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THIAGO MARTINS DE MELO.

Paulo Herkenhoff

O desejo na obra de Thiago Martins de Melo — fora da simetria entre voyeurismo


e exibicionismo - só tem paralelo no Brasil na obra de Maria Martins
(L’impossible), Flávio de Carvalho (Nossa Senhora do Desejo) e Adriana Varejão
(Filho bastardo). A fotografia de Alair Gomes, por exemplo, é o êxtase do voyeur
e a produção de Antonio Dias na década de 60 é a violência do voyeur — são dois
regimes econômicos do desejo visível. No entanto, a primeira instância na
pintura de Martins de Melo é a exposição de si mesmo. Por isso, a qualidade
dessa explicitude não pode ser comparada à recatada Louise Bourgeois. Só
Georges Bataille - Histoire d’O, Madame Edwarda, L’Érotisme - daria conta de
tanta complexidade. Fillette de Bourgeois é o aparato genital do homem (para
ela, “o frágil absoluto”) tão exposto como o da mulher em L’origine du monde
de Gustave Courbet e Iris de Auguste Rodin. A exposição hiperbólica, direta e
íntima, não é crueza da mecânica, mas a relação afetiva e violenta com o alvo (o
alvo sexual está sob o domínio de uma zona erógena). Courbet pintou antes de
Freud - a ciência apenas começava a compreender o psiquismo do desejo.
Thiago Martins de Melo põe Courbet, Rodin e Bourgeois em sua cena pictórica.
Bourgeois esculpe depois de se confrontar com a dúvida de Sigmund Freud (a
única pergunta que ele diz não saber responder seria o que deseja uma mulher)
e a afirmação de Jacques Lacan (a Mulher não existe) e entendê-las a seu
próprio modo. A pintura de Martins de Mello desvela tais limites.
A pintura de Martins de Melo, como a obra de Tunga, é campo da fantasmática.
Ele incorporado a carnalidade como o corpo sexualizado do pintor transferido à
pintura. Sem essa aparente redundância reiterativa da carne não se dará conta
das instâncias do desejo e do corpo, do signo material da pintura e da relação
fenomenológica entre pintor e pintura lançada por Paul Valéry e conceituada
por Merleau-Ponty. O pintor para Valéry e na fenomenologia de Merleau-Ponty
de L’Oeil et l’esprit empresta seu corpo à pintura1 O corpo emprestado pelo
pintor Martins de Melo é o corpo sem órgãos, a máquina desejante2. O desejo se
encarna na vontade material. Essa temperatura de obra compõe certa história
do olho: afinal, L’origine du monde não pertenceu a Jacques Lacan? Afinal,
Lacan não se casou com Silvia, ex-mulher de Bataille? Este Thiago, pintor-
psicólogo que descrê em pudor moralista em pintura, pode estar no lugar de
Jacques ou de Georges, ou dos dois? Não há como classificar o inclassificável.

                                                                                                                       
1
MERLEAU-PONTY, Maurice. L’oeil et l’esprit. Paris, Gallimard, 1986, p.
2
DELEUZE, Gilles; GUATTARI Félix. Anti-Oedipus: capitalism and schizophrenia. Transl Robert Hurley,
Mark Seem and Helen R. Lane. Minneapolis, Minneapolis University Press, 1998.
1  

 
Não há o imencionável, o socialmente indizível por recato, privacidade ou
moralidade, mas também não há auto-exposição egótica: isto é o próprio
território da fantasmática que não vem em imagens mentais nem verbais, mas
se encarna como pintura. O que se vê é a emergência do possível. Surge com
uma violência avassaladora, com uma urgência de visibilidade capaz de
construir afasia em resposta ao olhar. Despida de estratégias de dissimulação
(a robe mouillée da Vênus de Milo seria o oposto dessa estratégia de
enunciação). Um quadro expande as possibilidades visíveis do íntimo.
Diante do canibalismo melancólico de Pierre Fédida — o luto antecipado
decorrente da vontade de devoração do parceiro no coito3 - conclui-se ser
preciso expulsar a morte. É necessário espancar o esqueleto e não dançar com
ele como em Ensor e em toda Todtanz da cultura europeia nórdica. A batalha de
tesouras e a linguagem das lâminas, entre a castração e o rompimento do
hímen. Sem culpa e sem qualquer vergonha, como se personagens de Georges
Bataille se tornassem vivos4. Os sentimentos de culpa, vergonha ou repulsa
transferem-se para cada espectador, se for o caso. Não há estratégias de
choque, mas de presentificação da cena.
Fundamentalmente, Martins de Melo pinta dípticos. A separação entre duas
telas não decorre da intenção ingênua de produzir um díptico em que duas
partes se conjugam na formação de uma imagem, nem provém da penúria (não
dispor de uma tela maior). Isto é corte. Daí ser a cisão da superfície uma
operação indissociável. A linha orgânica de Lygia Clark reitera a separação do
que se deseja unido e uno no quadro, o abismo da falta e fenda da
incompletude. Pulsões de vida, movimentos da libido, fantasmas de desejo - o
signo pictórico é trabalho libidinal, como na escultura de Bourgeois. O esforço
do pintor é manter a imbricação entre o inconsciente — um possível projeto de
uma escrita na linguagem do inconsciente e não sua ilustração - e a
experiência pulsional do pictórico, do inescapável confronto com o signo
material da linguagem. Essa relação mantém a coesão tramada entre
significante, significado e significação.

                                                                                                                       
3
FÉDIDA, Pierre. Le cannibale mélancholique in Destins du cannibalisme de Nouvelle Revue de
Psychanalyse. Paris, Gallimard, 1978, vol. 6, pp. 123-127.
4
BATAILLE, Georges. Guilty. Trad. Bruce Boone. Venice, The Lapis Press, 1988, p. 13.
2  

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