próximo
acha que ele tem uma oportunidade de aumentar as propriedades
de sua própria família. Ele pode aumentar sua parte e herança na
Terra Prometida, e pode fazê-lo a um custo relativamente baixo.
Parece que Boaz será excluído do papel de resgatador e não
conseguirá se casar com Rute, afinal.

Rute 4.5-6

Disse, porém, Boaz: No dia em que tomares a terra da mão de


Noemi, também a tomarás da mão de Rute, a moabita, já viúva, para
suscitar o nome do esposo falecido, sobre a herança dele. Então,
disse o resgatador: Para mim não a poderei resgatar, para que não
prejudique a minha; Redime tu o que me cumpria resgatar, porque
eu não poderei fazê-lo.

A estratégia de Boaz
Apesar da declaração do parente mais próximo de que ele
resgatará a terra, Boaz não vacila; seu plano é muito parecido com
o plano de Noemi no capítulo anterior. No versículo 5, Boaz
apresenta seu trunfo, sua cartada final. Você pode observar que
Boaz quer obedecer à lei; foi por isso que ele disse a Rute na eira
que ele deveria primeiro consultar o resgatador mais próximo, mas
Boaz também quer se casar com Rute. Se ele puder obedecer à lei
e conseguir Rute também, essa seria a melhor situação de todas.
No versículo 5, Boaz acrescenta que Rute vem com a
propriedade de Elimeleque. Há uma mulher com idade para casar-
se que suscitará uma semente para substituir Elimeleque.
Claramente, então, quando a semente tiver idade suficiente, ela
assumirá a propriedade de Elimeleque mais uma vez e esta será
sua herança. O parente mais chegado terá que pagar pela terra
enquanto o filho cresce, mas ele não poderá mantê-la em sua
família e passá-la para seus filhos. Em vez disso, ela reverterá para
o filho que ele tiver com Rute. Isso significa que ele terá o custo
adicional de cuidar não apenas de Noemi, mas também de Rute e
dos filhos que ela tiver. De repente, o que parecia um negócio muito
bom agora começa a parecer um risco financeiro. Assim, o parente
refaz os cálculos rapidamente e decide que não é um investimento
tão bom assim, afinal. E, no versículo 6, o parente mais próximo diz
que não pode fazê-lo porque seria muito caro a longo prazo. Para a
alegria de Boaz, o parente mais próximo dispensa a propriedade de
Rute e Noemi; ele renuncia ao seu direito de resgate.
Poderíamos perguntar: “Por que Boaz apresentou esse acordo
em duas etapas, deixando a parte do casamento, a parte em que o
homem teria que se casar com Rute, para o final?”. Parece que o
narrador quer que vejamos isso como um ato muito astuto da parte
de Boaz. É relativamente difícil articular a estratégia de Boaz.
Provavelmente precisaríamos estar lá para ver a genialidade disso.
Mas, talvez, se ele tivesse apresentado a aquisição da terra e Rute
de uma vez, o homem não teria sido tão cuidadoso ao considerar o
quanto o casamento com Rute lhe custaria. Ou, talvez, mencionar
Rute depois permitiu que Boaz chamasse atenção para a
nacionalidade dela, tornando a possibilidade de casar-se com ela
pouco atraente para aquele homem. Seja qual for o caso, a cena
mostra claramente que Boaz é inteligente e sábio — e talvez esteja
apaixonado por uma moabita.

O Parente Anônimo
Antes de prosseguir, há outro detalhe a considerar na
passagem. Já observamos como os nomes são importantes em
todo o livro de Rute, particularmente em como revelam a
personalidade. Mas, o parente mais próximo não tem nome algum.
Ele é um resgatador chamado de “fulano”. Por que ele não recebe
um nome? Todo mundo na história tem um nome. Quando o Espírito
Santo dá um nome a um personagem, esse nome tem significado.
Quando o Espírito Santo oculta um nome, esse fato também é
importante.
O autor provavelmente escondeu a identidade desse homem
para não envergonhar sua família ou seus descendentes na época
da redação do livro. Como o livro está estabelecendo Boaz e sua
família, não há razão para diminuir esse outro homem. Em relação
ao desenrolar da história, o parente mais próximo não tem nome
porque seu nome não é digno de ser mencionado. Ele se recusou a
perpetuar o nome de seu irmão em Israel, e assim seu nome não
será perpetuado na história.
Há um tipo de lex talionis (uma lei de retaliação) na narrativa.
Ele não edificou a casa de seu irmão e não conservou o nome de
seu irmão, então seu nome não será conservado. Ele não se torna
um goel, porque teme que isso comprometa sua herança e nome.
Como resultado, seu nome se perde. Ele perdeu a chance de
exaltar seu nome em Israel. O homem parece estar preocupado
apenas com dinheiro. Ele vê o resgate do outro como algo muito
caro. A lição do exemplo deste homem seria algo assim: Não deixe
que a ganância o impeça de ajudar membros carentes da aliança.
Se você permitir que sua ganância o atrapalhe de ajudar os
membros carentes da aliança, você corre o risco de Deus apagar
seu nome. Você ficará sem nome e será esquecido. A maneira de
ter seu nome lembrado e perpetuado pelo povo da aliança é tornar-
se uma pessoa generosa, ser um resgatador das pessoas em
necessidade. O parente mais chegado revela-se um falso
resgatador.

Rute 4.7-8

Este era, outrora, o costume em Israel, quanto a resgates e


permutas: o que queria confirmar qualquer negócio tirava o calçado
e o dava ao seu parceiro; assim se confirmava negócio em Israel.
Disse, pois, o resgatador a Boaz: Compra-a tu. E tirou o calçado.
Nos versículos 7 e 8, somos apresentados ao costume da
troca de sandálias. Anteriormente, nos referimos a uma prática
semelhante em Deuteronômio 25, em que o irmão que se recusa a
casar-se por levirato tem os pés descobertos e o rosto cuspido. O
costume parece um pouco diferente aqui. Esta era uma
transformação válida dessa tradição descrita em Deuteronômio 25?
Parece que o costume é diferente, mas também está claramente
relacionado. Talvez seja um pouco diferente, porque o grau de
vergonha não era tão grande no caso desse homem como teria sido
no caso do homem de Deuteronômio 25 que se recusa a cumprir
completamente o dever de levirato. O parente em Rute 4
provavelmente não precisa cumprir o levirato, porque há alguma
distância no relacionamento familiar e também porque há outro
candidato que quer e está disposto a fazê-lo. Assim, o parente mais
próximo não está abandonando completamente a situação. Ele
cuida para que algo seja feito por Rute e Noemi, mas não é ele
quem o faz. Há um nível de vergonha, mas um nível menor. Isso
pode explicar por que não há cuspe na cara, conforme o costume
necessário. Talvez haja alguma humilhação pública envolvida, mas
não é tão completa quanto o que teria acontecido na situação que o
texto em Deuteronômio prevê.
O costume da troca de calçados também é uma maneira de
ratificar transações; provavelmente é a forma como os antigos
israelitas selavam acordos legais. Fazer isso em frente aos anciãos
provavelmente seria muito parecido com o nosso uso de notários e
cartórios para ratificar um documento oficial, especialmente porque
a transação específica de Rute 4 envolve terra e casamento. A troca
de calçados provavelmente implica que um homem estará no lugar
do outro nessa questão. Um homem assumirá o lugar do outro e
outro cumprirá suas obrigações.

Rute 4.9-10

Então, Boaz disse aos anciãos e a todo o povo: Sois, hoje,


testemunhas de que comprei da mão de Noemi tudo o que pertencia
a Elimeleque, a Quiliom e a Malom; E também tomo por mulher
Rute, a moabita, que foi esposa de Malom, para suscitar o nome
deste sobre a sua herança, para que este nome não seja
exterminado dentre seus irmãos e da porta da sua cidade; Disto
sois, hoje, testemunhas.
Em uma cultura amplamente oral, em que muitas pessoas não
podiam aprender a ler e escrever, elas ouviriam a declaração de
Boaz ser oficialmente proclamada e isso viveria em sua memória
coletiva. Há múltiplas testemunhas presentes para confirmar o
negócio. Quando Boaz toma posse da terra, ele também toma Rute
como sua esposa em um casamento de levirato.
A transação é selada. Ele tomou posse da terra e tomou
posse de Rute como sua esposa. Novamente, como mencionado
anteriormente, neste caso específico, não há necessidade de um
período ou cerimônia de noivado. Aparentemente, ela se tornaria
imediatamente sua esposa, porque este é um casamento de
levirato. Ele está assumindo o casamento de outro. É claro, esse
casamento incluirá suscitar uma semente para Elimeleque que
herde sua terra e dê continuidade a seu nome.

Rute 4.11-12

Todo o povo que estava na porta e os anciãos disseram: Somos testemunhas; o


Senhor faça a esta mulher, que entra na tua casa, como a Raquel e como a Lia,
que ambas edificaram a casa de Israel; E tu, Boaz, há-te valorosamente em
Efrata e faze-te nome afamado em Belém. Seja a tua casa como a casa de
Perez, que Tamar teve de Judá, pela prole que o Senhor te der desta jovem.
Os anciãos afirmam todos os propósitos das ações de Boaz.
Eles colocam seu selo de aprovação na transação como
testemunhas; logo, ela foi ratificada. Também temos as bênçãos
gêmeas que são dadas nos versículos finais, uma dos anciãos e
outra das mulheres da cidade. As conexões que eles fazem com
personagens anteriores da história de Israel são necessárias. Elas
ajudam a lançar luz sobre vários aspectos dessa história.
Os anciãos dão uma bênção tríplice. A primeira é: “o Senhor
faça a esta mulher, que entra na tua casa, como a Raquel e como a
Lia, que ambas edificaram a casa de Israel”. Rute é ligada às
matriarcas de Israel.
Segundo: “há-te valorosamente em Efrata e faze-te nome
afamado em Belém”. De fato, Boaz se tornou famoso, não apenas
em Belém, mas em todo Israel. Não apenas com este livro, mas
também por um dos grandes pilares no templo de Salomão que
tinha seu nome. Além disso, ele se torna membro da linhagem
messiânica e é registrado nas genealogias de Jesus Cristo no Novo
Testamento.
A terceira bênção é: “Seja a tua casa como a casa de Perez,
que Tamar teve de Judá”. Essa terceira bênção liga toda a história
com Gênesis 38 e o conceito do casamento por levirato, o que
estava em vigor nessa história.

O papel de Tamar no evangelho de Rute


Há várias coisas a observar diante da conexão com Gênesis
38. Rute é uma nova Tamar. Enquanto Tamar se vestiu de prostituta
e enganou Judá, Rute se vestiu de noiva e se aproximou de Boaz,
mas as duas estão agindo pelas mesmas razões. A preocupação
principal delas é a linhagem pactual. Embora suas ações possam
parecer imorais, as ações não devem ser vistas dessa maneira
dentro da estrutura da lei bíblica. Judá se condena e justifica Tamar
depois que ele percebe o que aconteceu. E a maneira como o livro
de Rute se desenrola justifica Rute de qualquer erro. Ela foi a Boaz
porque, no entendimento dela e de Noemi, ele era o parente mais
próximo. Ele seria o candidato a se tornar resgatador.
Obviamente, não podemos dizer que as ações de Tamar e
Rute servem de padrão para as mulheres cristãs de hoje ou jovens
que procuram maridos. Mas Tamar e Rute agiram por causa de suas
preocupações com a promessa da aliança e a linhagem da
semente, e isso é exemplar. Por esse motivo, elas servem de
modelo para nós. Judá é a tribo escolhida e, se a semente da
mulher prometida no Gn 3.15 deve vir ao mundo, a linhagem deve
ser perpetuada. O leitor deveria ser grato pelo que essas mulheres
fizeram, porque, sem elas, não haveria advento nem redenção. É
por meio dessas mulheres que a linhagem chega a Jesus. Em 1 Tm
2.15, Paulo diz que as mulheres são salvas pela missão de mãe.
Essas mulheres são salvas por gerar filhos, não apenas no sentido
de serem resgatadas de situações difíceis da vida, mas também
porque estão participando da história da redenção. No livro de Rute,
a mulher desempenha seu papel perpetuando a semente,
culminando por fim em Maria, que traz a semente prometida ao
mundo.
É importante reafirmar que Tamar e Rute são viúvas buscando
casamentos por levirato. As duas foram gentias enxertadas na
aliança através de um casamento de levirato. As ações de Rute não
apenas lembram Tamar, mas Boaz também é comparado a Perez:
"Seja a tua casa como a casa de Perez". Por que Perez? A casa de
Perez era muito maior que a casa de seu irmão, Zera. De fato, a
casa de Perez era tão grande que teve de ser dividida. Em Números
26, aprendemos que Perez é tão frutífero que seus descendentes
devem ser divididos em duas famílias distintas, lembrando a
promessa de Deus a Abraão e a bênção que Deus deu a Rebeca
em Gênesis: a expansão de suas famílias. Dessa maneira, as
bênçãos no livro de Rute apontam para o crescimento e a plenitude
do reino de Deus.

Rute 4.13

Assim, tomou Boaz a Rute, e ela passou a ser sua mulher; coabitou
com ela, e o Senhor lhe concedeu que concebesse, e teve um filho.
Descobrimos que o casamento de Rute e Boaz, de fato,
produziu um filho. A criança foi um dom do Senhor, como todas as
crianças são. Concepção, nas Escrituras, sempre se deve à ação do
Senhor. O palavreado no versículo 13 apresenta essa ideia. Não é
Boaz, mas o Senhor que finalmente a faz conceber. É importante
lembrar que Rute foi casada anteriormente, mas não tinha
concebido um filho. O fato de o texto mencionar o Senhor lhe
concedendo a concepção sugere que Rute teria sido estéril à parte
de alguma intervenção especial do Senhor. Como todas as outras
matriarcas do livro de Gênesis que são estéreis até que Deus
intervenha e abra seu ventre, o mesmo acontece com Rute. O
Senhor age através de Boaz da forma como ele agiu através de
Abraão. Ele faz por Rute o que ele fez por Sara. Essas são as
conexões que devemos fazer. Ela já tinha sido casada por dez anos,
por isso é seguro assumir que ela era estéril. Mas aqui o Senhor
age em seu favor.
Rute 4.14-17

Então, as mulheres disseram a Noemi: Seja o Senhor bendito, que


não deixou, hoje, de te dar um neto que será teu resgatador, e seja
afamado em Israel o nome deste. Ele será restaurador da tua vida e
consolador da tua velhice, pois tua nora, que te ama, o deu à luz, e
ela te é melhor do que sete filhos. Noemi tomou o menino, e o pôs
no regaço, e entrou a cuidar dele. As vizinhas lhe deram nome,
dizendo: A Noemi nasceu um filho. E lhe chamaram Obede. Este é o
pai de Jessé, pai de Davi.
Perceba que essa bênção é dirigida a Noemi, não a Boaz ou
Rute. Por quê? Porque ela serve para reverter o discurso de Noemi
para as mulheres em Rute 1.20-21. Agora, todos os problemas
enfrentados por Noemi no início da história foram resolvidos e agora
elas a chamam de abençoada. Deus a restaurou.
6. Um final doxológico
Ao chegarmos ao final do livro, as mulheres da cidade louvam
o Senhor (Rute 4.14). Deus recebe crédito por todas as coisas boas
que aconteceram. Deus provocou uma série de reviravoltas
surpreendentes. Ele trouxe Noemi do vazio à plenitude. Noemi
estava culpando o Senhor, mas agora Deus recebe glória por
restaurá-la. Ela era viúva, mas agora ela tem um homem que a
protegerá e proverá. Ela não tinha filhos, mas agora uma criança foi
suscitada para substituir os filhos perdidos. Ela corria o risco de
morrer de fome, mas agora desfruta da abundância e prosperidade
da casa de Boaz. Deus providenciou descanso e salvação holísticos
para Noemi e Rute. Isso é apropriado, pois o evangelho é uma
mensagem de inversão. O evangelho é a mensagem de Deus
trazendo vida da morte, absolvição da culpa, justiça da injustiça. O
evangelho é a mensagem de reversão quando o segundo Adão
desfaz a maldição do primeiro Adão.
O filho nascido de Rute e Boaz é chamado de goel, um
resgatador. Considere a linguagem de Rute 4.15: “Ele será
restaurador da tua vida”. A linguagem indica um resgatador e, se é
afirmado que o filho é um goel, a pergunta é: quem é o verdadeiro
resgatador? É Boaz ou o filho que nasceu, Obede? A resposta é
ambos. Cada um a seu modo prenuncia Jesus Cristo.
Essa resposta pode apontar para a frustração de algumas
pessoas com a tipologia bíblica: como pessoas diferentes podem
desempenhar o mesmo papel na mesma história? É porque Jesus é
tão multifacetado e tão pleno que uma pessoa não é o bastante para
simbolizá-lo. Assim como a igreja nesta história é simbolizada por
Noemi e Rute juntas, também Jesus Cristo é simbolizado por Boaz e
por Obede. Cristo é marido e filho. Ele é Boaz e Obede. Ele é a
semente da mulher. Ele é o filho da promessa, que, como Isaque, é
sacrificado. Mas, ele também é o marido que casa com a viúva
como segundo Adão e que faz com que o povo, a Noiva, seja
frutífero. Todas essas coisas estão em operação nesses versículos
finais. Na tipologia de Rute, casamento e nascimento são
misturados.
Até agora, a história se concentrou em Boaz como marido e
figura de Cristo. Mas, agora, há uma mudança para Obede como a
figura de Cristo, a semente prometida da mulher. Será ele quem
cuidará de Rute e Noemi na velhice. Ele é o substituto dos filhos
perdidos em Rute 1. As mulheres dizem: “seja afamado em Israel o
nome deste”, lembrando a promessa divina a Abraão de tornar seu
nome grande. Este é um verdadeiro filho de Abraão que será
engrandecido. Seu nome não somente será preservado, como
também exaltado.
Em Rute 4.15, elas dizem: “Ele será restaurador da tua vida e
consolador da tua velhice”. Isso é vocabulário messiânico, ecoando
a linguagem encontrada em toda parte das Escrituras. Cristo nos dá
a vida da ressurreição e um futuro seguro. É isso que Obede fará
simbolicamente. Devemos enxergar essas coisas tipologicamente,
mas também devemos olhar para elas de um ângulo prático. Em
uma cultura bíblica, espera-se que as crianças cuidem de seus pais,
até avós, em sua velhice; vemos isso por toda a Escritura. Os
idosos eram valorizados. Eles não eram evitados ou negligenciados,
mas seu cuidado é garantido por causa dos filhos.
Rute também é exaltada nesses versículos finais. Rute ama
Noemi e é melhor que sete filhos. Sete filhos, é claro, era o ideal do
Antigo Testamento, mas a narrativa declara que Rute é melhor que
sete filhos. Às vezes, as pessoas acusam a Bíblia de ter um viés
patriarcal e desvalorizar as mulheres. A Bíblia nos ensina sobre as
diferenças entre homens e mulheres, mas ela não privilegia os
homens de uma maneira que é degradante para as mulheres. De
fato, o texto mostra que, neste caso, uma mulher é melhor que sete
homens. Essa bênção também indica uma reversão total. Noemi
voltou sem filhos, de mãos vazias, mas voltou com Rute, com
alguém que seria melhor não apenas do que os dois filhos que ela
perdeu — ou mesmo seu marido, um terceiro homem — mas melhor
que sete homens.

Aplicando o evangelho de Rute


Alguns expressam preocupação de que, quando lemos a
Bíblia através de uma estrutura tipológica, a aplicação do texto se
perca. A questão a se considerar é: “Como você aplica essa história
se ela é projetada para nos mostrar o evangelho?”. A resposta: o
evangelho é sempre aplicável. Como essa história se aplica? Em
Rute 3.18, Noemi diz a Rute: “Espera, minha filha, até que saibas
em que darão as coisas, porque aquele homem não descansará,
enquanto não se resolver este caso ainda hoje”. O livro de Rute
oferece um conselho semelhante à Noiva de Cristo: “Espere”.
Assista a salvação do seu Deus. Você pode descansar porque Deus
cuidará disso, através de Jesus Cristo, o resgatador. A questão da
salvação está resolvida. E Deus não apenas nos dá sua palavra,
como Boaz deu a Rute sua palavra, como ele também nos dá com
um sinal, um sacramento, da forma como Boaz deu a Rute o sinal
das seis medidas de cevada. Em Cristo, temos algo melhor do que
seis medidas de cevada. Temos os sacramentos do batismo e da
Ceia do Senhor. Estas são as garantias divinas para nós de que Ele
cumprirá e resolverá a questão da nossa redenção.
Outras lições e aplicações éticas podem ser extraídas do livro
de Rute. A principal é resumida pela palavra hesed. A melhor
tradução é "fidelidade pactual" ou "amor pactual". É a manifestação
da lealdade à aliança. É o cumprimento de suas obrigações para
com outra pessoa. Deus mostra hesed para nós na forma como ele
cumpre sua aliança. Mas nós, por outro lado, devemos demonstrar
hesed a ele e uns aos outros. O Livro de Rute materializa esse
tema; uma troca entre o hesed de Rute e o hesed de Boaz. Rute
também mostra isso da maneira como ela se liga a Noemi.
Rute poderia ter pensado que era possível ter um futuro muito
melhor se ficasse em Moabe, mas em algum momento ao longo do
caminho, ela aprendeu o suficiente da verdade para saber que o
Deus de Israel era o Deus verdadeiro. Ficar em Moabe seria
idolatria. Assim, ela se vincula em uma aliança que é mais forte que
a aliança de casamento. Não apenas uma aliança “até que a morte
nos separe”, mas um vínculo além da morte. Ela entrelaça
completamente seu futuro com o de Noemi, que, é claro, na época
parece bastante sombrio. Esta é sua manifestação de hesed. Boaz
a elogia por sua hesed ao voltar com Noemi. Mais tarde, quando
Rute vai se encontrar com Boaz na eira, ele a elogia novamente. Ele
diz que esse ato de hesed é ainda maior que o primeiro ato de
hesed. Uma coisa era voltar com Noemi de Moabe para uma terra
estranha. Mas, agora, ela se supera, propondo um casamento de
levirato a Boaz para suscitar um substituto para o marido e filhos
falecidos de Noemi; esse é um grande ato de hesed. Boaz também
manifesta hesed. Ele não apenas permite que Rute venha e colha
em seus campos, mas também lhe concede privilégios especiais,
acima das oportunidades normais de coleta. Mais tarde na história,
Boaz promete a ela que fará com que ela seja resgatada. Se ele não
puder fazer isso, ele vai garantir que o parente mais próximo o faça.
Ele é um homem de palavra e um homem de hesed.
Ajudar outros membros da aliança em necessidade é a
essência de ser fiel à aliança. Rute ajuda Noemi e Boaz ajuda Rute
e Noemi. Este é o fluxo da história. Noemi e Rute estavam à beira
da pobreza e da fome, e Boaz providenciou a salvação delas com
seus recursos e abundância. Podemos pensar em analogias em
nossa experiência pessoal. Às vezes, as pessoas que conhecemos
estão necessitadas de maneiras diferentes. Elas podem estar
solitárias ou emocionalmente magoadas. Elas podem precisar de
alguém que caminhe junto e as encoraje. Estes são exemplos de
maneiras como podemos manifestar hesed uns pelos outros.

O nome da criança
O nome da criança nascida de Boaz e Rute é Obede. O nome
não era comum em Israel. As mulheres da cidade lhe deram o
nome. O nome Obede significa "servo". É provavelmente uma forma
abreviada de Obadias, que significa "servo de Yahweh". Quando
pensamos no servo do Senhor, nossos pensamentos podem voltar-
se para Isaías e sua profecia de um servo futuro que cumprirá a
vontade do Senhor. Ele resgatará o povo ao sofrer pelo povo, como
descreve Isaías 53. Ele também será vitorioso, conforme descrito
em Isaías 60-62. O nome, então, é um título messiânico. E isso é
apropriado porque Obede é um tipo do Messias. Ele é uma espécie
de figura do resgatador. Podemos dizer que Jesus é o Obede final.
O próprio Davi é chamado de Obede do Senhor
repetidamente. Em mais de 30 vezes no Antigo Testamento e
diversas vezes no Novo Testamento, a Bíblia identifica Davi como o
Obede do Senhor. Obebe aponta para Davi, que, por sua vez, nos
leva a Jesus. Marcos 10 diz que Jesus não veio para ser servido,
mas para ser um Obede para seu povo.

Rute 4.18-22

São estas, pois, as gerações de Perez: Perez gerou a Esrom, Esrom


gerou a Rão, Rão gerou a Aminadabe, Aminadabe gerou a
Naassom, Naassom gerou a Salmom, Salmom gerou a Boaz, Boaz
gerou a Obede, Obede gerou a Jessé, e Jessé gerou a Davi.

O livro termina com uma genealogia. Este não é apenas um


apêndice anexado ao fim da narrativa. Pelo contrário, é o clímax da
história. Alguns sugerem que essa genealogia é uma adição
posterior, mas a leitura mais natural indica que a genealogia foi
incluída desde o início porque é parte integrante do significado do
livro. Ela dá ao livro seu significado teológico coerente. Sem essa
genealogia no final, o livro de Rute é uma história bonita, mas
provavelmente não é digna de inclusão no cânon.
A última palavra do livro é o nome “Davi”, depois de uma
recontagem de dez gerações. O livro de Rute conecta-se
historicamente com o final do livro de Juízes. Lembre-se: Rute se
passa na era dos juízes e é uma resposta aos problemas que foram
identificados no livro de Juízes. Juízes termina com o povo de Deus
precisando de um rei. O livro de Rute termina com o nome Davi,
mostrando-nos o rei prototípico.
Davi também faz parte da primeira geração de filhos de Judá
— desde Perez, o filho ilegítimo que não pôde entrar na assembleia
do Senhor — que teria sido qualificado a entrar na assembleia e
ocupar um cargo em Israel. Como descendente de Judá, Davi
segurará o cetro (Gn 49.10).
A lista de dez gerações no livro de Rute também faz alusão às
genealogias no livro de Gênesis. Em Gênesis, existem duas
passagens com listas de dez gerações (Gênesis 5 e Gênesis 11). A
genealogia em Gênesis 5 termina com Noé e a de Gênesis 11
culmina em Abraão. Para Davi, essa genealogia o coloca no mesmo
papel histórico-redentor de Noé e Abraão. Assim como aqueles
novos homens eram novas figuras de Adão que iniciaram novas
fases da história, Davi iniciará uma nova fase da história para o
povo de Deus. A palavra hebraica toledot usada em Rute 4 para
introduzir a genealogia é a palavra que Gênesis usa em diversos
momentos para introduzir novas histórias. É a palavra usada em
Gênesis 5 e Gênesis 11 onde são fornecidas as listas de dez
gerações. O livro de Rute funciona como um novo Gênesis. Rute é o
oitavo livro do cânon hebraico; o número oito que significa nova
criação. O povo de Deus está entrando em uma nova criação por
meio de Davi. Davi é uma nova figura de Noé e uma nova figura de
Abraão. Ele é rei e profeta, e recomeçará toda a história de Israel.
Apêndice A — Uma teologia da Terra
Vamos dizer que você estivesse lendo sua Bíblia
continuamente de Juízes a Rute. No fim do livro Juízes, você lê este
refrão: “Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada um fazia o que
achava mais reto”. Então você encontra o começo de Rute: “Nos
dias em que julgavam os juízes, houve fome na terra; e um homem
de Belém de Judá saiu a habitar na terra de Moabe, com sua mulher
e seus dois filhos”. Neste momento da história, durante o período
dos juízes, todo mundo está fazendo o que é reto aos seus olhos.
Isso é o que acontece no livro de Rute: Elimeleque retira sua família
da terra da promessa e desce para Moabe. Em vez de arrepender-
se na terra, ele parte em um exílio autoimposto para fora da terra.
Há alguma importância em Elimeleque ter deixado a terra da
promessa? Que papel a terra tinha no Antigo Testamento? Em
nossa época, os cristãos não tratam nenhum pedaço de terra em
particular como santo, porque Deus não nos encontra em um
espaço individual de solo, mas onde dois ou três se reúnem em seu
nome. De fato, a fé cristã é talvez a única grande religião mundial
que não está ligada a um lugar específico. A grande maioria das
outras religiões está ligada à área onde elas se originaram. Por
exemplo, o budismo tem permanecido primariamente asiático e o
Islã principalmente no Oriente Médio. Mesmo quando um
muçulmano deixa o Oriente Médio, ele ainda está ligado à Meca de
alguma maneira. Sua fé é geograficamente limitada. Da mesma
forma, judeus que vivem fora da terra de Israel costumam fazer
peregrinações porque sua fé está ligada a um pedaço específico de
terra que é considerado mais santo que outros lugares.
Mas este não é o caso da fé cristã. A igreja não tem centro
geográfico. É uma fé continuamente em movimento. Sim, a igreja
começou em Jerusalém, mas a população cristã mudou-se
rapidamente para o norte e oeste da área do Mediterrâneo. Mais
tarde, a igreja gravitou em direção à Europa Ocidental e América do
Norte. Agora a igreja está explodindo no sul global e na China. A
igreja não é ligada a um lugar mais do que é ligada a uma língua ou
cultura.

Terra de confusão
Para entender completamente o papel da terra em Rute 1,
precisamos completar uma pesquisa bíblico-teológica. Vamos
começar com a terra da Palestina. Esta terra certamente teve uma
posição especial durante um período específico da história na
Antiga Aliança, antes da vinda de Cristo. Mas, ela ainda é especial
ou única de alguma forma hoje?
Há muita confusão sobre Palestina na igreja de hoje. Como
resultado, muitos de nossos políticos ficam confusos quando se
trata da política do Oriente Médio. O estado geopolítico de Israel
não tem uma posição pactual especial, nenhuma promessa
especial, e deveria ser tratado pelos cristãos como qualquer outra
nação. Os Estados Unidos podem ou não considerar Israel um
aliado útil, mas não há motivo teológico para Israel ser favorecido
acima de qualquer outra nação que negue Cristo. Se os Estados
Unidos mantêm uma aliança com Israel, deve ser porque Israel
compartilha mais de nossos valores culturais e interesses
econômicos que as outras nações da região, embora deva
permanecer uma preocupação cristã o fato de o evangelismo ser
proibido pela lei israelense.
É possível fazer diversas perguntas: Por que a terra tinha uma
posição especial sob a Antiga Aliança e não sob a nova? Há alguma
contraparte tipológica na Nova Aliança para a terra santa da Antiga
Aliança? A perda de uma terra santa especial significa que a
transição da Antiga Aliança para a Nova Aliança implica uma
mudança do físico para o não-físico? As próximas sete proposições
são apresentadas para responder a essas perguntas. Essas sete
proposições nos conduzirão pela história da terra da promessa.
Primeiro, a terra foi incluída na promessa de Deus a Abraão.
Vemos essa promessa repetida várias vezes (Gn 12.1; Gn 15.18;
Gn 17.8). A terra é uma das bênçãos que Deus promete conceder a
Abraão e seus descendentes. É claro, à luz da história de Gênesis,
isso deve ser visto como uma renovação ou restauração do Jardim
do Éden. Adão foi expulso do Jardim do Éden, mas agora Deus
promete restaurar a posse do santuário-jardim. Ele reverterá o exílio
de Adão.
Segundo, embora Abraão e outros patriarcas tenham
ocasionalmente vagado pela terra como estrangeiros, a terra
finalmente se tornou propriedade dos descendentes de Abraão após
o êxodo. Josué liderou a conquista da terra, e isso se tornou um
privilégio distinto para Israel: habitar no lugar onde Deus colocou
seu nome, no novo Éden. Os gentios podiam vir e habitar na terra,
mas mesmo assim os gentios não podiam tornar-se residentes
permanentes porque as porções de terra revertiam para o antigo
dono de vez em quando, segundo as leis que Deus deu ao seu
povo. A terra era uma propriedade permanente de Israel, e os
gentios não podiam viver nela do mesmo jeito. É claro, a grande
maioria dos gentios foi totalmente excluída. Isso não significa que os
gentios não pudessem ser salvos na Antiga Aliança. O livro de Rute
refuta essa ideia pois a própria Rute é gentia. De fato, existem
outros exemplos de gentios tementes a Deus na Antiga Aliança.[11]
Entretanto, em relação à proximidade de Deus e privilégios
especiais da aliança, essas bênçãos pertencem a Israel, e não às
nações da era da Antiga Aliança.
Terceiro, em Dt 28.64-66, Deus prometeu expulsar o povo de
Israel da terra se eles fossem infiéis:
O Senhor vos espalhará entre todos os povos, de uma até à outra
extremidade da terra. Servirás ali a outros deuses que não
conheceste, nem tu, nem teus pais; servirás à madeira e à pedra.
Nem ainda entre estas nações descansarás, nem a planta de teu pé
terá repouso, porquanto o Senhor ali te dará coração tremente,
olhos mortiços e desmaio de alma. A tua vida estará suspensa como
por um fio diante de ti; terás pavor de noite e de dia e não crerás na
tua vida.
De fato, foi isso que aconteceu. Primeiro aconteceu com Israel
no norte em 722 a.C. e então com Judá no sul em 586 a.C. A ideia é
que a terra santa não pode tolerar um povo profano.
Quarto, os mesmos profetas que anunciaram que o exílio era
iminente também prometeram um retorno do exílio em um novo
êxodo. Assim como o primeiro êxodo levou à posse da terra, os
profetas descreveram um retorno à terra usando a linguagem de um
novo êxodo. Isso aconteceu, em certo sentido, sob o imperador
Ciro, por volta de 516 a.C. Esdras, Neemias, Ageu e outros livros do
Antigo Testamento descrevem as pessoas sendo restauradas na
terra. Há uma certa reconquista. O templo é reconstruído e as
pessoas habitam na terra de novo. Mas, nem todos os israelitas
voltaram, e Israel nunca foi uma entidade geopolítica, pelo menos
nunca foi por muito tempo. Israel jamais teve de novo o tipo de
independência geopolítica que tinha anteriormente em sua história
sob os gloriosos reinados do rei Davi e do rei Salomão. Na Aliança
da Restauração (uma maneira de designar melhor esta era), a glória
de Israel era maior, mas também mais oculta que antes e, embora a
base de operações de Israel fosse certamente Jerusalém, a nação
continuou a interagir fortemente com nações gentias de uma
maneira missional. Deus estava fazendo seu povo habitar em um
império gentio.
Quinto, em 70 d.C., os israelitas foram novamente expulsos da
terra e espalhados pelas nações. Esse julgamento foi uma punição
por crucificar Jesus e perseguir sua igreja. O que aconteceu em 70
d.C. foi significativo porque encerrou a situação especial de Israel
como nação escolhida de Deus. O sacerdócio real foi tirado de
Israel e dado a um novo povo que daria frutos, que é o novo Israel
(Gl 6.16). Os eventos de 70 d.C. marcaram o fim da antiga criação,
com um santuário centralmente localizado.
Nos relatos do evangelho, Jesus faz muitas previsões sobre a
destruição do templo e suas consequências. Essas previsões são
claras no Discurso do Monte das Oliveiras, encontrado em Mateus
24, Marcos 13 e Lucas 21. Seus discípulos ficaram muito
impressionados ao passear pelas construções em Jerusalém. Eles
dizem para Jesus: “Veja que construções maravilhosas”. Jesus
responde: “Não ficará pedra sobre pedra”. Então, ele começa uma
descrição de como o templo será destruído pelos romanos como
juízo de Deus. Este não é apenas um juízo comum; este é o juízo
sobre toda a ordem da Antiga Aliança. Em Mateus 23, Jesus diz que
a geração atual de judeus será responsabilizada pelo sangue dos
justos que ela derramou, não somente sob a aliança mosaica, mas
retroativamente até Abel, primeiro mártir da história (Mt 23.35-36).
Toda a era da antiga criação, que se estende desde a criação do
mundo até o ano 70 d.C., termina quando o templo é destruído.
Todo o sistema da antiga criação, que incluía a circuncisão, a
divisão judeus/gentios, o sistema sacrificial, um calendário regulado
pela lua e o espaço geográfico sagrado na Palestina (e todas as leis
pertencentes a esse espaço), chegariam ao fim. Assim, devemos
concluir que a terra da Palestina não tem mais uma posição
especial, certamente não mais que a circuncisão na era da Nova
Aliança. A terra não possui mais significado pactual. Não há nada de
especial nesse espaço físico particular do Oriente Médio. Aquele
sistema inteiro foi cumprido, julgado e removido.
Por fim, devemos dizer que a aliança de Deus com seu povo
continua a ser ligada à herança da terra. Não é como se tivéssemos
saído da terra para uma esperança etérea e imaterial. Pelo
contrário, na Nova Aliança, a promessa da terra foi expandida para
incluir toda a terra. Agora o mundo inteiro é declarado santo em
Cristo. A terra na Palestina que Deus prometeu a Abraão era
apenas um sinal de uma herança muito maior, a saber, todo o
cosmos. A conquista e posse da terra por Israel era apenas uma
prefiguração da herança muito maior que Deus daria ao seu povo. A
igreja está destinada a herdar a terra enquanto ela cresce e
discipula as nações da terra. Quando Cristo voltar, ele libertará
completamente esta criação física dos efeitos do pecado e da
queda, e viveremos com Deus em uma criação física renovada por
toda a eternidade. Isso e nada menos que isso é a esperança
bíblica que temos diante de nós. Assim como seremos
ressuscitados e viveremos por toda a eternidade nos corpos da
ressurreição, a própria criação passará por uma espécie de
ressurreição. Apocalipse 21-22 descreve o céu e a terra sendo
unidos. Esta é a visão que devemos ter: o céu e a terra se tornarão
um. Essa sempre foi a intenção de Deus: casar-se com seu povo e
tornar o céu e a terra um. Esta é a bendita esperança final do povo
de Deus.
Nossa esperança não é apenas eterna, mas também histórica.
Mesmo agora, a igreja tem a promessa de que “os mansos herdarão
a terra”. Mesmo agora, a promessa que Deus fez a Abraão de uma
família global está se cumprindo. Essa promessa é consistente com
a Grande Comissão de ir e discipular as nações (Mt 28.18-20). Na
Grande Comissão, Jesus diz, em essência: “Eu prometi a vocês o
mundo inteiro; agora vão e o reivindiquem. Vão pegar o que é de
vocês”. A comissão da igreja é ir e encher a terra com os discípulos
de Cristo. Mas, o mandamento é apoiado por uma promessa. A
promessa que Deus nos deu inclui não apenas um pedaço de terra,
mas a terra em sua totalidade. Um exemplo disso é Paulo
reformulando o quinto mandamento em Éfesios 6. Enquanto as
crianças judias sob a Antiga Aliança tinham a promessa de vida
longa na terra da promessa, as crianças cristãs em Éfeso têm a
promessa de uma vida longa na terra. A promessa se aplica não
apenas às crianças judias na terra da promessa, mas às gentias
onde quer que elas vivam. O escopo da promessa mudou de um
pedaço de terra restrito para englobar todo o mundo, assim como se
expandiu de crianças judias a crianças cristãs gentias.

Interpretando a Terra através de lentes dispensacionais


Há dois erros comuns cometidos em relação à terra. O
primeiro erro vem de enxergar a terra da promessa através das
lentes da teologia dispensacional. O dispensacionalismo certamente
não é tão popular como já foi, mas ainda está presente em alguns
segmentos da igreja evangélica e certamente continua a exercer
influência política nos EUA. O erro do dispensacionalismo é ainda
ver a terra de Canaã em si (ou a Palestina, como chamamos hoje)
como especial de alguma forma. Entretanto, isso é uma negação
implícita da novidade da Nova Aliança. É uma negação do alcance
global da obra de Cristo, que une crentes judeus e gentios em uma
salvação comum e uma herança comum. Se os crentes judeus
recebem uma promessa que os crentes gentios não têm, então
Paulo está errado em afirmar que já não há distinção entre judeus e
gentios em Cristo.
As epístolas de Paulo nos mostram continuamente que não há
diferença entre crentes judeus e gentios na Nova Aliança; nós
compartilhamos da mesma salvação, das mesmas bênçãos e da
mesma herança suprema. Esse aspecto da Nova Aliança recebe
uma atenção significativa nas epístolas aos Romanos, Gálatas e
Efésios. Em Cristo, a distinção judeu/gentio foi abolida; em Cristo,
somos um. Assim, dizer que os crentes judeus merecem uma
promessa especial de terra é uma violação do evangelho. Não faz
sentido dizer que os crentes gentios em Cristo têm as bênçãos A e
B, mas os crentes judeus em Cristo têm as bênçãos A, B e C.
Assim, a lógica do dispensacionalismo, que apresenta diferentes
bênçãos salvíficas para judeus e gentios, vai completamente contra
a corrente da revelação do Novo Testamento.
Não devemos mais nos referir à terra da Palestina como “terra
santa”, assim como não devemos nos referir à circuncisão como
sinal da aliança de Deus com seu povo. Certamente, pode ser
maravilhoso ir à Palestina por razões históricas. Os eventos mais
importantes da história da humanidade aconteceram ali. Mas, você
não está mais perto de Deus lá do que em qualquer outro lugar. Não
é algum tipo de peregrinação religiosa. Jesus disse que estaria
presente onde quer que dois ou três se reunissem em seu nome. Na
Nova Aliança, não precisamos ir ao templo; o templo vem até nós. O
santuário celestial se abre para nós sempre que clamamos ao Pai
em nome de Jesus (Hb 10.19ss).

Espiritualizando a Terra e a redenção


O segundo erro é assumir que a promessa da terra da Antiga
Aliança foi transformada na promessa de um céu etéreo na Nova
Aliança. É simplesmente errado pensar que a promessa de Deus
não acontece mais na dimensão física. Às vezes, os cristãos se
tornam mais voltados ao céu que voltados à terra. Não podemos
espiritualizar as promessas das Escrituras. Nossa esperança final
como povo de Deus, o povo da aliança, não é ir para o céu quando
morrermos. Certamente iremos para o céu quando morrermos, mas,
como já discutimos, é isso que os teólogos chamam de estado
intermediário, não a fase final de nossa salvação. Claro, ir para o
céu na morte é glorioso. Paulo diz que, por agora, é melhor estar
com Cristo do que estar aqui no corpo. Estaremos livres do pecado
e do sofrimento nesse ponto, mas Paulo também salienta a
ressurreição do corpo (1 Co 15) e a renovação do cosmos (Rm
8.17ss) como a bendita esperança da igreja. O céu é um lugar de
espera até a ressurreição no último dia.
O que, então, significa pensar nas coisas do alto (Cl 3.1-4)?
Significa que devemos focar nossas esperanças no céu
precisamente porque o céu é onde Cristo habita em corpo
atualmente. Pensar nas coisas do alto é pensar em Cristo. Pensa
nas coisas do alto, neste sentido, não nos torna inúteis na terra.
Pelo contrário, isso nos capacita a tornar a terra como o céu — fazer
a vontade de Deus na terra assim como no céu. No fim, céu e terra
serão unidos. O ambiente céu-terra renovado é nosso destino final.
Olhar para o alto é, na verdade, uma maneira de olhar para o futuro.
Focar no céu é focar no futuro.
Muitos na igreja hoje precisam reorientar suas expectativas
sobre o futuro. Isso é importante porque o que acreditamos sobre o
futuro tem muitas implicações para a maneira como vivemos aqui e
agora. Expectativas futuras moldam ações presentes. Compare
alguém cuja expectativa final é morar para sempre em um céu
etéreo com alguém cuja esperança final seja a ressurreição do
corpo e uma criação física renovada. Quem você acha que tem mais
chance de trabalhar duro agora? Quem você acha que tem mais
chance de ajudar os pobres, não apenas pregando para eles, mas
também satisfazendo suas necessidades físicas? Quem irá juntar
evangelismo com cuidado social pelas pessoas? Obviamente, em
condições iguais, quem espera a ressurreição do corpo e a
transfiguração do mundo material ficará mais motivado para lidar
holisticamente com as necessidades das pessoas. Se o corpo será
ressuscitado no futuro, esse resultado sugere que devemos estimar
o corpo no presente. O que você faz em seu corpo conta para
sempre.
Paulo detalha isso extensivamente em 1 Coríntios 15. Ele
defende a ressurreição em todos os aspectos. A conclusão de Paulo
para este capítulo tem uma reviravolta anti-climática. Ele diz que,
como seremos ressuscitados corporalmente, devemos ser firmes,
inabaláveis e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que,
no Senhor, o nosso trabalho não é vão (1 Co 15.58). O cristão tem
uma esperança futura em um corpo de ressurreição. Assim, o que
você deveria fazer agora? Trabalhar. Essa é a aplicação que Paulo
extrai da ressurreição futura. Parece estranho. Queremos perguntar:
“Paulo, essa é a melhor aplicação que você pode ter depois de
defender por 57 versos a ressurreição?”, mas, na verdade, faz todo
o sentido. O corpo em que você trabalha agora será o corpo que
você terá por toda a eternidade (embora transformado e
aperfeiçoado). A criação em que você está trabalhando agora para
transformá-la será, de fato, transfigurada e glorificada no último dia.
Todos os seus trabalhos para o Senhor e no Senhor serão
recompensados eternamente. O Senhor estabelecerá as obras de
suas mãos para sempre. O plano de Deus não é que fiquemos
tocando harpas pelas nuvens. Viveremos em uma nova criação
aperfeiçoada, onde adoraremos, trabalharemos e nos divertiremos
com perfeição.
Abraão teve fé de ressurreição. Onde ele encontrou a
determinação de levar Isaque ao monte e erguer a faca? Sim,
quando ele estava prestes usar a lâmina em seu filho amado, Deus
o deteve. Mas, por que Abraão foi tão longe assim? Hebreus 11 nos
diz que Abraão tinha a esperança da ressurreição. Abraão
acreditava que, se ele matasse Isaque, Deus o ressuscitaria. Ele já
tinha visto Deus trazer a vida da morte. Afinal, como ele tinha
conseguido Isaque? Deus teve que “ressuscitar” os corpos
envelhecidos de Abraão e Sara para produzir Isaque. Abraão
acreditava que, se Deus podia ressuscitar o ventre de sua esposa
idosa, certamente ele também poderia ressuscitar seu filho. Essa
esperança da ressurreição levou Abraão à obediência e moldou sua
vida.
Abraão também sabia que Deus lhe prometera muito mais do
que a faixa de terra na Palestina. Afinal, Deus prometeu a Abraão
uma família mundial: “Em ti serão benditas todas as famílias da
terra”. Não seria possível colocar esse tanto de gente naquela terra.
Assim como ele raciocinou que Deus ressuscitaria Isaque, ele
raciocinou que a promessa de terra se estenderia muito, muito mais
do que aquele terreno no Oriente Médio. Ele sabia que Deus, por
fim, abençoaria a terra inteira; a terra inteira deveria se tornar uma
terra santa. Romanos 4 confirma que Abraão tinha uma fé global,
assim como Hebreus 11 confirma que ele tinha fé na ressurreição.
Paulo diz que Abraão era herdeiro do mundo (Rm 4.13).

O propósito tipológico da Terra: a Terra como Cristo


Há uma dimensão tipológica tripla na terra. Primeiro, devemos
lembrar que toda tipologia é, em última análise, cristologia; todos os
tipos e sombras da Antiga Aliança encontram sua realização em
Cristo. Podemos traçar uma linha reta da terra da promessa até o
cumprimento em Jesus Cristo. Na Antiga Aliança, estar na terra é
tremendamente importante. Porém, no Novo Testamento, estar em
Cristo substituiu (ou cumpriu) estar na terra. De acordo com o livro
de Josué e o Salmo 95, estar na terra é entrar no descanso de
Deus. A terra existe em um tipo de Shabbath permanente.
Entretanto, em Mateus 11, Jesus declara que ele é o descanso.
Agora, o caminho para entrar no descanso de Deus é entrar em
Cristo. Entrava-se na terra passando pelas águas; da mesma forma,
entramos em Cristo passando pelas águas do batismo.
Por que há um capítulo inteiro no livro de Gênesis dedicado
exclusivamente às negociações de Abraão por um pequeno pedaço
de terra para enterrar Sara depois que ela morrer? É porque
descansar na terra era um sinal e um símbolo de estar em Cristo. É
claro, ele quer que sua esposa descanse ali. Era um sinal de fé. Da
mesma forma, considere o pedido de Jacó a seus filhos em Gn
49.29ss de levar seus ossos para serem enterrados na terra. Por
que isso importa? Essas instruções são um sinal de sua fé e seu
desejo de estar em Cristo. O final do livro de Gênesis relata seu
enterro na terra, porque é um sinal das coisas futuras; é uma
promessa. Estar na terra é (simbólica e sacramentalmente) um sinal
de estar em Cristo.
Assim, ser exilado da terra era um sinal de apostasia e
exclusão de Cristo. A linguagem do livro de Levítico mostra isso.
Quando as pessoas estavam em pecado, a lei dizia que a terra os
vomitaria (Lv 18.25, 28). Uma terra santa não pode conter um povo
profano. Mas, qual é a contrapartida da Nova Aliança para a terra
que vomita apóstatas? Em Apocalipse 3, Jesus diz que ele vomitará
membros mornos (infiéis) da aliança. Essa ameaça se aplica aos
membros da igreja que foram incorporados a ela — se eles não
forem fiéis, Cristo os cuspirá da sua boca. O que a terra faria ao
Israel infiel, agora Jesus ameaça fazer com uma igreja infiel.

Pó santo
Lembre-se de que o primeiro princípio da interpretação bíblica
de Agostinho era totus Christus, o Cristo total, cabeça e corpo. Tipos
são cumpridos em Cristo, mas não terminam com Cristo; eles têm
um “acompanhamento” no povo de Cristo, a igreja. Assim, devemos
perguntar: como a terra também é um tipo da igreja? Devemos
pensar em nós mesmos como a verdadeira terra santa. Somos a
terra santa que ganha vida. Como Deus formou o primeiro homem?
A partir do pó da terra. O que era Adão? Adão era terra na qual
Deus soprou vida.
Somos feitos do pó da terra. As Escrituras dizem que maldição
da serpente era comer poeira. Entretanto, as Escrituras também nos
dizem que Satanás é como um leão buscando a quem devorar.
Satanás está procurando um pouco de terra para comer.
Que tipo de terra nós somos? A Bíblia nos chama de santos, o
que significa que somos poeira santa. Nós somos terra santa. Nós
somos a personificação viva da terra santa. Na Nova Aliança, você e
seus irmãos cristãos são um espaço sagrado. Você é a terra, a
cidade e o templo.
Considere como o espaço sagrado funcionava na Antiga
Aliança. O sistema de santidade da Antiga Aliança tinha uma
fundação geográfica, pelo menos simbolicamente. Se você quisesse
se aproximar de Deus, teria de ir ao templo em Jerusalém. Na Nova
Aliança, Jesus diz: “onde estiverem dois ou três reunidos em meu
nome, aí estou eu no meio deles”. O lugar sagrado é onde nos
reunimos. Por quê? Porque nós somos o espaço sagrado. Vimos
que estar em Cristo cumpre o que estar na terra significava para
Israel. Também podemos dizer que estar na igreja cumpre o
significado de estar na terra santa. As Escrituras nos apontam para
essa verdade de maneira bastante explícita. Em Hb 11.16, temos
um sumário do que esses santos da Antiga Aliança procuravam
enquanto olhavam para o futuro com os olhos da fé: “Mas, agora,
aspiram a uma pátria superior, isto é, celestial”. A fé deles
enxergava além da terra da Palestina e via algo maior. “Por isso”,
Hebreus diz, “Deus não se envergonha deles, de ser chamado o seu
Deus, porquanto lhes preparou uma cidade”. Em Hebreus, essa
pátria e cidade celestial são praticamente intercambiáveis. Assim,
devemos perguntar: “O que é a pátria celestial? O que é a cidade
celestial que nos foi prometida?”. No Novo Testamento, descobrimos
que é a igreja.
A igreja é a Jerusalém celestial (Gálatas 4, Apocalipse 21-22).
Hebreus 12 diz que quando vamos à igreja, chegamos “ao monte
Sião e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial”. Qual era o
país e cidade celestial que os patriarcas desejavam ver? A igreja.
Todas aquelas entidades geográficas e políticas da Antiga Aliança
encontram seu cumprimento na comunidade da Nova Aliança. A
terra foi o lugar de habitação de Deus, o lugar onde ele colocou seu
nome; agora, a igreja é o lugar de habitação de Deus, o lugar onde
Deus coloca seu nome.
Por fim, podemos dizer que a terra, considerada
tipologicamente, foi um sinal da posse muito maior que Deus daria
ao seu povo, a saber, toda a terra. Agora, toda a terra foi purificada
e é uma morada adequada para Deus. Falar da terra da Palestina
como “a terra santa” é sugerir que o resto da terra ainda é profano e
impuro e, portanto, está sob a maldição de Deus. Se ficarmos
tentados a pensar assim, precisamos lembrar que Deus disse a
Cornélio: “Não chame impuro ao que Deus purificou” (NVI). Jesus
Cristo reivindicou o mundo inteiro. Se ele não parece santo ainda,
apenas espere. É só uma questão de tempo. O mundo pode não
parecer um país celestial ou uma cidade santa, mas Deus promete
torná-lo assim.

A universalidade da Terra
No período em que a história de Rute ocorre, a presença e
promessa de Deus estavam, em certo sentido, ligados à terra da
Palestina. Considere a história de Naamã, o sírio, encontrada em 2
Reis 5. Naamã era um sírio que contraiu lepra. Seguindo as
instruções do profeta Eliseu, ele é purificado no rio Jordão. Então
ele insiste em levar um pouco de terra da terra prometida de volta
para casa (2 Reis 5.17). Isso nos parece um pouco supersticioso, e
seria supersticioso fazer algo assim hoje. Mas nos dias de Naamã,
fazia todo sentido, e é por isso que Eliseu abençoa sua ação.
Naquela época, Naamã sabia que a presença e as promessas de
Deus estavam ligadas a esse pedaço de terra. Ao levar terra de
Israel, ele está levando a presença e santidade de Deus com ele. É
um ato de fé, um sinal de que ele confia no Deus de Israel. É claro,
isso também é tipológico, prenunciando a extensão do espaço
sagrado até os confins da terra.
Traga tudo isso de volta a Rute 1 e a decisão de Elimeleque
de deixar a terra. Na Nova Aliança, somos livres para nos mudar de
um lugar para o outro, nação a nação, sem qualquer efeito sobre
nosso relacionamento com Deus. Podemos nos encontrar com Deus
em qualquer lugar. É claro, há um sentido em que isso era verdade
sob a Antiga Aliança. Entretanto, também é verdade que, sob a
Antiga Aliança, a terra de Deus simbolizava a presença de Deus, e
Israel viver na terra era um sinal de que eles desfrutavam da bênção
de Deus de uma maneira especial. Deixar deliberadamente a terra
após a conquista era levar a maldição do exílio sobre si mesmo.
Tipologicamente falando, Elimeleque sair da terra era
essencialmente o equivalente a abandonar a Cristo e a igreja.
Elimeleque abandonou sua herança na terra, o que era um sinal de
abandonar sua herança eterna. Previsivelmente, viver fora da terra
trouxe morte.
Apêndice B — Uma teologia das asas
Rute 2.12 nos prepara o cenário quando Boaz diz a Rute: “O
Senhor retribua o teu feito, e seja cumprida a tua recompensa do
Senhor, Deus de Israel, sob cujas asas vieste buscar refúgio”. O que
o texto quer dizer quando fala de Rute vindo encontrar refúgio sob
as asas do Senhor? Boaz ora para que Rute seja recompensada
pelo Senhor debaixo de suas asas, onde ela encontrou refúgio. O
que isso nos diz sobre Deus? O que isso diz sobre a natureza da
nossa salvação?
Mais tarde no livro (Rute 3.9), Rute dará a Boaz a
oportunidade de responder sua própria oração. Na eira à noite, ela
virá até ele dirá: “Estende a tua capa [tuas asas] sobre a tua serva,
porque tu és go'el, tu és resgatador”. O que essa imagem da asa
significa?
Estender as asas sobre outro era formar um laço pactual com
essa pessoa. Ezequiel 16 fornece um vislumbre desse tema,
descrevendo o casamento de Deus com Israel da maneira como ele
se uniu em amor ao seu povo. A passagem diz que, quando Israel
nasceu, Deus o batizou; ele o lavou. Provavelmente, isso é uma
referência ao êxodo e à travessia do Mar Vermelho. Deus a lavou na
água e depois a nutriu para que ela crescesse, amadurecesse e se
tornasse bonita. Então, quando chegou a hora, ele se casou com
ela. Isso pode ser uma referência ao que aconteceu no Sinai ou a
algum outro ponto da história de Israel quando Deus entrou em
aliança com eles. Ele fez um juramento de casamento para sua
noiva. E, em Ez 16.8, lemos:
“Passando eu por junto de ti, vi-te, e eis que o teu tempo era tempo
de amores; estendi sobre ti as abas do meu manto e cobri a tua
nudez; dei-te juramento e entrei em aliança contigo, diz o Senhor
Deus; e passaste a ser minha”, diz o Senhor Deus.
Esta é uma descrição poética do casamento de Deus com
Israel. É como se Deus fosse um pássaro que estende suas asas
sobre sua noiva para protegê-la e guardá-la. Deus abrir suas asas
sobre Israel significa entrar em aliança com eles. É claro, é
exatamente isso que Rute pede que Boaz faça em Rute 3. “Estende
tuas asas ou manto sobre mim” é basicamente a forma de ela dizer:
“Case-se comigo. Faça-me tua. Faça um juramento de tornar-me
sua esposa por aliança”.
Um rápido exame bíblico do conceito de asas revela que os
tradutores nos fizeram um grande desserviço ao não traduzirem a
palavra consistentemente. A palavra traduzida como “asa” em Rute
2, Rute 3 e Ezequiel 16 é, às vezes, traduzida por outros termos.
A origem da figura das asas começa no relato da criação em
Gênesis 1, onde lemos que o Espírito paraiva ou movia-se sobre a
terra vazia e sem forma. Encontramos a figura de um pássaro sendo
usada para descrever Deus, particularmente o Espírito Santo. Em
Deuteronômio 32, Deus tira os israelitas do Egito e o texto refere-se
a Deus pairando sobre o povo. É o mesmo palavreado usado no
relato da criação de Gênesis 1. O êxodo é uma nova criação; Israel
se torna como uma nova criação. Novamente, Deus paira sobre sua
criação, seu povo recém-formado.
Outro exemplo desse tema encontra-se em Nm 15.37-41:
Disse o Senhor a Moisés: Fala aos filhos de Israel e dize-lhes que
nos cantos das suas vestes façam borlas pelas suas gerações; e as
borlas em cada canto, presas por um cordão azul. E as borlas
estarão ali para que, vendo-as, vos lembreis de todos os
mandamentos do Senhor e os cumprais; não seguireis os desejos
do vosso coração, nem os dos vossos olhos, após os quais andais
adulterando, Para que vos lembreis de todos os meus
mandamentos, e os cumprais, e santos sereis a vosso Deus. Eu sou
o Senhor, vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito, para vos ser
por Deus. Eu sou o Senhor, vosso Deus.
Quando o texto fala dos cantos da veste, na verdade está
falando das asas das vestes. Todo israelita deveria vestir uma roupa
com quatro cantos, ou quatro asas, e em cada canto ou asa da
roupa haveria uma borla azul. Essas borlas azuis eram sinais ou
memoriais ao Senhor e à aliança que ele havia feito com Israel.
Talvez você tenha ouvido falar de “leis azuis”,[12] como as leis do
sábado, por exemplo. Parece que essas leis azuis se originaram
com os protestantes escoceses, que escolheram usar a cor azul
como símbolo da aliança. Os presbiterianos da Escócia ficaram
conhecidos como as pessoas que eram true blue [azul verdadeiro],
uma expressão que é utilizada até hoje.
Os israelitas tinham borlas azuis em cada canto ou asa de
suas vestes para lembrá-los de sua aliança com Deus e de como
eles deveriam ser leais a ele. Suas asas serviam como lembretes
simbólicos constantes de que eles eram seu povo especial, que foi
redimido no êxodo. Eles eram o seu povo celestial (e o azul é a cor
dos céus, claro).
Em Ez 1.6, encontramos os querubins, os guardiões angélicos
do trono de Deus, com quatro asas. Se um israelita veste uma roupa
com quatro asas, podemos ver imediatamente uma conexão entre o
israelita e o querubim. A principal função dos querubins era guardar
a santidade de Deus (por exemplo, havia querubins de ouro na Arca
da Aliança guardando glória-shekinah de Deus). Israel, em certo
sentido, deveria ser uma nação de querubins. Eles deveriam ser um
povo semelhante aos querubins, um sacerdócio real guardando o
trono e a santidade de Deus.
Em Ez 1.8, há uma conexão simbólica entre as asas dos
querubins e suas mãos. É claro, por toda a Escritura, as mãos têm
relação com poder, autoridade e auxílio. Em Ageu 2, há um paralelo
entre as asas — nesse contexto específico, as asas das vestes — e
as mãos da pessoa. É como se as asas das vestes fossem mãos
simbólicas. Eles são símbolos de poder, autoridade e auxílio.
Há numerosas passagens por todo o Saltério e os Profetas
que falam de Deus tendo asas. Algumas dessas passagens estão
entre os textos mais bonitos e poéticos de todas as Escrituras.
Salmo 17.8, por exemplo, diz: “Guarda-me como a menina dos
olhos, esconde-me à sombra das tuas asas”. Assim como alguém
faria qualquer coisa para proteger a pupila dos seus olhos, aqueles
que se escondem à sombra das asas de Deus estão em um lugar
de proteção.
Salmos 36.7 diz: “Como é preciosa, ó Deus, a tua
benignidade! Por isso, os filhos dos homens se acolhem à sombra
das tuas asas”. Assim, a benignidade de Deus, seu hesed, é um
amor pactual forte e indestrutível. O que significa ser protegido e
guardado por esse amor pactual? Significa segurança e proteção
total. Estar sob a proteção das asas de Deus é glorioso. É salvação.
Como Salmos 57.1 diz: “Tem misericórdia de mim, ó Deus, tem
misericórdia, pois em ti a minha alma se refugia; à sombra das tuas
asas me abrigo, até que passem as calamidades”. Onde você se
esconde em tempos de calamidade, angústia e problemas? Você se
refugia sob as asas de Deus. Ali você encontra sua misericórdia e
provisão.
Em Salmos 61.4, Davi diz: “Assista eu no teu tabernáculo,
para sempre; no esconderijo das tuas asas, eu me abrigos.
Obviamente, Davi era um rei, não um sacerdote, então não poderia
habitar no tabernáculo. Davi está falando escatologicamente ao
prenunciar a Nova Aliança, quando todos formos levados à
presença-templo de Deus. Isso é equivalente a se abrigar sob as
asas de Deus. Estar sob as asas de Deus é ser incorporado ao seu
tabernáculo ou à sua presença no templo. Há um tipo de
proximidade com Deus que vem com isso.
Outro exemplo se encontra em Salmos 63.7: “Porque tu me
tens sido auxílio; à sombra das tuas asas, eu canto jubiloso”. Assim,
as asas são um lugar de auxílio; é o lugar onde o poder de Deus se
manifesta para nossa proteção. De forma semelhante, veja Salmos
91.4: “Cobrir-te-á com as suas penas, e, sob suas asas, estarás
seguro; a sua verdade é pavês e escudo”. Deus é como um pássaro
poderoso que desce sobre nós e protege-nos com suas asas.
Passando para o Novo Testamento, Jesus retoma esse tema
como parte do seu ensino também. Por exemplo, em Mt 23.37, no
contexto de todas as maldições que ele derrama sobre os fariseus,
Jesus olha para Jerusalém e diz: “Jerusalém, Jerusalém, que matas
os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes
quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos
debaixo das asas, e vós não o quisestes!”. Então, ele diz: “Eis que a
vossa casa” — isto é, o templo — “vos ficará deserta. Declaro-vos,
pois, que, desde agora, já não me vereis, até que venhais a dizer:
Bendito o que vem em nome do Senhor!”. Nosso Senhor chora por
Jerusalém porque esta é uma cidade rebelde e ímpia. Ela matou os
profetas no passado e está prestes a crucificar Jesus, que é o
profeta final e supremo. Jesus diz: “Eu anseio por cobrir vocês com
minhas asas, como uma galinha faz seus filhotes. Esse tem sido
meu desejo, protegê-los e guardá-los”. Como Deus no Antigo
Testamento, Jesus tem asas.
Há outras passagens que não usam esse vocabulário
específico, mas estão claramente relacionadas. Por exemplo, o
Salmo 133 fala do sacerdote sendo ungido e do óleo da unção
escorrendo sobre o sacerdote, da barba de Arão, até a borda de sua
vestimenta, até a barra de sua túnica. Isso significa, é claro, as asas
da roupa. A própria veste é um símbolo do povo. Significa que o
povo, como um todo, será coberto com essa unção sacerdotal.
Outras passagens também levam isso em consideração. Em 1
Samuel 15, quando Saul é rejeitado como rei sobre Israel, ele
agarra a asa, ou canto, da veste de Samuel e a rasga. E Samuel
diz: “O Senhor rasgou, hoje, de ti o reino de Israel”. Isto é, rasgar o
canto das vestes significava que o reino tinha sido rasgado de Saul.
Ele perdeu sua autoridade como regente do reino. Mais tarde, em 1
Samuel 24, Davi secretamente vai até Saul em uma caverna,
esconde-se em um lugar perto de Saul e corta a asa de seu manto,
que é um ato altamente simbólico.
A asa simboliza o reino; ela simboliza a posição semelhante à
de um querubim que Saul tem como regente sobre a nação. Davi
tomando o canto da veste é um símbolo de que Davi tomará o reino
de Saul. Mais tarde, Davi se arrepende desse ato porque sabe que
atacou prematuramente a autoridade do ungido do Senhor. Davi tem
que esperar o tempo de Deus para receber o reino. Ele reconhece
que apoderar-se da asa foi um ato desonroso. Mas, permanece a
ideia de que o reino será retirado de Saul e entregue a Davi.
Assim, o que temos visto até agora? O canto (asa) da veste
representa a aliança. Representa justiça e proteção. Está associado
à mão de uma pessoa, o que tem a ver com poder, autoridade e
auxílio, e com o reino. Todas essas coisas se unem no tema das
asas.
Em Rute 3, Rute vai segurar as asas de um judeu. Ela
receberá bênção e proteção dessa maneira. Em Rute 2, ela busca
refúgio sob as asas do Senhor e, em Rute 3, ela toma posse do
cuidado de Boaz e encontra segurança pactual ali.
Estamos construindo uma imagem composta de tudo o que
está associado a essas imagens de asas, e certamente há outras
coisas que poderíamos adicionar a esta lista. Mas há uma história
em particular no Novo Testamento que reúne tudo isso. Em Lucas
8.40-55, lemos sobre uma mulher que teve fluxo de sangue por
doze anos. É claro, esse fluxo de sangue a tornava ritualmente
impura segundo a lei do Antigo Testamento. Sob o código levítico,
quando o sangue flui, a vida flui e o resultado é a morte (simbólica).
A mulher de Lucas é uma morta-viva. Ela é imunda ou
simbolicamente morta, o que significa que ela está excluída do culto
em Israel. Sua vida tem sido um inferno. Por doze anos, ela esteve
no exílio; ela foi afastada da comunidade da aliança, incapaz de
participar do culto no templo. E o pior, ela não podia ter qualquer
comunhão real com as pessoas porque, como alguém impuro, tudo
o que ela tocava tornava-se impuro. Sua impureza se espalharia
para os outros. Na Antiga Aliança, a morte se espalha (Rm 5.12ss).
Porque ela teve o fluxo de sangue por doze anos, podemos ter
justificativa para ver sua condição como um retrato das doze tribos
de Israel sob a lei, sem vida e impuras.
O que ela faz? Quando Jesus passa, ela aparece por trás e
toca a orla com asas das vestes de Jesus. Ela o agarrou pela asa.
Deveríamos pensar em Zacarias 8, e talvez também em Ml 4.2. Esta
é provavelmente a passagem que ela tinha em sua mente. Ela sabe
que encontrará a cura nas asas do “Sol da justiça”. Certamente, de
acordo com a lei do Antigo Testamento, o que teria acontecido
quando essa mulher impura tocou Jesus é que a impureza dela teria
passado para ele. Ele deveria ficar contaminado naquele momento.
Mas, em vez de a impureza e a morte dela passarem para ele, a
santidade dele passa para ela e derrota a morte dela.
Assim, com a vinda de Jesus, todo o sistema em que a morte
se espalha para todos os homens é revertido. Agora a santidade, a
vida e a justiça se espalham porque Jesus veio e o Espírito veio. Em
Lucas 8.46, Jesus diz “de mim saiu poder”. E ele quer saber quem o
tocou. Em Lucas, o poder está quase sempre associado ao Espírito
Santo. É como se, quando a mulher o toca, o Espírito Santo fluísse
através da borda da veste de Jesus para ela e a restaurasse,
trazendo vida a ela e vencendo a morte que estava fluindo dela.
Esta mulher encontra cura nas asas de Jesus
Apêndice C — Graça e boas obras: Um
panorama teológico
Em Rute 2, Rute deixa muito claro que ela está impressionada
com a graça de Boaz. Ela pergunta: “Por que encontrei favor aos
seus olhos?”. Boaz responde em Rute 2.11 com uma linguagem que
indica que Rute é como Abraão: ela deixou sua terra natal e chegou
a um povo/terra que não conhecia. Em Rute 2.12, Boaz diz: “O
Senhor retribua o teu feito, e seja cumprida a tua recompensa do
Senhor, Deus de Israel, sob cujas asas vieste buscar refúgio”.
Boaz descreve a recompensa que Rute receberá como um
pagamento. “O Senhor retribua o teu feito.” Como devemos
entender isso? O que significa o Senhor retribuir nosso trabalho?
Isso significa que, quando fazemos boas obras para Deus, estamos
pagando a Deus — como colocar uma ficha numa máquina — para
que Deus então nos pague quando a recompensa surgir? Nossas
obras pagam Deus? Nós trabalhamos para Deus para que ele nos
dê um salário em troca? É este o tipo de relacionamento descrito
aqui?
De fato, Boaz também diz que Rute buscou refúgio sob as
asas do Senhor. Nós já vimos que esse vocabulário indica uma
profunda relação pactual, semelhante ao de um marido e sua
esposa. É a linguagem do amor, da fé e da graça. Porém, ainda
precisamos perguntar: Por que essa linguagem de retribuição em
Rute 2.12? Como isso se encaixa?
Este não é o único lugar onde esse tipo de linguagem ocorre.
Sob a Nova Aliança, Hb 6.9-10 diz:
Quanto a vós outros, todavia, ó amados, estamos persuadidos das
coisas que são melhores e pertencentes à salvação, ainda que
falamos desta maneira. Porque Deus não é injusto para ficar
esquecido do vosso trabalho e do amor que evidenciastes para com
o seu nome, pois servistes e ainda servis aos santos. Desejamos,
porém, continue cada um de vós mostrando, até ao fim, a mesma
diligência para a plena certeza da esperança; para que não vos
torneis indolentes, mas imitadores daqueles que, pela fé e pela
longanimidade, herdam as promessas.
Paulo (ou algum outro escritor inspirado) diz que Deus não é
injusto para esquecer o trabalho de amor dos santos. O que isso
poderia significar e como se encaixa com o que sabemos da graça e
justiça de Deus?
Hebreus 6 diz que Deus não será injusto; sua justiça inclui ter
consideração por aqueles que trabalharam em amor. Deus não vai
esquecer de retribuir, poderíamos dizer, pelo trabalho que eles
fizeram por ele. A recompensa dada pelas obras realizadas é
considerada uma questão de justiça (como é considerada uma
questão de retribuição em Rute 2).
Há alguns na história da igreja que consideram isso um tipo de
sistema de débito e pagamento. Nossos pecados são dívidas,
nossas boas obras são pagamento e, com sorte, as coisas se
equilibrarão a nosso favor no final, com mais crédito do que débito.
Porém, sabemos que tudo na Bíblia vai contra essa interpretação.
Mas, ainda precisamos perguntar: “Como explicamos esse
vocabulário?”. A menos que desejemos concluir que Boaz é um
herege — uma ideia absurda —, precisamos entender como sua
declaração se encaixa em uma estrutura soteriológica ortodoxa.
A chave para a linguagem de retribuição é que, quando anda
com Deus, você caminha no caminho da obediência. E, quando
você caminha no caminho da obediência, encontra favor, bênção e
recompensa. A bênção não é merecida de forma alguma. Não há
teologia de mérito na Bíblia. Não há nada que possamos merecer de
Deus, nenhuma maneira de comprar o favor de Deus por nossas
boas obras. Não podemos arrancar o favor de Deus. A linguagem
de retribuição deve ser entendida como linguagem pactual. É a
forma de Deus dizer que aqueles que andam fielmente em
obediência estão andando no caminho da salvação, e Deus fará o
bem para eles.
Nada aqui é incompatível com a graça. Mas a graça bíblica, a
verdadeira graça, não apenas concede perdão gratuito, mas
também traz transformação. Pela graça, somos salvos sem obras. E
pela graça, começamos a fazer boas obras. Pela graça, somos
perdoados. E pela graça, somos transformados. Pela graça, somos
aceitos. E, pela graça, nossas obras boas, mas imperfeitas, são
aceitas e recompensadas também. O Catecismo maior de
Westminster (R. 32) chama isso de “santa obediência”, onde seu
povo caminha no “caminho que Deus lhes designou para a
salvação”.
João Calvino observa: “O ensino da Escritura é que nossas
boas obras estão sempre salpicadas de muitas manchas…
Entretanto, porque as examina em função de sua indulgência, não
de seu direito supremo, as aceita exatamente como se fossem as
mais puras possíveis”.[13] Se Deus examinasse nossas obras
segundo um padrão de retidão absoluta, nossas obras sempre
estariam em falta e seriam sempre condenadas. Não importa o
quanto você esteja sendo correto em um determinado momento,
você não está fazendo isso perfeitamente para a glória de Deus,
perfeitamente com uma fé madura, e perfeitamente por amor.
Assim, isso seria digno de condenação se fosse julgado pelo juízo
supremo de Deus. Mas, como Deus julga seu povo, que está unido
a seu Filho pela fé? Ele é um pai para o seu povo. Calvino diz que
Deus os julga como um pai julga o trabalho de uma criança. Ele
julga as obras de seu povo com certa benignidade. “Entretanto”,
Calvino diz, ele as examina “como se fossem as mais puras
possíveis; e por isso, ainda que destituídas de mérito, as galardoa
com infinitos benefícios, tanto da presente vida, quanto também da
vida futura”.[14] Calvino entende a salvação, em certo sentido, como
uma recompensa por boas obras.
Alguns dirão que essa linguagem sobre retribuição tem a ver
com Deus dando benefícios temporais nesta vida como recompensa
por boas obras. Às vezes, eles indicam o livro de Provérbios e
afirmam: se você é piedoso, experimentará as bênçãos de Deus
nesta vida. Mas, essas passagens, eles argumentam, não têm nada
a ver com salvação. Essa visão se aproxima perigosamente do
“evangelho da prosperidade”. Muitas pessoas obedecem a Deus,
mas não experimentam bênçãos terrenas.
Além disso, não é isso que Calvino diz. Ele diz que essas
boas obras certamente podem ser recompensadas com benefícios
na vida atual ocasionalmente, mas são especialmente
recompensadas na vida futura. Calvino observa:
Pois não aceito a distinção feita por varões de outra sorte doutos e
pios de que as boas obras são merecedoras dessas graças que nos
são conferidas nesta vida, que o único prêmio da fé eé a salvação
eterna, porquanto o Senhor quase sempre coloca no céu a
recompensa dos labores e a coroa do combate.[15]
Calvino diz que a salvação eterna não é apenas a
recompensa da fé; é a recompensa de uma fé operante e em amor,
ou fé e seus frutos. Ao mesmo tempo, Calvino se guarda de certo
mal-entendido. De acordo com ele, seria contrário às Escrituras
afirmar que essas obras merecem algo:
Portanto, tudo quanto agora se confere aos piedosos em ajuda à
salvação, ainda mesmo a própria bem-aventurança, é mera
beneficência de Deus. Contudo, tanto nesta, quanto naqueles, ele
testifica que tem consideração pelas obras, porquanto, para atestar
a magnitude de seu amor para conosco, digna de tal honra não
apenas a nós mesmos, mas também aos dons que nos prodigalizou.
[16]

A expressão “digna de tal honra” tem um papel central no


vocabulário de Calvino. Também é uma categoria crucial nas
Escrituras. Em Apocalipse 4, os seres viventes afirmam que o
Cordeiro (Jesus Cristo) é digno de receber glória, honra e poder. Em
Apocalipse 5, o Cordeiro é novamente declarado digno de receber
poder, riquezas e sabedoria. Jesus tem essa dignidade — de fato,
uma dignidade infinita. Mas, o mais impressionante é que as obras
dos santos são descritas como “dignas” em Ap 3.4: “Tens, contudo,
em Sardes, umas poucas pessoas que não contaminaram as suas
vestiduras e andarão de branco junto comigo, pois são dignas”. A
mesma palavra que os santos e os anjos usam para descrever o
Cordeiro de Deus é a palavra que Deus usam para descrever as
boas obras do seu povo. Isso não significa que seja possível
equiparar a dignidade de Deus e das obras dos santos. Se estamos
falando sobre o amor de Deus por nós e nosso amor por Deus, não
queremos dizer a mesma coisa nesses dois contextos. Mas, há uma
conexão. É precisamente isso que está acontecendo aqui. Jesus,
em sua pessoa e obra, tem um valor infinito. Por causa de nossa
união pactual com Jesus, nossas boas obras também são dignas.
Calvino diz: “As promessas do evangelho... não apenas fazem
com que nós mesmos sejamos aceitáveis a Deus, mas também que
nossas obras tenham o seu favor”.[17] Esta é uma boa notícia. Deus
está satisfeito com nossas boas obras. A promessa do evangelho é
que Deus não somente aceitará nossas pessoas em Cristo, mas
também aceitará nossas boas obras por causa de Cristo.
Novamente, Calvino escreve:
Não apenas que o Senhor as tenha como agradáveis, mas ainda
que as cumule das bênçãos que, em função do pacto, eram devidas
à observância de sua lei. Portanto, confesso que às obras dos fiéis
se atribuem as recompensas que, em sua lei, o Senhor prometeu
aos cultores da justiça e da santidade, contudo nesta retribuição
deve ser sempre considerada a causa que granjeia favor para as
obras. Verificamos que, de fato, esta é tríplice.
A primeira é que Deus, não olhando para as obras de seus servos,
as quais sempre merecem mais reprovação do que louvor, os
abraça em Cristo, e interpondo-se somente a fé, os reconcilia
consigo à parte da participação das obras. A segunda, que as obras,
não as estimando por sua própria dignidade, mercê de sua paterna
benignidade e indulgência, lhes imprime certo valor e lhes presta
certa atenção. A terceira, Deus acolhe a essas mesmas obras com
perdão, sem imputar-lhes qualquer imperfeição, que de tal maneira
as poluem que, de outra sorte, seriam computadas mais aos
pecados do que às virtudes. E daqui se faz evidente quão
profundamente enganados são os sofistas que pensaram haver-se
evadido magistralmente a todos os absurdos, quando dissessem
que as obras não valem por sua bondade intrínseca para que
mereçam a salvação, mas em razão do pacto que o Senhor, por sua
liberalidade, tanto as estimou. Entrementes, não observavam da
perspectiva da condição das promessas, o quanto se distanciaram
as obras que queriam que fossem meritórias, a menos que as
precedesse não só a justificação sustentada somente na fé, mas
também a remissão dos pecados, mercê da qual mesmo as boas
obras têm necessariamente de ser purificadas de manchas. Dessa
forma, das três coisas da divina liberalidade, mercê das quais
acontece que são aceitáveis as obras dos fiéis, assinalaram apenas
uma; suprimiram as outras duas, e certamente as principais.[18]
Com frequência, dizemos que mesmo nossas melhores obras
são pecaminosas aos olhos de Deus e é claro que isso é verdade.
Na tradição protestante, enfatizamos que a lei de Deus exige
santidade absoluta e retidão absoluta; portanto, menos que isso
será condenado diante do padrão do juízo de Deus. Isso é verdade
para aqueles que estão fora de Cristo. Mas, certamente não é a
forma primária que Deus quer que pensemos sobre sua lei como
crentes. Deveríamos pensar na lei de Deus não como um padrão de
condenação — embora ela nos condenará se estivermos fora de
Cristo e não tivermos o perdão dele — mas, acima de tudo como
instrução paternal.
Muitos cristãos acreditam que jamais poderiam fazer algo bom
o suficiente para Deus. Assim como crianças que crescem
acreditando que nunca podem agradar a seus pais terrenos acabam
com uma profunda insegurança, também há muitos cristãos que
veem seu Pai celestial como impossível de agradar. Mas não é
assim que Deus quer que o vejamos. Deus se agrada e sorri para
nós quando procuramos ser obedientes, mesmo sabendo que nossa
obediência não é perfeita. Por meio da mediação de Cristo, as
imperfeições de nossas boas obras são perdoadas (assim como
nossos pecados são perdoados) e as boas obras que fazemos são
aceitas pelo Pai por causa do Filho.
Há uma dinâmica dupla ocorrendo em Rute 2 (e outras partes
semelhantes das Escrituras). O que os santos dizem quando são
levados à presença de Deus? Nós diremos: “Somos servos inúteis”
(Lucas 17.10). Não temos nada a oferecer a Deus que possa deixá-
lo em dívida conosco. Mas, o que Deus diz sobre nós? Ele dirá:
“Muito bem, servo bom e fiel” (Mt 25.23). O que você deve dizer
sobre suas obras? “Eu sou um servo inútil, sem mérito”. Isso é o que
Rute diz sobre suas obras: “Não sou digna”. Mas, o que Deus diz
sobre suas obras? Ele diz a mesma coisa que Boaz: “O Senhor vai
retribuir você. Muito bem, servo bom e fiel”. Essa é dinâmica da
Bíblia.
O paradigma lei e evangelho — Um panorama teológico
A linguagem de retribuição em Rute 2 é, assim, uma
promessa do evangelho. Deus a retribuirá por seu serviço. Nós
sabemos disso porque, no versículo imediatamente anterior em
2.11, lemos que Boaz respondeu a Rute dizendo: “Bem me
contaram tudo quanto fizeste a tua sogra, depois da morte de teu
marido, e como deixaste a teu pai, e a tua mãe, e a terra onde
nasceste e vieste para um povo que dantes não conhecias”. Boaz
diz que a moabita é como o pai Abraão, que deixou sua terra natal
e, pela fé, chegou a uma terra estranha que não conhecia. Rute
demonstrou fidelidade à aliança no cuidado de sua sogra. Ela
tornou-se essencialmente um membro da nação da aliança ao ligar-
se a Noemi. É no contexto desse relacionamento que Boaz lhe diz:
“Você receberá retribuição”.
Mas, ainda soa estranho aos nossos ouvidos falar do Senhor
nos pagando de volta. Provavelmente, diríamos algo como “Que o
Senhor seja gracioso” ou “Que o Senhor lhe demonstre
misericórdia”. Não estaríamos tão inclinados a dizer “Que o Senhor
lhe retribua” ou “Que o Senhor demonstre sua justiça”. No máximo,
essas podem ser coisas que estamos inclinados a dizer para nossos
inimigos. Deus vai te pagar pelas coisas ruins que você fez. Ou,
Deus vai trazer justiça pelas coisas más que você fez. Mas, em Rute
2, a linguagem de retribuição e justiça não é uma ameaça, mas um
encorajamento.
A referência à retribuição é um desses lugares onde certos
paradigmas ou maneiras de pensar provam-se um obstáculo para
entender realmente os textos das Escrituras. E um desses
paradigmas problemáticos é o chamado paradigma lei/evangelho. O
paradigma lei/evangelho certamente antecede a Reforma, mas
Martinho Lutero o popularizou. Lutero nem sempre foi consistente
em como ele elaborava isso, mas em muitos casos Lutero via a lei
como uma coisa ruim e o evangelho como uma coisa boa. Tudo o
que a lei faz é condenar; tudo o que o evangelho faz é fazer
promessas gratuitas e incondicionais. A lei está cheia de ameaças,
e o evangelho é essa mensagem pura e incondicional de boas
novas, de acordo com Lutero. Com certeza, podemos dizer que, se
alguém está tentando obter sua própria salvação, a lei não fará nada
além de condenar essa pessoa. Mas o evangelho condena essa
pessoa também. O evangelho se torna um aroma de morte para o
incrédulo.
É claro, o evangelho também faz exigências. O evangelho
requer uma resposta em fé obediente. Sim, esta resposta é em si
um dom da graça de Deus, mas é uma resposta que devemos dar
ainda assim.

Rumo a um entendimento adequado das obras


Quando vemos passagens como a de Rute 2 — “o Senhor lhe
retribua” — isso não significa que Deus está oferecendo a salvação
como uma barganha. Na igreja medieval tardia, alguns acreditavam
que, se fizermos boas obras o bastante, Deus nos pagará com a
salvação. Mas, essa lei foi um pouco relaxada. A lei não exigia
perfeição; Deus relaxou em suas exigências para se adequarem a
nossas habilidades (naturais). Assim, a salvação poderia ser obtida
com uma taxa de desconto. Mas este é um modelo de salvação
profundamente falho. A visão medieval pegou uma verdade bíblica e
a distorceu.
Uma maneira mais precisa de entender a linguagem bíblica
seria dizer que, com base na morte, ressurreição e intercessão de
Cristo, nossas obras podem ser consideradas boas e santas aos
olhos de Deus, e, portanto, Deus pode nos retribuir de forma justa
por essas obras com salvação e com compensação eterna. Deus
não relaxa sua lei; antes, ele vê nossas obras à luz de nossa união
com Cristo.
A doutrina da justificação dupla de Calvino, ou da aceitação
dupla, é útil aqui. Primeiro, nossas pessoas são justificadas à parte
das obras, somente pela fé em Cristo. Mas, depois disso, há uma
segunda justificação de nossas obras, ou de acordo com nossas
obras. Em vista da nossa união com Cristo, o Pai aceita as obras
dos crentes como se fossem perfeitas. Calvino escreve:
Nós, porém, por outro lado, sem nenhuma referência a mérito,
contudo com nosso ensino levantamos o ânimo dos fiéis com
singular consolação, enquanto lhes ensinamos que suas obras são
agradáveis a Deus e eles mesmos indubitavelmente lhe são aceitos.
[19]

Essa verdade é algo que precisamos saber para ter alegria,


ânimo, conforto, segurança. Devemos saber que nossas obras são
agradáveis a Deus.
No livro de Rute, Boaz diz a Rute que suas obras encontraram
o favor de Deus. Ela deveria se alegrar por saber que Deus está
sorrindo para ela e que Deus está satisfeito com a hesed que ela
demonstrou para Noemi. Mas, Rute é perfeita? Não diríamos que
ela é impecavelmente perfeita. Sabemos que deve ter havido dias
em que ela ficou frustrada com Noemi, dias em que ela não viveu o
hesed tão perfeitamente quanto poderia ter vivido. Mas, o curso
geral ou padrão de sua vida é agradável a Deus e encontra seu
favor.
Esta é a forma como deveríamos ver nossas vidas também.
Se estamos andando em fé, nossa caminhada é agradável a Deus.
Estamos caminhando na direção certa. Isso não significa
necessariamente que cada passo individual que já demos agrada a
Deus, mas o curso e a direção de toda a nossa vida lhe trazem
deleite. Se você tirar uma série de retratos individuais, poderá
encontrar fotos de sua vida que são desagradáveis a Deus. Mas, um
vídeo de sua vida revelaria que você está indo na direção certa,
mesmo que isso aconteça com interrupções. É isso o que significa
ser cristão: você está crescendo, ainda que lentamente, para a
santidade.
No filme Carruagens de Fogo, Eric Liddell diz que sente o
prazer de Deus quando corre. Devemos sentir o prazer de Deus
sempre que estamos correndo na direção certa. Quando não
estamos envolvidos em alguma atividade pecaminosa óbvia,
devemos saber que Deus está sorrindo para nós. Claro, mesmo
nossas melhores obras deixam a desejar; elas nunca se conformam
perfeitamente aos padrões de Deus. Elas sempre podem ser
reprovadas ou corrigidas de alguma forma. Mas Deus ainda está
satisfeito com elas. A avaliação das nossas obras por Deus não é
tudo ou nada; não é uma prova onde qualquer nota abaixo de dez
significa condenação. Não, como Calvino diz, Deus nos julga de
acordo com sua própria generosidade e longaminidade paterna.
A Confissão de fé de Westminster, capítulo 16, apresenta uma
seção útil sobre boas obras. Ela apresenta a mesma ideia que
Calvino: nossas boas obras são aceitáveis a Deus porque Cristo
está continuamente intercedendo em nosso favor. Oferecemos
nossas boas obras imperfeitas a Deus, mas antes que elas
cheguem a Deus, elas passam por Jesus e ele preenche o que falta
e cobre o que é impuro.
É interessante considerar como Tiago descreve o juízo. Tiago
2.13 diz: “Porque o juízo é sem misericórdia para com aquele que
não usou de misericórdia. A misericórdia triunfa sobre o juízo”. O
juízo sem misericórdia é para aqueles que não usam de
misericórdia. Mas, então, o outro lado deve ser verdadeiro: por sua
vez, aqueles que demonstram misericórdia serão julgados
misericordiosamente. Rute tinha demonstrado misericórdia? Sim,
ela demonstrou misericórdia. Por ter demonstrado misericórdia a
Noemi, ela, por sua vez, é julgada misericordiosamente. Jesus
ensinou a mesma verdade na Oração Dominical: “Perdoa-nos
nossas dívidas como perdoamos nossos devedores”. Quando você
é uma pessoa que perdoa, você pode ter certeza de que Deus
estará perdoando você. Há um tipo de lex talonis, uma analogia de
olho por olho, dente por dente, aqui, mas ao contrário: é
misericórdia por misericórdia. Se você demonstra misericórdia, Deus
vai demonstrar misericórdia para você. Deus lidará com você da
mesma maneira que você lida com os outros.
O que mais podemos dizer sobre isso? Esse é um tema
bíblico bastante amplo que aparece em muitos lugares, mas nunca
recebe a atenção que merece. Considere algumas outras
passagens. Em Gênesis 22, Deus está lidando com Abraão. A
aliança abraâmica é considerada o paradigma da aliança da graça
por toda a Escritura, mas escute o que Deus diz em Gn 22.15-18:
Então, do céu bradou pela segunda vez o Anjo do Senhor a Abraão
e disse: Jurei, por mim mesmo, diz o Senhor, porquanto fizeste isso
e não me negaste o teu único filho, que deveras te abençoarei e
certamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos
céus e como a areia na praia do mar; a tua descendência possuirá a
cidade dos seus inimigos, nela serão benditas todas as nações da
terra, porquanto obedeceste à minha voz.
Esta é a aliança da graça, mas Deus está dizendo que, porque
Abraão obedeceu, ele será abençoado. Sua obediência não merece
a bênção, mas obediência é o caminho para entrar na bênção.
Salmo 18 é um salmo de Davi. No verso 20, lemos: “Retribuiu-
me o Senhor, segundo a minha justiça, recompensou-me conforme
a pureza das minhas mãos”. Davi diz que o Senhor lhe retribuiu por
sua justiça. Esse é o mesmo tipo de linguagem encontrado em Rute
2. Se você não estivesse familiarizado com este salmo e um irmão
lhe disse: “O Senhor me recompensou de acordo com minha
justiça”, o que você diria? Você provavelmente exclamaria: “Você
entendeu tudo errado. Não é assim que isso funciona. Tudo o que
recebemos de Deus é um dom gratuito. Deus nunca nos paga de
acordo com a nossa justiça”. E, no entanto, isso está na Bíblia.
Em última análise, as palavras do salmista são as palavras de
Cristo. No fim, os salmos devem ser lidos como orações e cânticos
do próprio Cristo. Mas também temos que fazer justiça ao
significado histórico e original do salmo. Davi escreveu as palavras
no salmo 18 como palavras dele. Mas o que ele quis dizer com
elas? Ele está alegando perfeição sem pecado? Não, podemos
descartar isso rapidamente. Sabemos que, em outro lugar, Davi
confessa que é pecador e era pecador desde o nascimento. O que
ele está realmente afirmando quando diz que foi justo? Ele está
afirmando a fidelidade pactual. Ele não está dizendo que viveu
perfeitamente em todos os aspectos, mas a direção básica de sua
vida é a de lealdade à aliança, o que significa que ele procura
obedecer a Deus. É claro, isso também significa que quando ele
peca, ele confessa seu pecado, busca o perdão de Deus e segue
adiante em arrependimento.
Novamente, precisamos perguntar: em que sentido as boas
obras imperfeitas que merecemos são bênçãos, recompensas e
retribuições? Em que sentido tudo isso pode ser uma questão de
justiça? Novamente, com muita frequência, pensamos na justiça de
Deus como algo a ser temido. Porque Deus é justo, ele deve punir
nosso pecado. Quase tornamos a justiça de Deus um sinônimo de
sua ira. Mas se observarmos como a linguagem de justiça é usada
nas Escrituras, encontramos uma realidade mais complexa.
Justiça, definida biblicamente é simplesmente a fidelidade
pactual de Deus, a integridade de Deus. É o compromisso
inabalável Deus, acima de tudo com ele mesmo, com sua honra e
glória. Mas, por causa desse compromisso pessoal, também é uma
dedicação inabalável de manter a aliança que ele fez com seu povo.
Em outras palavras, Deus apostou sua própria reputação de Deus
justo no fruto desse laço pactual conosco. Isto é, a justiça bíblica ou
a retidão bíblica está completamente fundamentada na aliança e
não pode ser abstraída da aliança. Justiça e retidão nunca operam
fora de uma estrutura pactual nas Escrituras. Elas são sempre
qualificadas ou definidas pela aliança, o que significa que justiça e
retidão são conceitos relacionais. Deus dá a cada um o que lhe é
devido em relação à aliança. A justiça de Deus é sempre uma boa
notícia para o fiel que está unido a Cristo. A justiça de Deus não é
sinônimo de sua ira, embora inclua castigo para quem violar a
aliança. A aliança tem dois lados: de bênçãos para aqueles que têm
fé e de maldição para os que não têm.
Com frequência, a justiça de Deus é vista em paralelo com
sua fidelidade pactual. Temos um exemplo desse tipo de
paralelismo[20] no salmo 143: “Atende, Senhor, a minha oração, dá
ouvidos às minhas súplicas. Responde-me, segundo a tua
fidelidade, segundo a tua justiça”. No primeiro par de frases,
“atende” é sinônimo de “dá ouvidos”. No próximo, a justiça de Deus
é definida em termos de sua fidelidade. O salmista está fazendo um
apelo à justiça de Deus: “Porque você é justo, escute minha oração.
Porque você é fiel, ouça essas coisas que estou colocando diante
de você”. Justiça é sinônimo de fidelidade, especificamente
fidelidade à aliança.
A obrigação de Deus para conosco, então, não vem de fora,
como se tivéssemos alguma reivindicação intrínseca da salvação de
Deus ou como se nossas obras pudessem, de alguma forma, deixar
Deus em dívida conosco. Pelo contrário, a obrigação de Deus vem
dele mesmo, de sua determinação pessoal de ser fidedigno e fazer
o bem com base em seu juramento pactual gratuito, não importa o
que aconteça. Ele nos dá o que merecemos, por assim dizer, e nos
retribui de acordo com as provisões do vínculo pactual. Em Gênesis
22, antes de Deus dizer algo sobre recompensar Abraão, ele
descreve seu juramento pactual. No contexto, a obediência de
Abraão não é uma forma de mérito, mas a resposta adequada à
aliança graciosa.
Na aliança da graça, Deus se torna um pai e um marido para
nós e, assim, ele avalia nossas obras de acordo com categorias
relacionais. Se meu filho desenha um retrato da família com
bonecos de palito, eu não os julgo por não alcançar os padrões de
Rembrandt ou de outro grande mestre da arte. Claro, eu poderia dar
ao desenho dele uma crítica estética devastadora. Mas, como essa
é a obra do meu filho, a quem amo e aceito, eu colo o desenho na
geladeira e, quando o vejo todos dias, isso me faz sorrir. Se você
visse o desenho, não teria o mesmo efeito, porque não foi
desenhado por seu filho. Não causaria nada em você. Você só veria
um boneco. Mas eu vejo algo que tem valor e é digno por causa do
relacionamento pai/filho.
Devo corrigir o desenho do meu filho e tentar ensiná-lo a
desenhar melhor? Sim, claro. E Deus faz o mesmo conosco. Deus é
fácil de agradar, mas difícil de satisfazer. Ele pode nos dar
reprovações e correções gentis, mesmo quando recompensa
nossos esforços de fazer o que é certo.
Encontramos outra ilustração disso em Jr 10.24: “Castiga-me,
ó Senhor, mas em justa medida, não na tua ira, para que não me
reduzas a nada”. Quantos de nós pediríamos a Deus para nos
corrigir em sua justiça? “Deus, mostre-me justiça.” Novamente,
temos uma ideia errada do que é justiça. Ele não está pedindo a
Deus que nos dê o que merecemos nesse sentido absoluto, porque
todos estaríamos no inferno. Jeremias faz seu pedido dentro do
contexto do relacionamento da aliança, de forma que a justiça deve
ser entendida como justiça pactual de Deus. Dentro desse
relacionamento pactual, Deus corrigirá Jeremias como pai.
Em Daniel 9, o profeta está orando uma confissão não apenas
por seus próprios pecados, mas pelo pecado do povo. Em Dn 9.16,
depois de listar todas as transgressões do povo, ele diz: “Ó Senhor,
segundo todas as tuas justiças, aparte-se a tua ira e o teu furor da
tua cidade de Jerusalém, do teu santo monte, porquanto, por causa
dos nossos pecados e por causa das iniquidades de nossos pais, se
tornaram Jerusalém e o teu povo opróbrio para todos os que estão
em redor de nós”. Estaríamos bem mais inclinados a dizer: “Senhor,
segundo tua misericórdia e graça, aparte-se a tua ira e perdoa o teu
povo de seus pecados”. O que Daniel está fazendo? Ao orar para
Deus agir de acordo com sua justiça, ele pede misericórdia com
base nas promessas de Deus. É como um filho indo até o pai e
dizendo: “Pai, lembre-se que você prometeu que me levaria para
assistir futebol se eu fizesse minhas tarefas”. Um pai justo cumprirá
suas promessas; um filho inteligente apelará à justiça do pai como
forma de pedir pelas promessas que foram feitas.
Todos esses aspectos da justiça de Deus estão incluídos em
Rute 2.12. Quando Boaz diz a Rute: “O Senhor lhe retribua por suas
boas obras”, Boaz não está pensando como um pelagiano, ele está
pensando como um bom homem da aliança. Ele está falando como
alguém que guarda a aliança fielmente, que entende o
relacionamento pai/filho, em que as boas obras de Rute serão
avaliadas e recompensadas.
Pastoralmente, é importante observar que isso abre uma nova
via para a segurança da salvação. Sabemos que as Escrituras e a
Confissão de fé de Westminster ensinam que nossas boas obras
são um meio de segurança da salvação, mas muitas vezes é difícil
encontrar segurança em nossa obediência, porque nossas obras
nunca parecem estar à altura. Quão boas devem ser nossas obras?
Como podemos ter certeza de que somos o povo de Deus quando
nossa obediência é tão imperfeita? Entender a aliança e a dinâmica
pai/filho que está em ação é útil para começar a desenvolver essa
ideia bíblica.
Apêndice D — O Goel e o Levir: Uma
análise do Resgatador
Alguns temas cruciais ajudarão a desvendar a rica teologia de
Rute 3. Duas questões importantes são o goel e o levirato. O
primeiro é o nome hebraico para uma instituição do Antigo
Testamento e o segundo é um nome em latim para uma instituição
do Antigo Testamento. O livro de Rute tem um fundamento bastante
complexo, profundamento enraizado na lei mosaica. A história de
Rute interage com essas duas importantes instituições legais. Na
verdade, Rute 3 e Rute 4 não fazem muito sentido sem um
entendimento dessas duas instituições.
Goel é a palavra hebraica para resgatador; o levirato é um tipo
de goel. Goel é o conceito mais amplo dos dois e inclui ou pelo
menos tem sentidos em comum com o levirato; portanto, vamos
focar neste tema primeiro. O goel é uma figura crítica no Antigo
Testamento e nos aponta para Jesus Cristo.
Um dos propósitos principais do livro de Rute é mostra ao
povo de Deus sua necessidade de um goel e prenunciar um
resgatador futuro, Jesus Cristo, o Boaz maior. O que é um
resgatador? É um parente que redime e resgata outro membro da
família em necessidade. A instituição pressupõe solidariedade e
vínculos pactuais entre quem está em necessidade de redenção e
quem realiza a redenção. O redentor age com base nesse vínculo
para resgatar ou libertar seu familiar, normalmente com grande
custo para si. Assim, o resgatador demonstra hesed, a profunda
lealdade à aliança que aparece várias vezes no livro de Rute.

As responsabilidades de um resgatador
Quais eram as responsabilidades potenciais de um
resgatador? De acordo com Lv 25.48-49, um resgatador era um
parente de sangue próximo. Pode ser um irmão, um tio ou um
primo. Aparentemente, haveria alguma ordem sobre quem assumiria
a responsabilidade pela pessoa necessitada ou que estava com
problemas, começando com o parente mais próximo. Um resgatador
teria de ser rico o bastante para pagar um resgate pelo parente
pobre, fraco, indefeso ou vulnerável. Ou ele teria que ser forte o
bastante para vingar o sangue de seu parente assassinado.
Um resgatador tinha cinco deveres principais. Vamos
examinar brevemente cada um.
Primeiro, o resgatador tinha que resgatar um parente que se
vendeu como escravo. Sua primeira responsabilidade é libertação.
Encontramos isso em Lv 25.47:
Quando o estrangeiro ou peregrino que está contigo se tornar rico, e
teu irmão junto dele empobrecer e vender-se ao estrangeiro, ou
peregrino que está contigo, ou a alguém da família do estrangeiro...
Assim, se um israelita precisa vender-se como escravo, o
israelita está passando pelo êxodo ao contrário. Ele está voltando a
uma situação semelhante à escravidão da nação no Egito. Assim,
ele precisa de uma figura semelhante a Moisés que será um
resgatador e o livrará dessa situação. É assim que Lv 25.48-55
descreve:
Depois de haver-se vendido, haverá ainda resgate para ele; um de
seus irmãos poderá resgatá-lo: seu tio ou primo o resgatará; ou um
dos seus, parente da sua família, o resgatará; ou, se lograr meios,
se resgatará a si mesmo. Com aquele que o comprou acertará
contas desde o ano em que se vendeu a ele até ao Ano do Jubileu;
o preço da sua venda será segundo o número dos anos, conforme
se paga a um jornaleiro. Se ainda faltarem muitos anos, devolverá
proporcionalmente a eles, do dinheiro pelo qual foi comprado, o
preço do seu resgate. Se restarem poucos anos até ao Ano do
Jubileu, então, fará contas com ele e pagará, em proporção aos
anos restantes, o preço do seu resgate. Como jornaleiro, de ano em
ano, estará com ele; não se assenhoreará dele com tirania à tua
vista. Se desta sorte se não resgatar, sairá no Ano do Jubileu, ele e
seus filhos com ele. Porque os filhos de Israel me são servos; meus
servos são eles, os quais tirei da terra do Egito. Eu sou o Senhor,
vosso Deus.
Aqui, descobrimos a lógica das responsabilidades do
resgatador. Deus diz que os israelitas são meus servos, então eles
não podem ser escravizados por mais ninguém. Se um israelita é
escravo de um estrangeiro, seu parente próximo tem a
responsabilidade de comprá-lo e retirá-lo dessa situação. Ao fazer
isso, o resgatador estará replicando o êxodo, fazendo por seu irmão
o que Deus fez pela nação quando ele os retirou do Egito.
A segunda responsabilidade do resgatador é vingar o nome de
um parente oprimido ou assassinado. Isto é, ele deve agir como o
vingador de sangue. Encontramos esses deveres descritos em
vários lugares na lei do Antigo Testamento, particularmente em Dt
19.11-13:
Mas, havendo alguém que aborrece a seu próximo, e lhe arma
ciladas, e se levanta contra ele, e o fere de golpe mortal, e se acolhe
em uma dessas cidades, os anciãos da sua cidade enviarão a tirá-lo
dali e a entregá-lo na mão do vingador do sangue, para que morra.
Não o olharás com piedade; antes, exterminarás de Israel a culpa do
sangue inocente, para que te vá bem.
Essencialmente, o resgatador atuará como o vingador de
sangue e fará contra uma figura de Caim o que ninguém foi
autorizado a fazer em Gênesis 4. Lembre-se: o sangue de Abel
clamou da terra. Ele era inocente e, no entanto, foi assassinado por
seu irmão. Seu sangue clamou por vingança. Mas, não havia
vingador de sangue naquela fase da história. Agora os israelitas
receberam a responsabilidade de serem vingadores de sangue, de
executar juízos contra os Cains no meio deles.
É crucial entender que quando o vingador de sangue parte
para vingar a morte de seu parente, isso não é um tipo de conflito
mortal entre famílias. É uma vingança lícita, controlada e regulada
pela Palavra de Deus. Na verdade, fica muito claro que o goel não
está fazendo justiça com as próprias mãos. Não é um sistema de
vingança de vigilantes. Está claro que o goel está agindo como um
agente de estado. É por isso que se o assassino foge para uma das
cidades de refúgio, os anciãos são responsáveis por entregar o
assassino. Os representantes oficiais, os governadores daquela
cidade, entregam o homem para ser executado. O goel, em certo
sentido, torna-se um agente da justiça do estado e, claro, também
um agente da justiça de Deus.
Nm 35.16-21 diz:
Todavia, se alguém ferir a outrem com instrumento de ferro, e este
morrer, é homicida; o homicida será morto. Ou se alguém ferir a
outrem, com pedra na mão, que possa causar a morte, e este
morrer, é homicida; o homicida será morto. Ou se alguém ferir a
outrem com instrumento de pau que tiver na mão, que possa causar
a morte, e este morrer, é homicida; o homicida será morto. O
vingador do sangue, ao encontrar o homicida, matá-lo-á. Se alguém
empurrar a outrem com ódio ou com mau intento lançar contra ele
alguma coisa, e ele morrer, ou, por inimizade, o ferir com a mão, e
este morrer, será morto aquele que o feriu; É homicida; o vingador
do sangue, ao encontrar o homicida, matá-lo-á.
A terceira responsabilidade é recuperar a herança perdida de
um parente. Isto é, comprar de volta a terras para ele. Lembre-se, a
terra era tipológica; ela apontava para o reino de Deus e, finalmente,
para a nova criação escatológica. Assim, como israelita, manter sua
participação na terra prometida era um símbolo de sua participação
no reino de Deus. Portanto, era importante não desistir dessa
herança. Se você tivesse abandonado aquela herança por algum
motivo, o resgatador garantiria que ela fosse devolvida a você. Se
um parente próximo tem que desistir de sua porção da terra
prometida, isso é o contrário da conquista. A terra que foi
conquistada e dividida sob Josué foi perdida. O resgatador reencena
a conquista ao recuperar a terra perdida para o parente pobre.
Quarto, o resgatador tinha o papel de advogado de defesa. O
resgatador deveria checar se a justiça foi feita em várias situações.
No livro de Jó, Jó clama por um resgatador que atuará como um
mediador que se colocará diante de Deus e fará sua defesa. O
próprio Jó, é claro, é uma figura de Cristo. Ele é um servo sofredor
que finalmente vence e silencia Satanás. Mas Jó também clama por
uma figura de Cristo, um resgatador que virá como um mediador
entre ele e Deus, que o defenderá diante de Deus e fará com que a
justiça seja feita.
Por fim, em quinto lugar, o resgatador tem a responsabilidade
de cumprir o papel de um levir. A lei do levirato dizia basicamente
que o resgatador se casaria com a esposa de um parente falecido
se ele não deixasse filhos. No levirato, ele suscitaria uma semente
através da mulher para continuar o nome e a herança do falecido.
Este é o cenário que temos no livro de Rute: um homem se casa
com uma mulher, morre sem produzir um filho do sexo masculino
que possa manter seu nome e manter sua herança, de forma que há
necessidade de um marido substituto.
Tipicamente, o irmão do falecido se casaria com a viúva e, por
meio dela, suscitaria um filho para substituir seu irmão falecido.
Aquele primeiro filho que ele suscitasse através dela tomaria o lugar
de seu irmão falecido e o marido falecido da esposa, e perpeturaria
seu nome e herança. É claro, os outros filhos que ele tivesse com
ela, agora que ela é sua esposa, serão seus filhos. Mas o primeiro
filho se torna um substituto para o irmão falecido. A estrutura do
levirato é essencialmente a teologia bíblica dos dois Adãos. O
apóstolo Paulo deixa isso claro em diversos lugares de seus
escritos. Se o primeiro Adão morre sem multiplicar-se, sem encher a
terra, por assim dizer, então um segundo Adão deve vir e cumprir
suas tarefas. Isso é o que temos com o levirato. O primeiro Adão (o
primeiro marido) caiu, de forma que um segundo Adão (o
resgatador) vem tomar seu lugar. É isso que vemos acontecendo
em Rute 3-4.
Deveria ser óbvio que, quando um homem agia como
resgatador, ele estava agindo como um tipo do Senhor Jesus Cristo.
Cristo é aquele que, em última análise, realiza esses cinco deveres
em favor de seu povo. De fato, em vários lugares do Novo
Testamento, vemos Jesus explicitamente apresentado como o
nosso resgatador. Obviamente, toda a linguagem de redenção que
está espalhada por todo o Novo Testamento aponta para Jesus
como nosso goel. Porém, há uma passagem em particular que
aponta para essa instituição. Em Hb 2.14-17, lemos:
Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e
sangue, destes também ele, igualmente, participou, para que, por
sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o
diabo, e livrasse todos que, pelo pavor da morte, estavam sujeitos à
escravidão por toda a vida. Pois ele, evidentemente, não socorre
anjos, mas socorre a descendência de Abraão. Por isso mesmo,
convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos
irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas
referentes a Deus e para fazer propiciação pelos pecados do povo.
Deus se encarnou — ele se tornou nosso parente — para nos
redimir.
Hebreus 2 enfatiza que Jesus compartilha da carne de
Abraão. Ele veio para ajudar a semente de Abraão. Ele é um
resgatador para a linhagem de Abraão. Podemos então perguntar:
“Que benefício isso traz para os gentios que não fazem parte da
família de Abraão?”.
Paulo nos mostra, especialmente em Romanos, Gálatas e
Efésios, que os gentios estão agora sendo enxertados em Israel e
se tornando parte da linhagem do verdadeiro Israel. Nós vemos isso
antecipado no livro de Rute, quando a própria Rute é enxertada em
Israel e se torna uma espécie de israelita honorária (cf. Romanos
11).

O Resgatador cumprido em Jesus Cristo


Como Cristo nos redimiu? Como ele executou suas
responsabilidades de resgatador? Cristo cumpriu cada uma das
cinco responsabilidades do resgatador.
A primeira responsabilidade é a de libertar escravos. Cristo
libertou os cativos. Em Lucas 4, Cristo aplica Isaías 61 a si mesmo.
Isaías 61 é um dos lugares onde o profeta prediz um resgatador que
virá para libertar seu povo. No primeiro Adão, todos nós fomos feitos
servos do pecado, de Satanás, da morte, mas Cristo pagou o preço
do resgate e nos libertou. Jesus nos libertou desses senhores cruéis
e nos comprou, não com prata ou ouro, mas com seu próprio
sangue inestimável. Moisés foi um resgatador que libertou seus
irmãos escravizados. Jesus é o Moisés maior realizando um êxodo
maior para nos libertar da escravidão.
Em segundo lugar, e quanto a ser um vingador de sangue?
Cristo nos vinga de nossos inimigos. É por isso que Rm 12.19
proíbe os cristãos de executar a vingança com as próprias mãos.
Nós não vingamos a nós mesmos; nós deixamos que Cristo se
vingue por nós. E ele certamente o fará. Às vezes, isso é cumprido
por meio do estado como agentes de Cristo, que é o que Paulo
descreve em Romanos 13. Mas, mais do que isso, podemos dizer
que, através do julgamento de Cristo no final da história, ele vingará
o sangue de seu povo perseguido. No livro de Apocalipse, os santos
martirizados clamam: “Até quando não seremos vingados?”. E
Cristo responde essa petição no fim do livro. É claro, podemos dizer
que o assassino final do povo de Deus é o próprio Satanás. Cristo o
destruiu completamente e triunfou sobre ele na cruz. João 8 nos diz
que Satanás era um assassino desde o começo, mas Cristo o
derrotou.
A terceira responsabilidade do resgatador é ganhar de volta
uma herança perdida. Cristo recuperou nossa herança perdida. Por
causa do pecado do primeiro Adão, todos nós fomos exilados de
nossa casa. Quando Adão pecou, nós pecamos. Quando Adão foi
exilado do Jardim do Éden, nós fomos exilados do Jardim do Éden.
Todos nós fomos exilados de nossa casa; todos nós fomos expulsos
do reino; todos perdemos nossa herança no paraíso de Deus.
Perdemos nossa escritura da terra com o primeiro Adão, mas Jesus
Cristo, como nosso resgatador, restaura nossa herança. Em Cristo,
a terra se torna nossa de novo. É por isso que Paulo pode dizer à
igreja em Corinto, “Tudo é vosso”. Nossa herança foi reconquistada
para nós e por meio de Cristo Jesus.
Podemos dizer que isso é verdade não apenas no mundo
vindouro, na ressurreição, mas é verdade em princípio até agora.
Quando o evangelho se espalha, quando o conhecimento de Deus
enche a terra, o povo de Deus reivindica sua herança em Cristo.
Quarto, Cristo age como nosso goel quando ele é nosso
defensor legal. Cristo é um advogado para o seu povo. Em 1 João
1.8-10, lemos:
Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos
enganamos, e a verdade não está em nós. Se confessarmos os
nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e
nos purificar de toda injustiça. Se dissermos que não temos
cometido pecado, fazemo-lo mentiroso, e a sua palavra não está em
nós.
Por que é confortador saber que Jesus está nos defendendo
no grande tribunal de Deus? Porque seu sangue foi derramado para
propiciar nossos pecados. Propiciação significa que ele afastou a ira
de Deus. Ele defende nossa causa perante o Pai. Ele nos defende
das acusações de Satanás e, é claro, seus pedidos ao Pai sempre
prevalecem por causa do que ele fez por nós. Nós nunca ouviremos
“Culpado”, porque um veredicto justificador sobre nossas vidas já foi
garantido por Cristo.
Quinto, o resgatador se casaria com o parente da viúva e
suscitaria a semente. Quando o primeiro Adão morreu, ele deixou
sua noiva estéril. Ele deixou de trazer uma semente da promessa ao
mundo. Assim, há uma necessidade para um segundo Adão, um
segundo marido, vir e casar-se com a viúva e, por meio dela,
suscitar uma semente que reivindicará a herança. Is 53.4-8
descreve o Senhor cumprindo esse dever por seu povo. Isso é
cumprido por fim em Cristo. É por ele que a viúva estéril gera filhos,
como o profeta predisse.
É importante entender como a obra do goel na lei do Antigo
Testamento reflete a obra salvífica de Yahweh por Israel, o que, por
fim, é cumprido em Jesus Cristo. Isaías 40-66 volta a essa ideia de
Deus como libertador e redentor repetidamente. Todas as
responsabilidades do goel estão em Isaías. Yahweh vai cumprir
essas responsabilidades em favor do seu povo. Isaías fala à nação
em um contexto de exílio e escravidão e, por meio do profeta, o
Senhor promete um novo êxodo e uma nova conquista.
Com tudo isso, está claro que o resgatador oferece uma
salvação abrangente. Ele redime sua propriedade, sua pessoa e sua
posteridade. Não há nada que não seja redimido pelo resgatador.
Cristo, como nosso resgatador, garantiu nossa herança da vida
eterna, derrotou nossos inimigos e suscitou inúmeras sementes
para povoar seu reino. O resgatador na Antigo Testamento estava
prenunciando o que Cristo faria em nosso favor.
Há três figuras do resgatador no livro de Rute. Há o homem
anônimo em Rute 4 que deixa de cumprir suas obrigações. Ele
estava disposto a redimir a terra, mas voltou atrás quando descobriu
que teria de se casar com Rute e gerar a semente. Ele é um falso
resgatador, como o primeiro Adão. Quando ele percebe que haverá
custos pessoais, ele não quer pagá-los. Há Obede, que é o filho
nascido de Boaz e Rute. Ele é chamado de resgatador no final do
livro porque substituirá Elimeleque e seus dois filhos. Todo o tema
do resgatador é concluído com Obede, porque é ele quem
substituirá os homens falecidos e perpetuará o nome da família. O
terceiro resgatador no livro é, claro, Boaz, que é a figura central do
resgatador no livro de Rute. É ele quem desempenha dois grandes
deveres do goel neste livro. Ele recupera uma herança perdida e
suscita um herdeiro para preservar a linhagem de Elimeleque.

A Lei do Levirato
Agora vamos passar para uma discussão mais específica da
lei do levirato. O primeiro ponto é dizer que a instituição do levirato
não tem relação direta com Levi ou com os levitas. A palavra
“levirato” vem de uma palavra latina (levir) que significa “cunhado”.
Como já vimos, o dever do levirato é apenas uma das
responsabilidades que um goel deve cumprir. A lei básica aqui
encontra-se em Dt 25.5-10:
Se irmãos morarem juntos, e um deles morrer sem filhos, então, a
mulher do que morreu não se casará com outro estranho, fora da
família; seu cunhado a tomará, e a receberá por mulher, e exercerá
para com ela a obrigação de cunhado. O primogênito que ela lhe der
será sucessor do nome do seu irmão falecido, para que o nome
deste não se apague em Israel. Porém, se o homem não quiser
tomar sua cunhada, subirá esta à porta, aos anciãos, e dirá: Meu
cunhado recusa suscitar a seu irmão nome em Israel; não quer
exercer para comigo a obrigação de cunhado. Então, os anciãos da
sua cidade devem chamá-lo e falar-lhe; e, se ele persistir e disser:
Não quero tomá-la, então, sua cunhada se chegará a ele na
presença dos anciãos, e lhe descalçará a sandália do pé, e lhe
cuspirá no rosto, E protestará, e dirá: Assim se fará ao homem que
não quer edificar a casa de seu irmão; e o nome de sua casa se
chamará em Israel: A casa do descalçado.
A ideia por trás dessa lei não é tão complicada quanto parece:
quando o marido de alguém morre, deixando a esposa sem filhos,
sem um herdeiro do sexo masculino, seu irmão deveria casar-se
com a viúva, e o primogênito dessa união assumiria o nome e a
herança do falecido. O homem que cumpria o dever de cunhado
fazia isso com um grande custo para si. Era um ato sacrificial de
amor: construir a casa de seu irmão com seus recursos.
Essa lei aparece no Novo Testamento em Marcos 12.18 ss.,
onde os saduceus a usam em uma tentativa de enganar Jesus. Eles
tentam jogar a doutrina da instituição do levirato contra a
ressurreição corporal. Eles descrevem uma situação em que uma
mulher passa por uma série de maridos que morrem
sucessivamente. Cada levir morre, tornando-a viúva novamente. Os
saduceus perguntam então de quem ela será esposa na
ressurreição. É claro, Jesus passa a explicar que eles entenderam
mal a natureza da vida da ressurreição.
Há uma série de reviravoltas no livro de Rute que tornam o
uso da instituição do levirato complexo. Antes de entrarmos nisso,
várias questões práticas surgem ao discutirmos esta lei. Primeiro, Dt
25.5 deixa claro que a lei só se aplica a irmãos (ou parentes
próximos) vivendo juntos, que provavelmente indica que era uma
responsabilidade apenas para aqueles que tinham
aproximadamente a mesma idade. Não é difícil imaginar situações
em que a lei teria sido praticamente impossível de ser executada.
Por exemplo, digamos que um homem casado morra sem ter filhos
e seu irmão mais novo tenha, digamos, dois anos de idade. Ela tem
que esperar até ele ter idade suficiente para se casar? Se ela
tivesse que esperar, isso a faria casar-se com uma idade em que
não pode mais ter filhos, o que iria contra o propósito da lei.
Considerando que a obrigação se aplica a irmãos que moram
juntos, isso também sugere que havia algum tipo de aprovação da
família para o casamento. Se você é um irmão mais novo e seu
irmão mais velho se casa, você deve considerar pelo menos uma
vez que, se ele morrer sem ter um menino, ela se tornaria sua
esposa. Assim, o fato de eles estarem morando juntos
provavelmente indica que os irmãos podem ter alguma influência na
escolha do irmão mais velho. Isto é, eles podem ter alguma opinião
sobre o assunto, ou pelo menos a escolha do irmão mais velho
precisaria de uma aprovação geral da família.
Além disso, como os irmãos precisam morar juntos, é provável
que nenhum dos outros irmãos seja casado. Há outra questão que
surge. E se um irmão é casado e ele morre sem ter um filho, mas
todos os outros irmãos são casados? Um deles precisa tomá-la
como uma segunda esposa? Isso cria um tipo de situação legítima
de poligamia? Os comentaristas realmente debatem esta questão.
Alguns dizem que isso deve validar um cenário de poligamia. Mas
isso parece muito improvável. A ideia de irmãos morando juntos
indica que são irmãos que não se casaram ainda, assim a poligamia
não era necessária. Afinal, embora às vezes vejamos a prática da
poligamia no Antigo Testamento, não há dúvida de que isso era
considerado uma violação da lei de Deus. A poligamia é contrária à
ordenança da criação estabelecida em Gênesis 1-2. Não devemos
pensar que a lei do levirato exigia que o povo de Deus fizesse
coisas que eram completamente impraticáveis ou contrárias a outras
leis divinas.
Alguns também se perguntam: uma união por levirato produz
um casamento real e permanente? Ou apenas um casamento
temporário para suscitar um filho no lugar do falecido?
Considerando a alta estima do casamento em toda a Escritura, é
difícil imaginar um arranjo sexual temporário. Muito provavelmente,
os casamentos de levirato eram casamentos reais.
O que acontece com o homem que se recusa a realizar seu
dever de levir ? Deuteronômio 25 implica que ele será humilhado
publicamente por se recusar a perpetuar o nome de seu irmão. Ao
recusar isso, ele ganha um nome de vergonha. Dt 25.10 diz: “e o
nome de sua casa se chamará em Israel: A casa do descalçado”.
Ele é envergonhado de duas maneiras: primeiro, sua sandália é
retirada de seus pés e, segundo, cospem em seu rosto.
Há um tipo de lex talonis em vigor aqui. Em vez de olho por
olho, dente por dente, o princípio em vigor na lei do levirato é nome
por nome. Ele se recusou a edificar o nome de seu irmão e, assim,
seu nome foi demolido. Ele se recusou a construir a casa de seu
irmão, e assim sua casa será demolida.
O que significa ter o rosto cuspido? Isso não acontece em
Rute, mas o significado é óbvio. Cuspir na cara é um sinal óbvio de
desrespeito. Pense naqueles que cuspiram em Jesus quando ele
estava sendo crucificado. Eles estavam tentando mostrar que ele
não era o verdadeiro resgatador, que ele não poderia ser um novo
Adão, substituindo o Adão caído. É claro, eles estavam errados.
E quanto ao costume descrito em Deuteronômio 25 de um
homem ter suas sandálias retiradas? As Escrituras usam os pés
como eufemismo para as partes íntimas. (Isso pode estar
acontecendo em Rute 3). Assim, é possível que retirar a sandália
seja uma maneira simbólica de expor as partes íntimas desse
homem. Retirar a sandália do pé — se os pés forem entendidos
eufemisticamente como um símbolo das partes íntimas — seria
como despir o homem. Seria uma forma de humilhação pública, pelo
menos simbolicamente. Tirar a sandália seria como puxar as calças
em público e dizer que esse homem não pode fazer o que foi
chamado a fazer e, assim, que ele não é um homem de verdade.
Também pode haver uma referência aqui à sua recusa de
permanecer calçado e assumir a responsabilidade por suas ações,
como Adão faz em Gênesis 3. Em Gênesis, Adão não assume
responsabilidade pelo que fez. Ele se recusa a se apresentar, por
assim dizer, e assumir a responsabilidade por suas ações.
No livro de Rute, quando Boaz negocia com o parente mais
próximo para ver quem vai realizar a obrigação do levirato, eles
trocam sandálias, o que é um pouco diferente do descrito em
Deuteronômio 25. Mas claramente eles estão trocando papéis e
responsabilidades, então parece ser uma aplicação da lei a essa
situação específica. Ainda há vergonha envolvida, no entanto, o que
é visto com mais clareza no texto pelo fato de o homem que não
desempenha a responsabilidade do levirato com Rute não ter nome.
O texto apenas o chama de “fulano” e nunca lhe dá um nome. Ele
não tem nome porque não perpetuará o nome do irmão falecido.
Seu nome foi perdido, enquanto o nome de Boaz é engrandecido.

A vindicação de Tamar
Gênesis 38 é um daqueles capítulos perturbadores das
Escrituras. Em meio à história da grande fidelidade de José,
encontramos essa história sobre a infidelidade de Judá em Canaã.
José está no Egito vivendo fielmente; Judá está em Canaã, na terra
da promessa, vivendo infielmente. Esse é o contraste feito no texto.
Judá está perdendo sua posição e lugar na família como filho real e,
de certo modo, José está tomando seu lugar (embora Judá acabe
sendo redimido e restaurado.). Como Gênesis 38 lida com a tribo de
Judá e com o levirato, isso é fundamental para a nossa
compreensão de Rute.
Quando chegamos a Gênesis 38, sabemos que Judá é a tribo
escolhida. Os três primeiros filhos de Jacó já tinham se
desqualificado em Gênesis 34-35, então agora o foco está em Judá.
O que Judá fará? Ele será um homem fiel e provará ser digno de ser
o líder real, a tribo da qual o rei virá? Em Gênesis 38, Judá casa-se
fora da linhagem pactual, assim como os filhos de Sete em Gênesis
6, em vez de seguir o exemplo de Isaque e Jacó. Judá tem um filho
chamado Er que se casa com Tamar, mas Er morre sem deixar um
filho para Tamar. Assim, a instituição do levirato entra em ação
(obviamente, era uma instituição pré-mosaica).
Er morreu sem gerar um filho. Seu irmão mais novo, Onã,
deve cumprir o dever de levir. Onã finge ser um levir, mas sempre
que dorme com Tamar, ele faz sua semente cair na terra. (Ao
contrário de algumas interpretações da história, ele não é morto por
praticar um método anticoncepcional em si, mas por violar o dever
do levirato.) Mas, por que ele está fazendo isso? É porque ele é
egoísta. Ele não quer edificar a casa de seu irmão. Ele quer, na
verdade, roubar a herança de seu irmão. Se ele tivesse um filho,
esse filho tomaria o lugar de Er e receberia a herança do
primogênito. Mas se Tamar não tiver um filho, Onã se tornaria o
primogênito porque seu irmão mais velho está morto e, assim, ele
receberia uma parcela dupla. Ele precisa garantir que Tamar não
tenha filhos. Mas, ele não pode simplesmente dizer que não quer
ser um levir, porque Tamar iria para o próximo irmão e ela ainda
poderia ter um filho com ele. Assim, este é o dilema de Onã: por um
lado, ele não pode simplesmente recusar as responsabilidades do
levirato sem passar Tamar para o próximo irmão, mas ele também
não quer ter um filho com Tamar. A solução de Onã é dormir com
ela, mas evitar que ela engravide. É claro, Deus vê a maldade dele
e o mata.
Assim, cabe ao filho de Judá, Selá, cumprir a obrigação do
levirato. Neste ponto da história, Judá está agindo de maneira muito
perversa. Ele não vê que seus dois filhos morreram porque
desagradaram ao Senhor. Em vez disso, ele começa a achar que
tem algo errado com Tamar. Se Deus continua matando seus
maridos, obviamente ela está em pecado. Ela deve trazer azar. Judá
faz falsas promessas a Tamar. Ele diz que vai dar Selá, mas ele não
pretende fazê-lo. Ele continua adiando as coisas, adiando o
casamento. Quando Selá é finalmente um adulto, Tamar percebe
que o casamento não vai acontecer. Tamar sabe neste momento
que Judá é a tribo escolhida e que a semente prometida virá através
da linhagem de Judá. Ela sabe que deve haver uma semente de
Judá. Assim, ela decide resolver o assunto com as próprias mãos, e
age de maneira inteligente e enganosa para garantir a existência de
um herdeiro. Ela se veste como uma prostituta, engana Judá e o
leva a ser o próprio levir, dormindo com ele. Ela dá à luz o filho de
Judá e depois comprova isso para ele.
É fácil criticar Tamar pelo que ela faz aqui. Mas, precisamos
ter cuidado. A própria história não condena Tamar por suas ações.
Tamar agiu dessa maneira porque se preocupava com a linhagem
da semente. Ela provavelmente estava tão enojada com o que
estava fazendo quanto nós quando lemos a história. Ela não fez isso
por qualquer sentimento de amor apaixonado por Judá ou por
luxúria desenfreada. Ela só faz o que faz porque se preocupa com a
aliança e com a geração de um filho que manterá a linhagem da
semente prometida.
Os leitores precisam ter cuidado ao ler essas histórias em um
sentido moralista; devemos lê-las teologicamente. Quando fazemos
isso, vemos que o que Tamar faz em Gênesis 38 não é tão diferente
do que Rute fará em Rute 3. Está claro no livro de Rute que suas
ações são justificadas. Quando ela se deita na cama com Boaz e
diz: “Seja um goel e levir para mim”, ela está fazendo a mesma
coisa que Tamar fez com Judá, mas sem o disfarce.
Está claro que Tamar e Rute agem corretamente ao buscar
um levir. A ideia dessas histórias não é fazer de qualquer uma delas
um exemplo moral a ser seguido (especialmente porque a instituição
do levirato expirou). Em vez disso, temos que examinar isso
teologicamente e perguntar como essas ações se encaixam no
plano redentor de Deus. A preocupação delas é suscitar uma
semente para tomar o lugar do falecido, de fazer com que a
linhagem da aliança continue. Rute e Tamar não estão ensinando
como conseguir maridos assim como Abraão não nos ensina como
criar filhos em Gênesis 22 ao levar Isaque para a montanha e
preparar-se para esfaqueá-lo até a morte.
Tamar, Rute e Abraão são vistos como justos, mesmo que
suas ações não se encaixem perfeitamente em nenhum código de
ética. No caso de Tamar, em Gn 38.26, Judá reconhece a justiça da
ação de Tamar. Quando é revelado que Judá não dormiu com uma
prostituta, mas dormiu com sua nora, a quem ele deveria ter dado
um filho como marido, ele percebe que ficou preso em seu pecado.
Ele percebe o que Tamar fez e diz que ela é mais justa que ele. Ele
a justifica e se condena por seus atos. Ele foi enganado por ela a
fazer a coisa certa.
Em Rute 4.12, a comunidade considera Tamar uma matriarca
ideal. Ela é comparada à Rute. Ela é um modelo para Rute; um
modelo de virtude por causa de seu amor pela aliança e seu desejo
de honrá-la. Como Rute e Raabe, Tamar é uma das gentias justas
que são incluídas e destacadas ao serem incluídas na genealogia
de Jesus Cristo no evangelho de Mateus. Tudo parece apontar para
sua justificação. Rute e Tamar são mulheres que são “preservadas
através de sua missão de mãe” (1 Tm 2.15).
Certamente há muito mais a se dizer sobre Gênesis 38, mas,
para nossos propósitos, é suficiente ver que deixar de cumprir o
dever do levirato é o que coloca Judá em apuros. Judá não cumpriu
a responsabilidade do levirato e deixou de dar seus filhos a Tamar,
manifestando sua infidelidade. Perez, o filho de Tamar nascido fora
do casamento, é um sinal da justiça dela e da vergonha do pecado
de Judá.
Uma defesa do reinado davídico
Entretanto, de acordo com Dt 23.2, um filho ilegítimo, nascido
fora do casamento (como Perez), devia ser excluído do ofício na
comunidade de Israel. Em Gn 49.19, Judá recebe a promessa de
ser a tribo de quem o rei messiânico virá. Há um sentido em que a
promessa em Gn 49.10 é cheia de amarga ironia para Judá, visto
que ele já tinha desqualificado seus descendentes de qualquer
governo sobre as gerações futuras. Mas é aqui que entra a história
de Rute.
Assim como a falha de realizar a obrigação do levirato meteu
Judá em apuros e desqualificou a tribo de Judá do ofício real, é o
cumprimento do levirato por outro membro de Judá, Boaz, que
preserva a linhagem real da tribo e, por fim, produz o rei que
cumpriu a promessa de Gênesis 49. E, claro, este é Davi. Por essa
razão, o livro de Rute termina com uma genealogia. Judá
desqualificou sua linha de qualquer ofício real em Israel até a
décima geração (Dt 23.2) porque ele dormiu com Tamar fora do
casamento.
Mas se contarmos as gerações na genealogia de Rute 4,
descobrimos que a décima geração é Davi. Esta é a primeira
geração da linhagem de Judá que poderia ocupar o cargo real em
Israel. O levirato de Boaz desfaz o dano da recusa de Judá de ser
um verdadeiro levir e produz um filho real. Boaz é o que Judá
deveria ter sido. E Davi é o homem supremo de Judá, o leão da tribo
de Judá.
Há uma beleza profunda no que Deus faz: assim como Judá
cai em pecado ao deixar de cumprir o levirato, quando Boaz
aparece e o cumpre, a tribo de Judá é restaurada. E, é claro, a
linhagem de Jesus Cristo é traçada através desta genealogia em
Rute 4.
O levirato é a base de toda a história de Rute. Para entender o
que está acontecendo em Rute, temos que conectar o livro com
Deuteronômio 25 e Gênesis 38. Rute reverte a maldição sobre Judá
de Gênesis 38 e nos mostra a restauração completa de Judá. O livro
fornece motivos legítimos para o reinado de Davi e, claro, o reino do
filho maior de Davi, Jesus Cristo.
Sobre os autores

Uri Brito serve como pastor titular da Providence Church. Nascido


no Brasil, vive há mais de 20 anos nos Estados Unidos. Ele é
bacharel em Estudos Pastorais pelo Clearwater Christian College e
mestre pelo Reformed Theological Seminary em Orlando, Flórida.
Foi ordenado e instalado ministro do evangelho em março de 2009.
Uri editou o livro Família e Igreja no propósito de Deus e é editor-
fundador do The Kuyperian Commentary.

Rich Lusk pastoreia a Trinity Presbytery Church [Igreja


Presbiteriana Trindade] em Birmingham, Alabama. Antes disso, ele
estava na equipe da Igreja Presbiteriana Auburn Avenue em
Monroe, Louisiana e na Redeemer Presbyterian Church [Igreja
Presbiteriana Redentor] em Austin, Texas. Rich escreveu inúmeros
artigos de periódicos e da internet, contribuiu para diversos livros e
escreveu Paedofaith: A Primer on the Mystery of Infant Salvation
and a Handbook for Covenant Parents. Rich tem um bacharelado
pela Universidade de Auburn e mestrado na Universidade do Texas.
Ele é casado com Jenny e, juntos, têm quatro filhos.

[1]C.S. Lewis, “Myth Became Fact”, em God in the Dock: Essays on Theology and Ethics,
ed. Walter Hooper (Grand Rapids, MI: Wm B. Eerdmans Publishing Co., 1944; reimpressão
2001), 63-67.
“Mas os cristãos também precisam ser lembrados... que o que se tornou Fato era um Mito,
que ele de fato traz consigo para o mundo todas as propriedades de um mito. Deus é mais
do que um deus, não menos; Cristo é mais do que Balder, não menos. Não devemos nos
envergonhar do brilho mítico repousando em nossa teologia... Não devemos, por falsa
espiritualidade, conter nossas boas-vindas imaginativas. Se Deus escolher ser
mitopoético... devemos nos recusar a ser mitopáticos? Pois este é o casamento do céu e
da terra: Mito Perfeito e Fato Perfeito — reivindicando não só nosso amor e nossa
obediência, mas também nosso assombro e deleite...”.
[2] Frederic W. Bush, Ruth/Esther, World Biblical Commentary Book 9 (Dallas, Texas:
Thomas Nelson Inc., 1996), 514.
[3] Isso se encaixa com o padrão comum no Antigo Testamento de mulheres justas lutando
contra homens tirânicos usando o engano, como Rebeca, as parteiras egípcias, Jael e
Raabe.
[4] Curiosamente, Tamar é outra mulher nomeada na genealogia de Mateus. As duas
mulheres eram gentias, enxertadas em Judá e as duas precisavam de maridos por levirato.
[5] O anonimato também é importante no livro de Rute.
[6] Nomes alternativos são dados aos filhos de Saul, como fica evidente se compararmos
1-2 Reis com 1-2 Crônicas.
[7] Sincretismo é a mistura de duas ou mais religiões.
[8] “No. 45: The Structures of Ruth”, Biblical Horizons, acessado em 14 de novembro de
2018, http://www.biblicalhorizons.com/biblicalhorizons/no-45-the-structures-of-ruth/
[9] E na Almeida Revista e Corrigida, em português. [N. do T.]
[10] Uma longa introdução à teologia das asas encontra-se no Apêndice B. Talvez seja útil
ler esse ensaio antes de continuar.
[11]Gentios tementes a Deus são gentios que adoravam o Deus de Israel sem se tornarem
judeus.
[12] Blue laws é uma expressão inglesa para leis que lidam com a redução da atividade
comercial no fim de semana, especialmente, no domingo. [N. do T.]
[13] John Calvin, As Institutas, 3.15.4. Tradução Waldyr Carvalho Luz.
[14] Ibid.
[15] Ibid.
[16] Ibid.
[17] Ibid., 3.17.3.
[18] Ibid.
[19] Calvino, As Intitutas, 3.15.7.
[20] Um paralelismo hebraico acontece quando duas linhas do Saltério são sinônimas e
mutuamente interpretadas.

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