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UM CONVITE À REBELDIA

Apresentação
Este documento, elaborado pela Executiva Nacional da Ação Popular Socialista, é uma
primeira contribuição ao debate em torno da constituição de uma nova organização política,
que contribua com a organização do povo e a superação das dificuldades enfrentadas pela
reorganização da esquerda brasileira. Aqui, é traçado um panorama do momento que
vivemos, e são lançadas as bases programáticas de um projeto que combine uma robusta
teoria unitária para a transformação social ao imprescindível aprofundamento, teórico e
prático, nas especificidades de gênero, étnicoraciais, das orientações sexuais, no
ecossocialismo… 
Não apenas nós, que vivemos do trabalho, somos sujeitos efetivos, não um conjunto
abstrato, amorfo e indiferenciado, mas também as contradições engendradas pela
sociabilidade capitalista se expressam e nos sensibilizam para a luta não apenas por nossa
posição de classe. Cabe, portanto, aos comunistas, compreender estes desdobramentos
particulares da exploração capitalista, assimilando-os no centro de sua estratégia. Ao
mesmo tempo, a inserção nos novos movimentos que surgem e incorporação de novas
pautas (ou priorização daquelas até então negligenciadas) não devem significar nossa
dissolução, rebaixamento programático ou a perda da perspectiva da totalidade social. 
Assim como no movimento sindical clássico combatíamos as tendências reformistas e o
pragmatismo, buscando dotá-lo de um programa revolucionário, também nos movimentos
feministas, negro, LGBT, além de outras expressões da luta na cidade por moradia,
mobilidade, cultura etc. enfrentamos a fragmentação, posições liberais, a redução da luta de
classes a disputas discursivas. Posto que demandam um esforço mais apurado, a análise
mais detida de alguns desses movimentos e o delineamento de linhas para a atuação da
militância nesses espaços ficarão a cargo de documentos posteriormente redigidos. Por ora,
cabe apenas negritar sua relevância. 
Neste processo de Encontro e Fundação da Nova Organização, oferecemos, à militância da
APS e aos militantes de outros agrupamentos ou independentes que se somem a esta
iniciativa, uma história de quase meio século na luta pelo socialismo; décadas ao longo das
quais fomos capazes de reformular nosso programa e nos reinventar no plano organizativo,
sem nunca perder no horizonte a construção de uma sociedade livre de toda forma de
estranhamento. O que nos anima na condução deste processo é a análise crítica do momento
histórico e a urgência de um instrumento capaz de desempenhar as necessárias tarefas para
a Revolução Brasileira. Como nos lembra o velho Mouro, é a luta a essência última do ser
humano. Este é nosso convite à rebeldia. 
O mundo em movimento
O fim do século XX viu a consolidação do processo de globalização neoliberal da
economia, impulsionada pela terceira revolução industrial e os avanços tecnológicos e
científicos por ela produzidos na indústria, agricultura, pecuária, comércio, comunicações e
no setor de serviços. Essa nova etapa histórica trouxe consigo o desemprego crônico e
endêmico, o radical desmonte do chamado “Estado de bem-estar social” nos países
desenvolvidos e a volta das crises humanitárias provocadas por conflitos nacionais ou
supranacionais. 
O século XXI nasce sob o signo do terrorismo; do desmonte das políticas de proteção social
na Europa; da volta dos nacionalismos e das guerras de rapina, como aquelas travadas pelos
Estados Unidos no Afeganistão e Iraque; do avanço dos populismos de direita na América
Latina, Ásia e África. A reestruturação capitalista promovida pela agenda neoliberal –
desregulamentação das leis trabalhistas, abertura comercial irrestrita, fortalecimento das
frações monopolistas da burguesia, privatizações e plena hegemonia do capital financeiro e
especulativo – elevou à condição de lei os interesses do verdadeiro corporativismo
representado pelo rentismo e seus associados.
 Organismos internacionais criados para reproduzir essa agenda em todo o mundo, como
FMI, OMC e Bando Mundial, introduziram na legislação de diferentes países regras que
estrangulam a gestão macroeconômica e a autonomia dos Estados nacionais, sempre em
nome da “saúde financeira” do sistema. Todas as dimensões do capitalismo, como a divisão
internacional do trabalho, os padrões tecnológicos e de organização empresarial, os sistemas
de crédito e os mercados financeiros, assim como as normas de concorrência e os regimes
monetários, foram capturados pelo mantra neoliberal do “equilíbrio fiscal”. Com menos
capacidade de intervenção na economia e maior dependência dos fluxos exteriores,
economias periféricas ou semiperiféricas ficam reféns dos humores do mercado, tornando-
se as primeiras vítimas das crises do sistema. 
A virada do século, aliás, foi pródiga em crises. Algumas eclodiram em países com menor
nível de desenvolvimento, como Brasil, México, Coreia do Sul e, de modo mais dramático,
Argentina. Os bancos assumiram predomínio total na nova dinâmica da acumulação
capitalista. A produção industrial concentrou-se na Ásia, criando uma nova potência
mundial – a China – e impactando profundamente a organização da classe operária no
Ocidente. Enquanto o sistema de proteção social encolhia nos países da Europa e nos
Estados Unidos, na periferia e semiperiferia do sistema aumentava terrivelmente a
informalidade e, com ela, ganhavam terreno valores assentados no individualismo,
corroendo tradições associativistas e minando a solidariedade de classe. 
A ofensiva do capital sobre o trabalho foi completa: no campo econômico, social, político e
ideológico. Com o avanço do neoliberalismo e a desorganização do mundo do trabalho,
muitas organizações dos trabalhadores regrediram política, ideológica e organizativamente.
O sindicalismo entrou em crise no ocidente, e os olhos do mundo passaram a mirar a
América Latina, onde surgiam novas formas de organização na luta contra o neoliberalismo.
A realização do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre (2001), colocava o Brasil e o
continente na rota da resistência global. 
Nas últimas décadas do século passado, porém, nota-se uma alteração nos padrões de
acumulação do capital em nível mundial, com profundos impactos para os países da
semiperiferia do sistema, como o Brasil. Analisando o sociometabolismo do capital,
Mészáros destrincha a natureza estrutural da crise de acumulação, que tem na queda do
chamado “socialismo real” apenas a expressão de uma crise geral do modo de produção de
mercadorias. A partir de um novo polo hegemônico – o capital financeiro – o capitalismo
pôs abaixo os mais desenvolvidos sistemas de controle do capital, a saber, o welfare state
keynesiano e o socialismo soviético, tornando-se incontrolável e profundamente destrutivo. 
Ao contrário das teorias que advogam a existência de ciclos infinitos de expansão/recessão
do capital, é possível sustentar, com base nos estudos hoje disponíveis, que o capital
enfrenta limites estruturais à sua reprodução, com sucessivas quedas das taxas de
valorização, o que justifica a continuada depressão dos padrões de acumulação. Estratégias
como a expansão da valorização especulativa através do mercado de ativos financeiros ou a
ampliação da tendência decrescente do valor de uso das mercadorias constituem nada
menos que tentativas de responder à crise da reprodução industrial. Essa crise estrutural
impacta profundamente a organização social da produção e, por conseguinte, toda a vida em
sociedade. 
As transformações do mundo do trabalho refletem, como nenhum outro conjunto de
relações sociais na modernidade, os processos políticos, econômicos e culturais que o
contextualizam. É o resultado e, em certas ocasiões, também a causa, de mudanças nos
direitos civis e políticos e nas formas de exercê-los e promovê-los; de transformações
tecnológicas às vezes bruscas nos processos produtivos e no funcionamento dos mercados;
de alterações nas capacidades e modalidades de interpretação individual e social sobre a
realidade. Com o processo global de desregulamentação do trabalho, aprofundado nas
últimas décadas do século XX, o emprego precário sob a forma de cooperativas de trabalho,
contratos comerciais e terceirizações tornou-se parte indispensável do regime de
acumulação pós-fordista e financeirizado, com vistas a reduzir o custo do trabalho e ampliar
a valorização marginal do capital. 
Durante os anos que se seguiram ao estabelecimento do Plano Real, em 1994, podem ser
identificadas duas tendências francamente opostas em relação ao comportamento das rendas
do trabalho e da propriedade no país, de acordo com dados do IBGE. Durante quase uma
década, houve uma trajetória de queda da participação salarial na renda nacional,
acompanhada simultaneamente pela expansão das rendas oriundas da propriedade, ou seja,
lucros, juros, renda da terra e aluguéis. Entre 1995 e 2004, a renda do trabalho perdeu 9%
de seu peso relativo na renda nacional, enquanto a renda da propriedade cresceu 12,3%.
Esse contexto demonstra um forte processo de financeirização do capital, uma vez que as
atividades consideradas “produtivas” não demonstravam a mesma capacidade de
rendimento. 
O ciclo mundial de expansão econômica, que coincidiu com os governos Lula (2003-2010),
foi fortemente marcado por esse contexto. Com o enfraquecimento dos setores produtivos
durante a metamorfose financeira da economia brasileira, em especial da indústria, que
perdeu considerável participação na renda nacional (representando hoje, segundo dados do
IBGE, menos de 11%, equivalente ao período anterior à II Guerra Mundial), a aceleração
econômica da primeira década dos anos 2000 gera um “boom” de empregos no setor de
serviços, passando a ser responsável por nove em cada dez empregos gerados com salário
de até 1,5 salários-mínimos. Esse setor, promovendo uma sociabilidade fundada na
integração ao mercado de massas, aumentou sua participação no Produto Interno Bruto em
30,6%, respondendo por dois terços de toda a produção nacional. Enquanto isso, a
diminuição dos postos de trabalho na indústria na primeira década do século XXI chegou a
ser nove vezes maior do que o verificado na década de 1970. 
Nas últimas três décadas, as mudanças na dinâmica da acumulação capitalista empurraram
os trabalhadores para um modelo de desenvolvimento pós-fordista, resultado do fenômeno
de reestruturação produtiva que terceirizou, demitiu, flexibilizou e precarizou o trabalho. O
resultado desse processo é auto evidente: se até meados dos anos 1990 a dinâmica de
acumulação capitalista no Brasil concentrava a criação de empregos na faixa de três a cinco
salários-mínimos, com a indústria respondendo por 40% das novas vagas, entre 1994 e 2008
a geração de empregos deslocou-se para o setor de serviços (70%). 
Paralelamente, o processo de mecanização da produção agrícola e a incorporação de uma
grande massa de migrantes rurais às formas precárias de trabalho ampliaram o processo de
segregação urbana. Fortalecida pelo aumento da liquidez do crédito público, a especulação
imobiliária impôs um tipo de planejamento urbano que consistiu basicamente em tratar as
terras urbanas como um ativo financeiro à espera de valorização. Como a rentabilidade
desses ativos depende dos custos da aquisição das glebas, as construtoras investiram em
terrenos distantes dos centros das cidades e, consequentemente, dos serviços públicos,
amplificando a crise social urbana e criando os chamados “espaços de
subdesenvolvimento”. Com eles, a segregação social e racial regride a níveis equivalentes
aos do início do século passado. 
Na produção capitalista do espaço urbano e regional, as cidades passaram a representar uma
nova arena no processo de acumulação, sem que os atores sociais tradicionalmente
excluídos da sua função social tenham conseguido se apropriar devidamente dos frutos do
crescimento econômico, aprofundando desigualdades e engendrando conflitos de toda sorte.
Entre esses conflitos, podemos destacar aqueles relacionados à mobilidade urbana, ao
déficit habitacional, à violência, à precariedade dos serviços públicos, entre outros. 
Segundo David Harvey,  a crise da modernidade sofreu uma inflexão profunda a partir da
metade dos anos setenta do século passado. Trata-se de uma crise que atravessa as formas
de ordenamento político, econômico, cultural e religioso, e que, indissociavelmente, alcança
as formas de ordenamento espaço-temporal da sociedade ocidental em vias de urbanização
completa. Nessa etapa, a acumulação nos termos da financeirização se sobrepõe ao processo
produtivo em que capital e trabalhador constituiriam, em seu conflito, a experiência
formativa da ação política dos que vivem do trabalho. Isso tem gerado um forte impacto
sobre os sindicatos e as formas tradicionais de ação política. 
O aumento da competitividade internacional provocou uma elevada pressão em favor da
desregulamentação e da consequente flexibilização do trabalho, que tem se traduzido na
perda de direitos laborais e na proliferação do emprego precário. Portanto, aceitar a ideia de
que a atual crise mundial decorre apenas da crise financeira desencadeada pela falência dos
fundos hipotecários nos EUA e, consequentemente, considerar que o remédio para a
resolução da crise consiste em injetar liquidez financeira nos bancos e em outras instituições
de crédito que entraram em processo de falência constitui um grave erro que, pela dimensão
e profundidade da crise, pode ter trágicas consequências para os que vivem do trabalho. 
Crise de 2008, crise da acumulação capitalista e novos atores sociais
A crise do mercado imobiliário nos EUA, seguida pela crise da dívida no sul da Europa,
trouxe novos impasses à reprodução do capital porque exauriu importantes reservas de
valorização especulativa. Como a grande crise capitalista de meados de 1970, a crise de
2008 abre uma nova temporalidade histórico-social do capitalismo mundial e revela a
dimensão estrutural dos obstáculos que se impõem à reprodução do capital. Com isso, além
do potencial esgotamento dos recursos naturais disponíveis para a produção de mercadorias,
o mundo se vê diante dos limites da capacidade de reprodução especulativa do capital. 
Na verdade, as crises financeiras no interior da crise estrutural – no plano da objetividade
social e das reverberações nas instâncias produtivas – são momentos de reordenação interior
do capital como sujeito de sua autovalorização. As crises particulares, ainda que inscritas
num contexto de crise estrutural, permitem a reestruturação do sistema nos vários âmbitos
da vida social. 
Por isso, outro resultado da crise financeira global é politizar, mais ainda, a economia do
capitalismo global. Na medida em que os Estados socorrem os mercados financeiros,
injetando trilhões de dólares para salvar bancos e outras instituições financeiras, aumentam
a dívida pública mundial, dilaceram as políticas de proteção e ampliam o conflito social. A
disputa pelo orçamento público se acirra ainda mais e o Estado, “capturado” pelas
demandas do mercado financeiro, sofre uma crescente crise de legitimidade. 
Integrados à ordem internacional e pressionados a adotarem medidas fortemente
impopulares, os governos atacaram violentamente os direitos de seus cidadãos. A revolta se
ampliou, dando origem a movimentos de contestação com pouca ou nenhuma identidade de
classe. Revoltas antiglobalização, antes circunscritas a episódios pontuais (Seattle, Gênova,
Praga), assumem caráter de massas, dando origem a movimentos críticos à política de
austeridade, da extrema-direita à extrema-esquerda. As revoltas no norte da África e Oriente
Médio contra governos autoritários – mas fundados na piora dos indicadores econômicos –
deram a senha para que os protestos se alastrassem pela Europa e Estados Unidos. Na
Espanha, Itália, Grécia, França, Reino Unido, milhares tomaram as ruas, colocando a
globalização neoliberal e sua forma de governo – a democracia liberal – contra a parede.
Nesse contexto, dois fenômenos se desenvolveram simultaneamente: de um lado, o
renascimento dos nacionalismos de extrema-direita; de outro, novos movimentos de
questionamento à ordem capitalista e à democracia liberal.
 A transformação dos levantes no norte da África e Oriente Médio em guerras civis com
forte presença das potências imperialistas, especialmente na Síria, Líbia e Iêmen, alimentou
a maior crise migratória da história, levando milhões de refugiados a procurarem abrigo na
Europa. Essa crise fortaleceu posições ultraconservadoras que identificam na interação com
o mundo exterior a origem da decadência do modo de vida ocidental. 
Na França, com a família Le Pen, ganha força o Front National, partido de extrema-direita.
Na Suíça, o Partido Popular (SVP) alcançou 29% dos votos nas últimas eleições e tem entre
suas propostas a proibição da construção de mesquitas no país, além da forte oposição ao
acolhimento de imigrantes. Na Dinamarca, o Partido Popular (DFP) obteve 21%, e defende
as mesmas políticas xenofóbicas de seu homônimo suíço. Na Hungria, Victor Orbán tornou-
se premier abandonando as antigas posições liberais de seu partido e assumindo uma
retórica extremista de direita. O mesmo ocorreu na Polônia com a chamada “revolução
patriótica” do partido Lei e Justiça. Na Áustria, o Partido da Liberdade, de Norbert Hofer,
se alimenta do ressentimento contra a União Europeia e do medo da chegada de refugiados
para angariar seguidores. Na Finlândia, a extrema-direita conquistou 18% dos votos e hoje
compõe o governo com as forças de centro-direita. Na Grécia, a Aurora Dourada, que flerta
abertamente com o neonazismo, ampliou exponencialmente seu número de simpatizantes
depois da crise que atingiu o país. Na Itália, a Liga do Norte compõe o governo. Na
Alemanha, o partido Alternativa para Alemanha (AfD) tornou-se a terceira maior força
política no parlamento e, na Holanda, o Partido para a Liberdade ficou em segundo lugar no
último pleito. Em todos esses países a extrema-direita cresce baseada numa forte retórica
xenofóbica contra a globalização, supostamente responsável tanto pelo terrorismo quanto
pela crise migratória que afeta o Continente. 
O crescimento das posições extremistas de direita e o retorno dos nacionalismos expressa
uma profunda crise da democracia liberal em todo o Ocidente, mas não são a única
expressão dessa crise. A incapacidade das instituições de Estado se conectarem com o
profundo mal-estar presente pós-crise de 2008 tem gerado também uma ampla contestação
aos limites da ordem liberal burguesa. Emerge-se como sintoma dessa crise uma parcela de
indivíduos que reivindica o retorno a uma “idade do ouro”, ao mesmo tempo, ganharam
projeção fenômenos de contestação que remetem à defesa de uma democracia real,
expressão das aspirações dos 99% contra o 1% de privilegiados que tomam as decisões
sobre os rumos da humanidade. 
Nesse contexto, surgiram movimentos como Occupy Wall Street e os “indignados” de
Madrid e Barcelona. A crítica de uma nova esquerda endereçada ao sistema de perpetuação
de privilégios deu origem a novas formas de contestação social e luta política na Europa. Na
Grécia, um pequeno partido da esquerda radical despontou como esperança de mudança
com uma forte crítica aos rumos da União Europeia, conquistando maioria para compor o
governo do país e negociar com a Troika. Na Espanha, França, Alemanha, Portugal,
Turquia, Reino Unido também surgiram novos atores. Em todos esses países ganharam peso
alternativas de esquerda radical, críticas ao processo de globalização neoliberal, mas
comprometidas com uma democracia dos 99%. 
Esses ventos de mudança cruzaram o Atlântico e encontraram uma juventude disposta a
construir uma saída contra hegemônica no coração do sistema capitalista. Enquanto forças
de extrema-direita assumiram a candidatura de Donald Trump, derrotando os candidatos do
velho aparato republicano, a juventude radicalizada encampou a campanha de Bernie
Sanders contra Hillary Clinton no interior do Partido Democrata. De um dia para o outro, os
Estados Unidos tiveram no páreo dois fortes concorrentes “antissistema” lutando pela
indicação de seus partidos na disputa presidencial. Ao impor a manutenção do status quo
entre os democratas, num momento em que os eleitores rechaçavam os velhos nomes da
política, a família Clinton assinou sua derrota. 
A crise da globalização, como se vê, aprofundou a crise da própria democracia liberal,
abrindo espaço para que os polos – à esquerda e à direita – ganhassem espaço no terreno da
luta política. Essa crise selou a decadência dos fiadores de um sistema com cada vez menos
legitimidade aos olhos da maioria: os liberais e a socialdemocracia. O fim do bipartidarismo
na Europa mostra a profundidade da crise no berço da democracia liberal e abre novas
perspectivas. 
A socialdemocracia beija a lona
Desde a queda do muro de Berlim e do fim das experiências socialistas no leste da Europa,
a socialdemocracia se consolidou como corrente hegemônica entre as esquerdas. A crise da
utopia revolucionária encontrou nos projetos reformistas seu desaguadouro quase natural.
Desde então, a única esquerda “possível” seria aquela disposta a conviver pacificamente
com a economia de mercado. O fim do mundo bipolar era a senha para a consolidação da
hegemonia socialdemocrata, gradualmente sedimentada a partir do discurso de que não
haveria alternativa fora da democracia e das instituições liberais. As transformações na
economia e na sociedade, porém, colocariam em xeque suas promessas de paz e
prosperidade. 
Na Europa, a socialdemocracias tem enfrentado imensas dificuldades políticas e eleitorais,
como demonstra a drástica diminuição do peso desses partidos em governos e parlamentos
nacionais. Até pouco tempo atrás, boa parte do núcleo duro europeu – França, Alemanha,
Bélgica, Itália, Espanha e Holanda – tinham forças socialdemocratas em seus Executivos
(sozinhas ou em coalizão). A presença dos partidos deste campo político nos governos
europeus tem diminuído ano a ano neste século, no que foi descrito como “fim do ciclo da
esquerda tecnocrática e reformista ao estilo terceira via”. Esse fracasso seria explicado pelos
impactos da globalização e da europeização sobre seu eleitorado tradicional, pelas
promessas não cumpridas de retomada do Estado de Bem-Estar Social e pela falta de
respostas a fenômenos fundamentais como a imigração, a crise econômica, o terrorismo e a
volta dos nacionalismos. 
O projeto do campo reformista se caracterizava por uma exitosa adaptação dos partidos
socialdemocratas às expectativas e condições materiais da política e da econômica global de
seu tempo. Foi a expressão de uma interpretação acertada do espírito da época que permitiu
aos partidos de centro-esquerda, desde a segunda metade dos anos 1990, se firmar como
campo político hegemônico na Europa. Esse campo compartilhava aspectos programáticos
similares: a combinação entre uma posição moderadamente neoliberal na política
econômica e fiscal; a insistência num papel limitado, porém ativo do Estado na proteção
social; e uma perspectiva liberal progressista em relação às questões culturais ou das
liberdades individuais. 
Com a crise da democracia liberal e seus principais fiadores, vemos que o esgotamento do
paradigma reformista não se resume à sua incapacidade de reconhecer a crítica (já
largamente difundida e compartilhada por diferentes tradições políticas de esquerda) aos
limites da democracia liberal em si. A novidade está no fato de que, enquanto a
socialdemocracia é vista como corresponsável pela catástrofe neoliberal, se desenvolve uma
potente crítica política e teórica por parte de um amplo campo de atores sociais, em
diferentes países, aos efeitos da adaptação a esses limites. 
Esse é o novo antagonismo que difere o paradigma reformista clássico dos defensores de
uma democracia radical: a disposição de afrontar os poderosos e suas instituições,
combatendo privilégios, reformulando práticas e detendo as saídas autoritárias dos governos
contra os trabalhadores, trabalhadoras, juventude e excluídos. Lutar por uma hegemonia dos
99%, interditando assim a possibilidade de crescimento da extrema-direita. 
América Latina: o fim de um ciclo
No fim do século XX o neoliberalismo havia aprofundado a fome e a miséria na América
Latina e era largamente questionado. Como resultado desse processo, lutas de resistência
explodiram em todo o Continente, impulsionando forças de esquerda que compartilhavam a
crítica intransigente aos efeitos da globalização neoliberal sobre seus países. No México, o
Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) despontava como esperança para uma
geração inteira de militantes; na Colômbia, a insurgência revolucionária mantinha o direito
à rebelião armada no horizonte; na Argentina, o movimento operário aumentava a carga
contra o neoliberalismo de Menen; na Bolívia, a revolta da água e a guerra do gás opunham
amplas massas indígenas e camponesas ao governo entreguista de Sanchéz de Losada; no
Brasil, o PT inovava em suas administrações com práticas de gestão participativa que
chamavam a atenção do mundo todo, enquanto os sem-terra expressavam a resistência
popular ao latifúndio; e, na Venezuela, um jovem tenente-coronel – Hugo Rafael Chávez
Frías – conquistava a simpatia de milhares de trabalhadores e trabalhadoras em torno de seu
projeto bolivariano. Tudo acontecia sob o olhar atento de Fidel Castro, que da ilha
revolucionária reinventava seu projeto socialista depois dos duros anos de período especial. 
Os anos 1990 foram, portanto, anos de forte acúmulo de forças. O desastre neoliberal
construiu as bases para as primeiras vitórias eleitorais de forças de esquerda e centro-
esquerda. A primeira veio com Chávez, em 1998. Seu projeto de socialismo do século XXI
logo mostrou que as forças democráticas e progressistas se dividiriam em dois campos. De
um lado, aqueles projetos claramente anti-imperialistas, cujo propósito era criar as bases
para uma transição ao socialismo de caráter supranacional, amparado em novas instituições
multilaterais de defesa e cooperação regional. Nesse campo estiveram os governos de
Venezuela, Bolívia, Equador e, por alguns anos, Nicarágua. De outro, projetos
assumidamente reformistas, cujo horizonte se limitava à promessa de desenvolvimento com
redução das desigualdades. Foi a chamada “onda rosa”. Nela se enquadram os governos do
Frente Amplio (Uruguai), Concertación (Chile) e PT (Brasil). 
Nesses países formaram-se governos liderados por uma esquerda “institucional”. Em termos
gerais, são esquerdas que, em função da competição e das regras eleitorais sob as quais
atuam, afirmam sua condição de instrumento essencialmente partidário, adaptado aos
limites da democracia liberal. Desse processo, decorreram sua perda de densidade como
instrumentos de massas; o rebaixamento do peso da lógica militante; o afastamento em
relação às posições que buscam atribuir protagonismo político aos trabalhadores como
classe potencialmente transformadora; a adoção de uma ideologia “branda”; e o abandono
das pretensões de uma transformação estrutural da sociedade capitalista. Tudo isso em troca
de uma audiência mais ampla e diversificada, mesmo que em aliança com partidos de outros
espectros ideológicos, e ainda que tendo como efeito colateral a reestruturação dos próprios
partidos, seus processos decisórios e sua estrutura de liderança. 
O que aproxima essas experiências – Chile, Uruguai e Brasil – das experiências
socialdemocratas na Europa não é apenas a aceitação da via eleitoral como meio para
chegar ao poder, mas a incorporação da democracia liberal como regime de governo e
padrão de relacionamento institucional. Tanto nas experiências socialdemocratas europeias
das últimas décadas quanto nos governos popularmente chamados de “progressistas” na
América Latina, foram preservadas as bases fundamentais da hegemonia financeira,
mantendo intocada – ou, na melhor das hipóteses, pouco alterada – a democracia de baixa
intensidade legada pelo neoliberalismo. 
Se a crise do campo anti-imperialista – Venezuela, Bolívia e Equador – encontra explicação
em fatores que vão do isolamento aos impactos da queda do preço do petróleo no mercado
mundial, contando até mesmo com a morte de Chávez como fator decisivo, por outro, a
crise dos países da chamada “onda rosa” tem relação com a crise da socialdemocracia em
escala mundial. O descrédito com as instituições da democracia liberal atingiu em cheio os
partidos identificados com o sistema. Essa crise, agravada por sucessivos escândalos de
corrupção habilmente manipulados pelos monopólios da comunicação e por instituições
judiciais reacionárias, constituíram o cenário perfeito para o surgimento tanto de forças de
extrema-direita quanto de uma nova esquerda. 
Em países como Chile, Peru, Colômbia, Uruguai e Paraguai surgem novos instrumentos
políticos críticos aos limites da esquerda socialdemocrata. Nos casos peruano e chileno,
esses novos atores já constituem instrumentos partidários de massas, força parlamentar e
presença nos movimentos sociais. São partidos híbridos, que mantém ao mesmo tempo
características de partido e frente política, abrigando diferentes lutadores sociais e
sustentando uma plataforma anticapitalista. Pecam pela ausência de uma estratégia
claramente socialista, mas expressam o novo ciclo que se inicia na esquerda latino-
americana e sua oposição central entre democracia e neoliberalismo. 
O Brasil está no mundo
A oposição à Ditadura Civil-militar e a resistência ao projeto neoliberal consolidaram a
hegemonia do Partido dos Trabalhadores sobre as esquerdas no Brasil. Em 2002, no auge da
crise do neoliberalismo, o campo formado na resistência em defesa dos direitos da maioria
do povo brasileiro levou um ex-líder operário, Luís Inácio Lula da Silva, à Presidência da
República. Seu programa já não expressava a radicalidade do Programa Democrático e
Popular (PDP), mas significou a primeira grande derrota eleitoral do neoliberalismo na
América Latina. Durante treze anos, o Brasil foi governado por uma coalizão política que
tinha o PT como protagonista. Substituindo o PDP por um reformismo fraco de viés
neodesenvolvimentista, possível nos marcos de uma conjuntura econômica
extraordinariamente favorável às exportações de bens primários, o campo liderado pelo PT
– que incluía ainda PSB e PCdoB – se manteve mais ou menos unificado. Gradualmente,
porém, uma nova corrente política foi se formando a partir das melhorias promovidas pelo
governo junto a amplas camadas da classe trabalhadora e pela necessidade de manutenção
do projeto político no poder: o lulismo. 
O lulismo expressa aquilo que, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx identificava
como a projeção dos anseios por parte de uma parcela da classe trabalhadora com
dificuldades para se organizar politicamente. Incapaz de representar a si mesma, tal parcela
necessita, portanto, ser representada por uma figura vinda “de cima”. Por isso mesmo, o
fenômeno não conta com a gradual mobilização popular que caracteriza a auto-organização
das classes subalternizadas. No caso do lulismo, se expressa como comportamento eleitoral
e fidelidade política de baixa intensidade. Ao conquistar o apoio massivo dos setores
populares, beneficiados especialmente por políticas de acesso ao consumo e diminuição da
desigualdade, o lulismo se desgastou com a base social histórica do PT, a classe média. 
O projeto lulista se assentou no “conservadorismo popular” que caracteriza a maioria da
classe trabalhadora pós-ofensiva neoliberal. Passadas três décadas desde a
redemocratização, a construção de uma hegemonia político-cultural identificada com um
projeto emancipatório pouco avançou. Apesar das importantes experiências do PT nos
governos municipais de grandes metrópoles e da inserção da esquerda nas fábricas,
universidades e no campo, graças à CUT, UNE e MST, nas últimas décadas do século XX,
a esquerda não logrou organizar os setores populares mais numerosos. Com os impactos da
reestruturação produtiva e as transformações dela decorrentes no perfil da classe
trabalhadora brasileira, o lulismo ficou ainda mais dependente do pacto de classes e seu
horizonte estratégico se resumiu à administração do sistema. 
A grande burguesia interna – inserida no agronegócio, na construção pesada, na indústria
naval, na indústria de transformação, no setor bancário e no setor comercial – foi a fração
burguesa hegemônica nos governos do PT. Porém, para construir tal hegemonia, essa fração
teve de recorrer à formação de uma frente política neodesenvolvimentista. Essa frente
contou com a participação de entidades e movimentos que detêm efetiva liderança nos
setores organizados da classe trabalhadora. Mas, no interior da frente
neodesenvolvimentista, a dinâmica sempre foi estabelecida pelas classes dominantes, sendo
que seus inegáveis ganhos só foram possíveis ou no contexto de expressivo crescimento
econômico, ou assegurando vantagens equivalentes às frações burguesas associadas – como
demonstra, por exemplo, a estrutura do programa Minha Casa Minha Vida. 
A ofensiva neoliberal e seu bloqueio jurídico-repressivo, que acuou o movimento operário e
popular na década de 1990, estabelecendo um contraste evidente com a correlação de forças
vigente na década anterior; o consequente rebaixamento das reivindicações dos
trabalhadores, que passaram para um plano defensivo; e a oportunidade política aberta pelas
críticas crescentes de parte do empresariado à política econômica neoliberal ortodoxa dos
governos FHC, levaram o PT a retomar, em condições históricas novas (e, em verdade,
desfavoráveis) as propostas desenvolvimentistas. As organizações socialistas e populares
viram-se diante de um fato consumado: a virada política do PT. 
A maioria dessas organizações e, entre elas, as mais representativas, decidiram pelo apoio
aos governos petistas. Nesses governos, os trabalhadores obtiveram conquistas materiais
importantes. A política econômica, que teve como foco os interesses da grande burguesia
interna e não os do capital internacional, propiciou um crescimento econômico maior,
reduziu drasticamente o desemprego e fortaleceu o setor capitalista de Estado e privado
nacional. A política social permitiu uma moderada distribuição da renda, maior acesso das
camadas pauperizadas a serviços públicos e equipamentos básicos – iluminação, água,
atendimento médico, moradia e outros. Foram promovidas também medidas de
democratização do acesso ao ensino universitário e técnico para a baixa classe média e se
fortaleceu a agricultura familiar. A política externa dos governos petistas, focada na
expansão dos negócios das grandes empresas brasileiras nos mercados dos países do Sul,
propiciou ainda uma retaguarda econômica, política e diplomática aos governos de esquerda
da América Latina. A política de reconhecimento dos direitos das mulheres, da população
negra, dos povos indígenas e das minorias sexuais, embora tímida e com nuances entre os
diferentes setores, representou uma inflexão na situação das décadas anteriores. 
O legado dos governos petistas mostra que, apesar dos avanços, a reforma agrária fcou
paralisada, as populações tradicionais e o meio ambiente perderam quase todos os embates
contra o agronegócio, que expandiu suas fronteiras, e muitos serviços públicos continuaram
precários. Se a promulgação da lei Maria da Penha e a tipificação do crime de feminicídio
são importantes instrumentos no combate à violência contra as mulheres, não se pode negar
o recrudescimento de investidas conservadoras contra os direitos sexuais e reprodutivos,
cujos principais grupos foram fortalecidos no período dos governos petistas. O programa
Mais Médicos, embora positivo, perpetuou o subfinanciamento do Sistema Único de
Saúde. 
No plano da política econômica, houve preservação das bases fundamentais herdadas do
neoliberalismo, com a manutenção de altos superávits primários, ampliação da dívida
pública, com preocupante elevação na relação dívida/PIB, metas de inflação e política
cambial que beneficiava as frações burguesas aliadas ao governo. Ao mesmo tempo,
manteve a Desvinculação de Receitas da União (DRU), que retira recursos da saúde e
educação, e reforçou o discurso em torno do “rombo da previdência”, advogando contra a
reestruturação do sistema de Seguridade Social. 
Golpe e regressão neoliberal
Porém, com o fim do ciclo expansivo na economia e os efeitos da crise mundial iniciada em
2008, o pacto conservador que expressava o acordo político entre os diferentes partidos e
frações de classe no âmbito do governo federal começou a dar sinais de fadiga. Dilma
venceu as eleições em 2014 com uma vantagem de pouco menos de três milhões e meio de
votos. Foi a vitória mais apertada no ciclo de eleições pós-2002. Nos dias que se seguiram,
Aécio Neves, apesar de reconhecer o resultado das urnas, iniciou, como presidente do
PSDB à época, um processo de questionamento judicial das eleições junto ao Tribunal
Superior Eleitoral pedindo a cassação da chapa Dilma-Temer por abuso do poder
econômico. Estava dada a senha: uma parte da burguesia brasileira já não estava disposta a
administrar seus interesses nos marcos do “pacto de classes” construído pelo lulismo. 
Ignorando essa ameaça, Dilma implementou um drástico ajuste fiscal e acelerou o processo
de rompimento de parte da base social lulista com seu governo. Suas políticas de contração
fiscal levaram o Brasil à maior recessão da história e fizeram retroceder em poucos meses
parte das conquistas dos próprios governos petistas. A esperança do núcleo governista,
como foi explicitado por diferentes atores, era recompor o pacto com a burguesia e retomar
as condições de governabilidade de Dilma até que a economia, em nível internacional, desse
sinais de melhora. Ou seja, depois de alguns meses de sofrimento, o crescimento econômico
aliviaria o mal estar provocado pelo ajuste e garantiria a continuidade da experiência petista
à frente do governo. 
Mas o ajuste de Dilma e Levy já não era suficiente. A demora do governo em promover a
reforma da previdência e sua resistência em relação à reforma trabalhista eram justificativas
mais que suficientes para que a burguesia se reunificasse, com o objetivo de controlar, ela
própria, o Estado brasileiro e o fundo público. Com o aprofundamento da divisão no PMDB
e a saída do PSB do governo, nem as concessões mais humilhantes foram suficientes para
conter o rompimento entre o PT e as frações burguesas com quem governaram o Brasil até
então. 
Rompido o pacto de classes, os partidos burgueses fizeram avançar na Câmara dos
Deputados o pedido de impeachment – formulado no ninho tucano – contra Dilma Roussef
por “crime de responsabilidade”. O clima para o golpe, no entanto, foi dado pela Operação
Lava Jato, que cumpriu um papel crescentemente político, condenando vários dirigentes e
empresários ligados ao PT e legitimando a narrativa em torno da “quadrilha petista”. O
combate à corrupção foi o pano de fundo que fez com que a maioria do povo brasileiro
(cerca de 60%, segundo sondagens da época) apoiasse o impeachment. Quando Sérgio
Moro determinou a condução coercitiva de Lula para depoimento e, em seguida, divulgou
na imprensa as conversas entre Lula e Dilma, permitindo a suspensão da indicação do ex-
presidente como ministro da Casa Civil, ficou claro que a Lava Jato agia para viabilizar a
queda do governo. 
Uma vez no Palácio do Planalto, Temer dá início à agenda lançada um ano antes pelo
PMDB: a chamada “Ponte para o futuro”. O programa consistia numa série de medidas de
privatização do patrimônio nacional, desregulamentação dos direitos trabalhistas, reforma
da previdência, ataques à legislação ambiental, reforma antidemocrática do sistema
eleitoral, dentre outras coisas. Escolhido pelo consórcio golpista sediado na FIESP, Temer
buscava retomar a estabilidade perdida pela crise econômica e pelo aumento das tensões
sociais pós-Junho de 2013. A crise de legitimidade das instituições, porém, já era uma
realidade no Brasil. O espaço estava aberto para posições radicais “antissistema”, um
fenômeno que as forças de centro-esquerda não compreenderam. 
A vitória de Bolsonaro e seus significados
As eleições de 2018 demonstraram a profundidade da crise que o Brasil vive. Uma crise
econômica, que nos levou à maior recessão da história, aprofundou a dependência e a
vulnerabilidade externa, ampliou a informalidade e gerou 14 milhões de desempregados.
Uma crise social, que aprofundou a desigualdade, jogou milhões de brasileiros de volta à
condição de miséria extrema e criou um clima de verdadeiro terror nas periferias com o
aumento da violência urbana. Uma crise política, que fez ruir os pactos firmados na
Constituição de 1988 e disseminou a violência política, o aumento do protagonismo dos
militares, a politização do Judiciário, escândalos de corrupção e a perda de credibilidade de
todo o sistema político. O produto da crise econômica, social e política que vivemos foi o
surgimento da maior onda conservadora desde 1964, alimentada por um enorme
desconforto de diferentes extratos sociais com a realidade brasileira e pela inexistência de
uma alternativa radical de esquerda consolidada. 
Ao longo de 2018 vivemos momentos dramáticos que prenunciavam uma situação
totalmente nova. Enquanto Temer, sem qualquer apoio popular, implementava uma agenda
de ataques aos direitos – como a Reforma Trabalhista, a Lei das Terceirizações, a
intervenção militar no Rio de Janeiro, dentre outras – o país vivia um aumento crescente da
violência política. O mais trágico episódio dessa escalada de ódio e intolerância encontrou
no PSOL sua principal vítima. A execução de nossa companheira Marielle Franco, que
vitimou também Anderson Gomes, marcou uma infexão no quadro político nacional. Se,
por um lado, a tragédia serviu para mostrar a força das mulheres negras em todo o país, por
outro, mostrou também que as forças mais terríveis da política brasileira voltavam a se
manifestar. Na sequência do assassinato de Marielle e Anderson, tivemos ainda o ataque a
tiros à caravana de Lula, no Paraná, sua condenação e prisão sem provas, além de inúmeros
casos de violência contra ativistas sociais, negros e negras, LGBTs, indígenas… 
A crise de legitimidade das instituições, agravada por verdadeiros atentados ao Estado
Democrático de Direito, como a legitimação judicial do golpe parlamentar contra Dilma e
das reformas de Temer, levaram o processo eleitoral a uma situação de profunda incerteza.
De um lado, velhos nomes do sistema político e de eleições recentes (Geraldo Alckmin,
Henrique Meirelles, Álvaro Dias, Marina Silva) mostravam dificuldades de se firmar; de
outro, o PT lutava pela liberdade de Lula e seu direito de concorrer, mas se encontrava cada
vez mais desgastado pelo “antipetismo”. Correndo por fora como novos nomes na disputa
eleitoral apareciam Jair Bolsonaro (pela extrema-direita), Ciro Gomes (pela centro-
esquerda), João Amoedo (pela direita liberal) e Guilherme Boulos (pela esquerda). Diante
desse cenário, diferentes elementos concorreram para dificultar uma leitura precisa do
cenário, como a situação eleitoral de Lula, o peso das redes sociais, a composição de
alianças e mesmo o teor do discurso de cada candidato e sua capacidade de conectar-se ao
profundo desconforto sentido pela maioria do povo brasileiro. 
Durante o processo eleitoral, três fenômenos ficaram patentes, refletindo a crise das
instituições da democracia liberal. O primeiro, a força da candidatura de Bolsonaro que,
amparado numa poderosa rede de disseminação de ataques a adversários, construiu uma
base de apoio consistente e atraiu para seu campo frações da burguesia, enquanto
consolidava sua narrativa “antissistema”. O segundo, a resiliência do lulismo, que levou ao
segundo turno o candidato do PT em condições bastante adversas. E o terceiro, o total
derretimento dos velhos partidos surgidos no processo de redemocratização, em especial o
PSDB e o MDB (antigo PMDB). 
Com o atentado contra Bolsonaro, em meados de setembro, sua candidatura reforçou os
traços de candidatura “antissistema”, o que explica seu crescimento irrefreável nas
pesquisas. Hoje sabemos que esse crescimento contou, também, com um aparato
profissional de larga escala para a disseminação de ataques a adversários, provavelmente
financiado com recursos ilegais vindos de empresas e com apoio estrangeiro. Ainda assim,
Bolsonaro não venceu no primeiro turno, o que permitiu que a esquerda e a centro-esquerda
se unificassem no segundo turno em favor de Fernando Haddad, dando início a um
importante movimento cívico contra o retrocesso e em defesa da democracia. O
antipetismo, porém, falou mais alto. Bolsonaro foi eleito com 57 milhões de votos. 
Uma vez eleito, o novo presidente montou uma equipe de governo à imagem e semelhança
de suas convicções mais bizarras. Uma parte é responsável por atender à agenda
reivindicada pelo mercado e que fez com que especuladores de todo o mundo
comemorassem a vitória do ex-capitão. No centro dessa agenda está a reforma da
previdência, com aumento da idade mínima para aposentadoria e ampliação da participação
do mercado de previdência privada. Inclui, ainda, privatizações de empresas estratégicas e o
aprofundamento da desregulamentação das leis trabalhistas, ampliando a retirada de direitos
iniciada por Temer. Uma agenda ultraliberal, defendida de forma pragmática por Bolsonaro
para ter o apoio de setores do mercado. 
Outra parte de sua equipe ministerial está encarregada de cuidar da agenda “ideológica” do
governo. Essa agenda é composta de uma série de medidas conservadoras que buscam
retirar direitos conquistados por minorias ou impedir sua expansão, além de travar um
embate direto com movimentos que têm ganhado peso social, como o movimento feminista.
Inclui também propostas como a flexibilização do estatuto do desarmamento, a
implementação de uma política externa absolutamente submissa aos Estados Unidos, a
criminalização dos movimentos sociais e a perseguição de professores através do horrendo
projeto “Escola Sem Partido”. É uma agenda movida pelo ódio, pela campanha de
demonização das esquerdas, pela ignorância e pela má-fé. E é a que melhor representa a
visão de mundo do presidente eleito e do seu séquito de devotos. 
A terceira agenda, incluída de última hora, é a da luta contra a corrupção. Para conduzi-la,
Bolsonaro nomeou Sérgio Moro, juiz que condenou Lula, como uma espécie de
“superministro” da Justiça. Além de manter a fidelidade de setores da classe média
reacionária, a nomeação é um gesto para um segmento que alcançou poderes inimagináveis
nos últimos anos: a magistratura federal. Com o fim iminente do foro especial por
prerrogativa de função (o chamado “foro privilegiado”) nada mais útil a uma coalizão
recheada de velhas raposas da política do que manter boas relações com os juízes que,
muito em breve, terão poderes para perseguir os políticos que bem entenderem. Além disso,
é a sinalização de que a ideia de “Estado Penal máximo” terá força no novo governo. 
Articulando essas agendas, Bolsonaro tem condições de formar, ao menos no curto prazo,
uma base de apoio mais ou menos estável. Ele firmou sólidos compromissos com o
agronegócio e o sistema financeiro, que constituem duas das mais importantes frações da
burguesia no Brasil, conta com simpatia de parte do monopólio de comunicação e de
partidos da centro-direita e, com a regressão ideológica da classe trabalhadora nos últimos
anos, dispõe de uma base social de massas, disposta a defendê-lo às últimas consequências.
Por tudo isso, devemos supor que Bolsonaro terá condições de promover grandes
retrocessos nos primeiros meses de seu governo, razão pela qual devemos apostar na
construção de uma frente única democrática com todos os setores progressistas e
democráticos. 
Frentismo como tática para a transição de período
Durante todo o segundo turno, ficou evidente a gravidade da ameaça representada por Jair
Bolsonaro. Suas posições sexistas, racistas e homofóbicas foram complementadas por um
programa econômico entreguista e ultra neoliberal. Bolsonaro representa o ódio das elites
contra os pobres, contra as maiorias sociais – mulheres e negros – e contra as minorias
oprimidas – quilombolas, imigrantes, indígenas, LGBTs… Por isso, conquistou crescente
apoiou no mercado, na mídia monopolista, nas igrejas neopentecostais, nas Forças
Armadas, sempre com a conivência do Judiciário. Sua vitória é expressão do fim de um
ciclo na política brasileira. 
A luta contra Bolsonaro, portanto, é uma luta pela sobrevivência da democracia e dos
direitos sociais. Seu projeto representa o fim do Brasil enquanto nação independente. Pode
se converter, sem muito esforço, num projeto de perseguição sistemática àqueles que contra
ele se levantarem. As declarações a favor de tratar como terroristas os movimentos sociais e
os defensores dos direitos humanos mostram até onde Bolsonaro pode chegar. Resta saber
se ele terá amparo institucional para um gradual fechamento do regime político, caso
necessário. 
Por isso, devemos trabalhar para manter unida a aliança social e política forjada com os
atores que sustentaram a candidatura de Guilherme Boulos e Sônia Guajajara. Como
campo, devemos atuar para criar um amplo movimento de resistência popular junto a outros
setores sociais e partidos políticos. Na Câmara dos Deputados, atuaremos de forma
independente, mas sempre prontos a formar alianças capazes de impedir o projeto de
destruição dos direitos sociais. Na organização partidária, reforçaremos as medidas de
segurança para fazer frente à violência política, disseminada pelos apoiadores de Bolsonaro,
e fortaleceremos nossas instâncias internas. 
Diante desse cenário, é preciso reconhecer a correlação de forças desfavorável para os
enfrentamentos que virão. No campo da centro-esquerda tem imperado o instinto de
sobrevivência e preservação dos aparatos. Apesar disso, os 47 milhões de votos de Haddad
mostram que é possível organizar um amplo campo de resistência popular. Entre as
organizações sociais, o MTST e a Frente Povo Sem Medo saem fortalecidos, ainda que
sejam alvos prioritários da ofensiva reacionária. No campo dos partidos, PT e PSOL saem
como os grandes atores do processo de resistência. O PT, por ter sobrevivido à hecatombe
da qual foi vítima e por ter levado seu candidato ao segundo turno; o PSOL, por ter
melhorado seus resultados eleitorais, ampliando suas bancadas, e ter se somado à frente
democrática no segundo turno. Saem enfraquecidos o PDT e Ciro Gomes, pela postura
mesquinha em relação ao apoio a Haddad; e o PCdoB, pelos resultados políticos e
eleitorais. 
Nos últimos anos, toda a nossa tática se orientou pela possibilidade de composição de um
campo mais amplo à esquerda. A crise da socialdemocracia – da qual o PT é expressão mais
próxima no Brasil – é um fenômeno mundial, produto da nova etapa da acumulação
capitalista, e uma de suas consequências mais notáveis é, precisamente, o surgimento de
novas forças políticas críticas. No caso do Brasil, essa aposta esteve correta dentro das
condições históricas que enfrentamos até aqui. No entanto, a chegada de Bolsonaro à
Presidência da República exigirá de nós uma maior valorização das ações em frente única.
Não significa dizer que devemos abandonar a perspectiva da reorganização da esquerda
com vistas à formação de um novo polo da esquerda socialista. Significa, apenas,
compreender que ganha relevância a unidade ampla contra os retrocessos. 
A política que deve predominar no cenário que se avizinha é o de frente única com
manutenção de nossa identidade enquanto partido e campo político. Isso significa reunir
todos os setores progressistas, democráticos e nacionais em uma frente contra o governo de
Jair Bolsonaro. No interior da frente única, trabalharemos para constituir com MTST, PCB
e outros, um polo à esquerda que combata as vacilações típicas de certos atores sociais. O
centro da tática, portanto, não pode ser o combate a outros atores da frente. A unidade não
deve ser manipulada ao sabor dos ventos. Numa conjuntura tão adversa, ela é uma
necessidade histórica pela qual lutaremos, compreendendo que nosso papel é estimular o
novo ciclo político que queremos ver nascer no Brasil. 
Crise da Nova República e transição histórica
A crise da Nova República, fundada em 1988, teve início nas manifestações de junho de
2013, deflagradas pelos protestos contra o aumento nas tarifas do transporte coletivo e pelo
direito à mobilidade urbana. As manifestações se expandiram, sua pauta também, de forma
desordenada e mesmo contraditória. Seu caráter inicial, que era de uma mobilização
claramente popular e progressista, foi disputado: com o importante incentivo da mídia
corporativa, buscou-se dar uma feição antipolítica e conservadora às manifestações, com a
luta por melhores serviços do Estado transitando para bandeiras anti-Estado, a partir do
núcleo anódino do “combate à corrupção”. Tendo deflagrado um processo que logo se
tornou muito maior do que sua capacidade de atuação orgânica, o Movimento Passe Livre
(MPL) não conseguiu orientá-lo, nem impor sua narrativa. 
Com isso, as manifestações deixaram um saldo ambíguo, que pôde ser apropriado, de forma
parcial e seletiva, por discursos políticos às vezes antagônicos. O único recado inequívoco
que as “jornadas de junho” deram foi que estava entrando em fase de irreversível
esgotamento o modelo de gestão do poder consagrado até então pelas administrações do
Partido dos Trabalhadores, baseado na acomodação de interesses e na tentativa de expandir
paulatinamente o acesso a direitos sem afrontar diretamente os privilégios. A crise desse
modelo exigia uma solução, fosse ela mais à esquerda ou mais à direita. 
O governo Dilma Roussef foi incapaz de encontrar sua posição nesse novo cenário. Sua
resposta às manifestações foi sempre zigue-zagueante. Quando a presidenta se manifestou
em rede nacional de televisão, em 17 de junho de 2013, propôs “cinco pactos”; uma
proposta vaga e imprecisa, que incluía uma reforma política potencialmente democratizante,
mas também aderia ao receituário conservador da “responsabilidade fiscal”. Fora isso,
promessas genéricas em favor da educação, saúde e mobilidade urbana. Tanto quanto os
outros integrantes da elite política tradicional, a presidente pensava em como reduzir danos
até as eleições presidenciais do ano seguinte – quando se esperava que tudo voltasse à
“normalidade”. 
Mas nesse momento as forças do retrocesso já estavam em curso nos três poderes da
República. O Poder Executivo, embalado pela realização dos megaeventos (Copa do
Mundo, Olimpíadas e Rio+20), patrocinou medidas que facilitavam a repressão aos
movimentos sociais e culminaram na chamada Lei Antiterrorismo, com apoio quase
unânime no Congresso. A revogação dos direitos trabalhistas, com a chancela do Supremo
Tribunal Federal, começou ainda em 2014, quando foram declaradas inconstitucionais as
normas que permitiam ao trabalhador reivindicar a totalidade dos valores do Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) não depositados por seu empregador, e não apenas
os dos últimos cinco anos. 
Junho de 2013 também marcou a escalada da repressão policial a manifestações populares,
que só se aprofundou desde então. As polícias militares do Paraná, São Paulo e Goiás se
notabilizaram pela truculência contra estudantes, contra professores e contra protestos de
rua em geral. Talvez não por acaso, os três estados eram (e ainda são) governados pelo
PSDB. Mas mesmo durante o governo Dilma Roussef não se viu qualquer reação dos
poderes federais em defesa das liberdades cidadãs emparedadas pela repressão nos estados.
Nesse caldo contraditório surgem novos protagonistas no campo da direita, como MBL,
“Vem pra Rua”, “Revoltados on-line” e a própria família Bolsonaro. 
Mas junho mostrou também que novos atores sociais ocupavam crescentemente o espaço
deixado pelas organizações políticas que privilegiaram as negociações com o governo em
detrimento da mobilização popular. Esses atores têm no centro de sua agenda a crítica
frontal aos limites do sistema capitalista e a necessidade de uma nova forma de organização
do poder, isto é, uma democracia radical. Eles expressam a transição da órbita de influência
do petismo – representação da hegemonia social-democrata no Brasil – em direção a um
novo campo. Entre os exemplos estão o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST),
o Movimento Passe Livre (MPL), o movimento de ocupação das escolas secundaristas, o
movimento feminista, o movimento LGBT, uma intelectualidade crítica pós-petista, artistas
e um novo movimento negro. 
Uma nova esquerda em ação
Esses atores têm ao menos três características em comum: a) o espaço urbano e suas
contradições como locus de atuação; b) uma ação política que tem como eixo os problemas
que o desenvolvimento capitalista trouxe aos grandes centros urbanos (especulação
imobiliária, violência policial sistemática nas periferias, mobilidade urbana precária,
serviços públicos ineficientes, cerceamento do direito à liberdade de expressão, violência de
gênero etc.); e c) o aumento do protagonismo na medida em que o petismo perde influência
junto aos movimentos sociais. 
Com isso dizemos que estamos diante do processo de surgimento de uma nova esquerda
social no Brasil que não tem mais o PT como referência e que guarda, em maior ou menor
medida, certa desconfiança em relação aos partidos políticos. Uma esquerda social que
expressa as contradições do desenvolvimento urbano, que não se organiza em sindicatos ou
nas entidades estudantis. E que, apesar de sua enorme disposição de luta, não tem um
programa claro para o Brasil do século XXI. Entre essa nova esquerda temos atores sociais
que, apesar de não se referenciarem politicamente no PT, têm origem no ciclo anterior,
notadamente o MTST. Mas há outros, especialmente nos movimentos feminista e negro,
que identificam o PSOL como embrião de um novo projeto. 
Diante da crise das formas de organização política que moldaram a ação dos socialistas no
século passado (sindicatos, entidades estudantis etc.) será preciso compreender as novas
dinâmicas de resistência e mobilização, e estimular com elas uma crescente interação, sem
abandonar o trabalho junto às entidades representativas que ocupamos, mas oxigenando
nossas próprias experiências e diversificando nossos repertórios de ação. Há uma infinidade
de manifestações da vida social que mobilizam milhões de trabalhadores e trabalhadoras –
nas artes, no esporte, na religiosidade, nas novas mídias sociais – cuja compreensão é
indispensável para viabilizar uma contra hegemonia dos que vivem do trabalho. Uma
esquerda do nosso tempo precisa ter as características do nosso tempo. 
Em todo o mundo, têm ampliado sua influência aquelas forças políticas que advogam saídas
em favor de uma radicalização da democracia, com vistas a superar os impasses da
globalização e dar voz às maiorias. É nessa perspectiva que devemos aliar o combate à
dominação econômica com uma atualização do projeto socialista em termos de uma
radicalização democrática, como expressão da articulação de lutas contra as diferentes
formas de subordinação – de classe, de sexo, de raça, dentre outras. 
É preciso determinar, num contexto de fragmentação, os antagonismos fundamentais,
ressignificar o conceito de hegemonia com vistas a multiplicar os espaços políticos e, assim,
impedir que o poder seja concentrado em um só ponto (o Estado). Essa é uma precondição
de toda transformação realmente democrática da sociedade. Em um período anterior,
vigorou entre as esquerdas uma concepção de socialismo supunha que a desaparição da
propriedade privada dos meios de produção geraria uma série de efeitos em cadeia que, ao
longo de um período histórico, conduziria ao fim de todas as formas de subordinação.
Podemos hoje questionar essa visão mecanicista, reconhecendo que não existem
necessariamente vínculos diretos entre, por exemplo, antissexismo e anticapitalismo, e a
unidade entre ambos só pode ser resultado de uma articulação hegemônica. Por isso, nossa
vinculação com as novas formas de resistência urbana é tão decisiva: ela nos posiciona em
condições de assimilar os antagonismos que mobilizam as maiorias sociais em favor da
transformação. É nosso dever dar um sentido socialista a esse desejo de mudanças. 
O PSOL como negação dos limites do lulismo
A chegada do PT ao governo federal trouxe consigo novas contradições. Enquanto o partido
buscava se tornar mais palatável aos olhos do eleitorado mais conservador, superando a
barreira dos 30% de apoio já consolidados, promovia uma aproximação junto a
determinadas frações da burguesia em busca da estabilidade necessária para governar. A
vitória de Lula foi assentada, portanto, na defesa da ampliação de oportunidades e no
respeito aos contratos – isto é, ao tripé macroeconômico herdado do período FHC. Durante
os anos que precederam a chegada de Lula à Presidência, a direção do PT trabalhou com
afinco para integrar o partido ao sistema e consolidar sua conversão socialdemocrata. A
aliança com o Partido Liberal, a primeira com uma legenda burguesa no plano nacional, foi
o grande simbolismo do processo de aggiornamento do partido. 
No governo, o PT atuou para internalizar no Estado os conflitos de classe dos quais havia
sido protagonista nos anos anteriores. Foram nomeados ministros petistas, alguns até
vinculados historicamente às lutas sociais – como Frei Betto, Olívio Dutra, Marina Silva,
Nilmário Miranda e Miguel Rossetto. Nomes de centro-esquerda que apoiaram o PT
também foram agraciados com ministérios, como o PDT, PSB e PCdoB. No entanto, setores
estratégicos do governo foram entregues a autênticos representantes das classes dominantes.
Eram os casos de Henrique Meirelles (bancos), Roberto Rodrigues (agronegócio), Luiz
Fernando Furlan (indústria) e Miro Teixeira (mídia monopolista). Era o chamado “pacto de
classes” entre capital e trabalho. 
Eleito, Lula cumpriu os acordos firmados com o mercado durante sua campanha. Sofrendo
os efeitos da crise econômica e de manobras especulativas que atingiram o país no início
dos anos 2000, Lula deu início a um pesado ajuste fiscal que elevou as metas de superávit
primário, aumentou drasticamente a taxa básica de juros (alcançando inacreditáveis 27,5%
ao ano), prorrogou a Desvinculação de Receitas da União (DRU) e enviou ao Congresso
Nacional a proposta de reforma da previdência dos servidores públicos. Esta última medida,
entendida como um ataque aos direitos dos trabalhadores do serviço público, originou a
primeira cisão relevante do PT com sua base social histórica, selando o divórcio dos
sindicatos de servidores federais com o partido. 
Nos setores à esquerda do PT, forma-se o “grupo dos 30”, reunindo parlamentares críticos à
proposta de reforma. Ameaçados de expulsão pela direção do partido, o grupo se divide.
Uma parte acaba cedendo às pressões e votando com o governo. Outra parte se abstém da
votação, sendo punida pela direção petista com perda de espaços na Câmara dos Deputados.
E uma pequena parte, já tendo amadurecido o debate sobre o esgotamento da disputa interna
do PT, resolve votar contra a proposta de reforma. Deste núcleo faziam parte a senadora
Heloísa Helena e os deputados João Fontes, Babá e Luciana Genro. Eles seriam expulsos do
PT meses depois e lançariam a ideia de um novo partido. 
No interior do PT, a resistência prosseguia. As denúncias do mensalão, em 2005, abriram a
maior crise na história do partido. Pela primeira vez, a política de alianças, o financiamento
de campanhas e as relações fisiológicas com partidos de direita eram amplamente
questionadas internamente. A eleição para direção do partido, em setembro de 2005, era a
oportunidade de mudar os rumos do PT. A esquerda, dividida entre quatro candidaturas, foi
derrotada. A maioria da militância do partido deu seu voto de confiança à direção
majoritária, esgotando definitivamente as possibilidades de disputa do PT. Liderada por
Plínio de Arruda Sampaio (nosso candidato a presidente do PT), Ivan Valente, Chico
Alencar, Maninha, João Alfredo e outros parlamentares e lideranças petistas, uma
expressiva dissidência deixaria o PT, mas não apenas por conta dos desgastes promovidos
pelo mensalão. Amadurecia entre nós a leitura de que o PT estava esgotado
estrategicamente, isto é, a leitura de que não poderia mais ser o instrumento para viabilizar
uma estratégia de construção do socialismo. Para não abandonar a luta pelo socialismo,
nosso destino foi o PSOL. 
Durante dez anos – entre 2005 e 2015 – lutamos no interior do PSOL para fazer do partido
um instrumento conectado às lutas sociais, ético, combativo e coerente. Lutamos
internamente contra posições ultras sectárias que viam na destruição do PT o propósito final
de nosso projeto partidário. Trabalhamos para dar estabilidade ao PSOL, mesmo com
perdas importantes, como a da ex-senadora Heloísa Helena. Gradualmente, conquistamos
maioria e, hoje, hegemonia no interior do partido. Graças a esse trabalho árduo e à atuação
combativa de nossa bancada federal, criamos as condições para receber figuras como
Glauber Braga e Luiza Erundina. 
Os acertos em momentos críticos da luta de classes, especialmente nos últimos anos,
mostraram a maturidade política do PSOL. Apoiamos as lutas de junho de 2013 e
disputamos seus rumos; combatemos o ajuste fiscal de Dilma e Levy, formando uma frente
política em defesa dos direitos; denunciamos o caráter regressivo e antidemocrático do
impeachment; fomos linha de frente no “Fora Temer” e denunciamos as arbitrariedades da
operação Lava Jato, quando esta se converteu em instrumento de perseguição política.
Foram momentos dramáticos, nos quais nossa capacidade dirigente manteve uma maioria
estável em torno de uma política coerente e que permitiu ao partido avançar, garantindo
vitórias num contexto em que a esquerda vive profundas dificuldades. 
Necessário, mas insuficiente
A cada eleição, o PSOL aumenta o número de parlamentares eleitos. Em 2006 e 2010 foram
três deputados. Em 2014 foram cinco e, no auge da crise dos partidos de esquerda,
elegemos 10 parlamentares, sendo metade delas mulheres. Estamos bem posicionados para
o novo ciclo que se inicia: somos o único partido identificado com as lutas históricas da
classe trabalhadora por salário, democracia e soberania, e também com as novas lutas pelos
direitos das mulheres, contra o genocídio da juventude negra, em defesa da comunidade
LGBT, por uma radical democratização da comunicação, em defesa do meio ambiente,
dentre outras. 
Esse posicionamento correto, porém, não deve ser confundido com autossuficiência. Temos
consciência de que um projeto de transformações estruturais, na perspectiva do socialismo,
depende de um grande partido de massas vinculado às lutas sociais das maiorias. E o PSOL
não conseguiu, em 15 anos de vida partidária, superar sua condição de partido
predominantemente vinculado à juventude e aos setores médios progressistas. Nossa
presença nas organizações da classe trabalhadora é pequena, bem como no movimento
popular urbano. Isso traz dificuldades estruturais à viabilização de nossa estratégia de
superação da condição de “partido parlamentar”. 
A aliança construída com o MTST e um maior investimento nas frentes de massas nos
últimos anos melhoraram as condições de interlocução com as classes trabalhadoras. Mas
ainda são insuficientes, dentre outras razões, porque o PSOL e o campo político que se
articula em torno dele não consegue atuar de forma unificada sobre a realidade. Por isso,
dependemos de deslocamentos de setores sociais inteiros para viabilizar uma nova
referência política, razão pela qual apostamos na candidatura de Boulos, num contexto em
que o lulismo dava sinais claros de fadiga. 
Apesar de imensas dificuldades, fizemos uma campanha vitoriosa. Espalhamos esperança
entre aqueles que apostam no surgimento de uma nova esquerda no Brasil. Por onde
passaram, Boulos e Sônia defenderam a superação das experiências do passado e afirmaram
a necessidade de uma nova forma de fazer política, de baixo pra cima, com radicalidade e
disposição de luta. Denunciaram os retrocessos de Temer nos debates de TV, evidenciando
os vínculos entre o presidente golpista e a maioria dos candidatos que disputavam a eleição.
E, principalmente, fomos os primeiros – e por algum tempo, os únicos – a denunciar a
ameaça então representada por Jair Bolsonaro. 
O resultado da eleição presidencial no primeiro turno, embora profundamente afetada pelo
fenômeno do chamado “voto útil”, deve ser considerada uma grande vitória. Saímos
credenciados para liderar o processo de resistência que já se iniciou. Além disso, o resultado
da votação proporcional do PSOL mostra a correção da linha política levada pela direção
desde o impeachment de Dilma: dobramos a bancada federal eleita em 2014, reelegendo os
cinco anteriormente conquistados de Ivan Valente, Luiza Erundina, Glauber Braga,
Edmilson Rodrigues e Jean Wyllys; e ampliamos nossa presença na Câmara dos Deputados
com Marcelo Freixo, Talíria Petrone, Áurea Carolina, Fernanda Melchionna e Sâmia
Bonfim. 
Nossa presença ativa como partido e como campanha presidencial na construção dos atos
do dia 29 de setembro, liderados pelas mulheres sob a consigna #EleNão, foram importantes
para ampliar a representação feminina do partido em todos os níveis, como demonstra nosso
crescimento na eleição de deputados e deputadas estaduais em todo o país, dobrando de
nove para 18 parlamentares nas assembleias legislativas. A resistência negra, feminista e
LGBT, respondendo à tentativa de calar Marielle, refletiu-se na eleição de várias
companheiras que representam essas lutas. 
Os acertos do primeiro turno, baseados numa linha política independente, mas não sectária,
nos levaram a uma vitória política na eleição presidencial e a uma expressiva vitória
eleitoral na disputa para a Câmara dos Deputados e as assembleias legislativas. Mas ainda
mais importante: afastaram por quatro anos o fantasma da cláusula de barreira. Alcançamos
1% em 14 estados e somamos 2,99% de votos em todo o território nacional na disputa para
deputado federal, quando a lei exigia 1% em 9 estados e 1,5% em todo o território nacional.
Com esses percentuais, superaríamos a cláusula de barreira por três eleições. Num cenário
em que 14 legendas não alcançaram a cláusula – incluindo partidos representativos como
PCdoB e Rede – essa é uma grande vitória do PSOL. 
No segundo turno, o PSOL adotou a única postura possível diante da ameaça representada
pela candidatura de Jair Bolsonaro: o apoio incondicional a Fernando Haddad (PT).
Engajamos toda a nossa militância, quadros públicos, dirigentes e parlamentares eleitos na
tarefa de conformar uma ampla frente democrática contra o fascismo. Levamos a Haddad e
Manuela contribuições programáticas que foram incorporadas à sua plataforma e nos
somamos em todo o Brasil à luta para derrotar Bolsonaro. Por onde passou, Boulos foi
saudado como herói da resistência democrática, consolidando-se como um dos grandes
nomes para o ciclo que se inicia. 
Reorganização da esquerda e a busca por uma nova síntese
O fim do ciclo do PT à frente do governo federal, consumado pelo golpe de abril de 2016,
marca também o início de um novo momento na esquerda brasileira. Como afirmamos em
resolução aprovada no VI Encontro Nacional da APS, em junho de 2016, um contexto de
derrota do PT “ser[ia] marcado por um rearranjo das forças políticas [...]. Provavelmente,
sua derrota causará um aumento exponencial da dispersão, abrindo espaço para o
fortalecimento do PSOL ou de outros setores à esquerda do PT. Aqueles que estiverem mais
bem posicionados – no parlamento, nos movimentos sociais, na intelectualidade crítica –
capitalizarão mais fortemente os efeitos dessa dispersão”. 
Como se vê, dois anos antes do impeachment de Dilma já assinalávamos a necessidade de
preparar a esquerda socialista, e o PSOL em particular, para os efeitos do fim do ciclo
petista como força hegemônica do campo popular. Para isso, apontamos como uma de
nossas tarefas centrais “ampliar o arco de alianças políticas e sociais do PSOL para setores
que podem ser aliados no processo de reorganização da esquerda que se dará a partir da
saída do PT do governo central”. Evidentemente, predominava entre nós o entendimento de
que o cenário mais provável era o de uma derrota eleitoral do PT em 2018. Poucos de nós já
consideravam a hipótese de um golpe. 
Ainda assim, não deixamos de dar consequência àquela leitura. O investimento político na
criação da Frente Povo Sem Medo e na relação com setores de uma esquerda social
independente do PT (como o MTST) não tardou a dar frutos, e cada vez mais setores sociais
começaram a identificar no PSOL uma alternativa. Deslocamentos de movimentos como o
“Muitas”, em Belo Horizonte, ou o MAIS, dissidência do PSTU, demonstravam que já
estava em curso um lento processo de reorganização em torno de um campo que não tinha o
PT como referência partidária. A posterior entrada de coletivos regionais e das Brigadas
Populares mostra que nos consolidamos como alternativa partidária para o processo de
reorganização da esquerda que se iniciou. 
Essa reorganização assumiu duas dinâmicas concomitantes. A primeira, mais horizontal, se
expressava no deslocamento de forças políticas de um campo para outro, na adesão de
parlamentares e outras personalidades ao PSOL, nas rupturas em curso no interior das
organizações políticas, enfim, na reconfiguração da geografa política da esquerda brasileira
tal como a conhecemos. A segunda dinâmica, mais lenta e que segue em curso, tomou uma
dimensão mais vertical. Ela expressa a própria renovação de lideranças nas frentes de
massas, o surgimento de novos atores e movimentos e a emersão de agendas políticas antes
relegadas a um segundo plano. Esse processo diz respeito à própria renovação geracional
dos movimentos sociais, em que uma vanguarda mais identificada com o petismo vai dando
lugar a novas lideranças, menos associadas àquele projeto político. Nesse processo de
reorganização, particularmente em sua dimensão vertical, os movimentos de juventude e de
mulheres têm tido um papel muito importante. 
A consumação do golpe contribuiu para “destravar” o processo de diálogo no âmbito das
organizações políticas. Com o trágico resultado das eleições municipais de 2016 para o
conjunto da esquerda, o diálogo se intensificou. No caso do PT, a acachapante derrota do
partido acendeu o alerta vermelho sobre sua viabilidade política no curto e médio prazos.
Iniciaram-se diálogos no interior do que sobrou da esquerda petista sobre o futuro do PT e
da esquerda brasileira. Nossas posições políticas desde o impeachment, bem como o
resultado eleitoral, relativamente positivo, e o ingresso de nomes como Glauber e Erundina,
também estimularam uma aproximação. 
Um evento realizado pela Fundação Lauro Campos sobre a reorganização da esquerda, em
dezembro de 2016, foi o primeiro esforço de delimitar publicamente um campo de diálogo
dentro e fora do PSOL. Com esse gesto, o debate da reorganização da esquerda entrou
definitivamente no nosso horizonte. Percebendo um processo de desagregação do campo
petista, a direção do PT agiu para conter a sangria, lançando a candidatura de Lula à
Presidência da República. Esse movimento tinha dois objetivos: a) criar uma rede de
solidariedade contra sua possível condenação; b) usar a força centrípeta de Lula para conter
eventuais dissidências. O movimento foi bem-sucedido e no começo de 2017 o processo de
reorganização mostrava-se claramente interditado, apesar de nossos esforços de diálogo
com diferentes atores. 
Boulos, MTST e “aliança” eleitoral
Se o diálogo parecia interditado no interior do PT, fora dele, contudo, havia forças sociais e
políticas dispostas a colocar em marcha, nas condições possíveis, o processo de
reorganização da esquerda. O PSOL buscou, ao longo de todo o período em que se
desenvolveu a crise, trabalhar pela afirmação de um polo de esquerda socialista capaz de
apontar uma saída em favor dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras. Para definir os
contornos dessa estratégia, convocamos uma Conferência Eleitoral em março. Nesse
intervalo, o diálogo entre o PSOL e os movimentos sociais evoluiu, levando à filiação de
Boulos ao nosso partido e sua postulação como pré-candidato em nossa Conferência
Eleitoral. Seu nome representava uma nova síntese entre partidos (PSOL e PCB) e
movimentos sociais independentes e combativos, e apontava para a formação de um novo
campo político, abrindo as portas para uma reorganização de forças no campo popular. 
Aprovada por mais de 70% dos votos, a chapa composta por Boulos e pela companheira
Sônia Guajajara, primeira liderança indígena a compor uma chapa presidencial em 518 anos
de história, representou uma vitória do PSOL em seus esforços de construção desse novo
campo. Boulos é um líder social respeitado por amplos setores da esquerda brasileira e é
reconhecido como um dos responsáveis por organizar a resistência popular urbana contra os
retrocessos dos últimos anos. Sônia é a principal liderança indígena do país, reconhecida
também como uma ativista em defesa das causas ambientais, hoje centrais numa agenda
verdadeiramente anticapitalista. Junto com Boulos e Sônia, compuseram nossa aliança o
MTST, a APIB, a Mídia Ninja, movimentos sociais que compõem a frente Povo Sem Medo
– como a Intersindical, o Círculo Palmarino, a Unidade Classista, as juventudes RUA,
Manifesta e Veias Abertas (hoje unificadas), UJC e Afronte, além de artistas e intelectuais. 
Além disso, a candidatura de Boulos alterou profundamente a cartografa interna no PSOL.
Os grupos mais sectários aprofundaram seu isolamento e se constituiu, na prática, uma
maioria ampliada na direção, que além do campo Unidade Socialista – vitorioso nos últimos
três congressos –, agregou outros grupos. O resultado foi a campanha mais unitária da
história do PSOL e um saldo que reforça a vocação do nosso partido para se postular como
parte do processo de reorganização da esquerda. Para isso, a manutenção da aliança com o
MTST é estratégica, porque traz ainda mais estabilidade interna ao PSOL e amplia as
condições para um processo de superação dialética de seus limites, construindo uma nova
síntese capaz de dialogar com os novos processos de resistência e apresentar um programa
que conquiste a hegemonia hoje detida pelo lulismo no campo popular. 
Bases para uma nova esquerda
Uma nova esquerda, combativa, democrática e socialista, não surgirá por decreto. Ela será
resultado de nossa capacidade de conectar o partido aos novos processos de resistência,
ressignificar nossa presença nos espaços tradicionais de representação da classe
trabalhadora e da juventude, e construir um arco de alianças que compartilhe desse projeto.
Evidentemente, o contexto no qual buscamos impulsionar o surgimento de um novo campo
de esquerda no Brasil se dá em condições muito diferentes daquelas que permitiram o
florescimento de novas forças no Chile, Grécia ou Espanha, por exemplo. Nesses países,
novos instrumentos políticos surgiram ou ganharam força num cenário de profunda crise
econômica e social. Foram processos forjados “a quente”. 
No Brasil, junho de 2013 poderia ter oferecido as condições para acelerar a transição
histórica em direção a uma nova direção política na esquerda. Mas as condições não
estavam suficientemente maduras; nem o PT e o lulismo estavam suficientemente
desgastados, nem o PSOL havia compreendido plenamente o momento histórico que se
iniciava. O governo da extrema-direita e seu programa econômico ultraliberal apresentam
novas perspectivas. Estamos diante do risco real de um desastre social provocado pelas
políticas de destruição da economia e do trabalho. E junto com ela, o aumento da violência
política e um cenário de crise da estabilidade da dominação burguesa. Nesse contexto pode
se abrir novamente uma vaga capaz dar espaço a uma nova esquerda. Até lá, garantir uma
direção estável para o PSOL, ampliar o protagonismo nas ruas, formando lideranças e
impulsionando um novo projeto esquerda, será fundamental. 
Além disso, há tarefas de natureza organizativa que precisamos enfrentar. Por exemplo, é
fato que não estamos suficientemente preparados para uma escalada da violência política. A
cultura organizativa da esquerda forjada no contexto de normalidade democrática – embora
contemos com valorosos expoentes da luta contra a Ditadura Militar – está totalmente
adaptada à institucionalidade burguesa. Não desenvolvemos uma mentalidade capaz de
prover as condições mínimas para autodefesa, o que precisará ser assegurado. A situação é
ainda mais grave para nossos aliados, já que os partidos costumam ser as últimas vítimas de
um processo de fechamento do regime político. Antes de nós, serão vítimas os movimentos
sociais (especialmente MTST e MST), os sindicatos, ativistas de direitos humanos… 
Outro aspecto fundamental diz respeito à comunicação. Embora tenhamos importante
influência nas redes sociais através de nossos mandatos, não temos uma política de
comunicação capaz de fazer frente à rede liderada por Bolsonaro. Durante a greve dos
caminhoneiros tivemos indícios do que estava por vir, mas não compreendemos o fenômeno
em toda a sua dimensão. Ali estava presente a máquina de disseminação de fakenews de
Bolsonaro e seus seguidores – possivelmente com apoio estrangeiro – fazendo seu primeiro
grande teste e transformando a pauta dos caminhoneiros de redução do preço do diesel e
reajuste da tabela de frete em intervenção militar. 
Não menos importante é a incorporação da luta contra o machismo, o racismo e a
homofobia como elementos estratégicos dessa nova esquerda. O reconhecimento do
racismo e do machismo como elementos estruturantes da dominação burguesa e da
formação social brasileira não é novo em nossas formulações, compondo nosso
entendimento sobre os sujeitos da Revolução Brasileira, cristalizado na insígnia da
“resistência negra, índia, feminista e popular”. Contudo, o momento nos exige passos mais
firmes na luta contra essas formas de opressão-exploração – assim como contra a
homofobia –, que devem assumir centralidade em nossa agenda, discursos, práticas e
formas de interpretar o mundo. Para isso teremos de dar o combate sem tréguas às
tendências ideológicas que buscam opor a luta contra o machismo, o racismo e a homofobia
à luta contra o capitalismo. Essas tendências têm ganhado terreno – inclusive no PSOL – e
urge apresentar uma formulação marxista sobre o caráter estrutural dessas formas de
dominação na dinâmica da acumulação capitalista. 
O lugar da APS na construção da nova esquerda
A Ação Popular Socialista é herdeira de uma trajetória política e organizativa que nos
inspira. Como uma das organizações mais longevas do nosso país, a APS é expressão da
capacidade da esquerda se reinventar em diferentes conjunturas, mantendo presença ativa
na luta de classes. Na década de 1970, as organizações que dariam origem à nossa primeira
síntese política questionaram a opção militar e foquista como caminho para reconquistar
direitos, ressaltando que uma transformação social, num país da complexidade e dimensão
do Brasil, seria obra de milhões. Na década de 1980, tivemos a coragem de nos incorporar
ao projeto de construção de um partido de massas legal, quando tal caminho ainda era visto
com preconceito no seio da esquerda que havia sobrevivido aos ataques da Ditadura Militar.
Tal decisão partia do pressuposto de que, para mudar nossa realidade, a existência de um
partido que representasse a parcela mais avançada das classes trabalhadoras era uma pré-
condição para qualquer transformação revolucionária. Na década de 1990, com a
consolidação da experiência petista, nos tornamos uma tendência interna do partido de
massas que ajudamos a construir e disputamos seus rumos em aliança com outros
agrupamentos, buscando dotá-lo de um programa coerente com as tarefas revolucionárias e
de uma direção disposta a liderar a transformação rumo ao socialismo. 
Infelizmente, a esquerda revolucionária perdeu essa batalha e o PT se adaptou à ordem
burguesa, perdeu energia militante e caminhou a passos largos para ser a variável brasileira
da socialdemocracia europeia, optando pela conciliação de classes e a manutenção do
modelo político e econômico das elites. O rompimento da APS com o PT foi uma decisão
baseada em nosso programa: ao sair do PT, reforçamos nossa concepção de que, para
transformar o Brasil, é necessário um partido de massas e um programa democrático e
popular. Iniciava-se, porém, um novo ciclo de fragmentação da esquerda revolucionária. 
Em 2005, a APS pediu ingresso no PSOL, que naquele momento era pouco mais do que um
embrião de partido legal, composto majoritariamente por agrupamentos trotskistas com
concepções esquerdistas e pouco peso social. Nos últimos quatorze anos, travamos uma
dura batalha para tornar o PSOL um partido atrativo para lutadores sociais, disputando seus
rumos, viabilizando seu crescimento eleitoral e buscando construir uma maioria estável que
propiciasse ao partido ser um porto seguro para a reorganização da esquerda no país.
Buscamos, inclusive, um funcionamento que superasse a característica de federação de
pequenos grupos, tornando-o mais atrativo aos novos movimentos sociais surgidos no
último período da luta social brasileira, os quais enxergam com desconfiança a “forma
partido”. 
Em termos conjunturais, essa batalha foi bem-sucedida, especialmente porque as mudanças
políticas que o país sofreu foram desafiadoras para a esquerda. O que a APS e seus aliados
fizeram foi suficiente para consolidar o PSOL como uma referência institucional no campo
da esquerda brasileira, espaço que foi fruto do acertado posicionamento nas batalhas
eleitorais, na resistência ao golpe parlamentar e no enfrentamento ao crescimento da direita.
Mas o partido continua sendo, na prática, uma federação de pequenos agrupamentos,
consome grande parte de sua energia na disputa pelo pequeno aparato partidário e continua
tendo baixa inserção nos movimentos sociais. 
O caráter socialista do nosso projeto
Neste momento de reflexão sobre o caráter de uma nova corrente, que seja ao mesmo tempo
herdeira de nossas tradições e reinvenção de nossa política e nossa forma organizativa, é
muito importante reafirmar alguns pressupostos constitutivos de nossa caminhada. Em
primeiro lugar, somos um agrupamento político composto de militantes que lutam pela
radical transformação social do Brasil e do mundo. Combatemos o capitalismo e lutamos
para construir uma sociedade socialista, primeiro estágio para a construção de uma
sociedade comunista. 
Em segundo lugar, reafirmamos que para a transformação social no nosso país é necessária
a existência de um forte partido de massas. Para que cumpra a tarefa revolucionária, este
partido precisará formular um programa de mudanças profundas, que rompa com as bases
constitutivas do capitalismo brasileiro. Sem enfrentar a raiz escravocrata e a subordinação
das mulheres, dois pilares presentes em nossa formação histórica, não será possível
promover uma ruptura com a ordem vigente. Nossa organização não se pretende ser núcleo
ou embrião deste partido, tarefa coletiva que envolve diferentes experiências organizativas
existentes no seio da esquerda brasileira. Contudo, nossa nova síntese pretende ser um
espaço virtuoso de construção das formulações e das condições objetivas e subjetivas para
que esta ferramenta se constitua no Brasil. Além de ser um novo instrumento para a
condução das transformações sociais, terá sua criação ancorada na realidade concreta, na
experimentação presente. 
No período histórico em que vivemos, nossa estratégia passa pela conquista do governo,
com vistas à conquista do poder. Para isso, além de um amplo partido de massas,
precisamos de um programa de ruptura com as bases da hegemonia burguesa em nosso país.
Significa proclamar a atualidade de um programa de caráter democrático e popular, que
impulsione as lutas populares na perspectiva da formação de um novo bloco histórico
vocacionado para a disputa do poder. Este programa encontra suas bases históricas no
Programa Democrático e Popular (PDP), aprovado pelo V Encontro Nacional do PT (1987)
e ponto de inflexão do partido na perspectiva do socialismo. 
No entanto, ao longo das últimas três décadas o Brasil passou por profundas transformações
que superaram elementos importantes do PDP. É preciso, portanto, formular um novo
programa de caráter democrático e popular que enfrente o processo de financeirização, a
reestruturação produtiva, o fenômeno da urbanização do capital, a precarização do mundo
do trabalho, o ataque às leis trabalhistas e aos direitos previdenciários, as privatizações, a
quarta revolução tecnológica e as mudanças no mundo das comunicações. Em outras
palavras, precisamos de um programa do nosso tempo, preservando a estratégia que
combina luta social e disputa eleitoral na perspectiva da chegada ao governo, e de lá, ao
poder. 
Uma nova tendência para um novo período histórico
Se podemos fazer uma avaliação positiva das ações desenvolvidas nos últimos quatorze
anos para dar estabilidade ao PSOL e torná-lo atrativo para ser fator relevante no processo
de reorganização da esquerda brasileira, é forçoso reconhecer que esse processo teve efeitos
colaterais preocupantes. No último período, a APS se construiu por dentro de um partido
que cultivou um ambiente de luta interna permanente, no qual foram travadas batalhas
cotidianas que nos levaram a alianças que nem sempre respondiam a nossos objetivos
estratégicos. Apesar da importância das batalhas que travamos, temos hoje baixa capacidade
de traduzir a política aprovada no mundo concreto, especialmente nas frentes de massas e
na juventude. 
Este período trouxe também novos desafios organizativos para a esquerda. De um lado, as
entidades populares, sindicais e estudantis perderam representatividade, dando lugar a
novas formas de organização, mais horizontais, com pautas localizadas e sem grande
influência de um projeto global de transformação. De outro, esses novos atores trouxeram
atualizações programáticas relevantes para o pensamento da esquerda, a qual se viu
obrigada a ser feminista, antirracista, anti-homofóbica, ambientalista e dar maior peso na
sua produção teórica e prática a questões antes diluídas na resolução do conflito entre as
classes sociais. É verdade, porém, que se essas influências foram positivas para reconectar o
PSOL e a própria APS com agendas que ganharam importância inédita até então, também
abriram um período de luta aberta contra correntes de orientação liberal que ocupam
crescente espaço entre os ativistas sociais. Cabe, portanto, reforçar nossa formulação de um
marxismo negro, feminista, ecossocialista e libertário, sem o que seremos tragados pela
glorificação das “identidades”, do individualismo e da fragmentação. 
Também devemos reconhecer que, nos últimos anos, nosso locus de atuação (o PSOL)
cresceu e se tornou desaguadouro destes novos segmentos sociais e de suas novas práticas
políticas. As manifestações multitudinárias – e, em muitos casos, espontâneas – quando do
assassinato de Marielle mostram a incrível disposição de luta de uma nova geração que vê
no PSOL o representante de suas causas. No entanto, criou-se um descompasso entre a base
social orgânica dos movimentos que se reconhecem na atuação do partido e sua forma de
organização, baseada nas práticas do petismo, onde ter maioria nos encontros partidários e
fazer as disputas internas têm enorme primazia. Novos grupos e lideranças sociais que vem
se aproximando do partido questionam esta lógica. As respostas dos agrupamentos
partidários têm sido superficiais e insuficientes. 
Dentre os novos atores que se incorporaram à dinâmica partidária ou que tiveram o PSOL
como um aliado para a defesa de seus interesses, destaca-se o MTST, que se tornou a
principal referência organizativa do povo pobre da periferia na luta por direitos, os novos
movimentos de mulheres, de negros e negras, de LGBTs e as recentes experiências de
bancadas e mandatos coletivos. Cada um desses movimentos possui dinâmica própria e
tensões com a forma de funcionamento e a tradição da esquerda clássica que dirige o
partido. Tais contradições vão desde o afastamento de um referencial teórico marxista e o
predomínio de visões pós-modernas até uma desconfiança com estruturas partidárias, vistas
como antidemocráticas e arcaicas. 
Diante da nova conjuntura política, com a vitória de um governo ultraneoliberal e
ultraconservador e diante dos desafios elencados acima, tornou-se obrigatório repensar
nossa forma de organização, buscando uma nova síntese política e organizativa. Em
primeiro lugar, será necessário incorporar na teoria, na prática e na forma de se organizar os
novos atores e novas experiências políticas que fazem parte da base social do PSOL e de
seus aliados. Não devemos abandonar o acúmulo de que a forma partido é estratégica para a
transformação social e que o mesmo precisa ser de massas, democrático e conectado com os
anseios de milhões de brasileiros e brasileiras. Nosso esforço deve ser para construir esse
instrumento, sempre. Mas é necessário que as incorporações programáticas sobre a luta
feminista, antirracista e libertária se expressem também na forma organizativa. Sem isso,
um abismo entre o que se defende e como nos organizamos se aprofundará. 
Em segundo lugar, precisamos somar o que temos de melhor com aquilo que novos
agrupamentos, mandatos e lideranças trazem ao PSOL. Isso significa viabilizar as condições
para uma nova tendência socialista, que reivindique a tradição comunista, que é nosso
legado teórico, mas que incorpora todos os agrupamentos políticos que nos ajudaram a ser
maioria e que estreitaram relações na construção da candidatura de Guilherme Boulos, que
estejam próximos de nossa política e das mudanças que defendemos. Isso pressupõe um
rápido e profundo processo de discussão de novas bases programáticas e de funcionamento. 
Em terceiro lugar, mas não menos importante, teremos que reconectar essa organização
com o movimento social existente, especialmente com os novos movimentos. Isso
pressupõe dar espaço para novas práticas organizativas e executar um audacioso plano de
renovação e formação de lideranças sociais e políticas, no partido e nos movimentos.
Precisaremos equilibrar disputa e ocupação das estruturas com o investimento na formação
e enraizamento de trabalho no movimento social. 
Em quarto lugar, não existe como dar este salto sem que se constitua imediatamente uma
juventude socialista mais ampla, de prática radicalizada na luta social, que congregue
jovens das escolas e universidades, mas que tenha uma política antissistêmica, negra, LGBT
e feminista. Devemos ter em mente que a juventude de nosso povo está inserida no mundo
do trabalho e que nos conectarmos a ela nos aproxima e enraíza nas classes trabalhadoras,
mas sem ignorar que as instituições educacionais concentram boa parte da nossa juventude
e organizar núcleos de ação política nesses espaços segue sendo importante. 
Em quinto lugar, nossa contribuição, com nossos quarenta anos de produção teórica e
política, será buscar dotar as novas gerações de lutadores de denso conhecimento científico
da realidade, sólida formação marxista, que reforce nas lutas feminista e antirracista uma
corrente de contraposição ao pós-modernismo imperante, apontando para a transformação
da sociedade capitalista e não apenas para o empoderamento de atores excluídos dentro dos
muros do atual sistema. Não basta incorporar novos atores e dinâmicas sem que se faça uma
disputa ideológica, mas para que isso aconteça precisamos estar inseridos nos movimentos,
tendo assim legitimidade para demonstrar o caráter estrutural das questões hoje tratadas
como “identitárias”. 
Em sexto lugar, precisamos de uma nova organização que tenha novas formas de
comunicação, mais horizontais, mais permanentes e eficazes. Vamos precisar combinar a
expressão de nossas posições por dentro das instâncias do PSOL com mecanismos públicos
de disputa de ideias e posicionamentos. Além disso, comunicação é fundamental para a
democracia interna e para a formação política de nossos militantes e daqueles que se
aproximarem de nossa política. 
Por fim, precisaremos ser rigorosos na necessidade de corrigir qualquer desvio que reforce
projetos pessoais próprios, práticas que aproveitem a refundação para solapar as relações de
confiança e companheirismo. Da mesma forma, precisamos superar qualquer
predominância de pragmatismo político, que seja avesso e nos coloque em contradição com
a expectativa de renovação presente na militância social que queremos ajudar a organizar
neste novo instrumento. 
Os desafios são enormes. Mas estamos certos de que é possível impulsionar um ciclo de
reorganização da esquerda que coloque novamente nosso povo em movimento. É tempo de
uma nova esquerda. E estamos dispostos a lutar para que ela floresça entre nós.

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