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RUNNING TO THE WAY WE ARE

From Nowhere to Hong Kong _ Um Olhar Sobre a História, Cultura e Identidade de Hong Kong
Através dos Seus Filmes | 2021

RUNNING ON KARMA / 2003


(“daai chek liu”)

um filme de Johnnie To e Wai Ka-Fai

Realização: Johnnie To e Wai Ka-Fai / Argumento: Wai Ka-Fai, Yau Nai-Hoi, Au Kin-Yee e Yip
Tin-Shing / Fotografia: Cheng Siu-Keung / Montagem: Law Wing-Cheong / Música: Wong
Cacine / Figurinos: Yu Bruce / Direcção Artística: Chan Raymond e Sun David Y . /
Intérpretes: Andy Lau, Cecilia Cheung, Eddie Cheung, Wong Chun, Karen Tong, etc. /
Produção: One Hundred Years of Film Company e Milkyway Image Company / Hong Kong, 93’,
2003
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Hong Kong, território desde cedo ligado à China por razões geográficas, sociais, culturais e políticas, até
aos anos 20 não distinguia o seu cinema do cinema chinês. No entanto, conflitos internos em relação ao império
vizinho desde logo tornou visíveis clivagens, e o choque entre ambos manteve-se até aos dias de hoje.
A começar pela greve geral de 1925, que abrangeu quase metade da população de Hong Kong, o cinema
produzido na ilha paralisou durante 4 anos, sendo somente retomado em 1931. No mesmo período o aparecimento
de uma nova tecnologia impediria para sempre a harmonia cinematográfica entre os dois territórios: o
aparecimento do cinema sonoro. Este novo cinema acentuava definitivamente uma divisão cultural que se
espelhava numa rotura étnica, já que foi determinado que a produção do sul (Hong Kong) passasse a ser realizada
em cantonês, contrária à língua mãe do cinema do norte, que passaria a ser em mandarim.
A partir daí, encontros e desencontros, momentos de aproximação e de distância marcariam a produção de
ambos os territórios. Em 1937 Hong Kong, durante a ocupação da China por parte do Japão, é ele próprio
‘ocupado’ por uma vaga chinesa em massa que fugiria para Hong Kong numa tentativa de escapar da opressão.
Nos anos seguintes a qualidade da produção cinematográfica aumentaria devido aos profissionais emigrados e o
cinema ‘hongkonguês’ assumiria um carácter político de resistência contra a ocupação – qualidade que
ulteriormente o caracterizaria – só para um ano mais tarde ser também ele tomado pelos japoneses, que
procuraram censurar a produção. Hong Kong, contrariamente à China ocupada, recusar-se-ia a colaborar, e até
1949 ficaria novamente sem produção nacional, tendo os japoneses produzido filmes no território com os seus
próprios atores e capitais.
Nos anos 50, após um boom populacional que aumentaria em quatro vezes no período de um ano a
população de Hong Kong e que obrigaria, inclusive, a República Popular da China a fechar as fronteiras, numa
tentativa de conter os que pretendiam fugir, a produção cinematográfica territorial sofreu um aumento
exponencial, e separou-se definitivamente em dois géneros: um cinema de elites, com salas próprias, falado em
mandarim, e um cinema mais popular, falado em cantonês, e no qual este ciclo se vai focar.
Marcado por uma regionalidade e abordando temas muito próximos à crise de identidade, bem como
questões relacionadas com a interculturalidade – o cinema assumiu a cultura pop norte americana e ocidental
muito acentuadamente – o boom económico e populacional, a imigração e a identidade flutuante da sua
população, o cinema cantonês afastou-se acentuadamente de qualquer outro tipo de cinema produzido no mundo.

Madalena Awouters
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(Contexto Histórico)

Realizador de cinema commercial, proeminente em Hong Kong desde os anos 80, a carreira e o estatuto
conquistado por Johnnie To distingue-se de contemporâneos como John Woo, Tsui Hark, e Wong Kar-wai.
Solenemente comprometido com o cinema nacional, fez questão de nunca se estabelecer em Hollywood e formou
inclusive a sua própria produtora, Milkyway Image, em 1996. Somente nos anos 2000 quando filmes como
Breaking News (2005) e Election (2006) estrearam no Festival de Cannes Film é que lhe foi dada visibilidade
autoral por parte da crítica e da audiência ocidental. Ainda assim, foi apenas o seu trabalho dentro do género do
crime e da ação, caracterizado por um estilo elegante e o seu controlo artístico enquanto diretor, que encontrou o
carinho da crítica e foi visto como economicamente viável para os mercados internacionais. Com mais de 50
filmes dentro do portefólio, Johnnie To possui uma obra massiva e explontânea, desenquadrada de qualquer
modus operandis, não deixando por isso de ser um dos maiores formalistas da contemporaneidade. A sua fluência
na narrative visual transcende o género.

Adam Cook
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‘A Poet of Spatiality and Structure: Curator Shelly Kraicer on Johnnie To’

Hong Kong, centro de trocas comerciais do Oriente, sofreu um dos maiores crescimentos populacionais e
económicos do último milénio. Como tal, o território é afetado por uma miscigenação – sociedade multiétnica – e
uma constante transfiguração arquitetónica, de modo a corresponder à demanda do crescimento populacional.
Nesse sentido, é um local onde a identidade dos seus habitantes é flutuante e problemática, já que as constantes
reconfigurações da cidade dão uma ideia identitária mais próxima do ‘arrendatário’ (ideia de inconstância) do que
a ideia de ‘nacionalidade/lar’, como é o caso da identidade lusitana.
Devido a esta característica do tecido urbano e social palimpséstica, o cinema nacional adquiriu uma
plasticidade própria de se transfigurar em vários géneros (Running on Karma é o exemplo dessa mistura
alucinante) e registos, onde o realismo e o fantástico coabitam em perfeita harmonia. O cinema cantonês, na sua
larga maioria, passou a ser caracterizado por ritmos rápidos (cinema do efeito), pela utilização de um tempo
fragmentado, sem noção de extensão ou espessura, e por uma dinâmica fatalista, num sentimento que Ackbar
Abbas descreve como o ‘dejà disparu’ – um texto que por economia de espaço traduziremos posteriormente, na
folha de sala relativa a Dream Home – já que construir um sentido de identidade dentro do esgotamento do tempo
se torna paradoxal. Por estas e outras razões o cinema cantonês tem sofrido uma aproximação do tempo próprio do
cinema de ação, que vive do fragmento da narrativa em prol da criação de momentos de tensão: o espetáculo.
É possível encontrar neste cinema da diáspora exemplos interessantíssimos de exploração temporal, como
a capacidade magistral da fragmentação dos personagens – Big, culturista, monge e stripper e Lee, polícia à
paisana e grande guerreiro numa vida passada – e do espaço – a capacidade de Big levitar aproxima-se da
ideologia chinesa de vazio, organizado de acordo com pulsões de intensidade, ou seja, onde o espaço é estruturado
de acordo com a energia depositada nesse vácuo. Igualmente característico é o binómio espírito versus
materialidade, espalhada no filme em fenómenos como a utilização de fatos de latex, que criam uma distinção
clara entre exterior, insuflado, e interior onde reside o ator.
Através da exploração de micronarrativas acopladas numa grande mundivisão cármica (ideia espiritual
de circularidade causal através do tempo) e expressando claramente um excesso formal que conduz a uma
depuração que critica a ideia de real material, transportando-a para uma realidade palimpsesto na ordem da
dimensão mental, este tipo de cinema cria um puro movimento das formas. O transformismo da matéria entende-
se como natural e parte da identidade: a identidade cria-se no seio da crise. O excesso (grotesco) é crítica do real.

Madalena Awouters
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(Sobre a Ideia de Corpo)

É comum os académicos abordarem os filmes de Johnnie To em relação às convenções do filme noir. […]
[o filme Running on Karma] é um híbrido genérico que vai da comédia negra ao terror e do thriller sobrenatural
ao romance improvável. Contudo, quando enquadrado no contexto do restante trabalho de To, bem como dentro
da moldura da produtora ‘Milkyway Image’ e as suas outras colaborações com Wai Kai-Fai, uma insistente
consistência estilística emergente ressoa em noir. Sombras de chiaroscuro afloram dentro da mise-en-scéne; Hong
Kong aparece de entre uma escuridão lamacenta pontuada pela luz de néons dos estabelecimentos noturnos e pelo
brilho das luzes dos carros de polícia; os exteriores fora da cidade tomam a qualidade de sonhos de escape,
deslocados da luz do dia pela suave aura da memória nostálgica.
[C]omo na generalidade dos filmes noir, as personagens carregam sobre os seus ombros o fardo da
história ( social, cultural, política e pessoal). […] Os elementos sobrenaturais e homicídios sangrentos aproximam
o filme do cinema de terror e as suas cenas de artes marciais, cuidadosamente coreografadas, incluindo
demonstrações baléticas de arte marcial executada com lenços Kleenex, liga a obra a uma tradição de ‘wuxia
pian’[…]
O cinema pós-moderno de Hong Kong não oferece distinções de género claras, ao ponto do filme noir, inclusive,
ter vindo a ser descrito mais como um estilo do que um género pelos académicos. Portanto, encontrar elementos
característicos do noir dentro de Running on Karma não é assim tão surpreendente. Apesar do fato musculado de
Andy Lau e o seu número artístico no bar de strip o possam situar dentro das linhas do cómico ou do grotesco, o
seu conflito interno, a busca incessante por justiça e o seu compromisso conflituoso entre o bem e o mal
enquadram-no no expoente máximo do anti-herói noir. O filme também traça uma linha paralela com convenções
do género, como o uso do chiaroscuro, espaços urbanos claustrofóbicos, flashbacks, e um sentido do lado negro
da natureza humana e inexplicáveis maquinações do destino. […]
O filme noir especializa-se em crises existenciais de identidade visualizadas através das ensombradas
mise-en-scénes e pelos ângulos extremos representativos das falhas de perceção e o pesadelo das almas divididas
moralmente. O anti-herói incorpora tudo isto – pouco esperançoso, violento, moralmente ambivalente, um homem
em busca da verdade que apenas se depara com mentiras.[…] [Big] estabelece uma intimidade com o noturno, o
lado mais negro da vida (por exemplo, os clubes de strip, as prostitutas), carrega em si uma moralidade
ambivalente (trabalha no mundo do sexo, fuma, bebe), atrai violência, tem tendências niilistas, e vive como um
marginal social afetado por um passado que não consegue ultrapassar.

Gina Marchetti
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‘Running on Karma: Hong Kong Noir and the Political Unconscious’

[Comparando Running On Karma – Johnnie To e Wai Ka-Fai, 2003 – com Sparrow – Johnnie To,
2008] Ambos os filmes concluem com dois dos finais mais estáticos na obra de To, onde os respetivos
protagonistas, deixados sozinhos na ausência da mulher que amam, são consolados por forças de reconciliação. A
natureza destas forças é onde os filmes divergem.
Sparrow, um filme guiado pelos temas mais característicos do realizador, desportivismo e camaradagem,
termina entre amigos, um bando de carteiristas liderados por Kei (Simon Yam), unidos pelo seu ofício e corações
partidos; enquanto o desfecho catártico de Running on Karma é um gesto espiritual: Big (Andy Lau) caminha
sozinho mas seguro de si, com um novo propósito, um trilho pela frente. Ambos os protagonistas perderam algo de
si antes de chegarem a esta conclusão. Big sofre uma série de transformações, de monge a stripper comicamente
musculado e viajante itinerante, cada forma nascida de uma dificuldade de se reconciliar consigo mesmo e com a
sua ordem cármica, conseguindo apenas alcançar a paz depois de quebrar o ciclo de violência que o filme
demonstra ser perpétuo no mundo. Na cena final mais uma vez enverga o robe de monge, e sem nunca deixar a
excentricidade característica da personagem fuma um cigarro, demonstrando não ser uma mudança de carácter
subserviente, mas sim o ato de um homem se tornar inteiro nos seus próprios termos. Cecilia Cheung, que
interpreta o amor destinado de Big e o elemento catalisador para esta sua recém-encontrada serenidade, aparece
uma última vez, introduzida por um fade in, a apanhar sementes no vento. O filme conclui em efervescência, na
ligação entre o transitório (a mulher, agora ausente) e o eterno (o sentimento de continuo cármico).
Sparrow toma uma aproximação enganadoramente oblíqua a esta ideia de aceitação e graça. Num ato de
nobre resignação, os carteiristas que desejam o carinho de uma mulher deixam-na ir, como forma de aplacar o
conflito dos seus desejos simultâneos. O significado deste sacrifício é evidente pela enfatuação da imagem. Eles
compreendem que na sua missão de libertar a mulher do seu opressivo pretendente/raptor, também ela terá de se
libertar dos seus próprios objetivos românticos. A solidão é partilhada, os protagonistas nominais e antagonistas
concordam em parar o conflito de forma amigável. O final encontra beleza no companheirismo dos quatro amigos
a andar numa bicicleta, a unidade expressa numa imagem. O regresso do pardal – pássaro fugido no início do
filme – traz a estrutura musical do filme a um final. Um momento fugaz, o amor perdido, a amizade consolidada e
o retorno do pássaro ao apartamento de Kei, o capricho do filme, terminando o seu ciclo.
O final transcendente de Running on Karma acompanha um balanço cósmico; as notas ligeiras finais de
Sparrow articulam uma menor mas igualmente tocante ideia do abandonar do desejo egoísta. Embora estes filmes
e os seus finais sejam muito diferentes vistos através de uma lente temática, são ambos guiados por harmoniosas
expressões de aceitação. Johnnie To e Wai Ka-Fai são cineastas que pensam de forma diferente mas estão
intimamente unidos na questão emocional.

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