Você está na página 1de 14

A NÃO - NEUTRALIDADE DA EDUCAÇÃO: PEDAGOGIAS COM O OBJETIVO

DA LIBERDADE

1
Carlos Henrique Filgueiras Prata
2
Leyla Menezes de Santana

GT2 – Educação e Ciências Humanas e Socialmente Aplicáveis

RESUMO

Esse trabalho tem como objetivo analisar a educação, porém, a partir do paradigma anarquista. Discute
o conflito ideológico decorrente disso, a não neutralidade do processo educacional, bem como suas
consequências à liberdade e desenvolvimento intelectual de cada indivíduo, apontando alternativas à
luz da teoria libertária (especialmente de sua pedagogia). A pesquisa ancora-se numa metodologia
bibliográfica de pesquisa em várias fontes, como sites, revistas, livros e artigos terciários. Vem de
Silvio Gallo (1996, p.11) a crítica à educação tradicional principalmente pelo seu caráter ideológico:
As escolas dedicam-se a reproduzir a estrutura da sociedade de exploração e dominação, ensinando os
alunos a ocuparem seus lugares sociais pré-determinados. Daí a necessidade de reformar a educação a
partir de princípios sólidos, partindo também do pressuposto da impossibilidade de uma neutralidade,
já que somos moldados pelos valores construídos socialmente (que também passam por suas próprias
disputas ideológicas enquanto estão em processo de solidificação) e pelas nossas influências
intelectuais, a proposta é de uma educação que trabalhe com o princípio de liberdade (a partir dela e a
tendo como objetivo) e da busca pela neutralidade Webberiana, uma isenção de valores (Wertfreiheit).

Palavras-chave: Educação. Anarquismo. Pedagogia libertária. Neutralidade.

ABSTRACT: This work aims to analyze education, however, from the anarchist paradigm. Discusses
the ideological conflict arising from this, the non-neutrality of the educational process and its
consequences to freedom and intellectual development of each individual, pointing out alternatives in
light of the libertarian theory (especially it’s pedagogy). The research is anchored in a bibliographic
research methodology in various sources such as websites, magazines, books and tertiary articles. It
comes from Silvio Gallo (1996, p.11) criticism of traditional education mainly by its ideological
character: Schools are dedicated to reproduce the structure of exploitation and domination society,
teaching students to occupy their predetermined social places. Hence the need to reform education
from solid principles, also starting from the impossibility of neutrality assumption, since we are
shaped by the values socially constructed (which also go through their own ideological disputes while
in the solidification process) and for our intellectual influences, the proposal is for an education that
works with the principle of freedom and the search for webberian neutrality, an exemption values
(Wertfreiheit).

Keywords: Education. Anarchism. Libertarian pedagogy. Neutrality.

1
Discente do Instituto Federal de Sergipe/ Curso de Informática – Campus Aracaju. Email:
henrique.prata7@gmail.com.
2
Docente do Instituto Federal de Sergipe / Disciplina História – Campus Aracaju e da Universidade
Tiradentes; Grupos de Pesquisa: Educação, Cultura e Subjetividades (GPECS) / Educação e Sociedade:
Sujeitos e Práticas Educativas; Email: leyla.menezes@gmail.com.
1. A não-neutralidade da educação

É natural considerar a educação como um instrumento apenas de formação estudantil,


como algo neutro e sem compromisso com a sociopolítica para além da formação de
profissionais capacitados para a execução de atividades específicas. Porém, a escola é um dos
agentes de poder mais relevantes na estrutura atual da sociedade e não podemos deixar de
considerá-la em nossas análises políticas.
As estruturas de poder são o sistema de relações (voluntárias ou coercitivas) entre
indivíduos dentro de um escopo social definido. Representa a forma de organização do poder
nesse escopo, bem como ele é exercido. O governo é uma estrutura complexa de poder,
podendo ser usado para repressão ou organização. A escola, enquanto estatal, faz parte do
aparato governamental (como um poder que pode ser exercido) e enquanto parte da iniciativa
privada faz parte do aparato empresarial, que também exerce poder sobre o indivíduo.
Portanto, sua neutralidade, a partir do paradigma anarquista, pode ser colocada à prova
simplesmente pelo fato de não estar organizada de forma cooperativa e coletiva pela própria
população, com toda sua administração sendo feita de forma autônoma.
É preciso analisá-la a partir dessa perspectiva. A escola (ou a educação como um todo)
é a forma mais eficaz de transformar uma sociedade, e um longo período de processo
educacional precisa preceder qualquer grande mudança fundamental nas estruturas de poder,
porém tendo em consideração que o importante não é a formação sem profundidade e sim o
desenvolvimento de indivíduos com pensamento crítico, capazes de compreender e agir para
alterar a realidade que o cerca.
Paulo Freire analisa essa característica da educação: "A qualidade de ser política,
inerente à sua natureza. É impossível, na verdade, a neutralidade da educação. E é impossível,
não porque professoras e professores "baderneiros e subversivos" o determinem. A educação
não vira política por causa da decisão deste ou daquele educador. Ela é política.” (FREIRE,
1996, p. 56). A educação, portanto, acaba por refletir as estruturas de dominação da
sociedade, tendo em si, portanto, uma função conservadora ao não auxiliar o oprimido a
perceber as engrenagens sociológicas e as desigualdades do mundo em que vive. Freire
desenvolve esse pensamento dizendo: "Seria uma contradição se os opressores, não só
defendessem, mas praticassem uma educação libertadora." (FREIRE, 1968, p.26). Sobre isso,
o mesmo complementa: "A educação libertadora é incompatível com uma pedagogia que, de
maneira consciente ou mistificada, tem sido prática de dominação." (FREIRE, 1968, p. 6).
Diferentes teorias da sociedade desenvolveram respostas diferentes para essa questão,
mostrando o conflito ideológico existente no ato "neutro" de ensinar. Como a mesma está em
constante mudança, a resposta às questões educacionais mudam de acordo com os interesses
da classe dominante, como uma forma de manutenção do status quo. A sociedade e cada um
de seus agentes de poder utilizam a educação com algum objetivo em mente (determinam seu
ideal). Em períodos turbulentos, a educação acaba por se tornar campo de batalha ideológico.
Podemos tomar como exemplo a militarização das escolas que tem ocorrido em alguns locais
do país desde 2015, bem como a "reestruturação" (fechamento ou corte de recursos)
promovida pelo governo Alckmin em São Paulo, interrompido pela ação direta dos
estudantes, guiados principalmente por organizações de esquerda mas contando com amplo
apoio da sociedade.
Essas saídas diferentes acabaram por ser simplificadas em uma disputa entre a visão
liberalista e a marxista. O liberalismo afirma que a educação por si só pode mudar o mundo
pela simples cessão de informações, já o marxismo acredita que essa perspectiva não existe,
já que a escola é apenas um agente passivo da classe dominante. Ambas as afirmações foram
exploradas por Freire, que apesar de ter aceitado a hipótese de que a educação é uma
ferramenta de dominação, também considera que ela pode alterar essa estrutura de dentro pra
fora.
A outra saída ao problema da dicotomia entre liberalismo e marxismo na educação é a
proposta anarquista. Essa pretende trabalhar com o princípio de liberdade, não como meio,
mas como fim de todo processo educacional. Uma liberdade de pensamento e de atuação no
espectro sociopolítico. Não faria sentido ter a escola como algo livre quando o resto do
aparato social se mantêm inalterado. A escola deve possibilitar a mudança do resto da
estrutura (e consequentemente, se alterar junto), mas não tem efetividade começando a
mudança de forma interna.
Como os homens nascem naturalmente livres, com apenas a si para dar perspectiva e
sentido à sua existência, mas se encontram moldados por convenções sociais e demais agentes
de poder que acabam por 'acorrentar' o indivíduo, essa proposta educacional quer reconquistar
a liberdade socialmente, por mais que parta, inicialmente, de princípios autoritários:
A escola não pode ser um espaço de liberdade em meio à coerção social; sua
ação seria inócua, pois os efeitos da relação do indivíduo com as demais
instâncias sociais seria muito mais forte. Partindo do princípio de autoridade,
a escola não se afasta da sociedade, mas insere-se nela. O fato é, porém, que
uma educação anarquista coerente com seu intento de crítica e transformação
social deve partir da autoridade não para tomá-la como absoluta e
intransponível, mas para superá-la. O processo pedagógico de uma
construção coletiva da liberdade é um processo de desconstrução paulatina
da autoridade. (GALLO, 1996, p. 10).

Para a educação como uma ferramenta de liberdade, é preciso não só considerar o


homem enquanto coletivo no espaço limitado da escola. É preciso dar-lhe também liberdades
individuais (de criação, de auto-desenvolvimento, etc.) e uma inserção na sociedade em geral,
ou mesmo da espécie humana enquanto agentes da história. Não é uma tarefa fácil, tanto que
o projeto atual tem focado suas atenções muito mais a tentar passar as informações da forma
mais neutra possível, mesmo a neutralidade sendo impossível e apesar da tendência
interdisciplinar que tem crescido mas que ainda não se consolidou nem nas camadas mais
básicas do ensino e deixando a inserção do ser no meio a cargo do próprio meio.
O meio (a educação incluída nele) não molda o homem apenas enquanto agente na
sociedade, mas também o homem enquanto ser-em-si: Toda ideologia tem uma ideia do que
deveria ser o homem e tenta adequá-lo a isso. As duas ideologias do ser que possuem uma
maior relevância na história da filosofia são a essencialista, que acredita num conteúdo a
priori da existência, e a existencialista, que acredita que somos formados a posteriori. De
forma que também não podemos considerar opções à educação atual sem um ideal humano a
guiar essa metodologia. Qual deveria ser o princípio a buscar? A consciência da complexidade
nos faz compreender que não poderemos escapar da incerteza mesmo com firmeza de
princípios.
Tendo em vista o conflito ideológico que abrange toda a nossa vida a partir da
educação, teríamos alternativas a eles? Ou estaríamos fadados a criar sistemas de doutrinação,
como diria Doris Lessing:

Talvez não exista outra maneira de educar as pessoas. Possivelmente, mas


não acredito. Nesse ínterim seria útil pelo menos descrever adequadamente
as coisas, chamar as coisas por seus nomes corretos. Idealmente, o que se
deveria dizer a toda criança, repetidamente, durante toda a vida escolar é
algo mais ou menos assim: 'Você está no processo de ser doutrinado. Ainda
não criamos um sistema de educação que não seja um sistema de
doutrinação. Lamentamos, mas estamos fazendo o melhor que podemos. O
que lhe estão ensinando aqui é um amálgama dos preconceitos atuais e das
opções desta nossa cultura. A consulta mais ligeira à história revelará que
aqueles dois itens são temporários. Você está sendo ensinado por pessoas
que conseguiram acomodar-se a um regime de pensamentos transmitido por
seus predecessores. É um sistema autoperpetuador. Os que, dentre vocês, são
mais vigorosos e individuais do que os demais, serão incentivados a ir
embora e a encontrar maneiras de se educar, educando seu próprio
julgamento. Os que ficarem devem sempre lembrar, sempre, em todas as
ocasiões, que estão sendo amoldados para se enquadrar nas tímidas e
específicas necessidades desta determinada sociedade. (LESSING, 1972, p.
16).

Se é inevitável que se criem sistemas de doutrinação, e se todo processo educacional


passa, inevitavelmente, por um processo de autoridade, o objetivo de uma educação que se
diga “anarquista” ou “libertária” deve ser a de desconstruir a autoridade imposta pouco a
pouco, de forma que o aluno possa interagir diretamente com o mundo a partir de sua
liberdade de pensamento, ou simplesmente tornar a escola um antro da liberdade que poderia
ser atingida sem a coerção. Essas diferentes pedagogias têm se encontrado em debates ao
longo da história.

2. As diferentes pedagogias

Se vivo, Durkheim talvez tivesse concordado com Lessing e sua proposição de que
toda educação é um sistema de doutrinação, mas não a interpretaria de forma crítica. Para ele,
a educação deveria fazer a transição do ser individual ao ser social. O individualismo
resultante da expansão capitalista (aprofundada nos tempos de hoje) deveria ser superado para
a formação de uma consciência coletiva. O fato de que a sociedade moderna baseia-se em
uma divisão crescentes (nos moldes fordistas) das tarefas traz como consequência uma
diferenciação cada vez maior dos papéis sociais e um risco de perda desse equilíbrio onde os
diferentes papéis e funções sociais são solidários uns aos outros (a consciência de classe,
como definiria o marxismo). A educação deveria, nesse âmbito, captar o "Zeitgeist" da época
para replicá-lo nas gerações futuras. Mesmo que sob meios autoritários, deveria ser a
sistematização dos padrões de uma sociedade. Como o próprio afirma:
A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre aquelas que ainda
não estão maduras para a vida social. Tem por objetivo suscitar e
desenvolver na criança um certo número de estados físicos, intelectuais e
morais, que requerem dela, tanto a sociedade política em seu conjunto,
quanto o meio especial ao qual ela é mais particularmente destinada...
Resulta da definição acima que a educação consiste em uma socialização
metódica da jovem geração" (DURKHEIM, 1975, p. 51).

Mas Durkheim não pretendia simplesmente impor padrões às juventudes. O mesmo


buscou fundar uma educação "moral", que não precisasse de uma metodologia religiosa ou
mesmo ideológica, buscando desvencilhar-se do acirramento entre o socialismo e o
liberalismo capitalista que ocorria à época. Para ele, o mais importante é o aprendizado do
"espírito de disciplina", bem como o da "vinculação aos grupos" e o da "autonomia da
vontade".
O espírito de disciplina é a subordinação aos padrões, uma regularidade de
comportamento e de interpretação de forma a dar ao aluno uma base sólida para que ela
supere de forma mais fácil as dificuldades da vida, bem como evite as dúvidas que poderiam
causá-la confusão e [evite] seguir seus desejos de forma desenfreada, buscando apenas uma
satisfação pessoal, o que seria colocar o individual em detrimento do social.
A vinculação ao grupo é a adequação desse aluno à sua função social, ao seu papel no
funcionamento harmonioso desse sistema. Mas mesmo Durkheim não pôde, nesse âmbito,
ignorar as diferenças fundamentais entre os indivíduos. Todo grupo é um grupo de indivíduos,
e as suas relações interpessoais determinam a harmonia desse grupo dentro do corpo geral que
é a sociedade. Sobre essa relação, Durkheim afirma:

A vinculação ao grupo implica, de uma maneira indireta, mas quase


necessária, a vinculação aos indivíduos e, quando o ideal do grupo é apenas
uma forma particular do ideal humano, é ao homem enquanto homem que
nos encontramos vinculados, sentindo-nos, ao mesmo tempo, mais
estreitamente solidários com aqueles que realizam mais especialmente a
concepção particular que nossa sociedade tem de humanidade"
(DURKHEIM, 2008, p. 70).

Já a autonomia da vontade é muito mais uma autonomia da adequação: Consiste em


fazer, por meio da razão, que o aluno queira aderir aos valores sociais que fundamentam sua
vida coletiva, veja a necessidade disso e concorde com as verdades que lhe são apresentadas.
Para atingir essas metas, Durkheim acreditava, assim como Gallo (apesar das suas
diferenças em finalidades dessa coerção), que era necessário um certo grau de autoridade no
âmbito escolar. Na verdade, acreditava até mesmo que essa "violência" seria natural. O
mesmo afirmava que "a relação mestre-aluno tem semelhanças com a relação hipnotizador-
hipnotizado" (DURKHEIM, 1975, p. 64) e que o meio escolar formava "o hábito da vida em
comum na classe, a vinculação a essa classe e mesmo à escola, da qual a classe é apenas uma
parte". (DURKHEIM, 2008, p. 195).
Mas nem todos os anarquistas e libertários concordam com a proposição de autoridade
interna com o objetivo de liberdade externa de Silvio Gallo. Tolstói, por exemplo,
fundamentava toda sua educação (e por extensão, sua vida) no princípio da liberdade. Em seu
projeto de educação do campesinato russo, norteou todo o processo a partir da liberdade.
Bartlett descreve a Escola "Tolstoiana":

Ninguém traz consigo alguma coisa, nem livros nem cadernos. Nenhum
aluno é obrigado a fazer dever de casa. Além de virem de mãos vazias, os
alunos não são obrigados a decorar lições, sequer a aula do dia anterior. Eles
não se atormentam com o pensamento da tarefa por fazer. Trazem apenas a si
mesmos, sua natureza receptiva, e a certeza de que hoje a escola será tão
alegre quanto ontem[...] Ninguém jamais é repreendido por se atrasar. Eles
se sentam onde querem: bancos, mesas, peitoris das janelas, poltronas. O
horário prevê quatro aulas antes do jantar, que às vezes na prática se tornam
três ou duas, e que podem ser sobre assuntos bastante diferentes[...] Na
minha opinião essa desordem externa é útil e necessária, por mais estranha e
inconveniente que possa parecer ao professor […] De início essa desordem,
ou ordem livre, nos assusta, porque fomos educados de outras maneiras e
estamos acostumados a algo diferente. Em segundo lugar, neste como em
muitos casos semelhantes, a coerção só é usada por causa de pressa ou falta
de respeito pela natureza humana[...] (Tolstói, op.cit Bartlett, 2013, p. 192).

Faz parte do ideário de Bakunin que a criança não pode ser propriedade de ninguém:
Nem de seus pais, nem da sociedade. Por rejeitar tanto o Estado quanto a propriedade privada,
Tolstói viu como única alternativa a essas tentativas de modelagem de mentalidade a
liberdade. A propriedade é o domínio de alguns homens sobre os outros, e o Estado existe
para garantir, por meio da força coercitiva ou da lei, essas relações de propriedade.
Ia contra os princípios de Tolstói exercer dominação sobre qualquer pessoa, por
isso, ele baseou sua escola na liberdade, ou seja, o aluno deveria querer aderir por si
mesmo. Tudo poderia ser ensinado, mas a partir do aluno, de suas necessidades, do seu
ritmo, da sua capacidade. Liberdade como meio e fim, e não apenas como fim.
Deveria ser socialmente conquistada nas lutas sociais, mas a escola deve se
mostrar como um centro de libertação das amarras construídas pela convivência e pelos
padrões para ajudar a superá-los. A educação integral também era importante, conforme
afirma Trassatti, educadores libertários não recusam a ciência e o saber especializado,
mas advogam que, antes, o processo educativo se concentre na formação plena
(dimensões física, intelectual e moral), que não separe o saber do saber fazer, isto é, que
não se fundamente na divisão entre ação e pensamento (trabalho braçal e intelectual).

Autogestão e autonomia do indíviduo, outros princípios Bakuninianos que eram


aplicados nesse sistema, ajudavam a formar o compromisso e a responsabilidade social. Se
fundava na solidaridade, dessa forma se aproximando relativamente da visão Durkheiniana de
harmonia entre os indivíduos, mas ao mesmo tempo considerava que o educador deveria
tomar uma posição. Não deveria haver uma neutralidade, e sim uma posição em favor dos
oprimidos e necessitados.
A principal crítica ao método é a formação de uma visão individualista da realidade.
Apesar disso, talvez seja exatamente essa visão que germine uma opção pela solidariedade.
Conforme afirma Bakunin,

A lei da solidariedade social é a primeira lei humana; a liberdade é a segunda


lei. Essas duas leis interpenetram-se e, sendo inseparáveis, constituem a
essência da humanidade. Assim, a liberdade não é a negação da
solidariedade; pelo contrário, ela é o seu desenvolvimento e, por assim dizer,
a sua humanização. (BAKUNIN, 1978, p. 17).

Apesar dessa resistência a qualquer propriedade, seja ela estatal ou privada, é


impossível escapar da influência da sociedade enquanto meio de existência. Qualquer ser se
encontra inserido nela, inescapavelmente, influenciado por suas visões que são embasadas
pela ciência interessada em defender esses padrões, esse juízo coletivo formado por uma série
de influências de instituições religiosas, econômicas ou políticas. O próprio Bakunin denota
isso também:

A sociedade não se impõe formalmente, oficialmente, autoritariamente, mas


naturalmente, e é por causa disso mesmo que a sua ação sobre o indivíduo é
incomparavelmente mais poderosa do que a do Estado. Ela cria e forma
todos os individuos que nascem e que se desenvolvem no seu seio. Ela
transmite-lhes lentamente, desde o primeiro dia de vida até à sua morte, toda
a sua natureza material e moral; ela individualiza-se, por assim dizer, em
cada um. (BAKUNIN, 1975, p. 16).

Por não ser possível evitar essa transformação do indivíduo uma vez que ele se
encontra num meio social, e considerando que o ser humano é resultado de seus arranjos
sócio-econômicos (bem como os arranjos políticos), o objetivo de uma pedagogia libertária
deve ser, por fim, romper com os paradigmas da sociedade anterior para poder construir uma
nova natureza material e moral de uma nova sociedade, que seja individualizada em cada um.

3. O movimento libertário-anarquista e a superação das dicotomias educacionais

Tolstói se inspirou em Montaigne em vários pontos na produção de sua pedagogia. Na


opinião do francês, o professor deve fazer com que nada que a criança aprenda seja alojado
por simples autoridade ou confiança, e sim pela própria análise do aluno. A importância da
liberdade de pensamento na educação, de modo a evitar que o professor 'doutrine' o aluno
com sua ideologia e também que o aluno dependa demasiadamente desse aparato educacional,
ao qual Tolstói se referia como "andadeiras".
É importante também, no âmbito da maior neutralidade possível no processo de
ensino, que se conheçam diferentes narrativas de um mesmo fato. Tolstói afirmava que apenas
conhecendo as lendas, as ficções de um povo poderia-se compreender as leis fundamentais
que regiam a vida desse povo. Conforme afirma Bartlett: “a principal missão de Tolstói como
educador era introduzir a liberdade na experiência de aprendizagem: seus alunos tinham
permissão para frequentar as aulas quando bem quisessem, e não havia castigos físicos”
(BARTLETT, 2013, p. 185).
Tolstói via a educação tradicional da forma que ela era vista como ideal por Durkheim:
A imposição da concepção de sociedade daquele tempo para inspirar uma consciência. Apesar
disso, via essa imposição como uma opressão, uma "negação da liberdade do outro". Acabaria
por padronizar a opinião pública ou, normalmente, polarizar a sociedade entre um apoio
completo e irracional à causa dos padrões sociais e um ódio a eles.
Tolstói notava também problemas nesse método em sua própria estrutura pedagógica,
que acabariam por causar desinteresse no aprendizado e perda da curiosidade científica. Os
estudos de Trassatti corroboram com essa tese:

A escola, em certa maneira, mata a vida de onde surgem as demandas


essenciais que suscitam a necessidade de educação. Tolstói, observador
profético, afirma que se está realizando o intento de “mecanização da
instrução”, de maneira que as pessoas, tanto os professores como os alunos,
sejam substituíveis e que o método siga sendo o mesmo. (TRASSATTI,
2004, p.178).

Bakunin também via problemas no modo como a educação se estruturava em sua


época (algo que reverbera nos dias de hoje). Na criação de sua pedagogia, tentou sempre
deixar os princípios básicos de seu anarquismo guiá-lo. Para ele, era necessário que a escola
substituísse a igreja, já que a instituição religiosa pretendia eternizar-se a partir de dogmas, a
partir de uma autoridade, legitimando e consequentemente também eternizando a exploração
do homem pelo homem. Essa visão da igreja como instrumento de opressão e agente de poder
foi o que fez Tolstói se afastar da religião ortodoxa e fundar sua própria interpretação da
palavra. Bakunin resume seus princípios pedagógicos dessa forma:

A razão, a verdade, a justiça, o respeito humano, a consciência da dignidade


pessoal, solidária, inseparável do respeito humano de todos; o amor a
liberdade para si mesmo e para os demais, o culto do trabalho como base e
condição do direito, o desprezo pela demagogia, a mentira, a injustiça, a
covardia, a preguiça, tais deveriam ser as bases fundamentais da educação
pública. Deve antes de tudo, formar homens, depois trabalhadores
especializados e cidadãos, e na medida que avance a idade das crianças, a
autoridade será cada vez mais substituída pela liberdade, de modo que os
adolescentes, ao chegar a maior idade e sendo emancipados de acordo com a
norma geral, podem haver esquecido como em sua infância haviam sido
criados e educados de outro modo que pela liberdade. (BAKUNIN, 1983, p.
66-67).

Esse sistema educacional poderia contribuir para o desaparecimento de diferenças que


hoje são consideradas "naturais", mas que são, na verdade, estruturais, construídas com o
tempo, exatamente pela influência da série de princípios impostas pela sociedade e sua
inevitável influência sobre seus membros e pela educação, nesse âmbito de acordo com a tese
de Lênin, que considerava a educação na sociedade capitalista como um agente passivo da
classe dominante. Talvez por essa percepção Bakunin tenha fundado parte de sua pedagogia
na sociologia:

La instrucción científica tendrá por base el estudio de la naturaleza y por


coronamiento la sociología, dejando de ser el dominador y violador de la
vida, como lo es siempre en todos los sistemas metafísicos y religiosos, el
ideal no será en adelante sino la última y más bella expresión del mundo real;
dejando de ser un sueño, se volverá una realidad. (LÉVAL cit. BAKUNIN,
1976, p. 4).

Bakunin também não recusava a autoridade do professor Durkheiniana. Mas o fazia da


forma que Gallo nos explicou ser o paradigma anarquista: A autoridade com a intenção de
superá-la, a todo tempo sendo desafiada, desconstruída. Isso cria uma liberdade maior na
construção interna do sujeito, no confrontamento com o vazio existencial sartreano. É esse
processo que qualquer instituição de poder pode interromper, e é nesse âmbito que a escola
pode se apresentar como "aparelho ideológico", articulando-se através das outras instituições
sociais para evitar o que Jean-Claude Filloux definiu como "anomia", uma sensação de estar
perdido entre os impulsos do mundo. Bakunin resume a função da escola nessa questão dessa
forma:

La autoridad es necesaria durante los primeros años de la vida, pero siendo


todo progreso la negación del punto de partida , la libertad acaba
necesariamente por triunfar, pues el objeto final de la educación es el de
formar hombres libres llenos de respeto y amor por la libertad ajena”
(LÉVAL cit. BAKUNIN, 1976, p. 3).

Antony Michel, autor do livro “Os microcosmos: Experiências utópicas libertárias”


onde expõe experimentos como a La Ruche de Sebastién Faure complementa esse
pensamento, também de acordo com a tese de Montaigne de que o educador deve deixar que a
interpretação do aluno ajude no aprendizado. Abaixo, o mesmo delineia os objetivos finais
dessa pedagogia específica:
Ela respeita o aluno e busca fornecer-lhe um meio para que ele possa
desabrochar:
- escutá-lo, partir de seus centros de interesse, considerá-lo como um par [...]
- considerá-lo como um futuro homem novo, uma pessoa inteira, capaz de
ser autônomo muito cedo. [...]
- fazê-lo agir exclusivamente para seu desenvolvimento harmonioso e seu
interesse pessoal. (MICHEL, 2011 , p. 210).

O que se espera desse aluno é uma autogestão pedagógica, de modo que ele possa ser
ouvido a partir dos seus interesses e da sua inteireza, provocando uma emancipação
intelectual onde haja um desenvolvimento conciliado principalmente com os seus interesses
pessoais.

4. Considerações finais

Para atender os objetivos desse artigo quanto à análise da educação a partir do


paradigma anarquista, recorreu-se aos aparatos teóricos de pensadores da base do anarquismo,
como Bakunin, e toda a literatura posterior que explorou os princípios básicos, como Bartlett,
permeando um diálogo com as ideias de Gallo e Freire.
O anarquismo, o libertarianismo e todas as outras correntes pró-liberdade sempre se
posicionaram de forma firme contra as formas de autoritarismo e de ‘padronização’ do
homem, propondo vias que possam criar liberdades para que cada indivíduo realize-se em sua
potência de vida. É importante notar que esse processo de "libertação" não deve ocorrer
apenas dentro das instituições de ensino a partir dos métodos abordados nesse artigo, mas
também fora dela, nas relações do ser com o mundo, na desconstrução do autoritarismo no lar,
nas relações sociais - de poder -. Num período de acirramentos políticos e polarizações, a
sociedade tende a mudar para conciliar os interesses distintos dos grupos antagônicos. No
nosso século, tem-se isso de forma acentuada pela tecnologia e pelo início do esgotamento da
'elasticidade' do capitalismo de estado. Conforme afirma Gallo:

O desenvolvimento tecnológico que leva-nos cada vez mais rápido rumo a


uma "Sociedade Informática", para utilizarmos a expressão de Adam Schaff,
define um horizonte de possibilidades de futuro bastante interessantes; numa
sociedade que politicamente não se define mais com base nos detentores dos
meios de produção, mas sim com base naqueles que têm acesso e controle
sobre os meios de informação, encontramos duas possibilidades básicas: a
realização de um totalitarismo absoluto baseado no controle do fluxo de
informações, como o pensado por Orwell em seu 1984 ou por Huxley em seu
Admirável Mundo Novo, ou então a realização da antiga utopia da
democracia direta, estando o fluxo de informações autogerido pelo conjunto
da sociedade. (GALLO, 1996, p. 12).

Numa "era da informação", uma mudança na educação para uma perspectiva crítica -
livre - da realidade poderia gerar, na era da informação, uma análise crítica das coisas que
recebemos atualmente de forma muito rápida, sem muita dissociação entre fato e mito, entre
argumentação e falácia.
Dessa forma, considera-se que a neutralidade é um princípio complexo, talvez
impossível de ser atingido, mas pode-se considerar que o objetivo de demonstrar o conflito
ideológico decorrente da forma atual de se fazer educação foi atingido.
5. Referências Bibliográficas

FILLOUX, Jean-Claude. Émile Durkheim. São Paulo: Massangana, 2010.

BAKUNIN, Mikhail. O conceito de Liberdade. Porto: RÉS, 1975.

TRASSATTI, Fillipo. Actualidad de la Pedagogia Libertaria. Madri: Editorial Popular,


2004.

GALLO, Silvio. "O paradigma anarquista em educação". Nuances, São Paulo, Vol 2.,
Out., 1996.

LÉVAL, Gaston. "La pedagogia de Bakunin". Reconstruir, Buenos Aires, Número 100,
Jan., 1976.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

LESSING, Doris. O carnê Dourado. Rio de Janeiro: Record, 1972.

MICHEL, Antony. Os microcosmos: Experiências utópicas libertárias sobretudo


pedagógicas: Utopedagógicas. São Paulo: Editora Imaginário, 2011.

DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. 10. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975.

DURKHEIM, Émile. A educação moral. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2008.

Você também pode gostar