Você está na página 1de 3

Eduardo Góes NEVES

Arqueologia da Amazônia
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, 86 páginas.
ISBN 85-71100919-2.

O livro de Eduardo Góes Neves, Arqueologia da ocorrência de sítios que demonstram ocupação densa
Amazônia, parte da coleção Descobrindo o Brasil, vem no passado e a distribuição atual de terras indígenas.
somar-se ao quadro de publicações recentes de arque- Segundo uma nova vertente de interpretação da histó-
ólogos dispostos a apresentar para o grande público ria cultural da Amazônia, essa diferença foi provocada
as várias possibilidades (temáticas e teórico-metodo- pela colonização do local no século XVIII, intensifi-
lógicas) que a disciplina propõe em solo brasileiro. cada pelo ciclo da borracha, ao fim do século XIX e
A exemplo deste volume, podemos citar, da mesma início do XX.
coleção: A arte rupestre no Brasil, de Madu Gaspar, e Há, no livro, a proposta de se olhar para o pas-
Palmares, ontem e hoje, de Pedro Paulo Funari e Aline sado remoto buscando parâmetros para as políticas
Vieira de Carvalho. Fora da coleção Descobrindo o
do presente. Nessa linha, o autor sugere três ações
Brasil, mas ainda da Jorge Zahar, há o recente O Brasil
importantes: (1) reconhecer a ocupação densa da bacia
antes dos brasileiros: a pré-história do nosso país, de André
amazônica por diferentes povos indígenas no final
Prous. A editora Contexto também tem publicado
do século XV; (2) perceber continuidades entre esses
obras que seguem a mesma linha, como, por exem-
povos do passado no presente (apesar dos processos de
plo, a Pré-História do Brasil, de Pedro Paulo Funari e
mudança cultural); (3) reconhecer que a ocupação pré-
Francisco Silva Noelli (2002). São obras importantes
colonial guia processos de ocupação no presente.
para pesquisadores, professores, estudantes e interes-
sados em Arqueologia brasileira, sobretudo porque No tópico que apresenta “O meio físico”, Neves
lançam por terra o caráter pretensamente unilateral do desenvolve suas idéias defendendo a diversidade como
discurso científico, apresentando muitas possibilidades conceito-chave para a compreensão da Arqueologia
de abordagem da cultura material do passado. No que amazônica, questionando a visão que geralmente se
diz respeito ao livro resenhado, seu grande desafio tem de um ecossistema homogêneo, ocupado por gru-
reflete-se em sua delimitação geográfica: a extensão de pos também homogêneos. Constrói o quadro físico da
terras amazônicas e o reduzido número de pesquisas área pesquisada a partir de alguns temas, tais como a
arqueológicas realizadas até o momento naquele es- formação do rio Amazonas e seus afluentes, a variação
paço, dado salientado pelo autor já na introdução. anual das chuvas e do nível dos rios, propiciando dois
Neves introduz suas idéias alertando para a períodos bem definidos (cheia e seca), a falsa idéia
necessidade de se resgatar o caráter cultural da Ama- de que os solos amazônicos são totalmente férteis, o
zônia, afirmando que há um grande desconhecimento contraste entre áreas ribeirinhas (onde os sítios são
da história de sua ocupação milenar, com uma visão mais densos) e áreas de terra firme. Todos esses ele-
propagada de “natureza intocada”. Esta visão, segundo mentos físicos, segundo o arqueólogo, influenciam nos
o autor, reflete-se atualmente nas mentalidades que padrões de ocupação da Amazônia, revelando quatro
propõem estratégias voltadas para o desenvolvimento compartimentos: (1) faixa paralela à Cordilheira dos
sustentável da Amazônia. Ele chama a atenção, base- Andes (Bolívia, Peru, Equador e Colômbia); (2) áreas
ado em dados arqueológicos, para a diferença entre a ribeirinhas e alagadas; (3) áreas de interflúvio (ou “de

178 RHAA 6
Resenhas

terra firme”); (4) zonas de estuário e litoral (partes dos este último período sítios muito mais densos. O autor
estados do Amapá, Pará e Maranhão). Neste último diz, porém, que esta lacuna pode não estar relacionada
compartimento, onde floresceu a civilização marajo- a um relativo esvaziamento demográfico gerado por
ara, foram encontrados sítios com a cerâmica mais modificações climáticas, o que leva a uma segunda
antiga da América do Sul. hipótese, que diz respeito a problemas nas estratégias
Ainda neste tópico, o autor chama a atenção de levantamento utilizadas pelos arqueólogos.
para o fato de que a biodiversidade do contexto ama- No tópico “A transição para a agricultura e o
zônico, além de fornecer alimentos para as sociedades início da produção cerâmica”, Neves desenvolve suas
indígenas, também inspirou fortemente suas culturas. idéias sobre domesticação de plantas, agricultura e ad-
A essa biodiversidade Neves acrescenta a sociodiver- vento da cerâmica defendendo uma não-linearidade
sidade presente na Amazônia, em termos lingüísticos nos processos de adaptação, sendo a ocupação, se-
(com povos falantes de tupi-guarani, arawak, carib, gê gundo ele, muito mais baseada em economias diversi-
e línguas isoladas) e socioeconômicos (povos nôma- ficadas, tais como caça, pesca e coleta, do que apenas
des – caçadores/pescadores/coletores – e sedentários na agricultura. No que concerne à domesticação de
– agricultores), lembrando que a Arqueologia eviden- plantas, algumas áreas são vistas como centros e as
cia essa variabilidade no passado. Finaliza o tópico demais, receptoras de inovações. A Arqueologia pos-
indicando a Amazônia como um contexto de grande tula para as Américas dois principais centros: a Meso-
variabilidade geográfica, o que teria influenciado o américa e os Andes centrais. Atualmente, segundo o
processo de sua ocupação pelos grupos humanos. autor, a Amazônia também tem sido vista como um
No tópico “O início da ocupação humana”, o desses centros de domesticação (da mandioca e da
autor apresenta os principais registros arqueológicos pupunha) na bacia do alto Madeira e seus afluentes
que sugerem a antiguidade da presença humana na (atual Rondônia).
bacia amazônica, fixando o início da ocupação em 11 Aqui, Neves levanta um problema referente à
mil anos atrás, apesar de ressaltar que os dados são técnica agrícola da “coivara”, conhecida também como
escassos e que maiores investigações podem modificar “de toco” ou “de corte e queima”. Alguns autores de-
o quadro temporal de ocupação da Amazônia. Salienta fendem a impossibilidade de se manter populações se-
um padrão de subsistência desses primeiros habitantes dentárias com o cultivo realizado por meio da coivara,
(valorização da biodiversidade, não capturavam gran- dada a necessidade constante de mudança de lugar. No
des animais, eram pescadores, coletores e caçadores de entanto, Neves diz que esse argumento é baseado na
animais pequenos). Há, também, a confirmação, a par- observação de sociedades contemporâneas, as quais
tir de dados arqueológicos, da ocupação da Amazônia utilizam, para a abertura de roças, machados e facões
antes do advento da agricultura, apontando para tipos de metal. Segundo o arqueólogo, pode haver uma dife-
de economia diversificados na época pré-colonial. rença entre os padrões de cultivo em roças de coivara
O tópico tem como discussão central a ocor- do passado e do presente, sugerindo para o passado
rência de variações climáticas e ecológicas durante o uma menor mobilidade dos grupos, principalmente
Holoceno. Tais mudanças, de acordo com Neves, po- pela utilização de machados de pedra, que tornariam
dem ter ocasionado o esvaziamento demográfico de mais lento o trabalho de abertura de roças.
algumas regiões amazônicas constatado pelo registro No que diz respeito ao início da produção da
arqueológico. Curiosamente, os sítios anteriores a 6000 cerâmica e sua associação ao desenvolvimento da agri-
a.C. são mais conhecidos do que aqueles que poderiam cultura, Neves diz que os dados amazônicos são mais
evidenciar ocupação entre 6000 e 1000 a.C., mas os complexos, pois as cerâmicas mais antigas (5000 e
vestígios mais abundantes são aqueles com datações a 3500 a.C.) fazem parte de contextos em que a agri-
partir de 3 mil anos atrás, período em que os dados dis- cultura não havia sido plenamente adotada. Este fator
poníveis demonstram ter havido um aumento nas con- poderia indicar uma não-ruptura com modos de vida
dições gerais de precipitação e umidade. As mudanças anteriores, fortalecendo a idéia de economias diversi-
refletem no vestígio arqueológico, apresentando para ficadas e de mudanças não lineares.

RHAA 6 179
Resenhas

No penúltimo tópico, “Ascensão e queda das sugerindo aos pesquisadores que evitem interpretações
sociedades complexas da Amazônia”, o autor retoma simplistas quanto à história da Amazônia pré-colonial.
uma das principais hipóteses do livro. Sugere que a Exemplifica uma dessas interpretações, de que as so-
ocupação humana da Amazônia não foi um processo ciedades indígenas do passado estariam caminhando
regular e cumulativo, podendo a alternância “entre para um tipo de organização complexa, como um Es-
períodos de aparente estabilidade e outros de mudan- tado, e que esse “desenvolvimento” teria sido rompido
ças relativamente bruscas nos padrões de organização pelo contato com os não-índios. Afirma ainda que os
social, econômica e política” ser percebida nos ves- registros arqueológicos evidenciam bases econômicas
tígios arqueológicos. A hipótese vai ao encontro das centradas no grupo doméstico, com autonomia eco-
transformações nos padrões ocupacionais notáveis nômica e, conseqüentemente, instabilidade política de
a partir de 2 mil anos atrás (aumento no tamanho, longo prazo, ocasionando ocupação e abandono de
densidade e duração de ocupação nos sítios arque- grandes assentamentos. Finaliza o livro argumentando
ológicos). Acrescenta-se a isso o que o autor chama mais uma vez que os resultados são provisórios e care-
de “verdadeira explosão cultural”, refletida nas dife- cem de mais pesquisas na região, além de defender o
rentes “tradições” arqueológicas definidas pelos pes- conhecimento da Amazônia “a partir de seus próprios
quisadores que trabalham em contexto amazônico. parâmetros culturais e ecológicos”.
Unindo os dados arqueológicos aos paleoclimáticos, Como colocado no início da resenha, o livro
Neves considera viável postular uma correlação entre de Eduardo Góes Neves faz parte de um interessante
as mudanças climáticas ocorridas a partir de 1000 movimento, por parte dos arqueólogos, dirigido à
a.C. e as transformações nos vestígios arqueológicos. sociedade em geral e ao público leigo que se inte-
Modos de vida plenamente agrícolas foram possíveis ressa pelo passado de seu país. Apresenta, de forma
graças a um aumento no índice de chuvas e expansão clara, as principais discussões em torno do registro
das florestas. arqueológico pesquisado na Amazônia e demonstra
A partir dessa hipótese, o autor apresenta o uma preocupação ao esclarecer que o que temos são
que é conhecido como “terra preta”, estabelece suas resultados parciais, resultantes do número reduzido
conexões com assentamentos sedentários e descreve de pesquisas em região tão ampla. Além de mais pes-
as principais tradições ceramistas já pesquisadas, que quisas arqueológicas de campo – que, com certeza,
correspondem a esse período em que os dados arque- são ainda necessárias em várias partes do Brasil –, é
ológicos evidenciam grandes aldeias: Pocó, Marajoara, também imprescindível criar uma consciência profis-
Polícroma, Incisa e Ponteada (cujas cerâmicas mais sional coletiva, entre arqueólogos, para a importância
conhecidas são a Tapajônica e a Santarém) e Maracá. de múltiplas interpretações advindas de variadas ver-
Ainda dá exemplos de trabalhos de campo que fizeram tentes teóricas. Assim, propostas de tornar públicos
uso da tradição oral a partir do contato com indíge- resultados de pesquisas científicas, como este livro de
nas da região (com os índios Palikur, no rio Urucauá, Eduardo Góes Neves, serão cada vez mais viáveis e
Tariano, rio Uaupés, bacia do alto rio Negro, e Kui- muito bem-vindas.
kuru, no alto Xingu), alertando para a importância
da estreita ligação entre antropólogos, arqueólogos e
SOLANGE NUNES DE O. SCHIAVETTO
as comunidades que se sentem diretamente afetadas
Doutoranda em História Cultural, IFCH/Unicamp
pelas pesquisas acadêmicas.
Docente da Universidade do Estado de Minas Gerais
O autor finaliza o tópico ponderando sobre o (UEMG/Poços de Caldas)
impacto da colonização nessas sociedades indígenas, Pesquisadora do NEE/Unicamp

180 RHAA 6

Você também pode gostar