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SCINTILLA

Scintilla
REVISTA DE FILOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVAL

ISSN 1806-6526
Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 1-190
jul./dez. 2012

Instituto de Filosofia São Boaventura – IFSB


Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval – SBFM

Curitiba PR
2012
Copyright © 2004 by autores
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Editor: Dr. Enio Paulo Giachini
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Dr. Orlando Bernardi, IFAN
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Dr. José Antônio Camargo Rodrigues de Souza, UFG
Dr. João Eduardo Pinto Basto Lupi, UFSC
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Dr. Jaime Spengler, FFSB
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b) Conselho editorial
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Dr. Marco Aurélio Fernandes, IFITEG
Dra. Glória Ferreira Ribeiro, UFSJR
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Diagramação: Sheila Roque
Capa: Luzia Sanches
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Catalogação na fonte
Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofia São Boaventura,
Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro Universitário Franciscano, v.1, n.1, 2004-
Semestral
ISSN 1806-6526
1. Filosofia - Periódicos 2. Medievalística – Periódicos.
3. Mística – Periódicos.
CDD (20. ed.) 105
189
189.5
Sumário

Editorial ................................................................................7
Enio Paulo Giachini

Artigos. ..................................................................................11
O universal e o singular............................................................13
Alain de Liberá

Étienne Gilson e a circularidade da metafísica tomista............ 43


Sergio de Souza Salles

O método dialético e o sic et non de Pedro Abelardo.................65


Pedro Rodolfo Fernandes da Silva

A participação política e o regimento da coisa pública nos


escritos de Francesc Eiximenis..................................................87
Rogério Ribeiro Tostes
Dennys Robson Girardi

Trabalhar honestamente...........................................................113
Hermógenes Harada

A organização curricular dos estudos filosóficos do


Guia dos estudantes....................................................................127
Idalgo J. Sangalli

Filosofia medieval ....................................................................145


Emmanuel Carneiro Leão
Tradução................................................................................177
Do modo de aprender e meditar...............................................179
Hugo de São Vítor
Editorial
Enio Paulo Giachini*

Caros leitores,
Montamos um número de Scintilla com algumas indicações,
reflexões, voltadas ao tema da disciplina, estudo e método na me-
dievalidade.
A maioria dos artigos está referida a essa temática, inclusive o
texto da tradução de Hugo de S. Vitor, ao final do volume.
Esses três conceitos não devem ser compreendidos inicialmente
como conceitos contemporâneos, com teor próprio da ciência atual.
Tampouco se restringem ao estudo no sentido de compreender que
o estudo implicaria método e disciplina para seu progresso, ou seja,
para que haja progresso na aquisição e progresso dos estudos, são
necessários disciplina e método. É que, via de regra, hoje, compreen-
demos estudo, método, disciplina como conceitos isolados, campos
semânticos, como partes da composição de um todo. De um lado
ciência, do outro, práxis.
Essa confusão é tão intensa em nossas “academias”, que hoje
compreendemos formação quase que incondicionalmente como
formação profissional; para adquirir essa formação profissional, é
necessário, estudo, método e disciplina; hoje, formamos técnicos,
funcionários, agentes; se exagerarmos um pouco, caricaturizando
essa realidade, podemos dizer que formamos agenciadores, robôs,
peças de engrenagem. As grandes corporações industriais, técnicas

* Professor da FAE, Centro universitário.

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Enio Paulo Giachini

invadiram de tal modo as “academias” que influem diretamente na


montagem dos currículos escolares e na captação antecipada dessas
“forças de trabalho”.
Por outro lado, tampouco se poderá pensar haver a possibilidade
de um currículo voltado limpidamente, polidamente para o “huma-
no”; e ainda, até que ponto os eixos de ciências humanas inseridos
forçadamente nos currículos de áreas técnicas não são um ferro de
madeira, um resquício de má consciência, ou ainda um eco distante
de um desafio mais próximo e mais simples do pensar e viver huma-
nos, um nihilismo incompleto, isso é coisa que requer estudo.
Nesse sentido, é importante ler nossos antepassados com a co-
ragem de ultrapassar nosso saber pronto em relação a eles. O que se
busca na abordagem medieval desses temas, então, é compreender
um modo de ser, estranho ao viver moderno e atual, de aprimo-
ramento nuclear da totalidade humana numa singularidade, numa
individualidade; o aprimoramento do universal, do comum, da co-
munidade, no singular, no individual. O cultivo e melhoramento
da humanidade cada vez no homem singular; o aprimoramento do
homem singular cada vez numa atividade própria, singular.
Buscando mostrar esse encaminhamento de modo inverso: seja
em qual for a atividade em que o ser humano se exercite, seja qual
for sua profissão e o exercício a que se empenhe, há um encaminha-
mento de aprimoramento e crescimento que visa a atingir a totalida-
de, a humanidade, o universal.
O itinerário dessa caminhada não é aleatório. É preciso ser estu-
dado, retomado, aprimorado, exercitado. Estudo, método e discipli-
na são janelas ou portas de entrada de um exercício de melhorização
do todo.
O homem medieval compreendia a atividade humana, seja onde
for e como for, como exercício de crescimento, arte. Sendo portei-
ro, hortelão, cozinheiro, ferreiro, religioso, ou o que quer que seja,
havia um caminho de crescimento, um crescimento na habilidade

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Editorial

que transformava, com o tempo, o trabalho, o indivíduo e influía na


apropriação e transformação do mundo. O trabalho, assim compre-
endido, é exercício de artesania na habilidade de bem viver.
É nesse sentido que se deve compreender também tamanho em-
penho dos medievais no cultivo das virtudes. São forças que levam a
uma única força, à habilidade do bem viver. A prática da disciplina
leva a alma à virtude e a virtude, à beatitude. Assim, nas obras, há
que se observar a disciplina no discernimento, na diligência e na
honestidade. O discernimento prefere o necessário ao útil, o melhor
ao bom, o ótimo ao melhor; a honestidade no agir busca levar em
consideração sempre e primeiramente o direito e o dever da perten-
ça ao todo. Artesania é método de melhorização, de obediência a e
seguimento do curso “natural” proativo do humano.
Método, estudo, disciplina são modos de dizer o empenho na
aquisição de uma habilidade, de uma arte. “Mas habilidade que não
é um talento natural. Arte é uma habilidade trabalhada por um lon-
go tempo. Então, se diz que existe arte de viver, arte, habilidade de
viver, conquistada, bem trabalhada. Arte de plantar, arte de escre-
ver..., toda e qualquer profissão tem que ser arte; é uma habilidade,
uma competência útil, que serve. Uma habilidade conquistada, bem
trabalhada”.
Nesse sentido, não há acepção de trabalhos, de atividades ou de
ocupações.
Trabalho não é função, trabalho é lugar e exercício para se tra-
balhar a si mesmo na busca e aprendizagem do sentido de viver. Por
isso, no aprimorando da arte do trabalho honesto, o homem me-
dieval se tornava mestre, não importando qual atividade exercesse.
Mestre é alguém que aprendeu a aprender e onde quer que esteja e
atue exercita esse aprendizado.

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Artigos
O universal e o singular
Alain de Libera (Université de Genève)

Tradução: Everton Grein


Mauro Fernando Roman

Nullum universale est singulare, et nullum singulare est universale,


diz uma auctoritas evocada em um tratado atribuído a um discí-
pulo de Abelardo, outrora editado por Victor Cousin sob o título
de Fragmentum Sangermanense De generibus et speciebus1: nenhum
universal é singular, e nenhum singular é universal2. Quem duvida-
ria? Universal e singular são contrários. Uma coisa, digamos, uma
substância, é ou universal ou singular. Ela não pode ser ambos ao
mesmo tempo. A natureza do particular não passa no universal. A do
universal não passa no particular. Nec particularitas, nec universalitas
in se transeunt, já dizia Boécio em seu Comentário das Categorias de
Aristóteles. Não há mais transitio do universal no particular do que
da substância no acidente ou do acidente na substância.
Quare neque substantia in accidentis, neque accidens in subs-
tantiis naturam transit. At uero nec particularitas, nec uniuer-
salitas in se transeunt. Namque uniuersalitas potest [170D] de
particularitate praedicari, ut animal de Socrate uel Platone, et
particularitas suscipiet uniuersalitatis praedicationem sed non

1. O De generibus et speciebus foi editado em V. Cousin, Ouvrages inédits


d’Abélard, Paris, 1836, p.507-550. P. O. Kingen deu uma nova edição e uma tra-
dução inglesa em um apêndice de sua tese Abailard and the Problem of Universals,
Dissertation Abstracts International # 8220415.
2. De generibus..., ed. Cousin, p.521.

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Alain de Libera

ut uniuersalitas sit particularitas, nec rursus ut quod particulare


est uniuersalitas fiat3.
Uma universalidade pode se predicar de uma particularidade,
uma particularidade recebe a predição de uma universalidade, isso
não resulta em que uma universalidade é particularidade nem que o
que é particular se torne, na ocasião dessa predicação, universalida-
de4. Eles não se tornam um no outro. Boécio contra Hegel? Ou antes:

3. O texto de Boécio é uma transposição quase literal do Comentário às Catego-


rias de Aristóteles por questões e respostas de Porfírio, ed. A. Busse, In: Aristotelis
Categorias Expositio per interrogationem et responsionem, CAG, IV, 1,Berlin, G.
Reimer, 1887, p.72, 3-15 segs.; trad. R. Bodéüs, Paris, Vrin, 2008, p.157: “Bem,
eu digo que a substância não pode tornar-se acidente, nem o acidente substância
[...] Novamente, o universal não pode ser particular, e o particular não pode ser
universal. Por outro lado, o particular pode se ver atribuir um dos universais:
assim, a Sócrates, que é uma substância particular, pode-se atribuir homem, que
é precisamente um universal, porque Sócrates é o homem. [...] Mas a substância,
como tal, não pode tornar-se acidente, nem do seu lado, o acidente como tal, uma
substância e novamente, o universal como tal não pode tornar-se particular, nem
o particular como tal, universal”. Com o original grego sob os olhos, vemos que
a “passagem” (transit) de Boécio corresponde ao “tornar-se” porfiriano (γένοιτο)
tanto como a “inquietude” (Unruhe) hegeliana. Reencontraremos a palavra
γένοιτο na definição porfiriana do indivíduo como “um encontro de característi-
cas específicas”. O texto de Porfírio é uma resposta à questão de saber “quais são,
entre as coisas, aquelas que não podem se combinar entre elas e quais são aquelas
que o poderiam”, levada pela divisão mínima dos seres em quatro gêneros (ver a
nota seguinte). A resposta – acidente e substância, universal e particular não pode
se combinar – é fundada sob o fato de que em cada par um termo é colocado pela
negação da relação que qualifica o outro: o acidente estando definido pela relação
de inerência (ser em um sujeito), o universal por aquela atribuição essencial ou
sinonímica (dizer-se de um sujeito), a substância é definida por não ser em um
sujeito e o particular por não se dizer de um sujeito. O acidente não pode portanto
tornar-se substância, nem o particular universal (e reciprocamente).
4. O emprego boeciano das palavras abstratas universalitas e particularitas no lu-
gar de universale e particulare é notado e comentado pelo autor do De generi-
bus et speciebus. O propósito de Boécio nesse texto é de justificar a divisão em
quatro gêneros “dos seres e das palavras suscetíveis de os significar”, a tétrade ou
o reagrupamento mínimo, introduzido nesses termos por Porfírio (Busse, p.71,
19 segs.; Bodéus, p.153): “… os seres são ou bem substância universal ou bem
substância particular ou bem acidentes universais ou bem acidentes particulares.

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O universal e o singular

Hegel contra Boécio? O Uebergehen da dialética hegeliana seria o


eco do transire boeciano? Poderia se acreditar nisso ao ler tal ou tal
página, da Estética, por exemplo, onde a afirmação que o universal
“passa” ao particular fundamenta a própria teoria do conceito.
O conceito é [...] universal que por um lado se nega como tal
determinando-se e particularizando-se, e do outro suprime esta
particularidade que é a negação do universal. Porque o universal
passa ao particular que não é ele mesmo senão o próprio universal
particularizado sobre seus diversos elementos. Consequentemen-
te, ele não encontra outro absolutamente distinto, mas restabelece
no particular sua unidade consigo mesmo enquanto universal5.
Há aparentemente dois extremos, dois pólos filosóficos: um bo-
eciano, antigo e medieval, onde se coloca um limite intransponível

Não se pode, com efeito, propor outra divisão mais simples que esta”. A divisão
“mais extensa” é aquela dos dez gêneros categoriais, a tétrade, as “dez categorias”:
“substância, quantidades, qualidades, relativos, produção, afeição, momento, lo-
calização, ordem, posicionamento”. À questão de saber “porque a divisão mais
simples comporta quatro gêneros”, Porfírio responde (Busse, p.71, 28-71, 37;
Bodéus, p.153-155): “É que a subdivisão no mais alto nível, quer dizer a primei-
ra, comporta dois: a substância e o acidente. Mas é isso. Não podemos exprimi-
-las sem fazer menção seja do universal, seja do particular. As substâncias, com
efeito, devem se exprimir seja universalmente (como quando dizemos ‘animal’,
‘cachorro’, ‘homem’) seja no particular (como quando dizemos ‘Sócrates’, ‘Bucé-
falo’). E os acidentes são também universais ou particulares. A ciência com efeito
é um acidente universal, enquanto a ciência de Aristarco é um acidente particular.
Ora, visto que não exprimimos simplesmente a substância (mas o fazemos seja
de modo universal [ou] particular), isto é individualmente, nem o acidente (mas
o fazemos também seja de modo universal, [ou] particular), a divisão resulta em
quatro gêneros, enquanto que em princípio, ela não compreende a substância e
o acidente”. Temos portanto: Sócrates, a substância particular ou “primeira” no
léxico de Aristóteles, definido por ¬ IS (não inerente de um sujeito) e ¬ DS (não
dita de um sujeito); o Homem, a substância universal ou “segunda”, definido por
¬ IS & DS (homem se diz de Sócrates, animal se diz de homem [e de Sócrates]); a
ciência, acidente universal, definido por IS & DS; a ciência de Aristarco, acidente
particular, definido por IS & ¬DS.
5. G. W. F. Hegel, Esthétique, I, trad. C. Bénard, Paris, Livro de Bolso (Clássicos
da filosofia), 1997, p. 174.

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Alain de Libera

entre universal e singular, outro, hegeliano e moderno, onde se or-


questra sua transgressão. O esquema é simples. Ele é simplista. É
verdade que muitos filósofos têm concordado e concordariam ain-
da em dizer que o universal e o singular são contrários, até mesmo
contraditórios, e que nada pode ser ao mesmo tempo um e outro.
No entanto, não é necessário ser um hegeliano para contestar esse
dispositivo. É o que faz, por exemplo, Alain Badiou, na segunda
de suas Oito teses sobre o universal, quando coloca, aparentemente
sem reverência a Hegel que “todo universal é singular, ou é uma
singularidade6”. Para um medievalista, historiador da filosofia, a tese
badiana é seguramente paradoxal. Ela é senão comum, pelo menos
fortemente atestada. Mais exatamente, abundam os enunciados que
colocam também que todo universal é singular. Trata-se, portanto,
da mesma tese? É possível duvidar. Por quê? Este é o tipo de questão
que nos reúne hoje. Pode-se trazer respostas bem distintas. Alguns
dirão que o enunciado de Badiou não responde ao mesmo problema
que um enunciado medieval que, também afirmaria que todo uni-
versal é singular (ou o negaria). Outros dirão que o tema ‘universal’
não remete em Badiou ao que remete, remetia ou remeteria o termo
‘universal’ em tal ou tal pensador medieval. Outros enfatizarão que
Oito teses sobre o universal não significa Oito teses sobre os universais.
O que torna a dizer que as ditas teses não respondem ao que se
chama “o” problema dos universais. Todas essas respostas têm seu
mérito e seus defeitos. Não caiamos na armadilha da alternativa en-

6. Cf. A. Badiou, “Oito teses sobre o universal”, www.ciepfc.fr/spip.php?article 69


(26. 12. 2008): “É necessário, portanto sustentar que todo universal se apresenta,
não como uma regulamentação do particular ou das diferenças, mas como uma
singularidade subtraída dos predicados identitários, embora, bem entendida, ela
proceda em e através desses predicados. À assunção das particularidades é preciso
opor sua substração. Mas se uma singularidade pode pretender ser substrativa-
mente o universal, é porque o jogo dos predicados identitários, ou a lógica dos
saberes descritivos da particularidade, não permite de modo algum prevê-la ou
pensar nela”. Badiou acrescenta: “resulta que uma singularidade universal não é
da ordem de ser, mas da ordem do aparecimento. Daí a tese 3: todo universal se
origina de um evento, e o evento é intransitivo às particularidades da situação”.

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O universal e o singular

tre a continuidade e a descontinuidade em história. Perguntemo-nos


simplesmente o que entendemos com o ressoar / raciocinar, desde a
cena medieval, sob este título: “o universal e o singular”.
Primeiramente, a história de um problema, ou melhor, a gênese
de um problema: aquele, precisamente, dos universais. Uma forma
padrão de colocar o problema dos universais é: os universais são pa-
lavras, coisas ou conceitos? É sob essa forma tripartite que, desde
1845, a Academia das Ciências Morais e Políticas a fixou, com Vic-
tor Cousin, para a filosofia francesa, e com ela a delimitação das três
posições tomadas: nominalismo, realismo e conceitualismo7. Que se
permita recordar aqui, o problema da Academia não é aquele que
a alimentou, durante séculos, a reflexão sobre o estatuto dos uni-
versais. Inicialmente, há, de fato, um questionário completamente
diferente – o “questionário de Porfírio”, o aluno de Plotino, o editor
das Enéadas, o único filósofo a quem jamais se aconselhou a tratar
sua depressão pelo estudo intensivo da lógica, e que tenha sido bem
sucedido. Três questões, portanto:
[...] concernente aos gêneros e às espécies, [...] saber (1) se eles
existem ou se eles não consistem senão em puros conceitos, (2)
ou, supondo que eles existam, se eles são corpos ou incorpóreos, e,
(3) nesse último caso, se eles são separados ou se eles existem nos
sensíveis e em relação a eles8.
Esse questionário figura em uma obra precisa, o Isagoge, uma
introdução à leitura das Categorias de Aristóteles. Porfírio, sabe-se
bem, não responde a suas próprias questões. Por quê? “Porque, diz
ele, elas representam uma busca mais profunda e exigem outro exa-
me, muito mais longo”, destacado da filosofia primeira, ou melhor,

7. É sobre o conflito entre essas três posições que está centrado o programa da His-
tória da filosofia escolástica anunciada naquele ano pela Academia, o prêmio foi
ganho por Barthélemy Hauréau. Sobre esse ponto, cf. A. de Libera, La Querelle
des universaux, Paris, Éd. du Seuil, 1996, p. 11-12.
8. Porphyre, Isagoge, 1. 2, trad. A. de Libera & A. Ph. Segonds, Paris, Vrin (Sic
et Non), 1998, p. 1.

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Alain de Libera

da teologia9. A primeira alternativa pergunta se os gêneros e as espé-


cies, e por extensão os outros predicáveis, – diferença, propriedade
e acidente – são ou não conceitos puros, quer dizer vazios ou o que
remete ao próprio nada puro; a segunda, uma vez colocada, que
eles existem ou subsistem, se eles são ou não corpos; a terceira, uma
vez colocada, que eles são incorporais, se eles existem ou não nos
sensíveis. O aspecto estóico do questionário, herdado de fato de um
de seus grandes adversários peripatéticos, Alexandre de Afrodísia,
vale ser sublinhado. Porfírio, nas suas Sentenças, Alexandre, têm por
parceiros ou alvo os estóicos. É evidente, por exemplo, na sentença
42, onde contra “os discípulos de Zenão”, Porfírio distingue (a) os
incorpóreos, “que subsistem em relação ao corpo” (pros ta soma-
ta ufistai) – a “forma imanente à matéria, quando ela é concebida
como esvaziada da matéria” – e (b) aqueles que são “inteiramente
separados dos corpos e dos incorpóreos, subsistindo em relação aos
corpos”10. Vê-se que o questionário de Porfírio no Isagoge, é bem
teológico num certo sentido; em todo caso, é finalmente na terceira
questão, que pergunta nada menos que isso: que tipo de incorpóreos
são os gêneros e as espécies? Eles são todos imanentes no sensível? É
transcendente? Nada exige diretamente aqui uma análise em termo
de palavras, de coisas e de conceitos. É, no entanto, a essa questão
que Porfírio não coloca, muito mais do que à questão que ele colo-
ca, e à qual ele não responde, ao menos no Isagoge, que responde a
tradição dos comentadores. Por quê? Digamos que, como um trem,

9. Após ter esquivado seu próprio problema, que não se enquadra com o skopos
(objetivo, propósito, tema), das Categorias. Porfírio declara sem ambiguidade que
o ponto de vista do Isagoge é lógico e peripatético: “… eis as questões das quais
eu evitarei de falar […]; por outro lado, concernente aos gêneros e espécies e aos
outros [termos] em questão, como os Antigos, e mais particularmente aqueles do
Peripatos, trataram de uma maneira mais lógica, é o que eu vou me esforçar em
te mostrar.
10. Cf. Porfírio, Sentenze sugli Intelligibili. Testo greco a fronte, a cura di G. Gir-
genti, Milan, Rusconi, 1996, p. 158-159. Ver, no mesmo sentido, a sentença 19,
éd. -trad. Girgenti, p. 96-97.

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O universal e o singular

um questionário pode levar a um outro. É o que fazem os Comen-


tadores gregos do Isagoge, “introdução” as Categorias, é simples: eles
reportam na obra de Porfírio o questionário que organiza a leitura da
obra a qual ele introduz, em outras palavras: o questionário sobre o
σκοπός, o propósito, o tema ou o objeto das Categorias: as categorias
(substância, qualidade, quantidade etc.) são elas φωναί (vozes), os
νοήματα (os conceitos) ou as πράγματα (as coisas)? Essa transferên-
cia, essa transposição sobre os predicáveis de uma grade de questio-
namento formulado para os predicamentos, prolonga uma primei-
ra transferência, uma primeira reversão ou retroversão. Que, com
efeito, não reconheceria na tríade φωναί – νοήματα – πράγματα a
formulação simplista, cara ao neoplatonismo, do triangulo semânti-
co estabelecido por Aristóteles no capítulo primeiro do Peri Herme-
neias. Esse movimento regressivo do esquema “palavras, conceitos,
coisas” do Peri Hermeneias às Categorias e das Categorias ao Isagoge
tem uma vantagem evidente: ele reforça a coesão do Organon, ho-
mogeneizando ao mesmo tempo o léxico e o domínio de objetos. Os
medievais abordam um problema dos universais construído sobre a
aristotelização forçada de um dispositivo mais amplo, onde a teoria
dos incorpóreos tinha ainda direito de cidadania.
Os comentadores estariam errados em operar essa transferência?
A julgar pelo resultado, não. Discute-se ainda ora mais ora menos
em seus termos o problema dos universais, esqueceu-se há um bom
tempo o questionário de Porfírio11. Eles tinham boas razões em fa-

11. Na filosofia moderna e contemporânea, as principais teses na presença oposta


dos partidários das “classes naturais primitivas” (A. Quinton), do “nominalismo
da semelhança” (H. H. Price), dos “universais” no sentido estrito, das “classes
naturais dos tropos” (G. F. Stout) e das “classes de semelhanças dos tropos” (D.
C. Williams) – alguns filósofos tentaram combinar a teoria dos tropos e a admis-
são dos universais (J. Cook Wilson). No que constitui a melhor introdução às
problemáticas atuais dos universais – Universals. An Opinionated Introduction,
Boulder-San Francisco-Londres, Westview Press (Focus Series), 1989, p. 18 –, o
filósofo australiano D. M. Armstrong apresenta assim as seis teorias em questão
(minha tradução): “1. Teoria das CLASSES NATURAIS PRIMITIVAS (Primi-

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012 19


Alain de Libera

zê-lo? Talvez, porque era claramente a melhor maneira de adotar,


como solicitava Porfírio, o ponto de vista dos peripatéticos, se expri-
mindo λογικώτερον sobre os predicáveis, para pelo menos abrir o
debate ou a investigação que se supõe concluir fora do Organon, na
metafísica ou na teologia.
Não é da única montagem reversiva dos três textos que consti-
tuem a Logica Vetus que foi tirado o problema dito dos universais.
A palavra não figurava em outras partes do questionário de Porfírio.
Ele figura por outro lado no De anima I, 1, 402b7 e as duas Questões
que Alexandre consagrou a essa passagem: O que significa a citação
de Aristóteles no primeiro livro da Alma: “o animal tomado univer-
salmente ou bem não é nada ou bem é posterior”. Esta “posteridade”
tem tido boa sorte. Quem diz posterior diz anterior. Não seria neces-
sário mais do que isto para encaixar a divisão porfiriana das ciências,
modelada sobre aquela de Aristóteles, uma distinção entre os estados

tive natural class view): A classe de todas as coisas brancas constitui uma classe
natural que apresenta um grau suficiente de naturalidade (a class with a reasonable
degree of naturalness). Isso é tudo o que podemos dizer a propósito do que faz
que uma coisa branca seja branca (that is all that can be said about what makes
a white thing white). 2. NOMINALISMO fundado sobre a SEMELHANÇA
(Resemblance Nominalism): As coisas brancas constituem uma classe natural em
virtude do fato objetivo de que todas elas se assemelham em um certo grau. A
semelhança é um fato objetivo mas não analisável. 3. Admissão de UNIVERSAIS
(Universals): Todas as coisas brancas têm em comum uma propriedade idêntica
(ou um conjunto de propriedades ligeiramente diferentes que correspondem às
diversas nuances do branco. 4. Teoria das CLASSES NATURAIS DE TROPOS
(Natural classes of tropes): Cada coisa branca tem sua própria propriedade de
brancura inteiramente distinta [das outras brancuras] (its own, entirely distinct,
property of whiteness). A classe das brancuras constitui uma classe natural primi-
tiva. 5. Teoria das CLASSES DE TROPOS fundadas sobre a SEMELHANÇA
(Resemblance classes of tropes): Cada coisa branca tem sua própria propriedade de
brancura, mas os membros da classe das brancuras se assemelham todos mais ou
menos estritamente, sendo a semelhança um elemento primitivo (inderivablel). 6.
Admissão do TROPOS e de UNIVERSAIS (Tropes plus universals): Cada coisa
branca tem sua própria propriedade de brancura, mas essas propriedades particu-
lares elas mesmas tem cada qual uma propriedade universal de brancura (but these
particular properties themselves each have a universal property of whiteness)”.

20 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012


O universal e o singular

do universal. A alternativa aberta por 402b7 não poderia ser aceita,


a partir do momento em que não se permanecesse mais bloqueado
na primeira alternativa porfiriana, e que se entendia sustentar uma
teoria que afirmava ao mesmo tempo, que o animal tomado univer-
salmente não era nada, mas não era, no entanto, somente posterior, em
outras palavras simples conceito abstrato, extraído de semelhanças
entre singulares.
É nesta recusa do empirismo estrito que os comentadores neo-
platônicos forjaram a doutrina que harmoniza de fato o platonismo
e o aristotelismo, chamada de “os três estados do universal”. A con-
cordância ou a conciliação são aqui o motor da invenção. Do mesmo
modo que a posição final sobre o skopos das Categorias faz a síntese:
não só as palavras, nem só as coisas, nem só os conceitos, mas as pa-
lavras que significam coisas pela mediação dos conceitos12, ou seja, o
conjunto do triangulo semântico, e não somente um de seus vértices,
é um ponto de vista unificador que é procurado para pensar o status
dos “predicáveis” ou “universais”. É o que obtém Amônio, com a
teoria “dos três estados do universal”, pro ton pollón (anteriores aos
múltiplos), en tois pollois (nos múltiplos), epi tois pollois (posteriores
aos múltiplos), incorporando a concepção aristotélica do universal
“abstrato” ou “posterior” dos Segundos Analíticos na distinção, atesta-
da a partir da época da Média Academia, entre formas imanentes à

12. Sobre essa síntese das três posições, cf. Ph. Hoffmann, “Catégories et langage
selon Simplicius. La question du “skopos” du traité aristotélicien des Catégories”,
in I. Hadot (éd. ), Simplicius. Sa vie, son oeuvre, sa survie. Actes du colloque
international de Paris, 28 sept. -1 oct. 1985 Berlin-New York, W. de Gruyter
(Peripatoi, 15), 1987, p. 68 et 72-73. O lugar de Porfírio no dispositivo é difícil
de apreciar: segundo Olympiodoro, ele é partidário da tese peri fônon; segundo
Philopon e Elias, ele sustenta a tese peri noématón; segundo Simplício, ele é o
primeiro exegeta à exprimir a “boa” interpretação do skopos das Categorias, a
interpretação “completa”, quer dizer sintética, que atribui como objeto no livro
“os termos predicados” (peri tón katégoroumenón), quer dizer “as palavras simples
que significam as realidades, na qualidade de que elas são significantes, e não pura
e simplesmente como elementos léxicos”.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012 21


Alain de Libera

matéria e Ideias transcendentes (platônicas)13. Essa teoria atravessará


os séculos: encontramo-la, adaptada ao monoteísmo, entre cristãos
siríacos a partir dos anos 530, mas é somente no século XIII que ela
se difunde entre os latinos graças ao uso que Alberto O Grande fez
da Lógica de Avicena, seu principal vetor na idade universitária. A
teoria de Amônio, retomada por Avicena, depois por Alberto, de-
pois por todos os filósofos e teólogos da Via Antiqua, propõe uma
espécie de Odisséia do inteligível universal: teológica, anterior a coi-
sa, paradigmática de uma palavra ante rem, universal existente no
pensamento divino, descende no múltiplo, se particulariza, se torna
in re, antes de recobrar uma universalidade abstrata no pensamento
humano, post rem, e de se fazer mental ou psicológico14.

13. Ver a distinção entre “inteligíveis primeiros” (objetos da “intelecção física”)


e “inteligíveis segundos” em Alcínoo, Didaskalikos, chap. 4. 7, éd. J. Whittaker,
trad. P. Louis, Paris, Belles Lettres (CUF), 1990, p. 7 (= éd. C. F. Hermann,
Platonis dialogi., BT, t. VI, Leipzig, 1853, p. 155, 39-41): “E, já que entre os in-
teligíveis, uns são primeiros como as Ideias, os outros, segundos, como as formas
inerentes à matéria e inseparáveis dessa matéria, haverá assim dois tipos de intelec-
ção, uma tendo por objeto os primeiros, e a outra os segundos”. A distinção dos
três estados do universal é exposta por Amônio, In Porph. Isag., éd. Busse, CAG,
IV, 3, Berlin, G. Reimer, 1891, p. 41, 10-42, 26: “Para esclarecer o que o texto [de
Porfírio] quer dizer, apresentemo-lo por meio de um exemplo, porque não é ver-
dade que os [filósofos] designam simplesmente e ao acaso tais coisas como corpos,
tais outras como os incorpóreos, mas eles o fazem ao termo de um argumento, e
eles não se contradizem uns aos outros, porque cada um entre eles diz coisas razo-
áveis. Imaginemos, portanto, um anel, com uma impressão [representando], por
exemplo, Aquiles, assim com uma infinidade de selos de cera; suponhamos que o
anel marque com sua chancela em todos os selos; suponhamos agora que alguém
venha mais tarde e que veja os selos, constatando que todos [as marcas] vêm de
uma única impressão: ele terá em si mesmo a marca, quer dizer, a impressão na
sua faculdade discursiva (dianoia); podemos portanto dizer que a chancela sobre o
anel é “anterior aos múltiplos”; que a marca nos selos é “nos múltiplos”, ao passo
que aquele que é na faculdade discursiva daquela que a imprimiu, é “posterior aos
múltiplos” e “posterior na ordem do ser”. Bem, isso é o que é necessário compre-
ender no caso dos gêneros e das espécies”.
14. Para tudo isso, eu me permito indicar A. de Libera, L’art des généralités. Thé-
ories de l’abstraction (Philosophie), Paris, Aubier, 1999 e Métaphysique et noéti-
que. Albert le Grand, Paris, J. Vrin (Problèmes et controverses), 2005.

22 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012


O universal e o singular

A teoria de Amônio não responde diretamente nem ao questio-


nário de Porfírio nem ao problema das palavras, dos conceitos e das
coisas, ela afirma a harmonia do platonismo e do aristotelismo: o
universal não é somente anterior a coisa, nem somente imanente a
coisa, nem somente posterior a coisa, mas os três15. Ela não interessa
senão para quem é verdadeiramente preocupado em conciliar Aristó-
teles e Platão. Lá onde essa preocupação não existe, ela perde muito
do seu atrativo. Explica-se assim que ela não desempenha qualquer
papel durante a Idade greco-latina da filosofia medieval, digamos de
Boécio a Abelardo, que o ignoraram como ignoram Platão e em um
grau menor Aristóteles, e que ela não desempenha nenhum [papel]
mais nas correntes filosóficas tal qual o nominalismo. Abelardo nun-
ca evocou a teoria de Amônio, porque Boécio, sua fonte principal,
o ignora ou não se interessa. Ockham não a menciona senão para
corrigi-la, e certamente não para salvar o platonismo nem o suposto
acordo dos dois “grandes” filósofos.
Do que falam aqueles que falam do universal e do singular quan-
do eles não tratam do questionário de Porfírio ou do problema dos
universais na versão que se tornou padrão para nós? O que faz o
interesse da história da filosofia medieval é que se deve, sempre que
for possível, superar intrigas de longa duração e seguir outras pistas
além daquela do comentário das obras canônicas, Isagoge ou as Ca-
tegorias. A teologia tem sua palavra a dizer da Antiguidade Tardia à
Segunda Escolástica. Falar do universal e do singular como falaram
os filósofos e teólogos do século VI ao XVI, é no mínimo: interessar-
-se por outros Binômios como universal e geral, universal e comum,
singular e particular; é debruçar-se sobre a distinção entre a teoria do

15. O debate medieval sobre os universais é muitas vezes apresentado atualmente


como opondo platonismo e aristotelismo – os filósofos contemporâneos chamam
aliás “platonismo” de Transcendent Realism, quer dizer, toda teoria que admite a
existência de propriedades ou de universais “não instanciados” (“uninstantiated
properties”), e remete a Aristóteles a tentativa de “trazer os universais para a terra”,
e lhe atribuir, como Armstrong, uma teoria dos universals in things “whose Latin
tag is universalia in rebus” (Universals, p. 77).

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012 23


Alain de Libera

universal e mereologia ou, se preferirmos, sobre o que aproxima ou


distingue a dupla universal-singular da dupla todo-parte; é seguir os
debates teológicos sobre a Trindade e a união hipostática, e ao mes-
mo tempo interessar-se pela história ao longo do curso das relações
entre o indivíduo, natureza e pessoa, é sondar as teorias do pecado
original; é voltar-se para as teorias da abstração; e envolver-se tam-
bém no terreno minado das teorias do intelecto, é abordar as teorias
do conhecimento, do conhecimento dito abstrativo do universal, do
conhecimento dito intuitivo do singular; é, enfim, e quem se surpre-
enderá, voltar sobre o que caracteriza os nominalismos e os realismos
medievais, definir com precisão suas posições filosóficas, e analisar e
discutir sobre todos os terrenos onde eles se afrontam, estatuto on-
tológico das proposições (dictum propositiones), teoria do significável
complexamente (significabile complexe), teoria do esse obiectivum ou
obiective. Tudo isso leva longe. Ainda mais longe que a história dos
problemas – ou para retomar a formula de Collingwood, dos com-
plexos constituídos de questões e respostas –, tem uma matéria mais
rica que aquela das QCM: as distinções, as regras, os argumentos, os
exemplos fazem parte dela. Universal e singular conduzem, portanto,
a tudo ou quase tudo – em todo caso bem além “do” problema dos
universais.
...entre as coisas umas são universais, outras singulares – e eu cha-
mo universal o que, por natureza, pode servir de predicado a di-
versos sujeitos, singular o que não pode16...
...entre os predicáveis, uns não se dizem senão de um só, como
os indivíduos (por exemplo Sócrates, este homem ou esta coisa),
enquanto que outros se dizem de vários (como os gêneros, as es-
pécies, as diferenças, os próprios e os acidentes que são comuns, e
não particulares a um só indivíduo)17.
Duas definições, das quais uma, a de Aristóteles, fala das coisas
(pragmata), a outra a de Porfírio, fala de categouroumena, de predicá-

16. Aristóteles, De interpr., 7, 17a38-40.


17. Porfírio, Isagoge, 1. 6.

24 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012


O universal e o singular

veis, portanto de termos – a menos que admitamos que uma coisa, e


não somente um termo, possa ser dita de uma outra, e que existam
proposições reais, feitas de coisas, como certos realistas do século
XIV sustentarão18. Duas definições que nos dizem o que significa
universal (predicável de muitos) e singular (predicável de um só),
sem distinguir singular e indivíduo. Duas definições que não nos
dizem no entanto do que um singular é feito, o que constitui tal ou
tal indivíduo, tal ou tal singular enquanto indivíduo ou singular.
Numa célebre passagem do Isagoge (7.19-27), Porfírio escreve que
um indivíduo (atomon) “é constituído de propriedades cuja reunião
(athroisma) não poderia jamais se encontrar idêntica em outro”19. Eis
uma reposta à questão. Mas o problema levantado pelos dois enun-
ciados precedentes volta imediatamente: Porfírio fala de coisas indivi-
duais ou de termos individuais – e por que não de conceitos individu-
ais (no sentido em que se fala na filosofia moderna das características
ou das notas, Merkmalen, notae, de um conceito20)? A alternativa
palavras-coisas existe: hoje ainda se debate sobre a questão de saber se

18. Cf. sobre esse ponto L. Cesalli, Le Réalisme propositionnel. Sémantique et on-
tologie des propositions chez Jean Duns Scot, Gauthier Burley, Richard Brinkley
et Jean Wyclif, Paris, Vrin (Sic et Non), 2007.
19. “… a espécie que não é senão espécie, [se diz] de todos os indivíduos, e enfim,
o indivíduo, de um único entre os particulares. Chamamos “indivíduo” Sócra-
tes, este branco, e o filho de Sofronisco (desde a condição que Sofronisco não
tenha além de Sócrates como filho) e este que vem lá. Esses [seres] são portanto
chamados “indivíduos”, porque cada um dentre eles é constituído por caracteres
próprios, cujo agrupamento não poderia jamais se produzir identicamente em
um outro: com efeito, os caracteres próprios de Sócrates não poderiam jamais ser
os mesmos no caso de um outro ser particular, ao passo que estes do homem, eu
quero dizer do homem comum, podem ser os mesmos no caso de muitos homens,
ou melhor, mesmo no caso de todos os homens particulares, enquanto homens.”
20. Cf. o artigo “Merkmal” (A. de Libera), no Vocabulaire Européen des Philoso-
phies, sob a dir. de B. Cassin, Paris, Le Robert-Éd. du Seuil, 2004. Ver também
sobre esse ponto (como sobre o número de problemas evocados aqui) I. Angelelli,
Études sur Frege et la philosophie traditionnelle, trad. por J. -F. Courtine, A. de
Libera, J. -B. Rauzy & J. Schmutz, Paris, Vrin (Problèmes & Controverses), 2007.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012 25


Alain de Libera

o enunciado do Isagoge 7.19-27 propõe uma teoria da constituição


ontológica ou “natural” dos indivíduos ou uma teoria da “significação
dos predicados individuais”21. Nos séculos XI e XII, perguntava-se se
era necessário ensinar, isto é, interpretar, ler, o Isagoge in voce ou in re
ou ambos. O problema é particularmente agudo no caso da reunião
não repetível de propriedades, invocado por Porfírio22. São conheci-
das ao menos três teorias ontológicas da constituição do indivíduo
pela união de caracteres próprios na filosofia antiga:
T1: uma substância “primeira”, uma “hipóstase”, é aquilo em que
existe uma (athroisma sumbebékotón), “reunião de acidentes”, teoria
atestada na Suda23.
T2: uma substância sensível é um tipo de união (συμφόρησις)
de qualidades tomadas com a matéria na qual elas existem24.

21. J. Barnes, Porphyry. Introduction, Oxford, Clarendon Press (Clarendon Later


Ancient Philosophers), 2003, p. 342: “… that theory has usually been taken to con-
cern not the meaning of individuals predicates but the nature of individual items”.
22. Sobre essa noção e essa problemática, cf. C. Erismann, La Genèse du réalisme
ontologique durant le haut Moyen âge. Étude doctrinale des théories réalistes de
la substance dans le cadre de la réception latine des ‘Catégories’ d’Aristote et de
l’’Isagoge’ de Porphyre (850-1110), tese (EPHE-Lausanne), novembro 2006, e,
do mesmo, “Un autre aristotélisme? La problématique métaphysique durant le
haut Moyen Âge. A propósito de Anselmo, Monologion 27”, Quaestio. Annuario
di storia della metafisica, 5, 2005, p. 143-60; “Collectio proprietatum. Anselme
de Canterbury et le problème de l’individuation”, Mediaevalia. Textos e estudos,
22 (2003), p. 55-71; “L’individualité expliquée par les accidents. Remarques sur
la destinée “chrétienne” de Porphyre”, in C. Erismann & A. Schniewind (éd. ),
Compléments de substance. Études sur les propriétés accidentelles, Paris, Vrin
(Problèmes et controverses), 2008, p. 51-66; cf. en outre J. Brumberg-Chaumont,
Sémantiques anciennes et médiévales du nom propre, tese (EPHE), maio 2004.
23. Entrada no 585: upostasis, linhas 1-4 (citado por Barnes, ibid. ).
24. Esta teoria é evocada por Plotino nas diversas passagens das Enéadas, da qual
VI, III, 8, 30-34, onde ele explica que uma substância sensível pode bem ser
composta de não-substâncias, uma vez que ela não é ela mesma verdadeiramente
substância, mas unicamente imitação das substâncias verdadeiras.

26 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012


O universal e o singular

T3: um indivíduo é uma reunião de qualidades – teoria atribuí-


da a Porfírio no Isagoge, e criticada por Dexippe25.
Para J. Barnes, nenhuma destas teorias é a de Porfírio e a própria
ideia que elas operam é absurda:
… how could Socrates, a thing of flesh and blood, be made or
constituted by a set of qualities or accidents? If you add snub-
-nosedness to baldness you get a complex quality – you do not
get a chap26.
Na leitura barnesiana o que sustenta Porfírio é, portanto, so-
mente TP: “A term is individual if and only if it corresponds to
the conjunction of a number of expressions, each of which holds
of some one and the same item”27. Confirmando o adágio segundo
o qual a autoridade tem um nariz de cera que se pode entortar à
vontade em todos os sentidos, os medievais tiraram de Porfírio todas
as teorias possíveis, incluindo diversas teorias ontológicas – e não
somente semânticas – da individualização. Se, como escreve Porfí-
rio, “não são essas diferenças específicas que distinguem Sócrates de
Platão, mas um concurso de qualidades que é próprio” a Sócrates,
“uma combinação particular de qualidades” (idiotéti de sundromés
poiotétón)28, todas as variações sobre o nome próprio, os predicados

25. Sobre esse texto e sua visão antiporfiriana, cf. P. Hadot, Porphyre et Victori-
nus, II, Paris, Etudes Augustiniennes, 1968, p. 99, n. 4 e R. Chiaradonna, “La
teoria dell’individuo in Porfirio e l’idiôs poion stoico”, Elenchos, XXI (2000), p.
303-331 (esp. p. 317-328).
26. J. Barnes, Porphyry…, p. 345.
27. J. Barnes, Porphyry…, p. 151.
28. In Cat., Busse, p. 129, 9-10; Bodéüs, p. 427, n. 1: “A diferença entre as subs-
tâncias primeiras não é portanto em procurar em uma qualidade essencial, comum
a vários, mas [...] em um “concurso de qualidades”, aparentemente acidentais. A
palavra “qualidade”, na ocorrência não deve ser tomada no senso estrito, porque
as propriedades visadas incluem outras determinações acidentais (o tamanho etc.).
Esta visão das coisas, ainda que não aristotélica, permite certamente enunciar um
princípio de individualização na ordem substancial, onde os indivíduos são pre-
cisamente sujeitos de múltiplas propriedades não essenciais; mas como explicar a

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012 27


Alain de Libera

individuais, o concurso de qualidades, a qualidade própria, a idiós


poion estóica foram experimentadas desde Boécio à Abelardo sobre
o tema porfiriano. Grosso modo, pode-se tecer uma trama dupla:
uma tese boeciana na qual cada indivíduo é uma substância distin-
guida por uma qualidade própria e a tese porfiriana, que vê ali uma
coleção de propriedades, entre estes dois pólos, correspondendo ao
que Armstrong chamaria substance-attribute view et bundle-of-tropes
view29, um que conserva a substância, o outro que a reúne em uma
síndrome de qualidades, um feixe de tropes ou de particulares abstra-
tos (esta humanidade, esta brancura), o conflito é particularmente
agudo a partir do século XII30. Certas teorias nos aparecem de um

individualidade das realidades não substanciais? Como tal branco, por exemplo,
difere-se de tal outro branco?” A moderna teoria dos tropes ou “particulares abs-
tratos” é uma tentativa de resposta a esta questão. Para a introdução dos tropes na
filosofia contemporânea, cf. D. C. Williams, “On the Elements of Being”, Review
of Metaphysics, 7 (1953), p. 3-18 et 171-192.
29. Sobre os tropos na Idade Média, cf. C. Martin, “The Logic of the Nominales,
or, The Rise and Fall of Impossible Positio”, Vivarium, 30 (1992), p. 110-126; J.
Marenbon, The Philosophy of Peter Abelard, Cambridge, CUP, 1997, p.119-30;
A. de Libera, “Des accidents aux tropes. Pierre Abélard”, Revue de métaphysique
et de morale, 4 (2002), p.509-530; La Référence vide. Théories de la proposition,
Paris; PUF, 2002, p. 122-126 et 269-297; “Aliquid, aliqua, aliqualiter. Signifiable
complexe et théorie des tropes aux XIVe siècle”, in Paul J. J. M. Bakker (éd. ), Che-
mins de la pensée médiévale. Études offertes à Zénon Kaluza, Turnhout, Brepols,
2002, p. 27-45; J. Marenbon, “Was Abelard a Trope Theorist?”, in C. Erismann
& A. Schniewind (éd. ), Compléments de substance…, p. 85-101. Sur les tropes,
cf. D. M. Armstrong, Universals…, p. 114-115, 127-188 et 136; K. Mulligan, P.
Simons & B. Smith, “Truth-makers”, Philosophy and PhenomenoLogical Rese-
arch, 44 (1984), p. 287-321; K. Campbell, Abstract Particulars, Oxford – Cam-
bridge (Mass. ), Blackwell, 1990; P. Simons, “Particulars in Particular Clothing:
three trope theories of substance”, Philosophy and Phenomenological Research,
54 (1994), p. 553-575; A. Chrudzimski, “Two Concepts of Trope”, Grazer Philo-
sophische Studien, 64 (2002), p. 137-155.
30. Um extraordinário esclarecimento sobre as teorias realistas do século XII em
J. Brumberg-Chaumont, “Le problème du substrat des accidents constitutifs dans
les commentaires à l’Isagoge d’Abélard et du Pseudo-Raban (P3)”, in C. Erismann
& A. Schniewind (éd. ), Compléments de substance…, p. 67-84 (com p.82 e

28 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012


O universal e o singular

nominalismo deflacionista radical, como aquela que sustenta que


ter uma qualidade própria é ser “chamado por um nome próprio”, a
que se objeta que se a qualidade própria se remetesse ao nome, um
sujeito X que não tem nome não teria qualidade própria e, recipro-
camente que se ele tivesse vários nomes, ele teria tantas qualidades,
quanto nomes, o que é absurdo31.
Primo si nomen est qualitas tunc quando iste caruit nomine, ca-
ruit propria qualitate. Secundo, qui ex necessitate tenendum est
quod iste tot habet qualitates quot habent nomina …32
Outra teoria explica que a qualidade própria de um sujeito indi-
vidual é precisamente a “coleção de todas as suas propriedades”. Seu
defeito é manifesto: como escreve Petrus Hispanicus Non-Papa e o
anônimo ‘Strenuum negationem’, quando se identifica a quantidade
própria de um indivíduo com uma coleção de propriedades aciden-
tais, ela não será estável, mas em perpétua mutação – ou variação33:
“não será a mesma qualidade que será significada hoje e ontem” por
um mesmo nome próprio (se encontrará o mesmo argumento em
Abelardo)34; além disso, um nome próprio com o ‘Sócrates’, “sig-

83 dois esquemas representando as relações internas da Árvore de Porfírio nas


duas principais teorias). No momento se dispõe de uma edição crítica das qua-
tro versões de P3, da qual a primeira é atribuída ao grande adversário realista de
Abelardo: Guillaume de Champeaux. Cf. Y. Iwakuma, “Pseudo-Rabanus super
Porphyrium (P3)”, Archives d’histoire doctrinale et littéraire du Moyen Âge, 75
(2008), p. 43-196.
31. E não se deve ao fato de ter tantos nomes quantas qualidades próprias. Sobre
a polionimia entre os canaques, consultaremos, a partir deste ponto de vista o
grande livro de Maurice Leenhardt: Do Kamo. La personne et le mythe dans le
monde mélanésien, 1947.
32. Cf. R. W. Hunt, “‘Absoluta’. The ‘Summa’ of Petrus Hispanus on Priscianus
‘Minor’”, Historiographia Linguistica, II/ 1 (1975), p. 110.
33. Cf. R. W. Hunt, “‘Absoluta’…”, p. 111: “Quibus illud obviat quod variacio-
nem sequitur variacio proprie qualitatis”.
34. O texto deste Pedro de Espanha, distinto do Petrus Hispanus Papa (o papa
João XXI), ao qual se atribuiu por miuto tempo o principal manual de lógica do

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012 29


Alain de Libera

nificando a coleção de várias propriedades sem significar nenhuma


delas em particular, será semelhante a um nome coletivo” (isto é,
um nome como ‘popolus’ ou ‘exercitus’)35. Para outros autores, dis-
cutidos por Petrus Hispanicus, em sua suma de gramática, um nome
próprio como ‘Sócrates’ ou ‘Platão’ significa “certa singularidade da
essência” isto é, “uma qualidade singular substancial, da qual Só-
crates conclui que é Sócrates e Platão, que é Platão”, qualidade que
se pode nomear (nuncupari) de um nome forjado de ‘platonidade’”
para Platão ou de ‘socratidade” para Sócrates, “conforme Boécio”36.
Com efeito, é Boécio que forja as palavras platonitas e socratitas
para distinguir o universal do singular37. Comentando o Peri Herme-

século XIII as Summulae Logicales ou Tractatus, foi editado por C. H. Kneepkens


no volume III de Het iudicium constructionis, Nijmegen (diss.), 1987. Sobre sua
influencia na Idade Média, ver, do mesmo, “The Absoluta Cuiuslibet attributed
to Petrus Hispanus”, in I. Angelelli & P. Pérez-Ilzarbe (ed. ), Medieval and Re-
naissance Logic in Spain, Hildesheim, Olms (Philosophische Texte und Studien,
band 54), 2000, p. 373-403. Os paralelos entre Strenuum Negationem e Absoluta
cuiuslibet são traçados por R. W. Hunt, “‘Absoluta’…”, p. 110-111.
35. Absoluta cuiuslibet, ed. C. H. Kneepkens, p. 26: “Ad quod dicemus quod
mutatis eius proprietatibus mutata erit eius propria qualitas nec eadem hodie sig-
nificabit quam heri. Et si hoc nomen ‘Socrates’ pluriorum significat collectionem
ita quod nullum illorum, videbitur esse collectiuum.”
36. Absoluta cuiuslibet, ibid.: “Tertia sententia est quod propria qualitas suppo-
siti sit singularitas essentie quedam, scilicet singularis qualitas et substantialis, a
qua socrates habet ut sit socrates, et Plato ut sit Plato, que ficto vocabulo, ut ait
Boethius, platonitas potest nuncupari. Hec intelligi potest, etsi non sit proprium
nomen. Nominari autem non potest nisi ficto nomine. Cuius consideratio cum
propria sit grammaticorum, transferunt quidam ad dialecticam, sed non bene”.
37. Platonitas é mais difundida que socratitas. Os dois termos tiveram concorren-
tes infelizes. Os dois primeiros – lentulitas et appietas – foram lançados por Cí-
cero, para serem logo esquecidos – a não ser em uma retomada, tão tardia quanto
isolada, em Thomas Hobbes. No século XII Richard de Saint-Victor introduz a
danielitas, que terá ainda menos sucesso. Cf. M. Tulli Ciceronis Epistularum ad
Familiares Liber Tertius. Ad Ap. Claudium Pulchrum, 3. 7, § 5: “Illud idem Pau-
sania dicebat te dixisse:” quidni? Appius Lentulo, Lentulus Ampio processit ob-
viam, Cicero Appio noluit?” quaeso, etiamne tu has ineptias, homo mea sententia

30 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012


O universal e o singular

neias 7, 17a38-b3, ele explica (1) que certas “qualidades”, como (a)
humanidade, que são “comunicadas a várias [coisas]” apresentam-se
ao mesmo tempo ‘como um todo para cada um e “como um todo
para todas [tomadas em particular, mas “a todos/as aqueles/aquelas
que participam da definição da humanidade”. Por outro lado, (3)
um nome como ‘Platão’ remete o espírito “a uma só pessoa e a uma
substância particular”, porque a proprietas (característica) de Platão
é uma “qualidade singular, a platonidade (platonitas), incomunicável
a qualquer outra substância”: “Plato enim unam ac definitam subs-
tantiam proprietatemque demonstrat quae convenire in alium non
potest” (Platão, com efeito, mostra uma só substancia e propriedade
bem definida que não se pode encontrar em outro”).
A tese de Boécio é simples: um termo universal tomado parti-
cularmente, como homo em aliquis homo, não tem relação com o
um termo singular, como Plato. Tomado particularmente o univer-
sal continua o universal. Platão, ao contrário,  “não será jamais um
universal”, porque “ele indica uma substância definida e uma pro-
prietas” que não se pode encontrar senão em Platão. Vários homens
podem portanto receber o nome de ‘Platão’ por “imposição”, isso
não faz deste nome um universal. Neste caso, o nome é “comum” a
vários, mas “a propriedade ou natureza” que ele designa, a saber, a de
Platão-o-mestre-de-Sócrates, não o é. A humanidade é um universal,
a platonidade não38. A oposição aqui introduzida é claramente on-

summa prudentia, multa etiam doctrina, plurimo rerum usu, addo urbanitatem,
quae est virtus, ut Stoici rectissime putant? ullam Appietatem aut Lentulitatem
valere apud me plus quam ornamenta virtutis existimas?”. Th. Hobbes (que teve
que procurar muito!) retoma dos dois em seus Elements of philosophy, Part 1. Of
logic, chap. 3, Of proposition.
38. Boécio, In Librum Aristotelis Peri Hermeneias II, ed. C. Meiser, Leipzig,
1880, p. 136, 1-137, 25: “Alia est enim qualitas singularis, ut Platonis uel Socratis,
alia est quae communicata cum pluribus totam se singulis et omnibus praebet, ut
est ipsa humanitas. est enim quaedam huiusmodi qualitas, quae et in singulis tota
sit et in omnibus tota. Quotienscumque enim aliquid tale animo speculamur; non
in unam quamcumque personam per nomen hoc mentis cogitatione deducimur,

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Alain de Libera

tológica: de um lado, a humanitas, “a qualidade comunicada a vários


que se mostra por inteiro em cada um e por inteiro em todos” os ho-
mens, qualidade cujo nome (nomen) não leva a ideia de uma pessoa
particular, mas a todos os que participam de sua definição (i.e. a de
humanidade); de outro, a qualidade “incomunicável” a uma plurali-
dade não mais que à “uma outra subsistência”, a qualidade singular,
que é “própria a um só”, a de Platão. Reconhece-se aqui o tema da
comunicação dos idiomas – tão importante em teologia quanto em
filosofia. É através deste idioma incomunicável que Boécio forja a
palavra platonitas, a fim de designar o que “pertence a um só ho-
mem, e não qualquer um, mas somente a Platão”. Enquanto a pa-
lavra “humanidade” contém “a humanidade de Platão e de todos os
outros homens, quaisquer que sejam”, a palavra “platonidade” con-
vém apenas a um, Platão. É o que faz com que “ao enunciado da pa-
lavra (vocabulum) ‘Platão’ o ouvinte pense numa só pessoa e em uma
substância particular”, mas não quando ele ouve a palavra ‘homem’.
Na distinção ontológica entre dois tipos de qualidade nas coisas – as
comunicáveis e as incomunicáveis –, Boécio faz portanto correspon-

sed in omnes eos quicumque humanitatis definitione participant. unde fit ut haec
quidem sit communis omnibus, illa uero prior incommunicabilis quidem cunc-
tis, uni tamen propria. nam si nomen fingere liceret, illam singularem quandam
qualitatem et incommunicabilem alicui alii subsistentiae suo ficto nomine nun-
cuparem, ut clarior fieret forma propositi. age enim incommunicabilis Platonis
illa proprietas Platonitas appelletur. eo enim modo qualitatem hanc Platonitatem
ficto uocabulo nuncupare possimus, quomodo hominis qualitatem dicimus hu-
manitatem. haec ergo Platonitas solius unius est hominis et hoc non cuiuslibet sed
solius Platonis, humanitas uero et Platonis et caeterorum quicumque hoc uoca-
bulo continentur. unde fit ut, quoniam Platonitas in unum conuenit Platonem,
audientis animus Platonis uocabulum ad unam personam unamque particularem
substantiam referat; cum autem audit hominem, ad plures quosque intellectum
referat quoscumque humanitate contineri nouit. atque ideo quoniam humanitas
et omnibus hominibus communis est et in singulis tota est (aequaliter enim cuncti
homines retinent humanitatem sicut unus homo: si enim id ita non esset, nu-
mquam specialis hominis definitio particularis hominis substantiae conueniret):
quoniam igitur haec ita sunt, idcirco homo quidem dicitur uniuersale quiddam,
ipsa uero Platonitas et Plato particulare.”

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O universal e o singular

der uma distinção entre dois tipos de termos ou substantivos, os uni-


versais (comuns) e os singulares (próprios). Como define a qualidade
incomunicável e singular? Por quatro características que atuam nos
dois níveis ontológico e lingüístico: 1º. Ela convém apenas a uma
única substância singular e particular; 2º. Ela é própria apenas a
um só e não pertence senão a um único indivíduo determinado; 3º.
Ela é particular como o próprio sujeito é particular (a platonidade é
particular como Platão é particular); 4º. Os nomes correspondentes
têm as mesmas características: ‘Platão e platonidade’ são particulares
como Platão e a platonidade são particulares. A análise ontológica e
a análise semântica (ou lógica) andam portanto claramente juntas: é
o par Platão / ‘Platão’ que é singular, i.e., incomunicável / impredicá-
vel com / de vários ou de um outro (contrariamente ao par homem /
‘homem’ que é universal, i.e. comunicável comunicável / predicável
com / de muitos). Este conjunto de tese sobre a ontologia do indi-
víduo que evidencia um componente “linguístico” integra a teoria
lingüística porfiriana da imposição dos nomes. À objeção de que o
nome ‘Platão’ poderia ser imposto a vários indivíduos – e portanto
deixar de pensar em um só indivíduo caracterizado por uma proprie-
dade ou qualidade determinada (a platonidade) –, Boécio responde
que um nome pode parecer como “comum conforme o vocábulo”
(uma expressão que Abelardo virá a explorar), mas a propriedade
de Platão, “a que era propriedade ou natureza deste Platão discípulo
de Sócrates, não convirá” jamais a um outro indivíduo, “mesmo se
ele for chamado pelo mesmo vocábulo”. Como distinguir entre este
homem e Platão, ao se supor que um indivíduo é constituído por
um simples feixe de qualidades ou propriedades? Uma teoria realista,
criticada por Abelardo, apresenta uma visão interessante, que consis-
te em duas afirmações:
1) esse homem não é produzido pelo conjunto de suas proprie-
dades acidentais, Sócrates, ao contrário o é;
2) Sócrates é produzido pelo conjunto de suas propriedades aci-
dentais não enquanto homem mas enquanto Sócrates.

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Alain de Libera

Para os partidários desta teoria, a expressão hic homo (“este ho-


mem”), dito de outra forma um universal afetado por um determi-
nante ou demonstrativo, não nota nada além do homem tomado em
sua essência pessoal (hominem in hac personali essentia), enquanto o
nome próprio ‘Sócrates’ é designador de acidente, designativum aci-
dentis. A teoria comporta três versões, que se distinguem conforme
‘Sócrates’ seja considerado como designador:
1 todos os acidentes de Sócrates, separáveis ou inseparáveis;
2 somente os acidentes inseparáveis de Sócrates;
3 uma forma própria, chamada “socracidade”.
A primeira versão é a teoria discutida pelo anônimo Strenuum
negationem. Abelardo precisa o que os seus partidários respondem à
argumentação da variação. Todos os acidentes de Sócrates, separáveis
ou inseparáveis, estando compreendidos no nome ‘Sócrates’, sua tese
é de que este nome foi imposto de tal modo que, a todo instante em
que é proferido, ‘Sócrates’ significa todos os acidentes que Sócrates
possui neste momento preciso. Pode-se aproximar esta teoria da noção
aristotélica de “unidade / entidade acidental” ou de kooky object (no
sentido de Gareth Matthews)39. Ela me parece estar presente nas dis-
cussões contemporâneas sobre a interpretação da pessoa em termos
de “complexos de tropos”40. Em qual senso pode-se dizer que uma

39. A saber a entidade/unidade accidental que é, por exemplo, Sócrates-sentado


“that comes into existence when Socrates sits down and which passes away when
Socrates ceases to be seated”. Cf. G. Matthews, “Accidental Unities”, in M. Scho-
field, M. Nussbaum (ed. ), Language and Logos, Cambridge, 1982, p. 251-262.
40. Discussões que prolongam os debates sobre a definiçao lockeniana da pessoa
fundada sobre a consciência e a memória (“a co-ciência faz a própria pessoa”). Cf.
K. Trettin, “Persons and Other Trope Complexes. Reflections on Ontology and
Normativity”, e-Journal Philosophie der Psychologie, juni 2005, p. 8: “On this
scenario, Mary [um indivíduo constituído de tropes] is changing all the time,
physically and mentally, in virtue of gaining or losing individual properties (tro-
pes). In which sense then – if in any sense at all – can one speak about Mary’s
personal identity? On the trope view, Mary obviously does not have a once and

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O universal e o singular

pessoa, considerada como um trope-complex – que estes tropos sejam


puramente físicos, físico-mentais ou puramente mentais – continua
a mesma pessoa ao longo do tempo, se ela não cessa de adquirir e
de perder tropos ou propriedades individuais? A teoria criticada por
Abelardo se comunica claramente com o problema da identidade
diacrônica. Mas cada uma de suas teses abre um dossiê diferente:
(1) a significação de ‘Sócrates’ varia frequentemente, conforme a
variação dos acidentes de Sócrates41.
(2) ‘socracidade’ designa a coleção total dos acidentes de Sócrates.
Aceitar a dupla variação ontológica e lingüística de Sócrates /
‘Sócrates’, é fazer de Sócrates um “complexo de tropos”, de ‘Sócrates’
um nomen collectivum e embarcar os dois no barco de Teseu. Fazer da
qualidade própria de um indivíduo a coleção total de seus acidentes,
é esboçar a tese leibniziana que afirma que todo indivíduo tem uma
noção completa conhecida antecipadamente por Deus, que corres-

for all determined personal identity. Instead she is something like a plurality or ag-
gregate of ‘identities’, which are temporally determined by the actual tropes which
constitute the complex that is identical with ‘her’. Whenever a trope is gained, or
a trope is lost (which is due to a certain sub-relation of ontological dependency –
namely – causality), Mary changes her personal identity. All that she is depends on
the tropes which constitute her, including eventually the tropes she memorises or
anticipates.” Sobre este ponto, cf. A. de Libera, Archéologie du sujet, II, La Quête
de l’identité, Paris, Vrin (Bibliothèque d’histoire de la philosophie), 2008.
41. Na teoria discutida por Abelardo, os acidentes têm quase o mesmo status
que uma sombra individual, são, de alguma forma, propriedades intermitentes.
O problema é que Sócrates não é um objeto intermitente, e que ele é, além disso,
um objeto completo. A particularidade desta teoria é de constituir, sob a chefia da
“socracidade” o objeto completo Sócrates a partir de um conjunto de propriedades
que, sendo todas acidentais, são todas intermitentes ou suscetíveis de intermi-
tências. Neste sentido, talvez não baste dizer que a socratidade é um “indivíduo
composto”. A verdadeira questão é saber se o próprio Sócrates não se torna, por
sua vez, um objeto intermitente. O que resta, de fato, de Sócrates, se a substancia-
lidade se reduz, aliás, à essencialidade de uma só essência material, substância una
e absoluta que a cada instante acidentam complexos individuais de propriedades
intermitentes (a socracidade, a planonidade etc.)?

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Alain de Libera

ponde a “o que cada um chama de ‘si’”. Espera-se que o ponto (2) su-
prima o escândalo ontológico / linguístico introduzido por (1). A noção
da coleção total mereceria portanto uma investigação a parte tendo
em vista este papel e...sua posteridade: um fio tênue liga o indivíduo
segundo esta teoria leibniziana do individuum entendido como su-
jeito que possui uma noção individual completamente determinada,
capaz de fornecer por análise a razão de todos os seus atributos42.
Está na hora de concluir. Dizíamos ao começar: “universal e singu-
lar são contrários, mesmo contraditórios. Uma coisa, digamos uma
substância, é universal ou singular. Ela não pode ser os dois ao mes-
mo tempo. O particular não passa pelo universal. O universal não
passa pelo particular”. Um simples sobrevôo da literatura filosófica
do século XII mostra totalmente o contrário. Em razão disso, a fonte
principal de todas as discussões da Alta Idade Média sobre os uni-
versais, Boécio, sustenta uma teoria do “sujeito único” do particular
e do universal (PL 64, 85C4-D4), afirmando que é uma mesma coisa
x particular e universal, esta própria teoria completada por uma te-
oria do “sujeito único” da sensação e da intelecção, que afirma que a
mesma coisa x é ao mesmo tempo o sujeito da sensação, que percebe
x com as condições sensíveis que fazem de x uma coisa particular (i.e.
um x: x1 ou x2 ou x3...ou xn) e o sujeito do pensamento que percebe
x sem estas condições, i.e. como o que é predicável de todos os ‘x’.
Uma das duas teorias criticadas no De Generibus et Speciebus
suscita a ideia de sujeito único até a afirmação de que não há es-
sências universais, e que os indivíduos diversamente considerados
são eles próprios as espécies, os gêneros subordinados e os gêneros
mais gerais. Esta teoria, conhecida sob o título de “segunda teoria da
coleção”, atribuída hoje a Gauthier de Mortagne († 1174), é aspe-
ramente discutida por Abelardo. Jean de Salisbury descreve assim a
tese dos partidários de Gauthier:

42. Cf. G. W. Leibniz, Lettre à Arnaud, 23 março 1690, G II, p. 136.

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O universal e o singular

Partiuntur [... ] status43, duce Gautero de Mauritania, et Platonem


in eo quod Plato dicunt individuum, in eo quod homo, speciem,
in eo quod animal, genus, sed subalternum, in eo quod substantia,
generalissimum.
A substância, sendo definida como gênero supremo na Árvore de
Porfírio, a divisão real do gênero substância conforme uma ordem
descendente fornece os momentos lógicos da inserção do indivíduo
na ordem ascendente das denominações. Deste ponto de vista, como
substância, todo indivíduo é gênero supremo. Isso nos leva à segunda
tese sobre o universal de Alain Badiou: “todo universal é singular, ou
é uma singularidade”. Eu disse ao começar que esta afirmação estava
bem atestada na Idade Média. Mas quais são as teses que correspon-
dem em realidade a esta formulação? Eu me contentaria em evocar
aqui duas, bem diferentes uma da outra, para não dizer opostas.
A primeira foi fornecida, entre os séculos XI e XII, pelo tólogo
Odon de Cambrai44 no seu tratado sobre o pecado original: “Est […]
omnis essentia singularis, tam individua quam universalis”, “Toda
essência é singular, seja ela individual ou universal”45. Como? Tanto
a essência individual quanto a essência universal têm uma singularida-

43. Os partidários de Gauthier “dividem o status”, dito de outro modo – e litera-


lemente – os estados de coisa (a Sachlage ou Sachverhalt de Husserl): Platão en-
quanto Platão tem status: indivíduo; como homem: espécie; como animal: gênero
subordinado; como substância: gênero supremo (generalíssimo). Abelardo utiliza
igualmente a palavra status, que designa nele não o Homem (ou homem comum
de Porfírio, depois dos realistas), mas o esse hominem. Sobre tudo isso, ver o capí-
tulo sobre Abelardo de L’Art des généralités.
44. Sobre tudo isso, cf. C. Erismann, “Singularitas. Éléments pour l’histoire du
concept: la contribution d’Odon de Cambrai” , in J. Meirinhos & O. Weijers
(ed.), Florilegium medievale. Études offertes à Jacqueline Hamesse à l’occasion de
son éméritat, Louvain-la-Neuve, 2009, s. p. Sur Odon de Cambrai (aliás de Tour-
nai), cf. I. M. Resnick, “Odo of Tournai, the Phoenix, and the Problem of Univer-
sals”, Journal of the History of Philosophy, Volume 35/ 3, July 1997, p. 355-374.
45. O texto foi publicado na PL 160, col. 1071-1102. Sobre o problema, cf. I. M.
Resnick, On Original Sin and a Disputation with the Jew, Leo, Concerning the
Advent of Christ, the Son of God, Philadelphie, 1994.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012 37


Alain de Libera

de que lhes é própria pela qual é inspecionada separadamente das ou-


tras: “utpote habens essentiae suae singularitatem qua sigillatim ins-
picitur ab aliis” -  tese da platonidade discutida por Petrus Hispanus
Non-Papa. De onde, temos a regra que estipula que “todo indivíduo
é singular, mas nem todo singular é individual (“Et sic individuum
omne singulare; non autem omne singulare individuum”). Nem
todo singular é individual é uma tese, à primeira vista, mais descon-
certante do que todo universal é singular. Ela não é menos sensata.
Poder ser inspecionado separadamente, sigillatim, isto é, discernido
de outros, de todos os outros, eis o que faz o singular: “Singular se
diz em verdade do que se deixa discernir de todos os outros por uma
certa propriedade” (“Singulare vero dicitur, quod aliqua proprietate
discernitur ab omnibus aliis”). Esta distinção, esta discernibilidade,
essa discrição caracteriza tudo o que é, tudo o que é real, tudo o que
é alguma coisa; não se a encontra somente nos indivíduos, mas nos
universais: “Haec autem uniuscuiusque rei discretio ab aliis omni-
bus, non tantum in individuis est, sed et in universalibus”. Com
efeito, todos os universais têm propriedades que os distinguem dos
outros, certamente não por ou para a sensação, mas por ou para a
razão: “Habent enim et universalia suas proprietates, quibus etsi non
sensu ratione tamen discernuntur ab aliis”. “A razão de fato percebe”
ou “ela também compreende a natureza dos universais pela força
de sua sagacidade, e ela os distingue uns dos outros e os distingue
dos indivíduos”, o que faz com que, “ainda que sejam comuns, os
universais tenha certa singularidade de ou em sua essência, como os
indivíduos”46. Uma essência universal singular não é um absurdo.
Ma espécie é universal enquanto for predicada de vários indivíduos
e singular enquanto se distinguir de todas as outras espécies subor-
dinadas ao mesmo gênero e, além disso, de todo o resto, mesmo que
se trate de espécies subordinadas a todos os outros gêneros, gêneros
eles mesmos e indivíduos: ab omnibus aliis.

46. “Ratio namque naturam universalium vi suae sagacitatis et capit, et ab invicem


et ab individuis discernit, ut, quamvis sint communia suae tamen essentiae singu-
laritatem quamdam habeant, sicut individua.”

38 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012


O universal e o singular

Completamente diferente é, no século XIV, a tese de Guilaume


d’Ockham, que também sustenta que o universal é singular. Mais
exatamente, Ockham explica que singular se toma em dois sentidos:
primeiramente por tudo o que é um e não vários; e neste caso, se
sustentamos que um universal é uma certa qualidade ou uma afec-
ção do espírito, predicável de vários, como signo, todo universal é
verdadeiramente e realmente singular – porque da mesma forma que
todo signo vocal comum a uma pluralidade de referentes por insti-
tuição é verdadeira e realmente um em número, toda intenção, todo
conceito, da alma, que significa muitas coisas extramentais é real e
verdadeiramente singular e numericamente um, porque é uma coisa
e não várias coisas, mesmo se significa muitas coisas47. Se, ao contrá-
rio, singular é tomado por tudo o que é um e não vários, e também
não é destinado a ser o signo de muitas coisas, nenhum universal é
singular, “já que todo universal é”, isto é, não é nada senão o que é
“naturalmente apto a ser o signo de várias coisas e a ser predicado de
várias coisas”. Disso Ockham infere que nada é universal, se, como
muitos o fazem, entende-se  por universal qualquer coisa que não é
numericamente um48. Esta tese se toma literalmente: nada é univer-

47. “Est autem primo sciendum quod ‘singulare’ dupliciter accipitur. Uno modo
hoc nomen ‘singulare’ significat omne illud quod est unum et non plura. Et isto
modo tenentes quod uniuersale est quaedam qualitas mentis praedicabilis de pluri-
bus, non tamen pro se sed pro illis pluribus, dicere habent quod quodlibet uniuersa-
le est uere et realiter singulare: quia sicut quaelibet uox, quantumcumque communis
per institutionem, est uere et realiter singularis et una numero quia est una et non
plures, ita intentio animae, significans plures res extra, est uere et realiter singularis et
una numero, quia est una et non plures res, quamuis significet plures res”.
48. Guillaume d’Ockham, Summa logicae (Suma sobre a lógica), trad. J. Biard,
Mauvezin, Edições T. E. R, 1988, p. 50: “Aliter accipitur hoc nomen ‘singulare’
pro omni illo quod est unum et non plura, nec est natum esse signum plurium. Et
sic accipiendo ‘singulare’ nullum uniuersale est singulare, quia quodlibet uniuer-
sale natum est esse signum plurium et natum est praedicari de pluribus. Unde
uocando uniuersale aliquid quod non est unum numero, – quam acceptionem
multi attribuunt uniuersali –, dico quod nihil est uniuersale nisi forte abuteris isto
uocabulo, dicendo populum esse unum uniuersale, quia non est unum sed multa;
sed illud puerile esset”.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012 39


Alain de Libera

sal significa nada existe que não seja numericamente um – o que torna
a dizer que tudo o que é é singular. Tese que se verifica para o uni-
versal que existe: todo universal é uma coisa singular: somente existe
universal semântico, por significação, no sentido preciso de que o
universal é um signo, um signo de vários: “Dicendum est igitur quod
quodlibet uniuersale est una res singularis, et ideo non est uniuersale
nisi per significationem, quia est signum plurium”.
Esta teoria, Ockham a situa sob a autoridade de um filósofo. Não
Aristóteles, nem Boécio. Mas Avicena. Uma forma mental, uma for-
ma na alma, está ligada a uma multiplicidade, neste sentido ela é um
universal, porque o universal é uma intenção no intelecto, cuja com-
paração, isto é, a relação a seus “relata”, não varia, qualquer que seja o
que consideremos entre eles”; uma tal forma, que é universal compara-
da aos seus indivíduos, é individual quando à alma singular onde está
impressa, uma vez que faz parte das formas imanentes ao intelecto49.
A tese de Avicena é assim apresentada por Ockham como estri-
tamente equivalente à sua. O que o filósofo quer dizer, que se diz na 
época “árabe”, é que o universal é uma “intenção singular da alma”,
naturalmente apta a ser predicada de muitos, e que do fato de ela
ser naturalmente apta a ser predicada de muitos ela é dita universal,
enquanto que do fato de ser uma forma existente realmente no inte-
lecto ela é dita singular. E é assim, portanto, que “singular!” dito no
primeiro sentido se predica do universal, mas não no segundo.
Vult dicere quod uniuersale est una intentio singularis ipsius ani-
mae, nata praedicari de pluribus, ita quod propter hoc quod est
nata praedicari de pluribus, non pro se sed pro illis pluribus, ipsa
dicitur uniuersalis; propter hoc autem quod est una forma, exsis-

49. « Et hoc est quod dicit Auicenna, V Metaphysicae: “Una forma apud intel-
lectum est relata ad multitudinem, et secundum hunc respectum est uniuersa-
le, quoniam ipsum est intentio in intellectu, cuius comparatio non uariatur ad
quodcumque acceperis”. Et sequitur: “Haec forma, quamuis in comparatione
indiuiduorum sit uniuersalis, tamen in comparatione animae singularis, in qua
imprimitur, est indiuidua. Ipsa enim est una ex formis quae sunt in intellectu”.

40 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012


O universal e o singular

tens realiter in intellectu, dicitur singularis. Et ita ‘singulare’ pri-


mo modo dictum praedicatur de uniuersali, non tamen secundo
modo dictum50.
Haveria ainda muito a dizer. A tese de Ockham foi, de fato,
apaixonadamente discutida. Com efeito, afirmar que o universal
é singular torna a dizer, viu-se, que nada é universal. Isto talvez
suprima um problema, o do universal, mas isso não resolve o do
singular. Mais difícil que o problema dos universais, que ele não
tratou no Isagoge, é o problema que Porfírio nos legou ao definir o
indivíduo. É filosoficamente razoável sustentar, com uma parte da
tradição porfiroboeciana, que o indivíduo é essencialmente consti-
tuído como indivíduo por uma coleção de propriedades acidentais
que, além disso, seriam significadas por um nome como ‘Sócrates’
ou ‘Platão’? Podemo-nos satisfazer com uma tese como a de Abelar-
do, para quem dizer que o indivíduo é constituído de propriedades
equivale somente a dizer “que ele tem naturalmente tantos nomes
de propriedades quanto nomes que não podem se adaptar a ne-
nhum outro simultaneamente por predicação” (“habere naturaliter

50. E Ockham prossegue: “… ad modum quo dicimus quod sol est causa uniuer-
salis, et tamen uere est res particularis et singularis, et per consequens uere est
causa singularis et particularis. Dicitur enim sol causa uniuersalis, quia est causa
plurium, scilicet omnium istorum inferiorum generabilium et corruptibilium. Di-
citur autem causa particularis, quia est una causa et non plures causae. Sic intentio
animae dicitur uniuersalis, quia est signum praedicabile de pluribus; et dicitur
etiam singularis, quia est una res et non plures res”. O universal é portanto duplo:
natural e convencional, mas, nos dois casos, trata-se de um símbolo. “Verumta-
men sciendum quod uniuersale duplex est. Quoddam est uniuersale naturaliter,
quod scilicet naturaliter est signum praedicabile de pluribus, ad modum, propor-
tionaliter, quo fumus naturaliter significat ignem et gemitus infirmi dolorem et
risus interiorem laetitiam. Et tale uniuersale non est nisi intentio animae, ita quod
nulla substantia extra animam nec aliquod accidens extra animam est tale uniuer-
sale. Et de tali uniuersali loquar in sequentibus capitulis. Aliud est uniuersale per
uoluntariam institutionem. Et sic uox prolata, quae est uere una qualitas numero,
est uniuersalis, quia scilicet est signum uoluntarie institutum ad significandum
plura. Unde sicut uox dicitur communis, ita potest dici uniuersalis; sed hoc non
habet ex natura rei sed ex placito instituentium tantum”.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012 41


Alain de Libera

tot proprietatum nomina, quae nulli alii simul per praedicationem


aptari queant”) e que isso basta para o distinguir dos outros? Parece-
-me que a questão não está bem distinta. Dito de outro modo: que
se possa ainda argumentar a favor ou contra uma tese sustentando
que a diferenciação entre indivíduos se faz “do ponto de vista das no-
minações, não quanto ao da natureza real” (natura rerum). Filosofia
e história da filosofia aqui se encontram.

42 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 13-42, jul./dez. 2012


Étienne Gilson e a
circularidade da metafísica
tomista
Sergio de Souza Salles*

Resumo: A demonstração filosófica da noção tomista de ser


tem sido objeto de controvérsia entre os estudiosos de Tomás de
Aquino. Dentre os que se opõem à possibilidade da demonstração
do ser como ato de ser (actus essendi), encontra-se Étienne Gilson
(1884-1978). Neste artigo, pretende-se apresentar uma alternativa
metodológica ao suposto círculo vicioso presente nos argumentos
de Tomás de Aquino em favor da descoberta do ser como ato de ser
(actus essendi).
Palavras-chave: Tomás de Aquino, Étienne Gilson, ser, círculo
vicioso.
Abstract: The philosophical demonstration of thomistic notion
of being has been the subject of controversy among scholars. Étien-
ne Gilson (1884-1978) is among those scholars opposed to the
possibility of demonstration of being as act of being (actus essendi).
In this article, we intend to present a methodological alternative
to the supposed vicious circle present in Aquinas’ arguments in
favor of the discovery of being as act of being (actus essendi).
Keywords: Thomas Aquinas, Étienne Gilson, being, vicious
circle.

* Doutor em Filosofia pela PUC-RJ; Coordenador Adjunto do Mestrado em


Direito da Universidade Católica de Petrópolis. E-mail: sergio.salles@ucp.br

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 43-64, jul./dez. 2012 43


Sergio de Souza Salles

Introdução
A possibilidade de uma demonstração filosófica da noção pro-
priamente tomista de ser (esse) tem sido objeto de controvérsias en-
tre os tomistas. Contextos como o do capítulo quarto do De Ente
et Essentia, bem como o do primeiro artigo da segunda questão
do De Potentia favorecem a interpretação apriorística da distinção
entre essentia e esse nos entes finitos, já que as premissas dos argu-
mentos propostos por Tomás de Aquino são estruturadas a partir
da comparação entre o ser, cuja essência é idêntica ao seu próprio
ser (ou seja, Deus), e os demais entes, nos quais o ato de ser não
é idêntico à essência. Ao supor em termos comparativos a dis-
tinção que, em princípio, deveria ser objeto de demonstração, o
argumento proposto pelo Aquinate parece ser problemático.
Dentre os principais intérpretes da metafísica de Tomás de Aqui-
no, Étienne Gilson1 procurou evitar a problemática demonstração da
distinção entre ser e essência nos entes, defendendo a indemonstra-
bilidade da noção tomista de ser (esse). Com efeito, segundo Gilson,
a metafísica de Tomás “pressupõe a presença ao espírito da noção
primeira do ser como tal, ipsum esse, ipsum purum esse”2.
O autor de L’être et l’essence observa, aliás, que a maioria dos
teólogos e filósofos medievais recusaram a composição do ser finito,
que resulta da noção tomista de ser como ato em relação à essência.
A título de exemplo, cita João Duns Escoto que nega absolutamen-
te a diversidade de ser e essência nos entes finitos, com as seguintes
palavras: “simpliciter falsum est quod esse sit aliud ab essentia”3. A
partir da ponderação sobre a histórica controvérsia em torno da

1. Para uma introdução ao pensamento de Étienne Gilson, confira: MONDIN,


B. La Metafisica di S. Tommaso d’Aquino e i suoi interpreti. Bologna: ESD, 2000,
p. 74-86.
2. GILSON, Étienne. L’être e l’essence. Paris: J. Vrin, 2000, p. 385. Semelhante
interpretação é apresentada em outra obra: “La notion première d’être, avant toute
autre, est pour la métaphysique un donné, à la fois appréhendé comme tel et éclairé
de la lumière de Qui Est, cause de tout intellect comme de tout intelligibile” (GIL-
SON. Introduction a la philosophie chrétienne. Paris: J. Vrin, 1960, p. 123).
3. Cf. GILSON. Introduction a la philosophie chrétienne. Paris: J. Vrin, 1960,
p. 123.

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Étienne Gilson e a circularidade da metafísica tomista

composição de ser e essência (esse et essentia) nos entes finitos, con-


clui Gilson sua principal obra de metafísica nos seguintes termos:
Eis uma grande lição de modéstia para os filósofos e teólogos.
A tese sobre a qual repousa toda a metafísica do ser é qualquer
coisa de simplesmente falso, segundo Duns Escoto. O mais ex-
traordinário é que esta tese não é nem refutável nem demons-
trável, porque ela pertence à ordem dos princípios, os quais só
se podem ver ou não ver4.
No entanto, se a tese sobre a qual se sustenta toda a metafísica
tomista não é demonstrável, nem refutável, porque pertence à or-
dem dos princípios, como explicar que o próprio Tomás elabore
argumentos em favor da composição e distinção de ser e essência
nos entes? Para Étienne Gilson, estes argumentos não são demons-
trativos senão sob certas condições, a saber: 1) pela pressuposição
da existência de Deus5; 2) pela pressuposição da criação dos entes6;
3) pela suposição da noção tomista de ipsum purum esse7.

4. “Voilà une grande leçon de modestie pour les philosophes et théologiens. La


thèse sur laquelle repose toute la métaphysique thomiste de l’être est quelque cho-
se de simplement faux, selon Duns Scot. Le plus remarquable est que cette thèse
n’est ni réfutable ni démontrable, parce qu’elle appartient à l’ordre des principes,
qu’on ne peut que voir ou ne pas voir” (GILSON. L’être e l’essence, 2000, p. 385).
5. Após considerar o segundo argumento do De ente et essentia (c. 4) a favor da
distinção entre ser e essência nos entes que não são o seu próprio ser, pondera
Gilson: “La valeur de l’argument dépend docentièrement de celle d’une certaine
notion de Dieu à laquelle, quelle qu’en soit la valeur réelle, beaucoup de théolo-
giens, dont certains furent des saints, semblent n’avoir jamais pensé” (GILSON.
Introduction a la philosophie chrétienne, 1960, p. 101).
6. Ao se referir ao primeiro argumento do De ente et essentia (c. 4), referente à
intelecção da essência (intellectus essentiae), Gilson observa que: “L’argument est
irréfutable, mais que prouve-t-il? D’abord que l’être actuel n’est pas inclus dans la
notion de l’essence. (...) Pour qu’une essence passe du possible à l’être, il faut donc
qu’une cause extérieure lui confère existence actuelle. (...). N’etant pas à soi-même
la causa de sa propre existence, l’être fini doit la tenir d’une cause supérieure, qui
est Dieu. En ce sens, ce que l’on nomme distinction d’essence et d’être signifie
simplement que tout être fini est un être créé” (GILSON. Introduction a la phi-
losophie chrétienne, 1960, p. 99).
7. Tendo considerado todos os argumentos do quarto capítulo do De ente et essentia,
conclui Gilson: “Ces raisons, et toutes celles du même genre, ont ceci de commum
qu’elles supposent déjá conçue la notion d’être entendue au sens, non pas de l’étant
(ens, habens esse, ce qui est), mais bien de l’acte d’être (esse) qui, composant avec
l’essence, en fait précisément un étant, un habens esse. Or, dès qu’on a conçu cette
notion proprement thomist d’esse, il n’y a plus de problème, il ne reste plus rien à
démontrer” (GILSON. Introduction a la philosophie chrétienne, 1960, p. 103).

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 43-64, jul./dez. 2012 45


Sergio de Souza Salles

Estabelecidas todas estas pressuposições como verdadeiras, em


especial a terceira que é exclusiva de Tomás, obtém-se, segundo Gil-
son, o que os filósofos chamam de demonstração da distinção real
entre essência e ser nos entes finitos. Tudo passa a depender, portan-
to, da noção tomista de Deus como ipsum esse, posto que pensar o
purum esse é nada mais do que pensar o próprio Deus8.
Se a interpretação de Gilson está correta, então todos os ar-
gumentos de Tomás de Aquino em favor da distinção e composição
de essência e ser nos entes não passam de círculos viciosos. Esta
consequência é explicitamente reconhecida pelo próprio Gilson,
nos seguintes termos:
Vemo-nos aparentemente colocados em uma espécie de dialéti-
ca, em que os dois termos re-enviam um ao outro perpetuamen-
te: Deus é o ser puro, porque, se a essência fosse nele distinta do
ser, ele seria um ser finito, e não Deus; inversamente, a essência
do ser finito é outra em relação ao seu ser, porque, se sua es-
sentia fosse idêntica ao seu esse, este ser seria infinito, seria Deus.
(...); como faria [a Igreja] esta escolha [por Tomás] se a doutrina
repousa no fim das contas sobre um círculo vicioso?9
O que chama a atenção na interpretação gilsoniana não é so-
mente a constatação do caráter circular dos argumentos favoráveis
à distinção entre essentia et esse nos entes criados, os quais me-
ramente supõem como dada a existência de Deus como ipsum
purum esse e o esse finitum como criado, mas, sobretudo, a tentativa
de justificar este modo de proceder como um método realmente
metafísico, fundado na intuição indemonstrável de princípios au-
toevidentes.
Como diz Gilson, se a metafísica é ciência na medida em que
parte de princípios autoevidentes, sua tarefa deve consistir numa

8. “Penser l’esse pur, c’est penser Dieu. (...) Tout dépend donc ici de la notion
thomiste de Dieu” (GILSON. Introduction a la philosophie chrétienne, 1960, p.
103, 108).
9. GILSON. Introduction a la philosophie chrétienne, p. 109-110.

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Étienne Gilson e a circularidade da metafísica tomista

meditação frequente destes mesmos princípios que servem de base


à dedução das conclusões10. Nesse sentido, a metafísica tomista
repousaria numa intuição original, fruto da meditação sobre o
nome de Deus, tal como exposto no Êxodo (3,14). A partir da pré-
via aceitação de Deus como aquele que é, o metafísico procederia à
dedução de uma série de corolários sobre os entes, sempre em con-
sonância com o pressuposto indemonstrável do ipsum esse. Assim
compreendida, a metafísica desenvolver-se-ia por uma via sintética
e dedutiva por definição. Em suma, a filosofia do ser de Tomás de
Aquino pressuporia uma visão ou meditação essencialmente teoló-
gica. Eis a principal razão para Tomás de Aquino preferir, segundo
Gilson, as demonstrações segundo a ordem adequada ao ensino e
à exposição teológica, ao invés da ordem propriamente filosófica.
O que Étienne Gilson parece não levar em consideração é jus-
tamente a complementariedade entre o método resolutivo e o com-
positivo na metafísica do Aquinate, cujo círculo não é logicamente
vicioso e cujas premissas não dependem necessariamente da afirma-
ção de Deus como ipsum esse subsistens.
Se é verdade que em grande parte da obra de Tomás de Aquino
a tese da distinção e composição de essentia et esse é estabelecida
em contraposição a Deus, cuja essência é seu próprio ser, isso cor-
responde às exigências do método sintético- compositivo utilizado
pelo teólogo de Aquino. Não obstante, não é menos verdade que o
filósofo de Aquino consagra diversos argumentos nos quais procura
demonstrar a distinção e composição de essentia et esse segundo uma
ordem de descoberta propriamente filosófica, conforme o método
analítico-resolutivo de sua metafísica11.

10. “La métaphysique est donc science, à partir du point où, s’étant saisie du prin-
cipe, elle commence d’en déduire les conséquences” (GILSON. Introduction a la
philosophie chrétienne, 1960, p. 103).
11. Sobre a natureza resolutiva e compositiva do método metafísico de Tomás
de Aquino, confira: SALLES, Sergio S. Análise e síntese em Tomás de Aquino.
Petrópolis: UCP, 2009.

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Sergio de Souza Salles

A complementaridade e circularidade desses métodos permi-


tem entender o que pertence ou não à ordem da descoberta filosó-
fica, independentemente da revelação.
É sobre a existência e natureza das demonstrações filosóficas da
composição e distinção entre essência e ser nos entes finitos que é
preciso se deter. Com efeito, deve ser ainda objeto de discussão se
a tese da composição e distinção de essentia et esse nos entes pres-
supõe ou não a noção intensiva de ser; e, além disso, se pressupõe
ou não a existência de Deus e a doutrina da criação dos entes. Para
os fins desse artigo, importa saber se a tese da não-identidade de
essência (natureza) e ser (ato de ser) nos entes naturais ou materiais
é demonstrável filosoficamente para Tomás de Aquino. Em caso
afirmativo, a metafísica tomista desenvolve-se segundo uma ordem
autêntica de descoberta filosófica, independente de qualquer pres-
suposto (teológico) ou intuição (filosófica) indemonstrável. Ade-
mais, tal ordem de descoberta deve evitar qualquer círculo vicioso,
embora conserve a circularidade que é própria a toda investi-
gação racional12.
Para tanto, pretende-se evidenciar que há, em Tomás de Aqui-
no, uma via de resolução (secundum rationem) de todas as compo-
sições dos entes na composição originária de ser (actus essendi) e
essência (essentia), que não pressupõe a tese do ipsum esse subsistens.
Se a leitura aqui proposta da descoberta resolutiva do ser através

12. Para Tomás de Aquino, há na investigação racional uma circularidade intrín-


seca, porém, não viciosa. Na medida em que compreende a investigação racional
como a busca das causas, Tomás de Aquino sustenta que há um movimento dis-
cursivo do(s) efeito(s) à(s) causa(s) e outro que vai da(s) causa(s) ao(s) efeito(s).
Essa dupla via da causalidade pertence ao esquema da via de resolução (via re-
solutionis) e da via de composição (via compositionis). Ambas, portanto, fazem
parte do que o próprio Tomás de Aquino denominará “circularidade da razão”,
expressão inspirada em Dionísio Areopagita, que denota antes de tudo a relação
entre a razão e o intelecto (ratio et intellectus), ou ainda, entre a via do juízo (via
iudicii) e a via de invenção (via inventionis).

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Étienne Gilson e a circularidade da metafísica tomista

do De Ente et Essentia e das Quaestiones Disputatae De Potentia13


estiver correta, então a distinção entre essência e ser nos entes não
pressupõe necessariamente a aceitação da existência de Deus, nem
o assentimento prévio à doutrina da criação dos entes, como su-
geriu Étienne Gilson.

1. A descoberta resolutiva do ser no De ente et Essentia


No quarto capítulo do De ente et essentia (ca. 1252-1256), que
serve de base à interpretação gilsoniana, Tomás investiga de que modo
a essência está nas substâncias separadas, isto é, na alma, nas inteligên-
cias separadas e na causa primeira. Após considerar que até mesmo as
inteligências (substâncias ou formas) sem matéria são compostas, ou
seja, possuem potência (habent premixtionem potentiae), Tomás procu-
ra demonstrar a natureza desta composição nos entes que são simples
quanto à forma ou essência a partir da demonstração da distinção en-
tre ser e essência na ordem do ente enquanto tal14.
Em outros termos, até mesmo os entes cujas essências não são
compostas de forma e matéria são compostos em razão de algum
grau de potencialidade. Ora, se assim é, ainda que simples quan-
to à forma ou essência, há de haver outra ordem de composição
real no ente enquanto tal, não mais restrita à ordem essencial de
composição entre matéria e forma. Esta ordem de composição
é aquela que Tomás procura demonstrar resolutivamente15 como
relativa à união entre essência e ser nos entes.

13. A escolha do De Ente et Essentia e do De Potentia não pressupõe aqui que


a descoberta resolutiva do ser em Tomás de Aquino circunscreva-se a tais obras.
14. “Huismodi ergo substantiae quamvis sint formae tantum sine materia, non
tamen in eis est omnimoda simplicitas, ut sint actus purus, sed habent premixtio-
noem potentiae” (TOMÁS DE AQUINO. De ente et essentia, c. 4, n. 52).
15. Os argumentos que demonstram a composição de essência e ser nos entes
são resolutivos secundum rationem, porque possuem como termo último o que
é universal e comum a todos os entes enquanto tais, e como ponto de partida o
que é mais evidente para nós, a composição de ato e potência nos entes sujeitos
ao movimento.

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Sergio de Souza Salles

O argumento exposto aqui em favor da distinção entre es-


sência e ser, segundo De Finance, é a maneira mais didática en-
contrada por Tomás de Aquino no início de sua carreira16. O argu-
mento principia com a premissa maior, segundo a qual tudo o que
não pertence à noção de essência ou quididade lhe é acrescentado
extrinsecamente, e estabelece composição com a essência. A razão
oferecida por Tomás para a aceitação desta premissa consiste em
que nenhuma essência pode ser concebida sem tudo aquilo que lhe
é próprio. Com isso, tudo o que não é concebido ao se entender a
essência não faz parte necessariamente dela, mas lhe é acrescentado
extrinsecamente, fazendo com ela composição17.
A premissa menor do argumento sustenta que toda essência
ou quididade pode ser concebida sem que algo do seu próprio ser
o seja. A razão disso, esclarece Tomás, evidencia-se pelo fato de o
homem poder conhecer o que é o homem ou a fênix, ignorando,
ao mesmo tempo, se os mesmos têm ser na natureza das coisas (an
habeat esse in rerum natura). Ora, se é possível conceber a essên-
cia ou quididade do ente sem conceber ao mesmo tempo o seu ser
(esse), então o esse não faz parte propriamente da essência, ou seja,
é outro em relação à essência (esse est aliud ab essentia), sendo-lhe
acrescentado extrinsecamente por uma certa composição.
O argumento faz ainda uma importante ressalva em sua con-
clusão que excetua, a título hipotético (nisi forte), aquele caso no
qual haja alguma coisa (res) cuja quididade ou essência seja o seu
próprio ser (ipsum suum esse)18. A importância desta observação re-
side, em primeiro lugar, em seu caráter hipotético (nisi forte),
ou seja, Tomás não está supondo a existência real deste ser como

16. DE FINANCE, Joseph. Être et agir, 1960, p. 98.


17. TOMÁS DE AQUINO. De ente et essentia, c. 4, n. 52.
18.“Ergo patet quod esse est aliud ab essentia vel quidditate, nisi forte sit aliqua
res cuius quidditas sit ipsum suum esse” (TOMÁS DE AQUINO. De ente et
essentia, c. 4, n. 52).

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Étienne Gilson e a circularidade da metafísica tomista

condição para a validação do próprio argumento que pretende jus-


tificar a distinção entre essência e ser nos entes.
Em outras palavras, como o raciocínio conduz à afirmação se-
gundo a qual os entes possuem o ser distinto da essência (esse est
aliud ab essentia), Tomás se apressa em observar que poderia haver
neste caso uma exceção: a do ser cuja essência é idêntica ao seu
ser (res cuius quidditas sit ipsum suum esse). Sobre esta possibilidade
Tomás concentrar-se-á em seguida.
A validade deste raciocínio desenvolvido por Tomás no início
de seu itinerário intelectual, quando não é absolutamente rejeitada,
é deixada como uma questão em aberto19. Entretanto, o realismo
epistemológico de Tomás de Aquino implica que não é a essência
concebida à base do discernimento da realidade da essência nos en-
tes concretos, mas sim o contrário, ou seja, é a realidade da essência
que, ao ser concebida, nos informa que a mesma não inclui em suas
notas fundamentais o ser (esse).
É por essa razão que Tomás esclarece a premissa maior do
argumento, dizendo que nenhuma essência pode ser concebida sem
tudo aquilo que é propriamente da sua parte. Ora, a razão para que
a essência não possa ser concebida senão com tudo o que é real-
mente e propriamente parte de si mesma reside em última instância
na própria realidade da essência e não no nosso modo de concebê-
-la. Por conseguinte, se o ser fizesse parte da própria essência, a
conheceríamos como sendo, ou melhor, como possuindo ser essen-
cialmente no próprio ato de simples apreensão. Em outros termos,
é porque a essência é distinta do ser que nós a inteligimos de certo
modo (distinguindo do esse in actu), e não o contrário. Por essa
razão, Tomás pode partir do nosso modo de conhecer para o ser,

19. “Whether or not Thomas himself would have wished it to be presented as a


valid argument in its own right for anything more than a conceptual distinction
remains, in my opinion, an open question” (WIPPEL, John. The Metaphysical
Thought of Thomas Aquinas: from finite being to uncreated being, 2000, p. 143).

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Sergio de Souza Salles

sem que isto implique em priorizar a ordem do conhecer sobre o


ser, nem em assumir uma distinção meramente intelectual como
critério de determinação das distinções reais.
Ainda que a validade do argumento resida no realismo episte-
mológico de seu autor, Tomás não se contenta somente com esta
primeira justificação da composição de essência e ser nos entes. Em
seguida, trata de investigar a hipótese sugerida ao final do primeiro
argumento sobre a existência de uma realidade cuja quididade ou
essência seja o seu próprio ser. É neste contexto que Tomás introduz
e desenvolve um novo argumento que complementa o anterior e
será recorrente em sua obra, inclusive no De Potentia.
A originalidade deste argumento consiste na tese segundo
a qual é impossível que haja mais de um ser cuja essência seja
idêntica ao seu próprio ser, ou seja, todos os seres, com exceção
do ser tão-somente ser (esse tantum) são compostos de esse mais
um princípio receptivo e multiplicador do ser. Com efeito, se talvez
(forte) existisse um ser cuja essência fosse seu próprio ser, então
o mesmo seria necessariamente único e primeiro20.
Tomás de Aquino procura justificar a tese da unicidade do
ser, cuja essência é idêntica ao seu próprio ser, explicando que lhe
é impossível multiplicar-se. A razão alegada consiste em que a
multiplicidade de uma coisa pode ocorrer de três modos, cor-
respondentes a três tipos de composição: 1) pela adição de alguma
diferença (como ocorre a multiplicação da natureza genérica nas
espécies); 2) pela recepção da forma em diversas matérias (como se
dá na multiplicação da natureza específica nos diversos indivíduos);
3) pela recepção em outro do que é uno e absoluto em si mesmo.
Esta terceira possibilidade é exemplificada de modo hipotético, a
saber: se houvesse o calor separado (absoluto), o mesmo seria dis-

20. “(...) nisi forte sit aliqua res cuius quidditas sit ipsum suum esse. Et haec
res non potest esse nisi una et prima (...)” (TOMÁS DE AQUINO. De ente et
essentia, c. 4, n. 52-53).

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Étienne Gilson e a circularidade da metafísica tomista

tinto do calor não separado (não absoluto), em virtude da própria


separação21.
Dadas estas três possibilidades de multiplicação, resta saber se a
coisa que é tão somente o seu próprio ser (esse tantum) pode ou não
ser multiplicada. Ora, se tal ser é tão-somente ser (esse tantum),
o mesmo não pode ser multiplicado pelo primeiro modo, ou
seja, por acréscimo de alguma diferença. Afinal, se, por hipótese, o
ser tão- somente ser (esse tantum) recebesse acréscimo de algu-
ma diferença, o mesmo não seria tão-somente ser (non esset esse
tantum), mas sim um ser mais alguma forma acrescida (sed esse et
praeter hoc forma aliqua)22. Em outros termos, a hipótese de um ser
tão-somente ser exclui qualquer possibilidade de acréscimo de algo
ou de alguma forma além (praeter) do próprio ser23.
Tampouco tal ser tão-somente ser poderia ser multiplicado
pelo segundo modo, ou seja, pela recepção da forma em diversas
matérias, que também se comportariam como algo diverso do ser
(esse)24. Tomás, porém, não tece nenhum comentário sobre o ter-
ceiro modo de multiplicação, o que parece ser evidente. Com
efeito, supor a multiplicação do esse tantum pela recepção em outra

21. “(…) quia impossibile est ut fiat plurificatio alicuius, nisi per additionem ali-
cuius differentiae, sicut multiplicatur natura generis in species, vel per hoc quod
forma recipitur in diversis materiis, sicut multiplicatur natura speciei in diversis
individuis; vel per hoc quod unum est absolutum et aliud in aliquo receptum:
sicut, si esset quidam calor separatus, esset alius a calore non separato, ex ipsa sua
separatione” (TOMÁS DE AQUINO. De ente et essentia, c. 4, n. 53).
22. O acréscimo de qualquer forma ou de qualquer outro princípio ao esse tan-
tum implicaria necessariamente que o que é acrescido é essencialmente diverso do
próprio esse.
23. “Si autem ponatur aliqua res quae sit esse tantum, ita ut ipsum esse sit sub-
sistens, hoc esse non recipiet additionem differentiae, quia iam non esset esse
tantum, sed esse et praeter hoc forma aliqua” (TOMÁS DE AQUINO. De ente
et essentia, c. 4, n. 53).
24. “(…) et multo minus recipiet additionem materiae, quia iam esset esse non
subistens sed materiale” (TOMÁS DE AQUINO. De ente et essentia, c. 4, n. 53).

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Sergio de Souza Salles

realidade que não é o próprio esse, é conceder a tese do próprio


Tomás. Afinal, também neste caso, a multiplicação exige neces-
sariamente que o princípio multiplicador seja distinto do esse.
Mas, se assim fosse, o esse não seria tão-somente ser (esse tantum)
porque seria esse mais algum princípio receptivo multiplicador; o
que seria contraditório com a própria noção de esse tantum.
Em suma, supor a multiplicação do ser tão-somente ser (esse
tantum) é sustentar algo contraditório, uma vez que se houvesse
(forte) o ser tão-somente ser, um tal ser não poderia ser senão o
seu próprio ser (ipsum suum esse), ou seja, seria impossível que
fosse o seu próprio ser, mais (et praeter) alguma coisa (forma ou
matéria). O ipsum esse na medida em que é esse tantum não pode
ser multiplicado nem diversificado. O ser (esse) só pode ser mul-
tiplicado e diversificado por algo que é outro em relação ao esse.
Demonstrada a impossibilidade da multiplicação do ipsum esse
enquanto esse tantum, Tomás de Aquino pode sustentar sua tese,
segundo a qual o ser que é o seu próprio ser não pode ser senão
um único. Por conseguinte, todos os demais entes que não são
tão-somente ser (esse tantum) possuem o ser (esse) mais alguma
quididade, natureza ou forma que os diferenciam.
Poder-se-ia objetar que o argumento em questão só tem valor
hipotético, uma vez que parte da suposta existência de um ser cuja
essência seria idêntica ao seu próprio ser, para concluir pela distin-
ção entre essência e ser nos demais entes, ou seja, todo o argumento
dependeria da prévia aceitação da existência de Deus.
Como observa John Wippel25, o ponto principal do argumento
consiste em mostrar que é impossível existir mais de um ser cuja
essência seja idêntica ao seu próprio ser. Nem esta tese, nem a con-
clusão que ela legitima possuem caráter meramente hipotético, pois

25. WIPPEL, J. The Metaphysical Thought of Thomas Aquinas: from finite being
to uncreated being. Washington: The Catholic University of America Press, p.
146-147, 2000.

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Étienne Gilson e a circularidade da metafísica tomista

Tomás justifica a impossibilidade da multiplicação do ser que é seu


próprio ser e, portanto, legitima a afirmação da unicidade do ser
tão- somente ser. Tampouco a conclusão é hipotética, porque To-
más não raciocina a partir da possibilidade da existência do ser
tão-somente ser para a sua atualidade, mas sim a partir da impos-
sibilidade de dois entes serem o seu próprio ser (ipsum suum esse).
É este ponto de partida que permite concluir pela existência de
uma distinção e composição entre o esse e a essência (quididade ou
forma) em todos os entes, com exceção daquele que é tão-somente
ser (esse tantum).
Em nenhuma etapa do argumento, Tomás de Aquino pressu-
põe a existência de Deus como parte integrante de sua tese, das
premissas ou da conclusão. Isto é absolutamente desnecessário na
medida em que pretende demonstrar a distinção entre ser e essência
nos entes a partir da unicidade do ser que é idêntico ao seu próprio
ser, que, por sua vez, é sustentada pela impossibilidade de existir
mais de um ser que seja tão-somente ser. Assim, se aceitarmos que
há uma multiplicidade de entes que possuam ser (esse), então é ine-
vitável concluir que em todos estes entes a essência é diversa do ser
(esse), porque é impossível que exista mais de um ser cuja essência
seja idêntica ao seu ser.
Em relação aos entes que não são o seu próprio ser, Tomás de
Aquino pôde concluir que possuem o ser como realidade recebida pela
essência (quididade ou forma), realmente distinta do ser que recebem.
Mas, não devemos entender esta distinção como uma separação en-
tre duas coisas (inter rem et rem), mas sim como uma não-identidade
de dois princípios constitutivos dos entes. Afinal, para Tomás, “tudo
aquilo que recebe algo de outro está em potência em relação a este
outro, e esse algo recebido é ato daquele que recebe”26.

26. “Omne autem quod recipit aliquod ab alio, est in potentia respectu illius; et
hoc quod receptum est in eo, est actus eius” (TOMÁS DE AQUINO. De ente et
essentia, c. 4 , n. 56).

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 43-64, jul./dez. 2012 55


Sergio de Souza Salles

Com isso, torna-se claro que o itinerário para a demonstração


da distinção entre essência e ser nos entes, com exceção do ser
tão-somente ser, conduz à compreensão da unidade dos princípios
constitutivos dos entes que não são o seu próprio ser, como uma
unidade de composição entre a potência receptiva (essência) e o ato
recebido (ato de ser).
Esta unidade de composição não é intuída, mas pode ser co-
nhecida uma a partir da outra, ou seja, de modo resolutivo e com-
positivo. Pela via de resolução secundum rationem, a unidade da
composição de essência e ser nos entes é conhecida como termo
último (ad quem) da redução da unidade de composição de potên-
cia e ato nos entes sujeitos ao devir. Neste sentido, a unidade da
composição de essência e ser é resolvida na unidade da composição
de potência e ato, o que é universal e comum a todos os entes que
não são o seu próprio ser. Pela via de composição secundum ratio-
nem, a unidade de essência e ser nos entes é conhecida como termo
primeiro (a quo), pois o que é universal e comum na ordem do
conhecer e do ser é a origem dos raciocínios compositivos. Tomás
de Aquino utiliza-se, portanto, tanto da via compositiva quanto da
via resolutiva para a defesa da distinção real entre essência e ser
nos entes compostos.

2. A descoberta resolutiva do ser no De Potentia


A descoberta pelo método resolutivo da composição real nos
entes de essentia et esse como uma composição de potência e ato,
participante e participado, conduz a filosofia de Tomás de Aqui-
no a um novo horizonte metafísico. Como demonstrou Cornélio
Fabro, a “noção intensiva de ser” é anunciada de modo paradig-
mático na nona objeção do segundo artigo da sétima questão do
De Potentia, que pode servir como guia e medida da metafísica do
Doutor Angélico27.

27. TOMÁS DE AQUINO. De Potentia, q. 7, a. 2, ad 9.

56 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 43-64, jul./dez. 2012


Étienne Gilson e a circularidade da metafísica tomista

Em relação ao De Potentia, é mister considerar: 1) a ordem


de exposição (via compositionis secundum rationem), inversa à or-
dem de justificação filosófica (via resolutionis secundum rationem);
2) as implicações da noção tomasiana do ser (esse) a partir de sua
ordem de exposição e resolução propriamente metafísica.
Em relação à exposição, a série de afirmações sintéticas que cons-
tituem a resposta de Tomás à nona objeção poderiam ser recapitula-
das na seguinte ordem: 1) o ser é ato perfeitíssimo (actus perfectissi-
mus); 2) toda forma é concebida em ato pelo ato de ser (actus essendi);
3) o ser é ato de todos os atos e perfeição de todas as perfeições; 4)
o ser enquanto ato de ser (esse ut actus essendi) é outro em relação à
essência, diferindo ainda do ente comum (ens commune); 5) ao ato
de ser (actus essendi) nada se pode acrescentar como algo mais formal
ou como realidade extrínseca ao próprio ser (ipsum esse); 6) todas as
coisas estão para o ser como a potência está para o ato.
A ordem de exposição da resposta à nona objeção é de natureza
evidentemente compositiva (via compositionis secundum ratio-
nem), uma vez que a reflexão metafísica instaura-se, desde o iní-
cio, sob a afirmação do ser como ato de todos os atos e perfeição
de todas as perfeições, para deduzir daí que nada pode ser acrescido
ao esse e que tudo o mais se comporta em relação ao esse como a
potência em relação ao ato. Mas, como a perspectiva própria à
reflexão metafísica é que o ponto de partida e o ponto de chegada
coincidem efetivamente, a afirmação do ser como ato do ente e a
afirmação do ser como ato de todos os atos e perfeição de todas as
perfeições implicam-se mutuamente.
A resolução secundum rationem propriamente dita está aqui im-
plícita, uma vez que Tomás segue a explicação do que concebe por
ser (“hoc quod dico esse”) a partir de uma premissa sintética, o que
ordena o raciocínio segundo a via de composição secundum ratio-
nem, a qual procede do princípio intrínseco formal mais universal
e comum aos entes aos demais princípios ou efeitos que são par-
ticulares face ao esse. Reconhecer o caráter explicitamente compo-

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 43-64, jul./dez. 2012 57


Sergio de Souza Salles

sitivo deste trecho capital do De Potentia é imprescindível para a


apreciação analítica do argumento segundo a ordem da descoberta
filosófica (secundum via resolutionis), que segue a ordem inversa à da
via compositiva (via compositionis secundum rationem).
Como mencionado previamente, a resolução de todos os atos e
de todas as perfeições do ente no ato de ser (actus essendi) tem como
ponto de partida a ordem de composição dos entes e como princí-
pios basilares tanto a prioridade metafísica do ato sobre a potência
quanto a dependência desta em relação àquele. Considerando que
o que é mais evidente para nós é a realidade sensível submetida ao
devir e que o movimento não pode existir senão pela realidade dos
contrários, todo ente sensível é necessariamente composto, segun-
do a composição de potência e ato.
É a consideração da ordem de composição a partir da ordem
dinâmica (o que move está para o movido segundo a ordem da cau-
salidade) que manifesta o caráter resolutivo da transição intelectual
do ato como ação ou operação do ente ao ato como perfeição ou
determinação intrínseca ao ente. Por isso, a “intuição” genuina-
mente aristotélica do binário potência-ato e das composições que
dele resultam (substância e acidente, matéria e forma) são com-
preendidas, doravante, à luz do ato de ser (actus essendi).
Dentre todos os princípios constitutivos do ente, aquele pelo
qual o ente possui realidade e atualidade, garantindo a sustentação
de todas as ordens de composição do ente, é o ser (esse). Por essa
razão, todas as coisas estão para o ser como a potência está para
o ato. O ser (esse) é o primeiro dentre todos os atos e, portanto, a
forma e todos os demais atos do ente são potências em relação ao
ser (potentia essendi). Os outros atos do ente, que são particulares
e se consideram atos com relação às próprias e imediatas potências,
devem se chamar potências, e em potência com relação ao primeiro
de todos os atos que é o ser (esse).
A divisão do ente em essência (potência) e ser (ato) penetra,
assim, com mais profundidade a divisão aristotélica do ente em

58 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 43-64, jul./dez. 2012


Étienne Gilson e a circularidade da metafísica tomista

forma (ato) e matéria (potência), resolvendo as esferas constituti-


vas, compositivas e dinâmicas do ente no ser (esse).
Uma vez encontrado pela via resolutiva o fundamento de
todas a s composições do ente no ser (esse), entendido como ato
fundante (esse ut actus essendi), Tomás de Aquino pode concluir que
não se pode agregar ao ser (esse) nada que lhe seja estranho, ou seja,
extrínseco. Afinal, o contrário do ser (esse) é o não-ser absoluto.
Considerando que não se pode acrescentar o não-ser ao ser28, é
evidente que tudo o que se acrescenta ao ser deriva sua perfeição
do próprio ser (ipsum esse). Por essa razão, nada está para o ser (esse)
como algo extrínseco.
Se o esse é ato de todos os atos e perfeição de todas as perfeições,
então toda vez que o esse emerge nos entes não o faz senão de
modo limitado e restrito e não de modo pleno e absoluto. Mas,
se o esse nos entes não se encontra de modo pleno e absoluto é em
razão de um princípio intrínseco que o recebe limitando e limita
recebendo. Tal princípio não pode ser senão a potência, cujo ser
depende intrinsecamente do actus essendi.
É sempre a potentia essendi (essência ou forma) o que recebe e
limita o actus essendi. Assim sendo, a razão da finitude do esse nos
entes que não são o seu próprio ser não pode ser suficientemente
esclarecida senão por um princípio intrínseco portador do esse de
modo restrito e limitado.
Em sendo ato irredutível e pleno, o ser (esse) jamais se comporta
como potência em relação a qualquer outra coisa ou perfeição. Ao
contrário, tudo o que é acrescido ao ser o é como uma restrição
do ser, uma vez que tudo o que é está para o ser como o princípio
receptivo está para a perfeição recebida. Mas deve-se observar que
todas estas restrições já se encontram originariamente contidas no
ser, que é o ato e a perfeição sem restrição alguma.

28. Cf. TOMÁS DE AQUINO. De Potentia, q. 9, a. 7, ad 15.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 43-64, jul./dez. 2012 59


Sergio de Souza Salles

É por isso que o Aquinate pode afirmar que as formas e todas as


operações derivadas delas, embora determinem limitando e restrin-
gindo o ser, não são acrescidas ao ser como algo extrínseco. O ser é
sempre o princípio a quo de toda e qualquer perfeição dos demais
princípios constitutivos do ente (id quod habet esse), conferindo a
definitiva atualidade ao que é (quod est) enquanto tal.
Em razão da prioridade metafísica do ato sobre a potência e
da dependência desta em relação àquele ao qual é ordenada, resulta
ainda que o ser (esse) é perfeição primeiríssima em relação a todas
as coisas e que tudo o que é depende intrinsecamente do ato de ser
(esse ut actus essendi).
Sustentar resolutivamente a prioridade absoluta do ser (esse) em
relação aos demais atos do ente (ens) e a dependência de todos os
constituintes do ente em relação ao próprio ser (ipsum esse), é
compreender, por outro lado, que o ser é ato último, já que toda
atualidade diversa do ser deriva sua perfeição do próprio ser (ipsum
esse). Com efeito, tudo aquilo que é em potência e em ato não pos-
sui atualidade senão enquanto tem ser (habet esse).
Neste contexto, deve-se ressaltar ainda que o ser (esse) não é
uma perfeição meramente possível, mas uma perfeição realíssima
sem a qual tudo o que é cairia no absoluto não-ser. Que o ente é
em ato (ens in actus) pelo ato de ser (actus essendi) é uma afirmação
autenticamente tomista, consequência legítima da resolução de
todos os atos e perfeições do ente (ens) no ser (esse). Todavia, não
se deve entendê-la como se o ser fosse simplesmente uma condição
da possibilidade da existência do ente, tal como propõe Avicena. O
ser (esse) não é uma perfeição possível acrescida ao ente, concebido
essencialmente ou idealmente como algo extrínseco ao próprio ser.
Todas as perfeições constitutivas do ente (quer seja na ordem aci-
dental ou na ordem substancial, quer ainda na ordem essencial de
composição de matéria e forma), bem como as perfeições operativas,
podem ser consideradas como realidades existentes ou não, possíveis
ou não, quer isto ocorra graças à virtude do agente, quer do intelecto,

60 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 43-64, jul./dez. 2012


Étienne Gilson e a circularidade da metafísica tomista

mas o ser (esse) não pode ser concebido senão como perfeição real,
atual e intensiva, raiz de qualquer outra perfeição do ente. Tudo o
que tem ser (id quod habet esse) tem sua fonte de realidade, perfeição
e sustentação intrínseca no ato de ser (actus essendi).
Mesmo se considerada na ordem do possível, a noção de qual-
quer realidade depende do ato de ser. Como o ser subordina a si não
só as perfeições constitutivas, como a forma do ente em ato (ens in
actus) que depende do ser tanto para ser quanto para ser concebida
em ato, mas também os atos enquanto operações e ações dos en-
tes, o próprio ato de intelecção e seus efeitos se fundam em última
instância no ato de ser.
Por isso, a afirmação da dependência da intelecção da forma em
relação ao ser pode ser complementada pela resolução das operações
do cognoscente no ato de ser. Em suma, a resolução secundum ra-
tionem desvela o caráter fundante do ser em relação à forma do ente
em ato, à forma inteligível (ratio) e ao próprio ato de intelecção,
completando, assim, o processo instaurado pelo juízo de separatio
em relação à ratio entis, objeto formal da metafísica. Por isso, não se
deve confundir a noção de ser ou ente comum (ens commune) com
a de ser enquanto ato de ser (esse ut actus essendi).
Ao afirmar que o ser é o ato de todos os atos e a perfeição de
todas as perfeições, Tomás de Aquino sintetiza de modo definitivo
o caráter intensivo e absoluto do ipsum esse face às demais perfeições
constitutivas e operativas dos entes, que dependem intrinsecamen-
te do ato de ser (actus essendi).
A síntese de todas as perfeições e de todos os atos no ato de ser
responde tanto pela exigência de um termo último para a resolução
secundum rationem (pois, é impossível proceder aqui ao infinito já
que para além do ser não há absolutamente nada), quanto pela
necessidade de encontrar um princípio primeiríssimo de derivação
dos princípios constitutivos (ordem de composição) e dinâmi-
cos (ordem de causalidade) dos entes.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 43-64, jul./dez. 2012 61


Sergio de Souza Salles

Considerações finais
Embora Deus seja primeiro quanto ao ser, não o é em relação ao
conhecimento humano (principium nostrae cognitionis est a sensu29).
Essa afirmação, tão cara a Tomás de Aquino, deve ser recordada
toda vez que se questiona a autenticidade da ordem das demons-
trações filosóficas no corpus thomisticum. Com efeito, o que é
primeiro na cognição humana não é primeiro quanto ao ser, mas
o que é primeiro quanto ao ser pode ser conhecido filosoficamente
pela via de resolução dos efeitos na causa.
Para Tomás de Aquino, a metafísica parte do ente como
primum cognitum, no qual se resolve toda outra intelecção, pois
o ente está implícito em toda e qualquer noção (ratio) e realidade
(res). Mas, partir do ente (ens) não é partir do ser (esse), quer esse
último seja entendido como actus essendi, quer ainda como ipsum
esse subsistens.
O esse não nos é dado imediatamente na intelecção do ente, se-
não como esse commune, conteúdo inteligível necessário e irredu-
tível da ratio entis. O esse só se torna conhecido como ato do ente
na dependência da resolução (secundum rationem) das composições
do ente na composição de essentia et esse, que são distintos realmen-
te. Trata-se de um processo gradativo de formulação de juízos e
raciocínios que resolvem as potências dos entes em seus respectivos
atos, bem como os atos imperfeitos dos entes no ato imanente
perfeito que é o ato de ser (esse ut actus essendi).
A via de resolução é uma via de fundação – para utilizar a ex-
pressão de Cornélio Fabro – e não uma via de dedução, sustentada
num pressuposto indemonstrável. Com efeito, transitar dos atos
mais superficiais e instáveis aos mais constitutivos e permanentes e
destes ao ato de todos os atos é propriamente resolver todos os atos
e todas as perfeições dos entes no ato de ser (esse ut actus essen-

29. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q. 84, a. 7, co.

62 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 43-64, jul./dez. 2012


Étienne Gilson e a circularidade da metafísica tomista

di). E alcançar o ser como actus essendi é, sem dúvida, base de toda
ulterior investigação analógica do ipsum esse subsistens.
Se há uma circularidade entre a descoberta do esse ut actus es-
sendi pela via de resolução pelas causas intrínsecas (secundum
rationem) e a descoberta do esse ut ipsum esse subsistens pela via
de resolução pelas causas extrínsecas (secundum rem), não se trata
de uma circularidade viciosa. É o próprio Tomás de Aquino que
oferece essa chave de leitura quando, inspirado na tradição neo-
platônica de Dionísio Areopagita, ressalta que: “a circularidade [da
razão] observa-se nisto: que a razão chega às conclusões a partir dos
princípios na via de invenção, e examina as conclusões desco-
bertas de acordo com a via do juízo, resolvendo-as nos princípios”30.

Referências
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de l’Université Grégorienne, 1960.
FABRO, Cornélio. Un Itinéraire de Saint Thomas - L’établissement
de la distinction réelle entre essence et existence. Revue de Phi-
losophie. 1938.
FABRO, Cornélio. Actualité et originalité de l’esse thomiste. Re-
vue Thomiste. v. 56, n. 2, p. 240-270, 1956.
FABRO, Cornélio. Actualité et originalité de l’esse thomiste. Revue
Thomiste. v. 56, n. 3, p. 480-507, 1956.
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d’Aquin. Paris-Louvain: Publications Universitaires de Louvain,
1960.
GILSON, Étienne. Introduction a la philosophie chrétienne. Paris:
Librairie Philosophique J. Vrin, 1960.

30. Cf. TOMÁS DE AQUINO. De Potentia, q. 10, a. 8, ad 10.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 43-64, jul./dez. 2012 63


Sergio de Souza Salles

GILSON, Étienne. Éléments d’une Métaphysique thomiste de l’être.


Archives d’histoire doctrinale et littéraire du Moyen Age. 1973.
GILSON, Étienne. L’être et l’essence. 3a. ed. Paris: Vrin, 2000.
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Saint Thomas d’Aquin. Paris: J. Vrin, 1922.
MONDIN, Battista. La Metafisica di S. Tommaso d’Aquino e i suoi
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SALLES, S. S. Análise e síntese em Tomás de Aquino. 1. ed. Petrópo-
lis: Editora UCP, 2009a.
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TOMÁS DE AQUINO. Opera omnia cum hypertextibus in CD-
-ROM. Milão: R. Busa, Editoria Elettronica Editel, 1992.
TOMÁS DE AQUINO. Comentário ao tratado da Trindade de Bo-
écio: questões 5 e 6; tradução e introdução de Carlos Arthur R.
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TOMÁS DE AQUINO. Sancti Tomae de Aquino Opera omnia.
Summa contra Gentiles. Roma: Ed. Leonine, 1918-1930.
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Super Boetium De Trinitate, Expositio libri Boetii De Hebdo-
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WIPPEL, John F. The Metaphysical Thought of Thomas Aquinas:
from finite being to uncreated being. Washington: The Catholic
University of America Press, 2000.

64 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 43-64, jul./dez. 2012


O método dialético e o sic et
non de Pedro Abelardo
Pedro Rodolfo Fernandes da Silva*

Resumo
O presente artigo investiga o método dialético em Pedro Abe-
lardo a partir da concepção desse pensador acerca do problema dos
universais, o qual marcou toda a discussão acerca do método no
século XII. Abelardo é crítico do realismo e defensor da ideia de que
os universais são palavras (voces) dotadas de significação (significatio)
que designam a coisa individual. Como exemplo do emprego do
método dialético na análise das questões teológicas, é tomada a obra
Sic et non, na qual evidencia-se a dialética como busca da verdade no
discurso, examinando atentamente os significados dos termos utili-
zados e observando a temporalidade e a causalidade do que é dito.
Palavras-chave: método, dialética, problema dos universais, Sic
et non.

Introdução
Pedro Abelardo (1079-1142) destaca-se no período medieval
por suas várias contribuições no campo da lógica, da ética, da teo-
logia, entre outros. Em seus escritos é característico o emprego do

* pedrofernandes28@hotmail.com

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 65-85, jul./dez. 2012 65


Pedro Rodolfo Fernandes da Silva

método dialético, entendido como o tratamento lógico em ordem


sistemática (ordo disciplinae).
Segundo Rémusat1, toda discussão acerca do método no século
XII pode ser reduzida à questão dos universais. Ela foi de fato capital
naquele contexto e responsável por agitar as escolas e a sociedade da
época, ocupando as mentes humanas do período de Escoto Erígena
à Reforma Protestante. Assim, a depender da resposta que se apre-
sentava a esse clássico problema, tinha-se o desenho do método de
análise das diversas questões das diversas áreas.
Pedro Abelardo, o peripatético do Pallet, é seguramente o maior
lógico do século XII e dessa forma tornou-se também uma referên-
cia quanto ao problema dos universais naquele século. Admirado e
seguido por muitos, sobretudo os clérigos que vinham a Paris tomar
suas lições, foi também condenado e perseguido por outros, que ti-
nham nesse pensador um sujeito temerário por arvorar-se a explicar
os dogmas da religião à luz da razão2.
Neste artigo, pretende-se apresentar os fundamentos do método
dialético adotado por Pedro Abelardo no modo de tratamento do
problema dos universais. Após isso, tomar-se-á a obra Sic et Non
como exemplo da aplicação do método dialético na análise de ques-
tões teológicas.

A Logica Ingredientibus3 e a crítica ao realismo


O problema dos universais, segundo Aristóteles4, remonta ao
próprio Sócrates. Na acepção platônica, o universal é entendido

1. RÉMUSAT, 1845, p. 319.


2. É o caso da crítica de Bernardo de Claraval a Abelardo: “[...] Mas, ao jactar-se
de estar apto a dar a razão de todas as coisas, empreende, contra a razão e contra
a fé, dar razão das que estão acima da razão” (SAN BERNARDO, 1950, p. 997).
3. No que se refere às citações dessa obra, utilizar-se-á a seguinte tradução: ABE-
LARDO, Pedro. Lógica para principiantes. Tradução do original em latim de Car-
los Arthur Ribeiro do Nascimento. 2ª ed. São Paulo: UNESP, 2005a.
4. ARISTÓTELES, Metafísica, XIII, 4, 1078 b 28.

66 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 65-85, jul./dez. 2012


O método dialético e o sic et non de Pedro Abelardo

como a forma ou a espécie5, enquanto que na acepção aristotélica, o


universal é a forma ou a substância6, de modo que somente destes é
que existe ciência.
Em termos lógicos, a definição de universal dada por Aristóte-
les, “o que, por sua natureza, pode ser predicado de muitas coisas7”,
tornou-se clássica. Porfírio (ca. 232/3-304), no início de sua Isagoge8
– obra na qual comenta as categorias aristotélicas do ser – apresenta
três questões quanto ao gênero e às espécies: 1) se eles subsistem ou
encontram-se somente no pensamento; 2) se subsistentes, são corpó-
reos ou incorpóreos e 3) se são separados ou subsistem nos sensíveis
e relativamente a estes.
Boécio (ca. 470-525), ao traduzir e comentar a obra de Porfí-
rio, transmitiu tais questões à posteridade, de modo que a Isagoge
constitui-se numa introdução ao estudo da filosofia aristotélica.
A proeminência do problema dos universais no século XII se
deve a um conjunto de fatores, dentre eles podem-se mencionar as
transformações socioeconômicas e políticas impulsionadas por uma
época de relativa paz, o que fez acentuar a produção agrícola por
meio da invenção de expedientes relativamente simples que, à época,
revolucionaram a vida no campo, como “o moderno atrelamento
dos animais, a coelheira dura, os tirantes, a disposição em fila e a
ferragem com pregos9”. Surgiram as cidades e nestas um movimento
intelectual que atraiu jovens estudantes de várias partes.
Mencionem-se ainda os problemas de ordem teológica, como a
discussão acerca da Trindade. Roscelino, por exemplo, ao adotar a
postura nominalista insistia que em Deus, como nas espécies criadas,

5. PLATÃO, Parmênides, 132 a.


6. ARISTÓTELES, De Interpretatione, 17 a 37.
7. Idem, 7, 17 a 39.
8. PORFÍRIO, 1994, pp. 18-23.
9. BEUJOUAN, 1959, p. 143.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 65-85, jul./dez. 2012 67


Pedro Rodolfo Fernandes da Silva

os indivíduos é que são reais, culminando assim numa interpretação


triteísta10. Desse modo, o problema dos universais parece que per-
passou várias áreas da vida social e cultural do século XI ao XV.
Abelardo também se deteve a tratar o problema dos universais,
sobretudo na introdução da obra Logica Ingredientibus. Depois de
abordar as três espécies de filosofia (especulativa, moral e racional),
Abelardo glosa o início da Isagoge de Porfírio, para, ao fim da intro-
dução, dedicar-se a responder às três questões clássicas apresentadas
por Porfírio, acrescentando a essas uma quarta:
[...] será que é necessário que tanto os gêneros como as espécies,
enquanto são gêneros e espécies, tenham alguma coisa subordi-
nada através da denominação ou se, destruídas as próprias coisas
denominadas, então o universal poderia constar da significação da
intelecção, como este nome “rosa” quando não há nenhuma das
rosas às quais é comum11.
Antes de responder às clássicas questões sobre o problema dos
universais, Abelardo se depara com as posições assumidas por seus
contemporâneos e as refuta, sobretudo a postura representada por seu
mestre, Guilherme de Champeaux, um representante do realismo.
Apesar dos matizes que a postura realista assume, podemos re-
sumi-la dizendo que os realistas “colocam uma substância essencial-
mente a mesma em coisas que diferem umas das outras pelas formas;
essa é a essência material dos singulares nos quais está presente, e é
uma só em si mesma, sendo diferente apenas pelas formas dos seus
inferiores12”.
Como crítica ao realismo, afirma Abelardo que
[...] se essencialmente o mesmo, embora marcado por diversas
formas, existe nos singulares, é necessário que a substância que é
afetada por estas formas seja a que é marcada por aquelas, de tal

10. Cf. GILSON, 2001, p. 290.


11. ABELARDO, 2005a, p. 51-2.
12. ABELARDO, 2005a, p. 55.

68 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 65-85, jul./dez. 2012


O método dialético e o sic et non de Pedro Abelardo

modo que o animal formado pela racionalidade é o animal for-


mado pela irracionalidade e, assim, o animal racional é o animal
irracional e, desse modo, os contrários estariam presentes simulta-
neamente no mesmo13.
Dessa forma, a crítica de Abelardo aponta para o fato de que o
realismo ignora que há entre os seres diferença e multiplicidade, e
acaba por permitir a contradição nas sentenças e nos próprios seres,
pois o gênero seria afetado tanto pela racionalidade quanto pela ir-
racionalidade.
A crítica de Abelardo prossegue, na Logica Ingredientibus, com
relação aos matizes que o realismo pode assumir, sempre mostrando
a impossibilidade de que a essência absolutamente idêntica, tomada
como coisa, exista simultaneamente em seres diversos. Em síntese,
a conclusão da crítica de Abelardo é de que não é possível entender
os universais como coisas (res), restando somente a possibilidade de
entendê-los como palavras (voces)14. Na crítica de Abelardo ao rea-
lismo pode-se vislumbrar uma tomada de posição implícita sobre a
natureza das coisas, que são estritamente individuais, excluindo-se
toda forma de universalidade real.

O nominalismo de Abelardo e o problema da significação


Abelardo não apenas propõe seu nominalismo, negando que
existam coisas universais. Ele também afirma que os universais são
palavras – ou, mais precisamente – afirma que os universais são voces
(termo usado em latim para uma palavra escrita ou falada)15.
Quando, na Logica Ingredientibus, Abelardo argumentou que os
universais são voces, ele claramente pretendia insistir que eles não

13. Idem, ibidem, p. 57.


14. ABELARDO, 2005a, p. 66.
15. Na Logica Nostrorum Abelardo sustenta que os universais não são voces, mas
sim sermones. Cf. FUMAGALLI, 1969, p. 8.

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Pedro Rodolfo Fernandes da Silva

são coisas de espécie alguma. Mas, alguém poderia objetar, dizendo


que as palavras (voces) em si são coisas. Para um leitor moderno, isto
pode parecer um trocadilho pedante, mas para um filósofo do século
XII que compartilhasse desse entendimento sobre voces, tal objeção
seria motivo de preocupação.
Palavra não é uma tradução completamente exata de vox. Lite-
ralmente, vox significa “voz”. Após Prisciano16, gramáticos e filósofos
do século XII utilizaram vox para se referir aos sons produzidos pelas
cordas vocais de homens e outros animais.
Esses sons podem ser sem sentido (como acontece com os sons
sem sentido do balbuciar de um bebê), ou significativos. Palavras
significativas (voces significativae) podem ter sua importância natural
(como acontece com o latido, que indica que um cão tem raiva) ou
por imposição e convenção humana: tais voces (voces significativae ad
placitum) são ordinariamente significados pelo termo palavras.
De acordo com Marenbon17, quando Abelardo diz que os uni-
versais são voces, ele quer dizer que são voces significativae ad placitum
(palavra significativa por convenção). Isto não significa, contudo,
responder à acusação de que voces são coisas. Se possui sentido ou
não, uma vox é o que é produzido pela ação das cordas vocais: ele
é, na definição dada por Prisciano, o ar muito fino que é golpeado.
Essa questão foi objeto de inúmeras controvérsias entre os lógi-
cos e gramáticos no início do século XII. Alguns argumentaram que
voces têm ar (como Prisciano parece sugerir), e, portanto, substância.
Outros, baseando-se na autoridade de Aristóteles e Boécio, encon-
traram meios para explicar a definição de Prisciano, afirmando que
voces são as medidas do ar atingido pelas cordas vocais e seriam, por-
tanto, acidentes da categoria de quantidade. Abelardo – pelo menos
no período em que escreveu a Logica Ingredientibus – tratou a po-

16. Priscianus Caesariensis, gramático latino do século VI.


17. MARENBON, 1997, p. 177.

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O método dialético e o sic et non de Pedro Abelardo

lêmica como uma questão meramente verbal, embora insistisse que


voces remetia a uma medida de ar, e não ao próprio ar18.
Assim, quando Abelardo fala de voces, ele obviamente quer con-
siderá-las como portadoras de significados, ou seja, o universal não
se predica de muitos enquanto uma essência comum a vários, pois
“não há participação em alguma realidade comum, mas somente
uma participação no mesmo predicado, que não representa uma re-
alidade diversa nas coisas”19.
Essa participação no mesmo predicado atribuído a vários desig-
na uma condição própria de cada indivíduo, denominada por Abe-
lardo de status: “também podemos chamar de estado de homem as
próprias coisas estabelecidas na natureza do homem, das quais aque-
le que lhes impôs a denominação concebeu a semelhança comum”20.
O estado de homem, por exemplo, não designa algo diverso des-
te homem individual, mas sim que este é um homem. Portanto, o
estado “pende para o lado das coisas e é o correlato ex parte rerum
da palavra universal. Abelardo o caracteriza como um esse tale, por
exemplo, esse hominem para os indivíduos humanos”21.
Além de vox, Abelardo também se utilizou de sermo. O empre-
go e a distinção estabelecidos entre vox e sermo apontam para uma
importante questão: as palavras são universais apenas porque as con-
venções humanas as fazem tais, ao invés de apenas sons.
Sermo, por sua vez, significa “discurso”. Trata-se de um termo
que não era usado pelos lógicos para escrever sobre os universais e
para o qual Abelardo pretende dar um novo significado técnico.
Apesar de idênticos na sua essência, vox e sermo diferem na ori-
gem. Vox deve sua origem à natureza, afirma Abelardo - vox é ou um

18. Idem, ibidem, p. 177-8.


19. BOEHNER & GILSON, 2000, p. 300.
20. ABELARDO, 2005a, p. 73.
21. NASCIMENTO, 2005, p. 32, nota 5.

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Pedro Rodolfo Fernandes da Silva

sopro de ar ou a sua medida. Sermo, por sua vez, deve sua origem
à convenção humana - sermo é uma palavra portadora de significa-
do (significatio). As palavras transmitem significados porque certo
grupo de sons é aceito por convenção (seguindo um ato original de
imposição), como o nome dado para as coisas de uma espécie22.
O que Abelardo não analisa é que há algo de verdadeiro entre o
que é uma entidade física e o que foi estabelecido com um significa-
do de acordo com as convenções humanas.
Embora a compreensão de Abelardo sobre os universais fosse
muito influente, pelo menos por algumas décadas a sua tentativa
de introduzir sermo como um termo técnico teve pouco sucesso.
Quando da revisão da Theologia Sumi Boni para escrever a Theologia
Christiana, Abelardo substituiu devidamente sermones por voces em
uma passagem onde ele explicitamente contrastou o enunciado das
palavras com a sua função de significante23.
Mas, mesmo nas Glosas, Abelardo não tende a usar a palavra ser-
mo após a sua primeira discussão sobre tal assunto. Ele prefere usar
os termos mais comuns entre os lógicos, tais como vocabulum e no-
mem, para significar palavras impostas que comportam um sentido
(em contraste com voces). Desse modo, não é de admirar, então, que
aqueles que adotaram a leitura de Abelardo sobre os universais e so-
bre muitas outras questões, ficaram conhecidos na segunda metade
do século XII não como “sermonalistas”, mas como “nominalistas”.
Do exposto, segue que Abelardo, ao negar a existência real dos
universais, postula a noção de que o universal é uma vox ou um
sermo. Resta entender de que modo ocorre essa imposição de um
universal a um conjunto de coisas. Certamente que não é do mesmo

22. Cf. Sup. Porf. IN: MARENBON, 1997, p. 178.


23. Cf. Theologia Sumi Boni 150: 950-3, modificada em Theologia Christiana
255: 1955-9. In: MARENBON, 1997, p. 179.

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O método dialético e o sic et non de Pedro Abelardo

modo como afirmou Roscelino24 dizendo que os universais são me-


ros flatus vocis (sons vazios).
Afirma Abelardo na Logica ingredientibus que os universais “sig-
nificam pela denominação coisas verdadeiramente existentes, isto é,
as mesmas que os nomes singulares e que, de modo algum, estão
colocados numa opinião vazia”25.
Pode-se afirmar com Boehner e Gilson que, para Abelardo, a
“universalidade convém aos nomes enquanto estes exercem a função
de expressões significativas”26, ou seja, os universais designam as coi-
sas segundo um modo próprio de significação (significatio).
No início do século XII os lógicos tendiam a usar a palavra sig-
nificatio em um sentido amplo – segundo o qual qualquer modo em
que a linguagem representa um pensamento ou uma coisa é um tipo
de significação.
Um bom exemplo do uso que Abelardo faz da significação no
sentido amplo é quando, na Dialectica, ele distingue quatro tipos
principais de significação: por imposição, determinação, geração e
exclusão.
Com o desenvolvimento de seu pensamento lógico, Abelardo
tornou-se ainda mais seguro deste ponto de vista, de modo que ten-
deu a usar significatio no sentido mais rigoroso. Assim, tal termo foi
empregado por Abelardo no sentido de que significar x (alguém ou
algo) é causar um ato mental de compreensão de x em alguém ou,
simplificando, causar um pensamento de x em alguém.
Contra o recurso ao plano gramatical, segundo o qual cada pala-
vra significa todas as coisas que a nomeia e a causa da qual é imposta,
Abelardo sustenta um critério mais determinado e preciso de signifi-

24. GILSON, 2001, p. 289.


25. ABELARDO, 2005a, p. 87.
26. BOEHNER & GILSON, 2000, p. 306.

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Pedro Rodolfo Fernandes da Silva

catio. Não podemos atribuir à significatio uma função que ultrapassa


esses limites: o significado de um nome é exclusivamente o que é
chamado por esse nome.
As respostas de Abelardo aos problemas colocados por Porfírio
também possibilitam entrever a noção de indivíduo, que parece ser
cara a Abelardo.
Com relação à primeira pergunta porfiriana – se os gêneros e as
espécies subsistem, responde Abelardo que o universal “significa pela
denominação coisas verdadeiramente existentes, isto é, as mesmas
que os nomes singulares e que, de modo algum, estão colocados
numa opinião vazia”27.
Em relação à segunda questão – se os subsistentes são corporais
ou incorporais – responde Abelardo que os nomes universais podem
ser “corporais, isto é, separados na sua essência, e incorporais quanto
à designação do nome universal, porque não os denominam separa-
da e determinantemente, mas confusamente”28.
A terceira questão porfiriana pergunta se os universais, sendo
incorporais, são eles separados das coisas sensíveis ou subsistentes
nelas, ao que responde Abelardo que
[...] os universais subsistem nos sensíveis, isto é, que significam
a substância intrínseca existente na coisa sensível em virtude das
formas exteriores e que, significando essa substância que subsiste
em ato na coisa sensível, manifestam-na contudo, como natural-
mente separada da coisa sensível29.
Compreendendo-se incorporal e corporal como sensível e não
sensível, a terceira questão remonta à segunda, de modo que o uni-
versal é sensível ou corporal enquanto voces e não sensível ou incor-
poral enquanto significatio.

27.ABELARDO, 2005a, p. 87.


28. Idem, ibidem, p. 89.
29. ABELARDO, 2005a, p. 89-90.

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O método dialético e o sic et non de Pedro Abelardo

Por fim, a quarta questão colocada pelo próprio Abelardo acerca


do fato de que, se todas as coisas denominadas pelo nome universal
fossem destruídas, poderia ainda o universal consistir apenas na sig-
nificação da intelecção, ao que responde Abelardo que
[...] de modo algum admitimos que haja nomes universais quan-
do, tendo sido destruídas as suas coisas, eles já não são predicáveis
de vários, porquanto nem são comuns a quaisquer coisas, como
o nome da rosa, quando já não perduram mais rosas, o qual, en-
tretanto, ainda é então significativo em virtude da intelecção, em-
bora careça de denominação, pois, de outra sorte, não haveria a
proposição: não há nenhuma rosa30.
Uma vez expostas as respostas de Abelardo quanto ao problema
dos universais, pode-se inferir que há uma ruptura entre o indivíduo
e o gênero, de modo que o primeiro de fato existe empiricamente,
enquanto o segundo é um nome designativo segundo um modo pró-
prio de significação.
Verifica-se que de acordo com Abelardo todas as coisas que en-
contramos no mundo são singulares. Assim, uma cor que vemos, ou
um som que ouvimos, é também uma determinada coisa singular.
Em suas obras que versam sobre lógica, Abelardo insiste na distinção
entre o singular e o universal, na unidade do indivíduo e na diferen-
ça entre ambos31.
Segundo Jacobi32, Abelardo reconhece que em alguns casos te-
mos nomes próprios a nossa disposição para a nomeação de coisas
singulares, como por exemplo, o nome de um determinado humano
singular. Com efeito, é precisamente da função do nome próprio
marcar uma coisa singular como tal. Assim, os substantivos próprios
são usados repetidas vezes - isto é, para nomear diferentes pessoas
ou coisas. Mas não se deve procurar uma propriedade comum das

30. Abelardo, 2005a, p. 91.


31. ESTÊVÃO, 1990, p. 23.
32. JACOBI, 2004, p. 133.

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Pedro Rodolfo Fernandes da Silva

pessoas ou coisas nomeadas, pois nesse caso, os nomes próprios re-


presentam, por assim dizer, uma multiplicidade de coisas de modo
equívoco.
O caso é diferente, porém, quando nomeamos as coisas singula-
res por meio de um termo descritivo, conjugado com um pronome
demonstrativo: “essa substância”, “este corpo”, “este animal”, “este ho-
mem”, este branco etc. Aqui entendemos não só a coisa singular, mas
também algo sobre essa coisa singular, ou seja, que é uma substância,
ou um corpo. Ao indicar a coisa singular, desta forma, dirigimos nossa
atenção sobre ela com referência a um aspecto bem definido.

A lógica aplicada à teologia: o Sic et Non e o método


dialético
O Sic et Non parece representar muito bem a intersecção entre
os escritos de lógica e de teologia e por isso merece lugar à parte.
Escrito provavelmente entre os anos de 1121 e 1132 e composto de
158 questões reunidas em três conjuntos (fé, sacramento, caridade)
e estruturadas no estilo da disputatio, servindo de modelo para o que
mais tarde serão as Sumas, o texto propõe o método dialético no
estudo da teologia, enfatizando o cuidado com o entendimento das
palavras, pois há momentos em que estas são usadas, por exemplo,
de acordo com o público ao qual é dirigido:
O que mais nos impede de chegar à comunicação é o modo inu-
sitado de locução e muitas vezes também o significado diferente
das palavras, quando a mesma é usada uma vez num sentido, ou-
tra vez noutro. Acontece que assim como uma pessoa é rica em
ideias, também o é em palavras. Segundo Cícero: “A identidade
em todas as coisas é a mãe da saciedade”, isto é, provoca fastídio.
Por isso convém que num mesmo assunto as palavras variem, e
que nem tudo seja apresentado com palavras vulgares e comuns,
pois, como diz Santo Agostinho, certas coisas são encobertas para
que não percam valor, e são tanto mais preciosas quanto com mais
diligência foram investigadas e, com mais esforço, conquistadas.

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O método dialético e o sic et non de Pedro Abelardo

Seguidamente acontece também que, devido à diversidade daque-


les com quem falamos, as palavras devem ser modificadas, pois
sucede com frequência que o significado próprio das palavras é
desconhecido para alguns ou pouco usado por eles33.
Assim, questões como: se a fé deve se basear somente em razões
humanas, ou não? Se a fé diz respeito somente às coisas invisíveis, ou
não? Será que Deus tem livre arbítrio, ou não? Algo acontece contrá-
rio à vontade de Deus, ou não? Deus tudo sabe, ou não; trazem no
enunciado a contradita de modo a estabelecer o confronto entre os
textos, os quais Abelardo deslinda em busca de uma solução que não
contradiga, necessariamente, as autoridades invocadas.
Segundo Jolivet34, nessa obra, o objeto e o método dialéticos de-
pendem mais estritamente da questão da linguagem da fé. Acrescen-
ta ainda que esta obra está dividida em duas partes: uma compilação
de textos tirados, na maior parte, dos “santos” (Padres da Igreja) e
um prólogo.
Dessa forma, quando são encontradas variações ou contradi-
ções nos textos dos Santos Padres, deve-se examinar com cuidado
o que poderia ser a causa dessas diferenças e considerar o tempo, as
circunstâncias e as intenções do escritor. Além disso, comparando
cuidadosamente os diferentes significados da mesma palavra em di-
ferentes autoridades, chega-se facilmente à solução da dificuldade.
Essa prática da oposição sistemática dos textos, embora encontrasse
reserva em alguns círculos restritos, tornou-se algo como a dúvida de
Descartes ou as antinomias de Kant.
Se Abelardo nunca publicara este escrito, ele talvez não o tivesse
feito por receio de por em perigo a unidade da crença e também por-

33. ABELARDO, 2005b, p. 116-7. Além desse texto que é uma tradução elabora-
da por Luís Alberto de Boni a partir de: PETER ABAILARD. Sic et Non. A Crit-
ical Edition. Chicago, 1976; utilizar-se-á a edição Ed. J.-P Migne. Paris: Migne,
1855. Sic et non. Patrologia latina. Vol. 178.
34. JOLIVET, 1994, p. 83.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 65-85, jul./dez. 2012 77


Pedro Rodolfo Fernandes da Silva

que isso implicaria em perigo para si mesmo, pois se sabe que o livro
era suficiente para comprometer o autor que se encontrava por essa
época acusado no Concílio de Soissons, em 1121, o qual condenara
por heresia a obra Theologia Summi Boni.
Gilson exalta a importância histórica do Sic et non e acresce o
seguinte comentário:
Essa obra reúne os testemunhos aparentemente contraditórios da
Escritura e dos Padres da Igreja sobre um grande número de ques-
tões. Abelardo erige em princípio que não se devem utilizar arbitra-
riamente as autoridades em matéria de teologia. Quanto à intenção
que determinou a composição da obra, nada permite ver nela, como
por vezes se obstina a fazer, o desejo de arruinar o princípio da au-
toridade, opondo-se os Padres da Igreja uns aos outros. Abelardo
declara expressamente, ao contrário, que reuniu essas contradições
aparentes para levantar questões e suscitar nos espíritos o desejo de
resolvê-las. O método do Sic et non é inteiramente incorporado à
Suma teológica de Santo Tomás, em que cada questão opõe as auto-
ridades a favor às autoridades contra, mas desenlaça essa oposição
escolhendo, determinando e provando a solução35.
Carvalho36 observa que essa obra colige mais de duas mil cita-
ções devidamente classificadas, o que suporia um trabalho em equi-
pe e um rico acervo bibliográfico ou a utilização de um ou vários
florilégios.
De fato, o período em que a obra foi escrita, tomando por refe-
rência a datação proposta por Mews37, corresponde a onze anos de
trabalho intercalados com a redação de outras obras, dentre as quais
o Dialogus e a Historia Calamitatum, bem como a experiência como
abade em São Gildas e o retorno a Paris ao monte de Santa Geno-
veva onde fundou escola. Nesse ínterim, Abelardo tomou contato
com uma variada gama de textos e foi auxiliado por alunos que o

35. GILSON, 2001, p. 342.


36. CARVALHO, 2001, p. 26.
37. MEWS, 1986, p. 122; 131.

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O método dialético e o sic et non de Pedro Abelardo

acompanhavam – o que de algum modo explicaria a riqueza desse


texto. Marenbon38 aponta nesse mesmo sentido que para a redação
do Sic et non Abelardo usou, como um estudante atualmente pode-
ria usar, um arquivo de fichas (card index) para coletar material para
seus escritos sobre teologia. Assim, parece não pairar dúvidas quanto
ao esforço de Abelardo em deslindar o texto sagrado e os textos dos
padres à luz lógica dialética.
Para Abelardo, a busca da evidência na linguagem deve estar
acima da eloquência, pois pela primeira pode-se chegar à verdade
enquanto que pela segunda incorre-se na incompreensão ou na com-
preensão distorcida dos ouvintes. Citando Agostinho39, afirma que
as palavras possuem uma característica insigne: amar a verdade mais
que as palavras. Portanto, as palavras devem ser um meio para o en-
contro com a verdade e não a própria verdade.
O problema posto por Abelardo no prólogo centra-se na discus-
são sobre os cuidados necessários ao cotejar passagens da escritura
entre si e passagens da escritura com os textos dos santos padres:
Se, pois, algumas coisas nos Evangelhos foram corrompidas devi-
do à ignorância dos copistas, por que admirar-se se há casos seme-
lhantes nos escritos dos padres posteriores, que gozavam de uma
autoridade muito menor? Se, pois, nos escritos dos santos, parece
que algo não condiz com a verdade, então é piedoso, conforme
a humildade e devido pela caridade (‘que tudo crê, tudo espera e
tudo suporta’ – 1 Cor 13,7 – a fim de não supor facilmente erros
naqueles a quem ama), que creiamos que esta passagem do texto
não foi fielmente interpretada ou foi corrompida, ou nós não a
conseguimos compreender40.
Posto o problema, pode-se afirmar que o papel da dialética nesse
trabalho de separar o joio do trigo, de deslindar o texto sagrado e os

38. MARENBON, 2004, p. 24.


39. AGOSTINHO, Sobre a Doutrina Cristã 11; PL 34, 108. IN: DE BONI,
2005, p. 117, nota 6.
40. ABELARDO, 2005b, p. 119.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 65-85, jul./dez. 2012 79


Pedro Rodolfo Fernandes da Silva

textos dos santos padres é de servir de instrumento para a busca da


verdade. A dialética busca a verdade no discurso, examinando atenta-
mente os significados dos termos utilizados e observando a tempora-
lidade e a causalidade do que é dito, pois seguidamente acontece que
aquilo que é concedido num tempo é proibido noutro e que a cau-
sa que motiva certo discurso pode não ser a causa última do discurso
que se pretende verdadeiro: a caridade, pois uma “[...] coisa é mentir,
outra, errar ao falar e afastar-se da verdade pelas palavras, não pela
malícia41”. A primeira implica no ato da consciência que intenciona
enganar, a segunda implica no descuido do emprego da palavra que
se pretende verdadeira, mas que eventualmente pode enganar.
Nesse ponto da análise desponta a dimensão ética do discurso:
a intenção de proferir a verdade, ainda que eventualmente possa in-
correr no risco de enganar ou omitir o que edifica.
[...] Quem pensa que entendeu as Sagradas Escrituras ou alguma
parte delas, saiba que não as entendeu se pela compreensão que
tem não for levado ao duplo amor, de Deus e do próximo. Quem,
porém, afirmar algo que seja útil para edificar a caridade, nem
enganou maliciosamente, nem mentiu se disse algo que o leitor
não julga ser a interpretação correta daquele tópico. No mentiroso
existe a vontade de dizer algo falso42 [...].
O discurso ético é, portanto, aquele que carrega a boa intenção
do orador em edificar a caridade no ouvinte. Ainda que isso não seja
suficiente – pois há que se ter os cuidados no emprego dos termos de
modo a evitar incompreensões ou equívocos – a intencionalidade é o
critério último para avaliar a moralidade do discurso. O cuidado no
emprego dos termos e a boa intenção do agente são os elementos fun-
damentais para que o discurso se aproxime maximamente da verdade.
A concepção de Abelardo acerca dos universais evidencia-se na
leitura dialética da escritura e dos santos padres realizada no Sic et

41. Idem, ibidem, p. 126.


42. ABELARDO, 2005b, p. 125.

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O método dialético e o sic et non de Pedro Abelardo

non: a análise dos significados dos termos singulares como possibi-


lidade da verdade do texto sagrado. A dialética, como instrumento
para compreensão dos mistérios da fé. Dessa forma, Abelardo inicia
o estudo da teologia enquanto ciência que perscruta os mistérios
divinos à luz da razão, pois “[...] duvidando chegamos à procura, e
procurando chegamos à verdade”43.
A inquirição é de fato a primeira chave do conhecimento; é a
questão diligente e frequentemente praticada pelos filósofos perspi-
cazes de alta qualidade. Tal postura, porém, fez com que a filosofia
de Abelardo recebesse de alguns de seus contemporâneos o rótulo de
ceticismo religioso. No entanto, tal rótulo era injusto. O espírito de
investigação pode levar ao ceticismo, mas não é o ceticismo. Abe-
lardo era um cristão e pode ter caído em erro, mas não em dúvida.

Conclusão
A filosofia de Pedro Abelardo, fundamentando-se na noção ló-
gica de singularidade, caracteriza o método dialético como a busca
da verdade no discurso, examinando atentamente os significados dos
termos utilizados e observando a temporalidade e a causalidade do
que é dito. Assim, a dialética prima pela busca da verdade no singu-
lar, realidade última de toda existência e de todo discurso.
A verdade não pode ser buscada fora da singularidade, pois nesta
é que se pode observar as condições reais de existência. Da mesma
forma, a dialética na análise do discurso deve considerar o signifi-
cado dos termos em seu contexto, fora do qual poderia assumir a
universalidade e implicar em equívocos.
No Sic et non Abelardo investiga em 158 questões relativas à
fé, aos sacramentos e à caridade, constando de várias passagens da
escritura e dos santos padres que são confrontadas porque inspiram

43. Idem, ibidem, p. 129.

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Pedro Rodolfo Fernandes da Silva

contradição numa primeira e rápida leitura. Assim, questões como


“a fé diz respeito somente às coisas invisíveis, ou não?”, “será que
Deus tem livre arbítrio, ou não?”, “algo acontece contrário à vontade
de Deus, ou não?”, “Deus tudo sabe, ou não?” trazem no enunciado
a contradita de modo a estabelecer o confronto entre os textos, os
quais Abelardo deslinda em busca de uma solução que não contradi-
ga, necessariamente, as autoridades invocadas.
Exemplo do emprego do método dialético na discussão teológi-
ca, o Sic et non pode ser considerado como ponto de partida natural
do espírito de investigação aplicado à teologia, ou seja, à tradição
escrita das doutrinas cristãs. Pela inquirição e confrontação exaus-
tiva do texto sagrado e dos textos dos Santos Padres, Abelardo não
pretendia exaurir o senso do mistério destas fontes, antes, porém,
pretendia aclarar e eliminar as dúvidas decorrentes de leituras e in-
terpretações equivocadas. Abelardo foi um cristão e enquanto tal
poderia cair em erro, mas não em dúvida, e se, pelo seu raciocínio,
alterou a fé, nunca buscou, porém, enfraquecê-la.

Referências
Obras de Abelardo
ABELARDO, Pedro. Lógica para principiantes. Tradução do original
em latim de Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento. 2ª ed. São Pau-
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Geyer. 4 vol. Münster: 1919, 1921, 1927 e 1933.
ABAELARDUS. Petrus. Petri Abaelardi Sic et non. J. P. MIGNE. Pa-
trologiae Cursus Completus, Series latina, Tomus CLXXVIII. Pari-
siis: 1885, col. 1329-1610.

82 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 65-85, jul./dez. 2012


O método dialético e o sic et non de Pedro Abelardo

ABAELARDUS, Petrus. Dialectica. First Complete Edition of de Pari-


sian Manuscript by L.M. De Rijk. Assen, Van Gorcum, 1956.

Demais obras
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DE BONI, Luís Alberto. Filosofia medieval – Textos. 2ª edição: Porto
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A participação política e o
regimento da coisa pública
nos escritos de Francesc
Eiximenis
Rogério Ribeiro Tostes*
Dennys Robson Girardi**

Resumo: Francesc Eiximenis, franciscano minorita de origem


catalã, exercera profunda influência sobre os últimos soberanos da
dinastia de Barcelona, ao mesmo tempo em que se tornava o porta-
-voz dos ideais do patriciado urbano de Catalunha e Valência. Por se
mostrar atuante nesta posição lhe foi possível plasmar novos conte-
údos a antigos conceitos que justificavam a potestade soberana das
monarquias medievais. Por essa via, vendo na res publica christiana
a imagem do corpo político, Eiximenis valorizaria a máxima fide-
lidade dos membros ao bem comum, a vez que imporia uma severa
restrição à titularidade real, rebaixando a razão em que jazia a cabeça
ao mesmo nível do pacto firmado pela concórdia dos membros.

I. A modelação do civismo comunal na experiência


mediterrânica
Adianta-se saber que posicionar um elenco de abstrações medie-
vais para a origem da autoridade da lei – ou, conforme for o caso,

* Universitat de Lleida, Inst. Raimundo Lúlio-IBCFRL.


** FAE Centro Universitário, Inst. Raimundo Lúlio-IBCFRL.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012 87


Rogério R. Tostes e Dennys R. Girardi

para o fundamento da soberania de estado – não deve nos trazer


nada de novo junto àqueles que ainda buscam da filosofia política o
situ nascendi de seu Estado moderno. Entretanto, vendo a insistência
com que o tema evolui, é preciso dar algum relevo a questionamen-
tos que se contraponham a uma apreensão ideológica de suas causas;
ponderando com isso acerca dos tradicionais limites em que se usam
os medievais como ancestrais de uma virtualidade lógica, tão extensa
quanto a mesma ideia de civilização ocidental. Na emergência de
debates como esse se espera recolher novas evidências para a demons-
tração de um modelo que tem seus equivalentes em cima da in-
terpretação do pensamento histórico. Com efeito, tal modelo segue
no aprofundamento daquelas pistas que alimentam uma percepção
linear da história do pensamento político, construída tantas vezes
em base teleológica. Logo se abre uma escolha imediata, mas tão
implícita quanto delicada, acerca do papel que tais operações her-
menêuticas investem na contribuição desse “projeto civilizacional”1.
Mesmo que a discussão em torno dos escritos políticos do frade
Eiximenis também possa dar sua contribuição a uma coleção de está-
gios do itinerário estatal, ela não se supõe caminhar no rumo de tão
coincidentes circunstâncias históricas2. Ao revés, a inserção temporal
eiximeniana requer uma leitura entre seus congêneres ideológicos. É

1. Para uma discussão prévia, v. “A formação do direito medieval e os vícios da


retórica filogenética do estado” In: TOSTES, Rogério Ribeiro. “Ells tenen a nós
com a senyor, e nós a ells com a bons vassals e companyons” Principatus Catha-
loniae, o aparato institucional e seu verbum: Dos Usatges de Barcelona às Cortes
Gerais de Montsó (1382-1384). Universidade Federal do Paraná, Dissertação de
Mestrado em História, Curitiba, 2011, p. 93-120.
2. Assim o veremos, a exemplo das celebrações em torno de Eiximenis e dos seis-
centos anos de sua morte, como um pretexto pode emergir para se sancionar de
última hora o autonomismo dos catalães e trazer, na esteira do civismo republica-
no, o discurso já familiar do pactismo político medieval. É a mesma percepção que
faz revelar a “surpreendente atualidade” e a vigência dos problemas enfrentados
séculos atrás, que tornam conclusivas suas projeções nessa narrativa da história:
“Sus ecos, en pleno siglo XXI, no se han apagado, como entenderá cualquiera que
considere las vicisitudes por las que han pasado los dos Estatutos de Autonomía
aprobados por el pueblo y las Cortes bajo la Constitución de 1978”. Leia-se in:
Giner, Salvador. Orígenes del Pactismo Republicano: Francesc Eiximenis, teórico
de la virtud cívica, El Pais, Madrid, 13 de enero de 2010.

88 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012


A participação política e o regimento...

através deles que se entretecem valores de um modelo orgânico de


sociedade, que, além de assumir a liça aristotélica de São Tomás, já
fizera evocar o espaço citadino como experiência fundamental para
a res publica cristã.
Na longa disputa política que marca a cronologia da Baixa Idade
Média, disputa entre os poderes temporais e espirituais sediada por
Império e Papado, é que se incrementam os seus elementos institu-
cionais, pelo menos a partir do século XIII. Foi sob este recuo cro-
nológico que se atenuou a primazia dos velhos valores feudo-senho-
riais, conectos ao universo setentrional europeu, para começar outro
embate no qual se contrastariam as novas concepções organicistas de
comunhão política.
É quando entram em causa as interpretações sobre a natureza da
sociedade política e sobre os fundamentos soberanistas daqueles que
se colocam à testa de seu comando. Seguindo um esquema repetido
alhures por W. Ullmann – o mesmo que assinala no medievo os
umbrais do estatismo moderno –, emerge a relação de forças conhe-
cida como “poder ascendente”, momento em que se transferem as
concepções tomistas de natureza e lei natural à legitimidade de um
corpo orgânico, resvalando, pura e simplesmente, à ideia de comu-
nidade política3. Ali, a soberania é interpretada segundo a mística
de uma ascese mais profunda, a do corpus mysticum, que recupera
a analogia paulina da esperança salvífica advinda da revelação, uma
analogia que integra o crente a uma posição cósmica, mas também
reproduz em suas conexões um agente voluntarioso do sujeito por
decorrência da graça que este alcança no “tempo da predestinação”;
uma graça mediada pela comunhão do saber revelado, “de modo que
a esperança não cede ao desapontamento porque se apoia na graça

3. ULLMANN, Walter. Historia del pensamiento político en la Edad Media.


Trad. esp. Rosa Vilaró Piñol. 7a reimpressión. Barcelona: Editorial Ariel, 2009,
p. 190-194.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012 89


Rogério R. Tostes e Dennys R. Girardi

(charis) derramada em nossos corações pelo espírito santo (pneuma


hagion), que nos foi concedido”4.
Nessas transferências de sentido, se inseriam, subrepticiamente,
as finalidades do regime político em linha aristotélico-tomista. É tam-
bém em razão disso que se naturalizaria o posto do governante e seu
papel eletivo, tal como destacado pelos escolásticos, que de João de
Paris, João de Salisbury até os escritos de Marsílio de Pádua, teorizam
a participação do comum na sociedade civil5. O soberano porta os mis-
térios do direito, manifesto como sacerdócio da lei e que envolvia uma
profunda convicção da sacralidade desse encargo à maneira pontifical6.
Em todas estas formulações se detectam argumentos gerais, es-
pecificados depois pelos matizes que representam as suas próprias
tradições institucionais. No caso de fixar o ambiente de influência do
frade Eiximenis, nosso interesse tende aos modelos de bom governo
desenvolvidos no interior das comunas do centro-norte da Itália7;

4. VOEGELIN, Eric. A era ecumênica. Ordem e História, volume IV. Trad. Ed-
son Bini, da versão em língua inglesa. São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 311.
5. Cf. VILLEY, Michel. La Formation de la pensée juridique moderne. Paris:
Quadrige/PUF, 2003, p. 181-200. Ou, para o polêmico debate travado com este
último acerca da invenção dos direitos naturais, v. TIENEY, Brian. The Idea of
Natural Rights: Studies on Natural Rights, Natural Law and Church Law (1150-
1650). Michigan: W. B. Eerdmans Publishing Co., 1997, p. 13-42.
6. KANTOROWICZ, Ernst H. Segretos de Estado. (Un concepto absolutista y
sus tardíos orígenes medievales.) Trad. L. Rodríguez Aranda. Revista de Estudios
Políticos, nº 104, Madrid, 1959, p. 45.
7. Esta determinação geográfica recebeu alguma ênfase historiográfica que a quis
sempre justificada; entretanto, esta originalidade hoje se mostra menos restrita,
problematizada pelas investigações que matizaram essa interpretação, passando
a considerá-la também no restante da península. Tomadas suas variações locais,
nelas se veriam estimular a formulação dos ideais de civismo político, presos pela
recuperação de discursos clássicos acerca do governo ideal e o interesse do bem
comum. Dentro da multidinária bibliografia que trata do assunto, pode-se con-
sultar uma síntese mais recente, in: GILLI, Patrick. Cidades e sociedades urbanas
na Itália medieval. Séculos XII-XIV. Trad. Marcelo Cândido da Silva. São Paulo/
Belo Horizonte: Ed. Unicamp/ Ed. UFMG, 2011.

90 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012


A participação política e o regimento...

o­ u mesmo nas regiões do sul peninsular, onde havia uma predomi-


nância de grandes linhagens nobiliárias­, em que a dinâmica política
do século XIV seguiria a da protagonização dos centros urbanos, ela
própria decorrente da tensão exercida pelos vetores da monarquia e
da nobreza. Estimulou-se uma colocação de agentes institucionais,
a exemplo das facções menos poderosas ou das elites burocráticas,
cuja ascendência social firmariam a prerrogativa do espaço citadino
como núcleo ativo da comunidade. Não seriam apenas as comunas
de Pisa, Florença, Veneza, Siena ou Milão as únicas a reproduzirem
essa tônica da urbanidade; à semelhança destas, tributava-se grande
importância às formas do civismo urbano idealizado desde as oligar-
quias de Palermo, Cataneo e Messina8. Bem planeadas, essas noções
iriam germinar o corpo das instituições representativas, justamente
estimuladas pelo fator de isolamento e pela gradual soberania do
espaço comunitário, ambos mui fortalecidos com a consciência da
vida urbana e de sua exaltada “religião cívica”. Tais distinções permi-
tiam o aparecimento quase simultâneo de novos protagonistas, que
vinham das principais fileiras das elites urbanas. Com ele também
vai se caracterizando uma burguesia mais consciente de sua posição
estamental, que agora finalmente se vê incluída no esquema teológi-
co de participação ordenamental da sociedade9.
A organização dos espaços comunais italianos mostra que, em
meio a toda a verticalidade denotada com os esquemas tradicionais,
também pode ser viável um regime de governo em que se instrumen-
talizam outros meios de participação. A idealização deste modelo é
tão forte, que seus argumentos de justificação se replicam de muitas

8. Cf. CORRAO, Pietro. Fra città e corte. Circolazione die ceti dirigenti nel regno
di Sicilia fra Trecento e Quattrocento. In: ROMANO, A. (a cura di). Istituzio-
ni politiche e giuridiche e strutture del potere politico ed economico nelle città
dell’Europa mediterranea medievale e moderna. La Sicilia. Messina: Accademia
peloritana dei Pericolanti, 1992, p. 13-42. Disponível em: <www.retimedievali.it>.
9. TOSTES, Rogério Ribeiro. O nascimento do purgatório como preparação do
burguês: espaços citadinos, teologia social medieval. Revista Vernáculo, nº 17-18,
2006, p. 126-137.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012 91


Rogério R. Tostes e Dennys R. Girardi

maneiras, seja na valorização teológica dada pelos franciscanos ao


espírito da urbanidade, tanto de uma confecção cultural de novos
ideais de cortesia10. Ia-se ainda mais longe, a ponto de elaborar um
conceito de nobiltade bastante peculiar, em que as valorações do pos-
to aristocrático contidas nos estatutos comunais chegavam a manter
inclinações expressamente “antinobiliárias”11. Em regiões como Tús-
cia ou Toscana, os velhos distintivos mantidos pelos estratos milite
eram depreciados ante a preferência dos ideais de fama e fortuna,
chegando-se algumas vezes a se justapor juridicamente esses status.
Em De nobiltade legum et medicine, Coluccio Salutati afirmava que
pouco importaria a dignidade do sangue se se tomasse em conta o
brilho das virtudes professadas em honra da coisa pública12.
A ampla circulação dos esquemas comunais de organização polí-
tica – levados a distâncias remotas dentro do alforje de São Francisco
–, teriam se espraiado nos séculos XIII e XIV por uma vasta área
de contágio que se tem identificado de “arco mediterrânico”. No
espectro aberto por este arco se situam cidades que interligaram o
fluxo comercial, constituindo verdadeiros núcleos regionais onde os
grupos urbanos atuam como depositários diretos dessa racionalidade
ético-econômica13. Os territórios integrados aos domínios da Coroa

10. ROMAGNOLI, Daniela. Cortesia nella città: un modello complesso. Note


sull’etica medievale delle buone maniere. In: La città e la corte. Buone e cative
maniere tra Medioevo ed Età Moderna. Milano: Guerini, 1991, p. 24.
11. DONATI, Claudio. L’idea di nobiltà in Italia. Secoli XIV-XVIII. Roma/Bari:
Laterza, 1988, p. 3-9, referindo-se a Bartolus em seu comentário ao De Dignita-
tibus, liv. XII.
12. Idem, ibidem, p. 9, citando o De nobiltade legum et medicine de Coluccio
Salutati: “Unde et inolevit illos appellare nobiles, qui maiorum suorum claritate
conspicui sunt; non quidem antiquitate sanguinis, quoniam omnes unico descen-
dimus ab Adam, sed antiqua dominatione familie, que suum nomen, virtute pro-
genitorum, fama, gloria, potentia, dignitatibus, divitiis et clientelis diu famosum
potuit conservare”.
13. TODESCHINI, Giacomo. Mercato medievale e razionalità economica moder-
na. Reti Medievali, nº 7, Firenze, 2006/2. Disponível em: <www.retimedievali.it>.

92 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012


A participação política e o regimento...

de Aragão mantinham as mesmas continuidades dessa dinâmica. Foi


principalmente em terras catalães e valencianas que tal projeção se
converteria, também graças ao seu múnus econômico, em instru-
mento de pressão contra os velhos setores estamentais da igreja e da
aristocracia baronial14.
O aparecimento do protagonismo, ou de vários protagonismos
regionais, de setores do patriciado urbano toma parte no mesmo
movimento que alavancara as pretensões monárquicas sobre a insti-
tucionalização do seu corpo político. À base das ancoragens jurídicas
dos studia de direito romano, o pensamento dogmático dá as razões
de partida para a elaboração de uma ficção da corporação civil. Tal
como se nota no ambiente comunal italiano, os coletivos urbanos da
Catalunha e do reino de Valência adotam correlatos homólogos, se
autodefinindo personalidades jurídicas próprias, celebrando a uni-
versitas como comunidade política fundamental.
Do mesmo modo, a pujança de suas cidades é celebrada, pois
através dela se materializa o ideal agostiniano da ciuitas Dei, em que
o aprimoramento do homem se completa no cristão. A presença do
franciscanismo junto das outras ordens mendicantes reforça essa
apologia de um ideario urbano, que contrapõe o citadino ao paga-
nus, inferindo que o rústico desconheceria os valores suficientes da
ética. O frade Francesc Eiximenis fala assim de uma “malícia pagesí-
vol” (i.e. a maldade do aldeão), um vício que recai sobre aquele que,
em sua rusticidade, está próximo à condição do animal, condição
própria do homem que “és així brutal que no sap fer ne entendre en
neguna cortesia ne en neguna civilitat ne policia”15. Aprofundada no
mote aristotélico, essa linha de argumentos não enxerga alternativa à

14. SABATÉ, Flocel. La civiltà comunale del medioevo nella historiografia spag-
nola: affinità e divergenze. In: I Convegno Internazionale di Studi. La civiltà co-
munale italiana nella storiografia internazionale (Pistoia, 2005). Centro di studi
sulla civiltà comunale, Pistoia-Firenze, 2008, p. 117-162.
15. Francesc Eiximenis. Terç del Crestià, cap. CIII. Lo Crestià. Ed. Albert Hauf.
Barcelona: Edicions 62-La Caixa, 1983, p. 114.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012 93


Rogério R. Tostes e Dennys R. Girardi

habilitação moral do espírito, sem a qual não se atingiria uma poten-


cial e verdadeira plenitude. No prefácio de seu Regiment, o mesmo
Eiximenis exaltava a cidade de Valência, que, além de ser a cabeça do
reino de que toma nome, é a “elet entre los altres de tota Espanya”.
De igual, a virtude daqueles que participam do espaço citadino
é louvada desde sua nobreza espiritual e são representados pelos pro-
homines das capas dirigentes, às quais se dirige Eiximenis. A elas é
que se transfere o encargo de zelar pelos menores da terra e pela paz
da comunidade, pois foi para tanto que “Déus vos haja comanada
tan noble terra, e tan alta ciutat, e tan gloriós poble e tan endreçats
habitadors…”16. Também em Catalunha as distinções da elite cidadã
conferiam sinais de nobilitamento, a partir de que se amadureceriam
novos argumentos jurídicos como os de T. de Mières, quem também
expusera uma sugestiva familiaridade com os valores comunais ita-
lianos, vindo a postular em pleno século XV que “cives et burgenses
aequiparari militibus”17.
Reunidos em torno de todos esses esquemas, o da cidade como
espaço ideal do politicus christianus e o do burguês em sua ativida-
de geradora de riquezas, a finalidade última do mote franciscano se
manifesta pela justificação da ordem comum. Dentro desta, a “coisa
pública” trava contato com os debates sobre a corporação mística da
sociedade medieval e a originalidade da plenitude de poder requeri-
da pelos discursos régios. Aliada da tradição exegética que atenuava
a interpretação da teologia agostiniana do direito ao mando senho-
rial (Herrschaft) como qualidade da dominatio e que propunha em

16. Francesc Eiximenis. “La lletra que l’actor del llibre tramet, endreçat aquell, als
jurats de la ciutat de València”. In: Regiment de la Cosa Pública. Ed. Daniel Mo-
lins del Rei. “Els Nostres Classics” vol. XIII. Barcelona: Editorial Barcino, 1927,
p. 37.
17. Tomàs de Mières. Apparatus super constitutionibus curiarum generalium
Cathaloniae. Barcelona, 1621, vol. I, p. 110 cit. in: SABATÉ, Flocel. La civiltà
comunale..., p. 119.

94 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012


A participação política e o regimento...

seu lugar um modelo de “equidade escatológica”18, vinha a máxima


romanista quod omnes tangit que firmara a ideia de consenso sobre
matérias políticas de interesse público19. Assim a noção de pacto ins-
titucional naturaliza esses discursos em relação direta com a postestas
soberana. Uma noção que se mostra bastante coerente com o princí-
pio de unidade do universo, com o qual todas as coisas se integram
no uno – omnis multitudo deriuatur ab uno – e que serve aos pre-
ceitos da comunidade eiximeniana, onde “cascuna bona comunitat
haja a ésser unitat e benivolència... lligada en amor e en concòrdia”20.
Nesta unidade, o exercício do governo é pautado nos modelos de
regime político definidos em Aristóteles.
Entretanto, ao incluir o terceiro deles, Eiximenis manifesta
sua inclinação natural ao acordo “democrático”, a partir do qual se
“senyoreja tot lo poble en alscuns elegits per ells a temps cert” e que
buscam o profit de la comunitat. Neste último, chamado por ele de
regiment del poble, há uma comparação com a experiência cívica das

18. BUC, Philippe. ‘Principes gentium dominantur eorum’: Princely Power Be-
tween Legitimacy and Illegitimacy in Twelfth-Century Exegesis. In: BISSON,
Thomas N. (org.). Cultures of power: lordship, status, and process in twelfth cen-
tury Europe. Philadelphia: University oh Pennsylvania Press, 1995, p. 316-319.
19. Esta máxima foi divulgada através da aplicação analógica dada pelas decretais
pontifícias de um texto de direito privado justiniano (Codex, V, 59, 5). Ele foi
repetido nas decretais de Inocêncio III e de Gregório IX, manifestado também
em Bonifácio VIII (Liber Sextus 5, 12, 29), servindo de antecedente para os con-
ciliaristas dos períodos seguintes. Sua presença na tradição textual hispânica tem
larga precedência, incluído pelas Partidas do rei castelhano Alfonso X (Lib. II,
t. XVI, l. V), e retomado pelo tratado de espelho de príncipes do infante frade
Pere de Aragão, contemporâneo de Eiximenis. Nestes últimos exemplos, há uma
interpretação limitada ao decisionismo dos súditos sobre questões militares. (Pere
d’Aragó. Tractatus de vita, moribus et regimine principum. Ed. Alexandra Bea-
champ. Biblioteca Electrònica Narpan, dec. 2005. Disponível em: <http://www.
narpan.net/ben/>).
Cf. MARAVALL, José Antonio. La corriente democrática medieval en España y la
formula “quod omnes tangit”. In: Estudios de Historia del Pensamiento Español.
Serie primera. Edad Media. Madrid: Ed. Cultura Hispánica, 2001, p. 153-167.
20. Regiment de la Cosa Pública, cap. I.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012 95


Rogério R. Tostes e Dennys R. Girardi

comunas italianas, diretamente indicada como aquele regime que se


“fa hui en Italia”21. Todavia, Eiximenis tem em mente que é preciso
adequar tais valores sobre o contexto institucional catalano-arago-
nês, compondo um híbrido de governo que converge os sentidos vo-
luntaristas da participação comunal à tradição monárquica ibérica22.
Na vasta produção escrita do frade catalão, esse modelo recupera
sentidos muito próprios, sensíveis aos fatores políticos que ele teste-
munhara e às orientações intelectuais que se desenvolveriam a partir
dos ambientes universitários, que tanto influenciaram sua formação.

II. Sociedade estamental e titular régio no Regiment de la


Cosa Pública
Ainda que por largo tempo o conhecimento sobre a educação
intelectual de Eiximenis fosse objeto de variadas indagações, hoje
se tem concordado com um trajeto biográfico para seus primeiros
assentos. Após ingressar na Ordem Menor de São Francisco no con-
vento de Girona, também sua cidade natal, ele receberia sua orde-
nação em Barcelona – a 22 de dezembro – no ano de 1352, por
ocasião da transposição do convento franciscano para aquela cidade.
Todavia, no intervalo que marca de 1355-65, quando já se via junto
aos franciscanos de Valência, é que se registrariam seus primeiros
estudos em teologia e filosofia, completados mais tarde pela breve
permanência nos famosos studia de Colônia, Paris e Oxford23. Par-

21. Terç del Crestià, cap. DCIII.


22. Sobre essas valorizações, remeto a um trabalho preparatório que aborda a tran-
sição dos posicionamentos franciscanos no coletivo discursivo catalano-aragonês
da segunda metade do século XIV: TOSTES, Rogério R. Francesc Eiximenis e
o Infante Pere d’Aragó: duas perspectivas franciscanas sobre o titular régio. (A
publicar nos anais do II International Medieval Meeting Lleida, Universitat de
Lleida, 2012).
23. CERVERA, Luis. Francisco de Eiximenis y su sociedad urbana ideal. Madrid:
El Escorial, 1989, p. 20.

96 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012


A participação política e o regimento...

ticularmente em Oxford, se beneficiou do estúdio franciscano e da


proximidade com importantes teóricos da ordem, uma proximidade
que mais tarde transpareceria em seus escritos, absorvendo influên-
cias de pensadores como Thomas Bradwardine, Alexandre Hales,
Guilherme Ockham, Duns Scotus, onde ainda figuriam as ideias de
João de Gales24. Depois, na corte papal de Avignon, se apresentara a
Urbano V, completando seu ciclo de viagens em uma peregrinação
pela península itálica que duraria de 1365 até 1370. De seu regresso
à cidade condal é que se iniciam as relações que o aproximariam da
casa régia de Aragão, relações que lhe garantiriam patrocínio para a
estada universitária no estúdio de Toulouse e a obtenção do título de
magister theologiae em 137525.
Temos um testemunho sobre a experiência formativa dessas via-
gens no manuscrito de sua Vita Cristi (52, II), onde além de deixar
detalhes de suas impressões de passagem a respeito do funcionamen-
to das instituições comunais italianas ainda expõe suas opiniões so-
bre outros modelos de governo local como os que encontrara em
terras inglesas e germânicas26. Em todos esses itinerários ele manteve
atenção em apontar a superioridade dos regimes de participação e o
protagonismo dos elementos urbanos no equilíbrio de suas forças.

24. HAUF, Albert G. Eiximenis, Joan de Salisbury i Fr. Joan de Gal×les, OFM.
Miscel·lània Sanchis Guarner, vol. I. Quaderns de Filologia. Universitat de Valèn-
cia, 1984, p. 167-174.
25. A 3 de agosto de 1373, o rei Pere III expede uma ordem ao tesoureiro-mor,
Pere de Vallo, para que envie a quantidade de 50 florins de ouro ao frade Eixime-
nis, quos nos sibi in sustentacione sumptuum per eum fiedorum pro obtinendo
magisterium in sacra pagina, ad quod habendum in Studio Tolosano noviter. In:
Rubió Y LLUCH, Antoni (ed.). Documents per l’història de la cultura catalana
mig-eval, vol. II. Barcelona: Institut d’Estudis Catalans, 1908-1921 (Ed. facsím.
de 2000), doc. CLXXVI, p. 168. Em nota, Antoni Rubió menciona outra carta,
dada pela rainha Eleonor, de 5 de agosto de 1372, que também visava cobrir seus
estudos naquele primeiro ano mediante a concessão de 25 florins aragoneses.
26. Francesc Eiximenis. Vita Christi. Biblioteca Universitària de València, ms. 209.

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Rogério R. Tostes e Dennys R. Girardi

Essa insistência responde a uma difusão que já vinha de seus


contemporâneos de ordem27 e ajuda a compreender algo frisado
por Paolo Evangelisti como a “notevoli interconnessione struturali e
linguistiche” praticada pelos franciscanos como meio de forjar uma
discursividade particular à ideia de consenso político28. O pleno de-
senvolvimento dos valores consensualistas indica, desde Marsílio de
Pádua, uma forte indicação da prevalência representativa da valen-
tior pars. Uma prevalência que seguia concorde às interpolações bar-
tolianas acerca do finalismo corporativo e da obediência ao princípio
majoritário, a maior pars, como forma de deliberação mais conve-
niente à equidade do direito29.
No pensamento eiximeniano, a guarida da coisa pública deve ser
posta nas mãos daqueles que são mais bem habilitados para gerir a

27. Todavia, essa influência chegaria a ultrapassar os limites do franciscanismo,


vindo junto de uma pluralidade de vias interpretativas que, egressas de entre os
mendicantes, esboçariam os seus regimes políticos ideais segundo as mesmas linhas
gerais. Fora Roberto Lambertini quem estudara os escritos de outros franciscanos
em perspectiva comparativa, a exemplo do que relacionaria entre De Mayronis
e Ockham, ambos discutindo a respeito da monarquia universal; ambos traziam
nestas discussões um questionamento sobre a eficácia das potestades e a hierarquia
delas na posição do regime mais desejável. Cf. LAMBERTINI, Roberto. Governo
ideale e riflessione politica dei frati mendicanti nella prima metà del Trecento. In:
Etica e politica: le teorie dei frati mendicante nel due e trecento. “Atti del XXVI
Convegno storico Internazionale”, Assisi, 15-17 ottobre 1998. Spoleto: Centro
Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1999, p. 266-277.
28. EVANGELISTI, Paolo. I pauperes Christi e i linguaggi dominativi. I francesca-
ni come protagonisti della costruzione della testualità politica e dell’organizzazione
del consenso nel bassomedioevo (Gilbert de Tournai, Paolino da Venezia, Francesc
Eiximenis). La propaganda politica nel Basso Medioevo. “Atti del XXXVIII Con-
vegno storico Internazionale”, Todi, 14-17 ottobre 2001. Spoleto: Centro Italiano
di Studi sull’Alto Medioevo, 2002, p. 315-392.
29. O tema, muito considerado pelo medievalismo italiano, recebe uma discus-
são alentada in: D’ANGELIS, Gianmarco. ‘Omnes simula ut quot plures habere
potero’. Rappresentazioni delle colletività e decisioni a maggioranza nei comuni
italiani del XII secolo. In: Reti Medievali, nº 12, Firenze, 2011/2. Disponível em:
<www.retimedievali.it>.

98 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012


A participação política e o regimento...

vida de toda a comunidade, porquanto “la multitut dels bons con-


sells solament està en pocs hòmens”30. Assim, também na percepção
que encerra o significado do interesse comum ou do “profit de la cosa
pública”, Eiximenis cooptaria uma variada gama de vocabulários po-
líticos que simultaneamente justificariam o posto do governante da
república cristã e os deveres deste para com seu imediato regiment.
Na sua doutrina política, o titular régio é integrado à ordem mís-
tica da sociedade como um seu servidor, atuante no papel de prove-
dor da prosperidade –­ aquela de feição econômica, conquanto moral
e espiritual – dos participantes da comunidade. Fala-se ademais em
utilitas publica como em sentido tradicional, mas atrás do acréscimo
semântico que subordinaria as antigas formas de ação política dentro
desta nova doutrina. Logo, os vetustos conceitos do ideário político
passariam a ser preenchidos por sintagmas bastante ressignificados.
Pois se por um lado ainda se reempregavam os axiomas teológicos de
São Paulo da caridade, da fé e da esperança, agora este tripé resultaria
em um modelo imediato de justiça política que também serviria a
tutelar os interesses de um grupo social mui específico, feito deposi-
tário direto da generalidade da comunidade política31.
Essa hibridação conceitual, composta como que transitivamente
aos sentidos que quer fixar, alinha um modelo desejável (“així com
se fa hui en Italia”)32 com outro mais concreto, ou simplesmente
realista ante a constituição de lideranças políticas que Eiximenis co-
nhece, o qual o leva a manter a ancoragem de sua “reforma filosófi-
ca” no mesmo ideal monárquico teorizado por seus antecessores. A
“imagem” do príncipe é aquela que reúne em si todos os predicados

30. Regiment de la Cosa Pública, cap. XVI.


31. EVANGELISTI, Paolo. Credere nel marcato, credere nella res publica. La
comunità catalano-aragonese nelle proposte e nell’azione política di un esponente
del francescanesimo mediterraneo: Francesc Eiximenis. Anuario de Estudios Me-
dievales, nº 33/1, Madrid, 2003, p. 88.
32. Terç del Crestià, cap. DCIII.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012 99


Rogério R. Tostes e Dennys R. Girardi

do referencial universalizante, ele integra em sua própria abstração


institucional a abstração da comunidade política que outorga sua
soberania33; entretanto, apesar de tudo isso, e adotando a escatologia
joaquimista, o frade catalão chega a considerar esta vigência do regi-
me monárquico um tipo de contingência temporária. Esta convic-
ção, que haveria de ser afirmada diversas vezes – em algumas ocasiões
com imensa sutileza, e noutras, de maneira mais ostensiva –, leva-o a
insistir na forma pactual do liame político presente entre os “naturais
da terra” e o senhor que os governa, atuando vicária e eletivamente
neste posto hierárquico. Com essa ideologia de governo, o ponto de
vista é justificado pela averiguação de que as sociedades humanas são
livres desde seu aparecimento, razão que impõe constatar que “les
comunitats són totes franques” ou livres, e por esta mesma liberdade
elas também mantêm os seus cônsules ou seus soberanos subordina-
dos a partir de um voluntarismo tácito da soberania. Em tal vontu-
larismo, elas se fazem reger sempre “per amor de si mateixa”:
cascuna comunitat féu ab sa pròpia senyoria patis e convencions
proffitosos e honorables per si matexa principalment, e après que
aquell o per aquells a qui donà la potestat de son regiment. Assò
appar per tal car la comunitat no alagí senyoria per amor del regi-
dor, mas elegí regidor per amor de si mateixa34.
Sustenta-se assim uma origem da soberania comunitária (ou co-
munal) que se adianta in nuce a um posto muito mais profundo que
o daquela atribuída ao protagonismo monárquico35. Afinadas essas
singularidades, Eiximenis reposiciona o lugar do monarca na ordem

33. D’ABADAL, Ramon. Pere el Cerimoniós i els inicis de la decadència política


de Catalunya. Trad. Xavier Fort i Ramon Pinyol. Barcelona: Edicions 62, 1987, p.
166. [Publicado originalmente in: MENÉNDEZ, R. (dir.). Historia de España,
vol. XIV. Madrid: Espasa-Calpe, 1966.]
34. Dotzè del Crestià, cap. DCVII.
35. LÓPEZ-AMO, Ángel. El pensamiento político de Eiximeniç en su tratado del
Regiment de Princips. Anuaria de Historia del Derecho Español, XVII, Madrid,
1946, p. 5-139.

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A participação política e o regimento...

política medieval. Logo, o vértice real não passa de um “representan-


te” dos transcendentes interesses da comunidade e não uma entidade
que detém justificação em si mesma. A mesma potestade que confere
os limites de um agir político da persona ficta do soberano se vê su-
bordinada aos mandamentos divinos que fundaram o todo humano
(donde transparece a figura da cidade), já que sua finalidade é prover
a salvação social dos membros do corpo político. É a entidade mu-
nicipal, ou a comuna, que recebe a virtude política da universitas,
repondo o papel fundamental conferido até pouco tempo à noção
mais integradora de regnum.
No olhar profético de Eiximenis, um olhar que em tudo se coa-
duna ao franciscanismo espiritualista difundido no território da Co-
roa catalano-aragonesa36, o destino fatal daquelas entidades monár-
quicas seria o da aniquilação. Mesmo após ter recebido os favores do
rei Pere III, ocupando mais tarde lugares de destaque entre os altos
conselheiros do rei Joan I, Eiximenis manteria uma ideia bem clara
sobre a duração daqueles regimes de governo. Para ele a senhoria
real continuaria se mostrando justa na mesma medida em que se lhe
pesasse certas limitações ao seu proverbial iure divino.
Em uma das passagens mais densas do Dotzè, nas mesmas em que
sua vocação joaquimista se mostra por completo, Eiximenis profeti-
zaria que estava próximo o dia em que todos os potentados senhoriais
se extinguiriam, marcando uma nova era na história humana:
En lo derrer centenari del món, qui serà in apercione sexti signaculi
ecclesie, qui diu que començarà Anno Domini millesimo CCCC,
d’aquí avant ço diu, no y haurà reys, ne duchs, ne comtes, ne no-
bles, ne grans senyors, ans d’aquí avant fins a la fi del món regnarà
per tot la justícia popular; e tot lo món per consegüent serà partit
e regit per comunes, axí com huy se regeix Florença, e Roma, e
Pisa, e Sena e d’altres ciutats de Ytàlia e de Alemanya37.

36. WEBSTER, Jill R. Els Menorets: The Franciscans in the Realms of Aragon
From St. Francis to the Black Death. Toronto: Pontifical Institute for Medieval
Studies, 1993.
37. Dotzè del Crestià, cap. CDLXVI.

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Rogério R. Tostes e Dennys R. Girardi

III. Os traços espiritualistas no pensamento eiximeniano


É preciso observar o quanto há de joaquimismo, ou dos resíduos
dele na teoria política do frade catalão. Há pois uma relação parcial-
mente evidente nos seus escritos com a larga difusão dos vaticínios
de Gioachino de Fiore, a mesma que desde o século XIII daria causa
ao sectarismo dos espirituais dentro da ordem dos franciscanos, e
que, ulteriormente, criaria novas subdivisões a exemplo dos fraticelli,
condenados como hereges pela ameaça subversiva que sua doutrina
trazia para a alta hierarquia eclesiástica. Bem, é mediante uma in-
terpretação milenarista do repertório bíblico vétero-testamentário,
ancestral indireto do Expositio in Apocalysim do abade De Fiore, que
se produzia a convicção de um vindouro reino messiânico, lugar de
justiça e equidade, e acima de tudo, um paraíso terrestre em que a
restauração das desigualdades eliminaria as distinções corporativas
em nome de uma grande e perfeita comunidade cristã.
Tal como a inscrição trinitária do joaquimismo, que recuperada
pela investigação de Jean Delumeau, inserta os estágios de uma his-
tória escatológica: “o tempo da lei natural e mosaica anterior a Cristo
[a idade do Pai]; o tempo marcado pela vinda de Jesus ‘sob a letra
do Evangelho’ [sendo a idade do Filho]; enfim o tempo, doravante
próximo, em que triunfará a ‘inteligência espiritual’ [e portanto, a
idade do Espírito]”38. Com este telos propugnado na forma de um
termo inescapável do destino histórico, tendo em jogo a própria sal-
vação espiritual dos homens, a comunidade humana – ou a societas
christiana – terá enfim cumprido seu desígnio providencial, no qual
também fora definido o motor primeiro de sua existência.
Mesmo depois que a condenação feita em 1318 pelo papa Jo-
hannes XII, com a bula Gloriosam Ecclesiam, eliminasse a facção dos
espirituais, seus seguidores continuariam agindo com força, con-

38. Delumeau, Jean. Mil Anos de Felicidade. Uma História do Paraíso. Trad. Pau-
lo Neves. São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 42.

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A participação política e o regimento...

centrados como estavam em algumas partes da Itália meridional, na


Provença, e também na Catalunha39.
Embora um tanto contestada, a pista mais explícita que temos de
que ele tivesse seguido essas vias fica por conta do escrito De Triplici
Statu Mundi, quando prontamente se declara que “enim tres status
mundi penes similitudinem summe Trinitatis et increate, ideoque
primus status mundi apropriatur Deo Patri, et secundus Deo Filio,
et tercius Deo Spiritui Sancto”. Embora haja questionamentos sobre
a autoria de Eiximenis neste pequeno tratado40, ainda há de perma-
necer a patente circulação dos mesmos temas –­ desde fins do XIII
até todo o XIV, de Arnau de Vilanova ao enérgico predicante Vicent
Ferrer ­–, tal como o foram apropriados pela posteridade joaquimita,
a qual também figura como coetânea das concepções vigentes ao
tempo do frade genonino41.
Além de tudo, a redação do Crestià também vem repleta dos
mesmos temas quiliastas, reproduzindo a divisão cronológica da his-
tória em sete eras, por sua vez subestabelecidas por uma divisão ter-

39. JASPERT, Nikolas. El perfil transcendental de los reyes aragoneses, siglos XIII
al XV: santidad, franciscanismo y profecias. In: La Corona de Aragón en el Centro
de su Historia (1208-1458). La Monarquía aragonesa y los reinos de la Corona.
Colección Actas, vol. 74. Zaragoza y Monzón, 1 al 4 de diciembre de 2008, p.
183-218.
40. A respeito da controversa questão desta autoria, pode-se retomar dois tra-
balhos especializados, cf.: Hauf, Albert G. D’Eiximenis a sor Isabel de Villena.
Aportació a l’estudi de la nostra cultura medieval. Institut de Filologia Valencia-
na/Publicacions de l’Abadia de Montserrat, 1990. Perarnau, Josep. Documents i
precisions entorn de Francesc Eiximenis (c.1330-1409). Arxiu de Textos Catalans
Antics, I, 1982, p. 191-215.
41. Sobre a presença da tradição escatológica nas terras catalano-aragonesas, cf.
Toldrà, Albert. Mestre Vicent ho diu per spantar. El més enllà medieval. Tesi Doc-
toral en Història, Facultat de Geografia i Història, Universitat de València, 2006,
p. 335-3375. Aurell, Martin. Escathologie, spiritualité et politique dans la confé-
dération catalano-aragonaise (1282-1412). Cahiers de Fanjeaux, “Fins du monde
et signe des temps. Visionnaires et prophètes en France méridionale (fin XIIIe-
-debutXVe siècle)”, nº 27. Toulouse: Privet, 1992, p. 191-235.

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Rogério R. Tostes e Dennys R. Girardi

nária da igreja ­“segons diverssos temps passats del començament del món
ençà sots tres lleys justes e sanctes” – as leis da natureza, das escrituras e
da graça42. Todas elas a se consumarem com a parousia, a iminência
apocalíptica do reinado milenar cristão, no qual viriam em sucessão
a conversão dos judeus, a extinção da “seita maometana”, a recupe-
ração de Jerusalém pela cristandade latina e, finalmente, o apareci-
mento do Anticristo místico deste tempo.
Esses dados seguiriam bem ajustados aos termos adventícios do
messianismo joaquimita e ao impacto adicional de um acontecimen-
to coevo a Eiximenis, o chamado “cativeiro de Avignon”, uma crise
no seio da Igreja provocada com a disputa de duas sés apostólicas
sobre o primado de São Pedro. Tal acontecimento fora interpreta-
do pelo menorita e por outros franciscanos, como um destino da
purificação provada pela Igreja dos últimos dias, o que abriria um
momento decisivo na transformação universal do mundo: “E açò
farà la purgació dels ecclesiàstichs e del món aprés, que ja és a les portes.
Emperò, jatsia que la dita terra sia presa, per poch temps durarà e estarà
en mans de crestians, e açò fins a la fi del món”43.
Sendo Eiximenis um homem reconhecido pela sua ortodoxia,
talvez seja de causar surpresa que alguns dos pontos fundamentais de
sua doutrina caminhem tão próximos de concepções escatológicas
imersas em teor herético. Porém, sem nenhum risco de achar nisto
uma verdadeira incongruência, o visionário eiximeniano não neces-
sita que o salvemos da apostasia44.

42. Primer del Crestià, Biblioteca Nacional de Madrid, ms.1790, f.139v.


43. Primer del Crestià, cap. CCLXX, Biblioteca Nacional de Madrid, ms.1790,
ff. 188v-189r.
44. Após tudo o que se fez levantar na obra eiximenia em matéria de evidência
textual, fica-se mais perto das motivações que mantiveram esses escritos afastados
como tradição apócrifa. Há que se encarar entre elas a convicção de uma orto-
doxia teológica interessada na habilitação espiritual de Eiximenis. Com efeito, é
o que transparece da fala de Nolasco del Molar: “después de desechar nosotros
escritos y actos que le han sido falsamente atribuidos, aún nos resulta inquie-

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A participação política e o regimento...

Observando melhor, compreende-se que estas e outras particu-


laridades de sua apreensão filosófica são consubstanciais de um co-
letivo de pensamento historicamente apropriado; por esse mesmo
aspecto, havia feito notar Lluís Brines: “hem de dir que si bé po-
dem considerar Eiximenis com a home del seu orde, aquest (l’orde
franciscà), així com la resta d’ordes mendicants, tenen un trets ben
específics i al mateix temps arrelats a la terra catalanoaragonesa on es
desenvoluparen”45.

tante su inclinación a Giochino de Fiore y a Ubertino de Casale, muchas de sus


citas misteriosas su afición a la astrologia y a las profecías, así como sus ataques
a eclesiásticos en general y a los campesinos, entre otras clases de hombres; però
se hace mas atractivo Eiximenis cuando en sus escritos algunas veces se humilia,
no sin alguna expresión chocante, y cuando manifiesta su completa adhesión
a la Iglesia romana” Molar, Nolasco del, OFM. Perfil espiritual de Eiximenis.
Revista de Girona, nº 22, 1963, p. 67-75. Também, cf. Fuster, Josep. Rebeldes y
heterodoxos. Barcelona: Ariel, 1972. Saranyana, Josep-Ignasi. El debate sobre la
adscripción al joaquinismo de Francesc d’Eiximenis. In: Filosofía y Teología en
el Mediterráneo Occidental (1263-1490). Pamplona: Ediciones Universidad de
Navarra, 2003, pp. 174-180.
45. “Segons aquesta profecia, el món havia de passar per moltes misèries; els cris-
tians havien de sofrir greus tribulacions de part dels infidels, però de França havia
d’eixir un emperador, restaurador del poder cristià, destructor dels sarraïns i domi-
nador universal, el qual havia d’imposar una era de pau. Més endavant, els enemics
de la casa d’Alemanya identificaren aquest emperador amb Carles I d’Anjou. Mort
aquest i no havent reaparegut Frederic en la data predita, els interpretadors con-
tinuaren aplicant les profecies als successors de Frederic i de Carles, especialment
quan eren representants significats dels partits de güelfs i gibel.lins. Els nostres reis
no quedaren fora d’aquesta activitat profètica. Casat Pere el Gran amb Costança,
filla de Manfred de Sicília, emparentat, per tant, amb la casa d’Alemanya, podia
ell, o algú dels seus descendents, ésser l’emperador universal enemic de l’Església”
(“Prediccions i profecies en les obres de fra Francesc Eiximenis”. Dins Aportació a
l’estudi de la cultura catalana. Barcelona. PAM. 1982, p. 97-8).
“La doctrina de Joaquim [de Fiore] admetia l’adveniment de dos Anticrists, el pri-
mer del qual havia d’ésser precursor de l’Anticrist final i perseguidor de l’Església,
emparat per un fals emperador heretge. Aquest rol fou donat a l’emperador Fre-
deric d’Alemanya, mort en 1250. Els autors de profecies volien que reaparegués
en 1260 o 1261 – la data assenyalada per Joaquim –, i ocasionés a l’Església les
calamitats que havien de precedir la terça edat del món” (Ibidem, p. 97).

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012 105


Rogério R. Tostes e Dennys R. Girardi

Lemos na aprofundada análise que Lluís Brines fez do assunto,


esclarecendo melhor o longo filão joaquimita na obra do Eiximenis,
após o que se recuperam as disposições mais polêmicas que o pon-
tuam, desde o Crestià aos tratados De Triplici Statu Mundi e Vita
Christi46. Em sua vocação franciscana, vemos a acentuação de uma
escatologia popular da qual a própria teologia erudita e canônica já
havia programaticamente se afastado47, aliando com ela uma auste-
ridade jungida pela primeira regra de São Francisco, que enaltecia
os preceitos destinados ao ideal de urbanidade comunal e tornaria
particularmente atraente o discurso professado por uma “escatologia
coletiva”. Também segue imprescindível que incluamos esse sistema
escatológico junto aos demais pontos-chave de sua reflexão política,
os quais ao montante de tudo isso o levam ao complexo de ulteriores
formulações teocráticas; sobretudo, entre a posição eiximeniana, que
se mostrara simultaneamente favorável ao papel social desempenha-
do pela burguesia, e sutil em suas declarações de antimonarquismo.

IV. Linguagem e representação política


Apesar do idealismo da proposta eiximeniana, ela reflete favora-
velmente a pletora de concepções aliadas à base de justificação dos
setores urbanos. Tem ainda o privilégio de expressar, em um comple-
xo institucional marcadamente mediterrânico, “categorie linguistiche

“És evident que ací la font d’on Eiximenis recull aquesta profecia, o potser el
mateix Eiximenis, identifiquen l’Emperador restaurador del poder cristià amb
l’Emperador d’Alemanya. Per tant sí que ha fet un canvi llavors en el seu sistema
escatològic, car ara ja no encomana aquesta tasca a un Emperador eixit de la casa
de França, com feia al capítol 466.” Brines, Lluís. La filosofia social i política de
Francesc Eiximenis. Sevilla: Novaedició, Grupo Nacional de Editores, 2004, p.
203, nota 668.
46. Idem, ibidem, p. 397-459.
47. Libânio, João B. Bingemer, Maria Clara L. Escatologia Cristã. O novo céu e a
nova terra. Série III: A Libertação na História. Col. Teologia e Libertação. Petró-
polis: Ed. Vozes, 1985, p. 59-64.

106 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012


A participação política e o regimento...

e codici discorsivi” utilizados na organização de um discurso e de uma


ação política direta48. Em certo sentido, essa posição é garantida pelo
repertório de argumentos avant-garde dos teóricos franciscanos49 e
por sua conexão ideológica com as aspirações sociais estreitadas no
protagonismo ético-cívico do ambiente citadino. É desta relação que
aparece o resultado já destacado por Evangelisti: “grado di osmose tra
etica di governo ed etica mercantile”50. Depois de um longínquo pe-
ríodo de alinhamentos, a associação de interesses burgueses acabaria
por fundir-se ao núcleo de um bem comum, passando por vez a in-
tegrar o próprio telus da função primaz da monarquia catalã. Agora,
a tangibilidade do poder soberano dependeria dos bons serviços que
ele fosse capaz de oferecer em proveito da comunidade, de onde este
justificadamente arrancaria a col ligació legal de seu principado51. É
por isso que, ao mirar o contexto imediato do qual emerge, a fala

48. EVANGELISTI, Paolo. Credere nel marcato, credere nella res publica. La
comunità catalano-aragonese nelle proposte e nell’azione política di un esponen-
te del francescanesimo mediterraneo: Francesc Eiximenis. Anuario de Estudios
Medievales, pp. 73-78. TODESCHINI, Giacomo. Guardiani della soglia. I Frati
Minori como garanti del perímetro sociale (XIII secolo). Reti Medievali, nº 8,
Firenze, 2007. Disponível em: <www.retimedievali.it>.
49. “A quanto ci è noto, l’opera del lettore francescano ebbe scarsa diffusione, ma
costituisce un valido esempio del fatto che agli autori era aperto un ventaglio di
possibilità nell’utilizzo di materiali linguistichi ed argomentativi precedentemente
elaborati, che si poteva estendere dalla semplice ripresa strumentale alle proprie
tesi fino ad una rielaborazione ulteriore, di modo che l’uso stesso produceva un
arrichiamento del patrimonio [i.e., un patrimonio de argomentos a favor da mo-
narquia universal].” LAMBERTINI, Roberto. Governo ideale..., p. 265-266.
50. EVANGELISTI, Paolo, op. cit., p. 75.
51. Dotzè del Crestià, cap. DCCCXXXIII:
“Sobiranament és necessari al príncep que aprés que ha ates al regiment damunt dit
de la col×ligació natural, qui és un dels fonaments de la cosa públic, que après atena
al bon regiment del segon fonament […], lo qual fonament s’apella col×ligació legal.
E deus saber així, primerament, que legal col×ligació no és sinó ajustament de
diverses persones faents una comunitat, volents viure sots unes mateixes lleis, furs
e regidors; […] mas per raó quants tots són units en voler viure principalment sots
unes mateixes lleis, per tal són dits en unitat e lligament legal, així com dit és. […]

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012 107


Rogério R. Tostes e Dennys R. Girardi

institucional de Eiximenis tem débitos suficientes com as circuns-


tâncias políticas da década de 1380. O Dotzè, o livro XII de seu tra-
tado inacabado, contém reverberações um tanto explícitas das reso-
luções emanadas das Cortes de Montsó em 1383, consolidando por
fim um posicionamento para o estatuto real: “en aprovada ordinació
d’estaments, en justícia de vida, en defensió de la comunitat”.
Nos últimos anos de seu reinado, à beira de um jubileu de cin-
quenta anos desde sua ascensão ao trono, o rei Cerimonioso está
mais próximo de reconhecer o realismo contido nas exortações de
seu tio quando expressas no seu speculum principum52. A propósito
de evocar a licitude que motiva a guerra justa, o infante Pere recorre
à cláusula Quod omnes tangit, interpretada como o consórcio dos sú-
ditos aos desejos do rei, em que para além de retificar uma ideologia
ibérica do soberano como líder militar, reconhece as contingências
à legitimidade do poder real e as dependências deste junto aos seus
súditos53. Assim, toda razoabilidade política, inclusive aquela que
justifica a guerra – e convém lembrar as referências concretas ao en-
fretamento com Castela –, está sujeita ao condão consiliar de um
povo que assiste ao monarca. E bem, não há muito que dizer sobre a
composição política desse coletivo nem quais grupos o representam.
Ao fim e ao cabo, o tratado do infante traz consigo essa particulari-
dade: fala em proveito da autoridade do rei, mas reconhece o papel

E nota ací que... la col×ligació legal està fundada principalment en los fonaments
següents, als quals lo príncep, sib é vol regir, deu molt atendre, ço és: en religiositat
de fe, en aprovada ordinació d’estaments, en justícia de vida, en defensió de la
comunitat, en disposició de costumes, en temprament de fortunes, en varietat de
facultats e de possessions, en treballants ociosos e reposats… dels quals direm per
orde davall, si a Déu plau.”
52. Cf. RIBAGORÇA, Pere de. Tractatus de vita, moribus et regimine principum,
cap. XXIV, especialmente, no qual determina noções pragmáticas para os assuntos
bélicos e discute a necessidade do acordos estamentais.
53. BEUCHAMP, Alexandra. De l’action à l’écriture: Le De Regimine Principum
de l’infant Pierre D’Aragon (V. 1357-1358). Anuario de Estudios Medievales, nº
35/1, Madrid, 2005, pp. 266-269. Também, cf. nota 19 supra.

108 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012


A participação política e o regimento...

institucional que lhe é permitido diante do complexo contexto his-


tórico dos trezentos. Tão próclive quanto possível aos interesses da
Casa Real, o seu discurso também está preso ao conjunto de pergun-
tas e respostas formuladas em seu próprio coletivo de pensamento.
Esse contraste de interpretações era atravessado por uns argu-
mentos consideravelmente semelhantes, assentados pelo mesmo con-
junto de termos jurídicos e filosóficos da teoria política adotada pelos
grandes expoentes da Coroa. São nestas condições que em paralelo ao
pronunciamento de Pere III, ao afirmar sua superioridade hierárquica
em atenção da prerrogativa legal de plenitudo potestatis54, caminha o
paradoxo de uma equivalente justificação romanista a postular efeitos
contrários. A convicção régia de que seus súditos estavam conectados
pelo dever supremo junto ao seu senhor natural era assim eclipsada
pela via contrária, que defendia a função ministerial do rei ao serviço
da corporação civil55. Bem por isso, as singularidades da proposta e da
contemporaneidade eiximeniana estão na racionalização semântica
desses termos; ao oferecer tais limitações sobre a potestade monárqui-
ca, revela-se um testemunho que serve à síntese dos enunciados e do
diálogo institucional, manifestos em portentosos verba iuris durante
os plenários das assembleias estamentais.
A presença dos reunidos em cortes se torna fundamental para
assegurar esse organismo de cúpula defendido por Eiximenis. A su-
premacia legal de seus pactuados aliada à permanente gestão fiscal
da Diputació leva o franciscano a prodigalizar um notável interesse
por seu funcionamento. Então, além de uma descrição alentada so-
bre os encargos da burocracia régia56, ainda oferece um relato mui

54. PACHECO, Francisco Luis. “Non obstante”. “Ex certa scientia”. “Ex plenitu-
dine potestatis”. Los reyes de la Corona de Aragón y el principio “princeps a legibus
solutus est”. El Dret Comú i Catalunya. “Actes del VII Simposi Internacional” (Bar-
celona, 23-24 de maig de 1997). Barcelona: Fundació Noguera, 1998, p. 91-127.
55. SABATÉ, Flocel. Discurs i estratègies del poder reial a Catalunya al segle XIV.
Anuario de Estudios Medievales, nº 25/2, Barcelona, 1995, p. 639-641.
56. Dotzè del Crestià, caps. DCLXXIX-DCCL.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012 109


Rogério R. Tostes e Dennys R. Girardi

preciso sobre as obrigações que vinculam o monarca a tal coletivo


institucional presente em cortes57. Assim, consigna o primeiro dever
de que, por si mesmo ou mediante seus oficiais, repare os agravos e
reclamos de súditos e vassalos: sobretudo, no examinar das possí-
veis arbitrariedades do braço nobiliárquico, desferidas injustamente
a seus dependentes, provocando uma situação diante da qual o rei
deve exigir reparação e promessa de sã observância dos usos “consti-
tucionais” do principado.
Todo o mais redunda em sempre agir no proveito do reino e do
bonum commune, a deliberar com os braços: elaboração de estatutos,
solicitação de graças e liberdades, decisões colegiadas em respeito às
estratégias de guerra e de defesa dos reinos e das terras da Coroa; que
sublinha, ademais, a regularidade do instrumento de cortes pela pro-
messa de convocatórias trienais, em sua forma acordada no tempo de
Jamue II, para atuar tanto em procedimentos “extraordinários”, ou
não discutidos pela assembleia (inopinats), quanto na definição das
políticas de aliança monárquica (como as escolhas matrimoniais dos
infantes), ou no empreendimento de conquistas, aliciamento de pa-
trimônio, “en els quals casos ell demana ajuta la seva gent i els braços
deliberen si són tinguts de prestar-la o si se la mereix pel seu capteni-
ment invers ells”58. Por estas prescrições resta inequívoca a trancada
situação pública do encargo e da propriedade régia, a salientar sua
absoluta inalienabilidade, que quer drenar toda vontade subjetiva da
potestade por meio de uma específica noção da plenitude do poder.
Após a manifestação contundente dos súditos reunidos nas cor-
tes, a prova final do debate estamental mostra suas conexões com as
prescrições de um regime político eiximeniano. A definição de um
espaço público elimina as divergências plantadas pelas monarquia
entre um desejo essencialmente privado da Coroa e do bem comum.

57. Idem, caps. DCLXVIII-DCXXV.


58. ABADAL, Ramon d’. Pere el Cerimoniós i els inicis de la decadència política
de Catalunya, p. 279.

110 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012


A participação política e o regimento...

Apenas este último é quem pode custodiar o pleno ideal justiceiro do


vetor soberano. Tal o diriam: “majorment car no.s deman cosa apta
ne convinent de apropriar a si ne a son interès propri et singular, mas
a honor, diüturnitat et profit de tota la cosa pública”. O argumento
ainda há de se completar pela adição de um elemento de força; pois,
ao definir a superioridade daquela res publica, os braços repersonalizam
o estatuto régio à maneira de um coletivo político, dotando-o com
uma persona equivalente: “la qual és et consesteix en vós, senyor, qui
sots cap et príncep et en la dita cort representant tots vostres vassalls
et sotsmeses qui són menbres de la dita cosa pública”59.
A ficção corporativa dos dois corpos, propagada de diferentes
maneiras entre as monarquias reinantes da Inglaterra e da França60,
é alinhada na Coroa de Aragão a essas demarcações estamentais, re-
cebendo textualidade e devendo muito de sua vocação ideológica
ao grande poder de síntese do pensamento eiximeniano. O trunfo
retórico trazido com essas ideias estaria em fazer impor e corrigir
a pretensão dos monarcas catalães na consolidação de um atributo
pessoal de soberania, que ao ser plasmado ao corpo político das ge-
neralidades eliminaria toda intenção de agir em nome próprio e de
resguardar os atributos da potestade régia. Por essas divisas o pensa-
mento eiximeniano soluciona a questão momentânea com o desen-
lace providencial da consumação do tempo histórico.

59. Cort General de Montsó: 1382-1384. Text en català i llatí. SANS I TRAVÉ,
Josep Maria et alii (ed.). Barcelona: Departament de Justícia de la Generalitat de
Catalunya, 1992, p. 160-161.
60. KANTOROWICZ, Ernst H. Pro patria mori in Medieval Political Thought.
American Historical Review, nº 56, New York, 1951, pp. 472-492.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 87-111, jul./dez. 2012 111


Trabalhar honestamente
Hermógenes Harada*

Apresentamos aqui algumas idéias a respeito do modo de tra-


balhar do homem medieval. Como ponto de partida das reflexões,
tomamos pequenos trechos de Francisco de Assis e de um dos seus
primeiros companheiros, Fr. Egídio.
No testamento e na regra de S. Francisco encontram-se orienta-
ções aos seus frades em relação ao trabalho, que podem indicar um
modo específico do homem medieval compreender a arte do traba-
lho. Um ponto central em seus escritos acentua que o trabalho deve
ser feito honestamente.
Com base em dois textos, abaixo transcritos, de S. Francisco e de
um texto do Beato Egídio de Assis, procura-se refletir a seguir sobre
a compreensão medieval da arte do trabalho. Todo e qualquer traba-
lho é, para o homem medieval, o lugar de aprimoramento da arte de
viver. Em toda atividade, há que se visar o aprimoramento do todo, a
pertença e gratidão da grandiosidade da obra do criador. Mas há um
modo adequado de adentrar e de apropriar-se desse modo-artesão de
trabalho. Há que se trabalhar honestamente. Assim, é preciso refletir
o que o homem medieval compreende por trabalhar honestamente.
E eu trabalhava com as minhas mãos e quero trabalhar. E quero
firmemente que todos os outros irmãos se ocupem num trabalho
honesto. E os que não souberem trabalhar o aprendam, não por
interesse de receber o salário do trabalho, mas por causa do bom
exemplo e para afastar a ociosidade (Francisco. Testamento).

* Transcrição de uma conferência proferida em cursos.

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Hermógenes Harada

No veio inaugurado por Francisco, podemos ver também seus


primeiros companheiros.
Encontramos, por exemplo, no livro Frei Egídio – Homem san-
tíssimo e contemplativo – que conta a vida e os feitos de Fr. Egídio
de Assis, a menção do mesmo conceito de trabalho, e a descrição
de como, dia após dia, trabalhava honestamente com suas próprias
mãos, e não aceitava dinheiro como pagamento, mas apenas outras
coisas necessárias ao sustento. Longe de ser um retrocesso no tem-
po – comércio de troca – trata-se de um cuidado com outro tipo de
crescimento.
Frei Egídio não se envergonhava de fazer qualquer trabalho vil,
contanto que pudesse realizá-lo honestamente. No tempo da vin-
dima, ajudava os homens na colheita de uvas. Levava-as também
aos lagares e as esmagava com seus pés1.
Ajudava os camponeses a colher nozes, e recebia em pagamento
apenas nozes, que levava consigo e repartia com os pobres.
No tempo da ceifa, ia com outros pobres colher espigas abandona-
das. E se alguém quisesse dar-lhe, de graça, uma porção de grãos,
não queria recebê-los, dizendo: Não tenho celeiros para guardá-los2.
Tanto Francisco quanto Egídio afirmam que é preciso trabalhar
com as próprias mãos, trabalho braçal e trabalhar honestamente.
O texto da regra não bulada refere isso do seguinte modo:
Todos os frades, em qualquer lugar em que estiverem em casa de
outros para servir ou trabalhar, não sejam mordomos nem chance-
leres nem estejam à frente das casas em que servem; nem recebam
algum emprego que cause escândalo ou produza detrimento para
sua alma (Mc 8,36); mas sejam menores e submissos a todos que
estão na mesma casa. E os frades que sabem trabalhar trabalhem e
exerçam o mesmo ofício que sabem, se não for contra a saúde da

1. Vida de Frei Egídio – Homem Santíssimo e contemplativo. Santo André: Men-


sageiro de Santo Antônio. 2001, p. 91.
2. Id. Loc. cit. p. 91-92.

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Trabalhar honestamente

alma e puder ser feito honestamente. Pois diz o profeta: Comerás


os trabalhos dos teus frutos; és feliz e será bem a ti (Sl 127,2); e o
apóstolo: Quem não quer trabalhar, não coma (cf. 2Ts 3,10); e cada
um fique na arte e ofício em que foi chamado (cf. 1Cor 7,24). E
pelo trabalho possam receber tudo que for necessário, menos di-
nheiro. E quando for necessário, vão em prol da esmola como os
outros pobres (Regra não bulada).
No texto, Francisco diz aos irmãos que sabem trabalhar, que o
façam e exerçam aquela profissão que souberem, se não for contra
a saúde da alma e puder ser trabalhado honestamente, pois como
diz o profeta, comerás os trabalhos dos teus frutos. Aqui há algo que
parece invertido, mas que é um ponto muito importante para tentar
compreender o que o homem medieval compreende por trabalhar
honestamente. Usualmente compreendemos isso invertido. Não esta-
ria invertida essa informação? Vamos tentar compreender.

Comer os trabalhos dos frutos e o ser honesto


Em primeiro lugar, vamos tomar “comer os trabalhos dos teus
frutos”. Trata-se de tradução literal. Não se costuma falar assim. A
gente fala “comer dos frutos do trabalho”. Na oração eucarística, por
exemplo, ouvimos “fruto da terra e do trabalho do homem...” Que
diferença haverá aqui, nessa inversão? Ninguém come trabalho. En-
tão, tentemos inverter a formulação para buscar compreender. Egídio
ajudava os lavradores a colher as azeitonas e pisar as uvas. Mas o que
significa a frase “quem trabalha come, quem não trabalha não come”?
Acho que não quer dizer que quem não trabalha está proibido de co-
mer. A afirmação deve estar ligada, de alguma maneira, com o modo
de trabalhar. Todavia, ainda assim não dá para “comer trabalho...”
- Nós sempre pensamos o trabalho do seguinte modo: eu aqui
e o trabalho lá. Como seria um trabalho em que ele próprio já fosse
um alimento? Quando a gente está no trabalho de uma grande cau-
sa, por exemplo, não interessa se vai dar resultado ou não; o próprio
trabalho já é satisfatório, já é gratificante, já é honroso; digamos,

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 113-125, jul./dez. 2012 115


Hermógenes Harada

um casal, se o marido trabalha, está fazendo o trabalho pela esposa,


aquele trabalho já é fruto, já é gratificante, já é alimento para ele...
- Imaginemos o trabalho do camponês desse modo, não o cam-
ponês industrial, mas o camponês que cultiva e vende para viver,
e não explora o outro. Será que ele não pensa assim: o fruto dá na
ponta da árvore, mas, até que a árvore floresça e dê fruto, tem um
trabalho enorme da árvore? Todavia, não só da árvore, mas do sol, da
chuva, do clima e também do camponês. O camponês não é dono
do fruto, ele é alguém que colaborou, trabalhou junto e, então, sur-
giu o fruto, e ele vende aquele fruto. Tentemos compreender como
o homem medieval: quando se produzem azeitonas ou uvas, eu não
sou dono dessas uvas e azeitonas; eu sou apenas um colaborador para
que essa uva tenha surgido como fruto. Temos então a colaboração
de Deus, do clima, da árvore, disso, daquilo... Talvez o medieval
pense assim: o fruto tem seu trabalho. Quando personificamos tal
fruto e vemos uma uva bonita, será que um São Francisco não diria:
“uva, como tu trabalhaste”, e pensa “tu trabalhaste, mas não foste
só tu que trabalhaste, Deus trabalhou contigo, aliás, ele fez a maior
parte do trabalho, eu também ajudei a Deus etc.” Então, comer do
trabalho do fruto talvez signifique que, se vou vender para comer,
tenho de respeitar esse trabalho que o fruto fez. E, quando alguém
explora o outro ou vende mais caro do que vale, só por mero interes-
se, então essa pessoa é desonesta...
Vamos dar um exemplo: tem pessoas, artistas, que fazem um
trabalho muito bom. Fazem uma obra. E quando vem, por exem-
plo, um milionário, que aprecia seu trabalho, propondo: O senhor
me vende esse quadro, porque é muito bom, e vou lhe pagar muito
dinheiro. O artista responde: não posso vender esse quadro para o
senhor. – Mas o Senhor vai ganhar muito dinheiro. – Não posso,
porque esse quadro não é meu. – Então, não foi o Sr. quem pintou?
– Fui. Mas a inspiração não vem de mim. Além do que, quem me
ajudou muito para ter essa inspiração foi minha esposa. De modos
que essa obra não é só minha. Por trás dela tem um enorme trabalho

116 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 113-125, jul./dez. 2012


Trabalhar honestamente

de uma comunidade, como do céu e da terra. Portanto, esse fruto,


que é concentração do trabalho, não posso fazer dele algo, não posso
vendê-lo para lucrar. Todavia, posso dar o quadro ao Senhor, em
troca de algo de que estou necessitando; pedindo ao Senhor que
cuide bem dessa obra. Isso eu posso fazer. Nesse exemplo podemos
ver, então, que, se alguém vive do trabalho, o que ele produz não é
produto, não é produção, é participação na criação. Que brote como
fruto, para isso, tem todo um trabalho, que é do próprio fruto. E é
desse trabalho do fruto que eu vivo. Mas, para viver do trabalho do
fruto, tenho que fazer como alguém que não é dono, que dignifica o
fruto e não o usa para explorar ou lucrar. Não será esse modo de ser
que se chama no texto de honesto?
Suponhamos outro exemplo, alguém que fabrica remédio. Sécu-
los a fio, uma família de médicos se dedica à pesquisa de um remédio.
Médicos dedicados à humanidade. Nesse serviço, num determinado
período, um dos médicos descobre um remédio muito importante,
que se torna o segredo daquele médico. Ele vai passando esse segredo
de geração para geração. Mas passa-o com a seguinte recomendação:
esse remédio é fruto, mas dentro desse fruto-remédio tem meu tra-
balho, mas também o trabalho de muitas gerações; está concentrado
nele o trabalho de todo uma linhagem a serviço do povo. Entre-
go esse segredo a você, portanto, para que pesquise mais, para ir
melhorando-o cada vez mais e depois o passe adiante. Mas não use
esse fruto como produto de venda para lucro dos seus interesses.
Você não pode fazer isso, porque não é seu. Você pode ter participa-
ção nele, mas não é dono. Agora, você pode viver do trabalho desse
fruto, significa que todo esse trabalho feito por toda nossa raça, de
alguma maneira, disso você pode viver. Significa: você pode comer
dos trabalhos do fruto. Esse médico pode criar uma firma e vender o
remédio; mas vende o mais barato possível, para todo mundo poder
dispor do remédio de que necessita; fabrica-o, ao mesmo tempo,
do melhor modo possível, para que tenha realmente efeito. Ainda
podemos encontrar, hoje em dia, certos produtos assim; poucos, é
claro, mas existem.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 113-125, jul./dez. 2012 117


Hermógenes Harada

Essa atitude é honesta e digna de um trabalhador que participa


da ação operária que o próprio Deus criador faz, Deus, o grande
servo trabalhador. Então, esse provérbio que diz “quem não trabalha
não come” significa bem mais do que aquilo que a gente entende à
primeira vista: Seu preguiçoso, não trabalhou, não come, vai traba-
lhar! Encontramos ali uma compreensão totalmente nova e plena do
que seja trabalho. O medieval, quando pensa no trabalho, pensa em
participação no modo de Deus trabalhar. Deus criador não é o se-
nhor dominador. Ele é o servo de toda humana criatura. Assim, eles
compreendiam que, desde o cabelo de ouro dos anjos, até o esterco
do chão, e o verme que está nele, tudo isso Deus está sustentando,
trabalhando, elementarmente, braçalmente, corpo a corpo.
Ao dizer “creio em Deus pais todo poderoso, criador do céu e da
terra”... o medieval não está pensando em poder de dominação. Po-
der é a competência artesanal do servo que serve. “Serve”, no sentido
de que seu serviço é bom, “presta”.
Quando se encontra, por exemplo, um vendedor ou um traba-
lhador que é honesto nesse sentido, não passa na alma da gente uma
espécie de um hálito refrescante, e se segue em frente mais contente
e mais nobre? Não se sai de tal experiência como que tendo tido
notícia de que o mundo está redimido? Trata-se de um tipo de expe-
riência como quando, depois de ter sido enganado uma infinidade
de vezes, de repente se encontra uma pessoa limpidamente honesta
desse modo, que lhe diz, você está sendo enganado, pode deixar co-
migo, que eu cuido disso.
Temos a impressão, no entanto, de que, no mundo de hoje,
acontece só e basicamente bem o contrário: cada um explora o outro
como pode. Mas, se a gente pegar uma “lupa” e sair por aí, não só
aqui no Brasil, mas pelo mundo a fora, observando com calma e
precisão, será que a exploração é tanta assim? Ou será que não haverá
um exército de gente honesta? Que trabalha elementarmente, corpo
a corpo, sem ser notada? Será que não nos deixamos influenciar de-
mais pela imprensa, pelas notícias?

118 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 113-125, jul./dez. 2012


Trabalhar honestamente

Uma das primeiras coisas que me impressionou quando eu era


estudante, que me deixou contente – no estrangeiro, a gente fica
com medo de ser enganado por todo mundo, tem medo de pegar
táxi etc. etc. –, ao chegar numa estação, carregado de malas e livros,
sozinho não conseguia carregar tudo. Pedi a um carregador para aju-
dar. Quando lhe pedi quanto custava, ele disse “cinco”. Dei uma
nota a ele e pensei que correspondia ao valor. Já estava dentro do
táxi, quando ouvi alguém chamar, gritando; ele veio correndo. Era
gordo, ofegava. Tinha ido até o jornaleiro trocar o dinheiro, e me
trouxe troco de 50 pfenigs. Eu fiquei impressionado. Ele poderia ter
embolsado o troco tranquilamente, pensando “é estrangeiro, nem
vai notar, ligar”.
É o mesmo que acontece com Frei Egídio, por exemplo, quando
ajudava os lavradores...
Temos que imaginar o lavrador desse tipo antigo, quando colhe
azeitonas, colhe quase agradecendo à árvore. Existem também pes-
cadores assim.
A honestidade não estará intimamente ligada com a percepção
da comunidade universal? Com a percepção de justiça, no sentido
de medida adequada? Então, deve estar ligada com pobreza, porque
pobreza significa fazer uso das coisas, não como alguém que é dono,
mas como alguém que participa da grande riqueza da doação de
Deus. Se por exemplo você sobe numa árvore e corta o galho para
poder tirar as maçãs, um Egídio diria: Não és honesto para com a
árvore. E, contigo também, pois se estás trepado na árvore e não cais,
é porque o Senhor sustenta o galho e te sustenta também. Egídio
está vendo o todo, e não só a parcelazinha particular dele mesmo.
Ele vê sempre o todo. A gente pode perguntar pela ligação existente
entre essa concepção e o trabalho das uvas, por exemplo. Quando se
pisa uva para sair o fruto, que é o vinho, aquele vinho não é fruto
do meu trabalho. Quando digo que, se trabalho, tenho direito, não
vejo o todo. Não, eu vivo do trabalho desse fruto. A uva tem todo
um trabalho, com a colaboração de todo o mundo. O que posso

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 113-125, jul./dez. 2012 119


Hermógenes Harada

fazer é pedir emprestado a ela. Eu trabalhei contigo, então você me


deixa viver um pouco de ti. E assim, comerás dos trabalhos do fruto.
Será que o camponês honesto, quando colhe, não tem esse jeito de
colher, de pisar?
Há um relato de um antropólogo que teria ido para Minas Ge-
rais, a uma vila de pescadores, que moravam perto de uma lagoa
onde havia muitos peixes. Esses pescavam de barco a remo. Apareceu
uma turma de pescadores da cidade grande, com tarrafas, barcos a
motor etc. Queriam fazer uma grande pescaria, junto com os pesca-
dores, até para “ajudá-los”, e pediram a esses para que batessem na
água e fizessem muito barulho para espantar os peixes para caírem
na rede. Os pescadores disseram que não fariam isso. Com o traba-
lho daquele dia de pescaria, eles ganhariam mais do que ganhavam
usualmente num ano de trabalho. Mas ninguém moveu um dedo.
Disseram: peixe não é nosso, peixe é da lagoa. A gente pega o que
precisa, para vender, trabalhar e viver, mas peixe não é da gente.
Essas pessoas são maiores do que alguém que diz: peixe é o produto
do meu trabalho. Para evitar isso, o latim medieval dizia “trabalho
do fruto”, e nós não entendemos direito. Para nós, é “fruto do tra-
balho”, produto do trabalho, é meu, faço o que bem entendo. Uso
como meio instrumento para explorar os outros etc.
- Então, o que é do homem, ali, é insignificante, é o mínimo; e
quando se tem essa concepção, aquela outra frase também funciona:
Comerás o pão com o suor do teu rosto. Só que nós colocamos como
centro do trabalho o homem; o homem seria como o agente, como
o dono e proprietário.
- O filósofo Heidegger tem um escrito que diz que o conceito
fundamental do mundo de hoje é o trabalhador, e tem um livro cha-
mado O trabalhador. Essa reflexão está ligada com Marx. Ele diz que
é tarefa nossa, hoje, repensar essa categoria chamada o trabalhador.
Heidegger parece ensinar que aquilo que Marx disse não é o que
está pensando muita gente que se diz marxista. Que a intenção de
Marx, como pensador, era resgatar a concepção de trabalho como

120 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 113-125, jul./dez. 2012


Trabalhar honestamente

se tinha no início da criação. Para a pastoral operária, por exemplo,


não basta só trabalhar com o operário; ela tem a grande tarefa de re-
pensar, resgatar a concepção de trabalho e Fr. Egídio, no fundo, está
fazendo isso. É por isso que Egídio trabalha muito bem. Quando
ia colher nozes, cuidava para que a nogueira não fosse prejudicada.
Mas, mesmo assim, procurava colher bastante. Então, o dono queria
pagar-lhe mais, e ele não aceitava. Esse “mais”, eu não aceito. Porque
esse mais pode viciar, criar cobiça.
Um dia, como de costume, voltando da floresta com lenha, en-
controu uma mulher querendo comprar-lhe a lenha. Feito o acor-
do, levou-lhe a lenha até a casa. Vendo que ele era religioso, a
mulher queria dar-lhe mais do que prometera. Ele, porém disse:
Não quero que me vença a cobiça3.
Se eu criar cobiça, caio fora do grandioso plano dessa grande or-
denação, de ser participante universal da obra do Senhor. Esse mais
é o desonesto. A razão de não aceitar não é porque combinou uma
coisa e depois receberia mais; é porque tem outra concepção do lu-
cro. É a mesma concepção que no seguinte capítulo aparece quando
diz “não receba pecúnia”, dinheiro, pois dinheiro sempre está ligado
com especulação, não é coisa por coisa.
Então, é preciso comer o trabalho do fruto, e tem que usar com
gratidão a remuneração.
Quando vai vender seu produto, o camponês pobre volta trazen-
do presentes para seus filhos, faz festa, contente; está cheio de grati-
dão. Mas, se vê seu filho jogar fora pão amassado, o chama e lhe diz:
não pode jogar fora o pão, ajunta do chão! E, na refeição, diz: que
negócio é esse de comer sem agradecer ao Senhor? E o filho, então,
diz: “Pai, fomos nós que trabalhamos, por que agradecer? E, o pai:
tua alma está ficando sem vergonha, sem respeito. Mas, olhando por
outro lado, não se estaria ficando mais autônomo, mais gente? Não,
na verdade se está ficando sem alma, está se perdendo a alma. Com

3. Vida de Frei Egídio, loc. cit. p. 91.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 113-125, jul./dez. 2012 121


Hermógenes Harada

o tempo, quando essa atitude aumenta muito, nasce a agressividade.


Agressividade e exploração criam dominação, exploração e falta de
participação. No princípio, começa com uma mínima concepção
distorcida do trabalho, mas que é fatal com o tempo.

História da macieira
Há uma velha história que pode ilustrar essa questão do trabalho
dos frutos.
Havia uma aldeia pobre, muito pobre. Para ela, sempre vinha
um negociante de maçãs, vender maçãs. Certo dia, como de costu-
me, chegou à aldeia com uma carroça cheia de belas maçãs... mas,
na carroça, já estava a inscrição: não vendo fiado! E vendia caro, e
daqueles pobrezinhos, coitados, ninguém conseguia comprar. Então
vinham aqueles meninos pobres, famintos, e por ali também passou
um monge velho, pobre, magrinho, e pediu, pelo amor de Deus, uma
maça. O vendedor disse: Não! Não sou assistente social. Compra
quem pode, fiado também não vendo. O monge velhinho chorava
de tristeza. Então passou um rico, viu o monge chorando, ficou com
pena e comprou uma maça para ele. O velho monge tinha tanta fome
que não repartiu com as crianças, devorou a maçã. Mas a semente,
ele não comeu, cuspiu a semente. A semente caiu no chão e, quando
olharam, brotou na hora uma macieira; cresceu num instante; flo-
resceu e deu maçãs, uma mais bonita do que a outra. A criançada,
que assistia a tudo aquilo, caiu em cima e comeu até não ter mais; o
monge comeu. O dono também comeu e disse: Que maçã gostosa!
E disse para criançada: ajunta a semente, e dá pra mim. A criançada
ajuntou e deu a ele: Toma tio, toma tio. Ele ficou contente, satisfeito.
A criançada foi embora, o monge também sumiu, o dono olhou para
carroça ... estava vazia?! O monge havia hipnotizado todo mundo,
fez pressentir que a carroça era a macieira e a criançada comeu tudo.
Qual a moral da história? Quem é dono das maças? A macieira.
É ela que diz a todo mundo: por favor, comam! Ora, o vendedor

122 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 113-125, jul./dez. 2012


Trabalhar honestamente

honesto tem que saber dessa lógica. Se não conhece essa lógica, não
é vendedor de maçãs, é explorador de maçãs.
O homem medieval compreende a natureza, Deus, a proprie-
dade... assim, e o trabalho também. Mas quando uma pessoa, por
exemplo, diz “eu não sou mais capitalista, para mim não tem mais
propriedade. O que tem é trabalho” etc. Todavia, pode compreender
o trabalho como sendo propriedade. E a coisa continua na mesma.
De novo, entra uma hierarquia de eliminação. No socialismo acon-
tece isso.
Com essa concepção, podemos compreender melhor o que segue
no texto. “És feliz e será bem a ti”. Ser feliz é ser honesto desse jeito. É
bem a ti significa isso lhe fará bem. Isso lhe dará saúde de alma.

O trabalho como arte, habilidade


“E cada qual permaneça naquela arte e ofício em que é chamado”.
“... Fazer obra”. Fazer obra era para o medieval uma arte. Para
nós, a arte é artístico. Chamamos de arte, de artístico, por exemplo, à
arte musical; mas também se diz “aquele irmãozinho só fica fazendo
arte”, que quer dizer, “bagunça”.
Estando num lugar, certa vez, com muita sede, sentei num bar-
zinho e pedi um refrigerante. Tenho costume de beber todo o re-
frigerante num gole. Com sede, não pensei em nada, tomei tudo
num gole. Quando percebi, todo mundo estava olhando para mim.
Pensei que era porque nunca tinham visto um japonês. Mas aí ouvi
uma mulher dizendo: “Que artista!” Pensei: “mas que uso esquisito
da palavra artista.
Será que esse uso que fazem os cearenses da palavra artista não é
o mesmo que o medieval entende por arte? Arte não é artístico, não
é arteiro, arte é habilidade. Mas habilidade que não é um talento
natural. Uma habilidade trabalhada por um longo tempo. Então, se
diz que existe arte de viver, arte, habilidade de viver, conquistada,

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 113-125, jul./dez. 2012 123


Hermógenes Harada

bem trabalhada. Arte de plantar, arte de escrever..., toda e qualquer


profissão tem que ser arte; é uma habilidade, uma competência útil,
que serve. Uma habilidade conquistada, bem trabalhada. Significa,
por exemplo, que o medieval compreende vida religiosa como arte. E,
ao exercer uma profissão, ao ter um trabalho, a pessoa não tinha só o
trabalho. Aquele trabalho que ele fazia era arte, habilidade, e essa ha-
bilidade estava intimamente ligada com o sentido de sua vida. Trata-
-se de uma grande experiência humana, muito interessante, pela qual,
um lixeiro, um porteiro, um hortelão que era muito bom, considera-
va esse seu ofício como arte. Considerava isso como uma habilidade,
e nessa habilidade, ele tentava também ser artista, quer dizer, artista
do bem viver. Havia, então, pessoas, por exemplo, religiosos, que, em
trabalhando na portaria, eram grandes mestres da espiritualidade. A
portaria era o lugar onde ele exercia a arte de porteiro e ao mesmo
tempo a arte de bem viver a vida religiosa. Significa que ele não estava
restrito, simplesmente bitolado, àquela funcionalidade. Trabalho não
é função, trabalho é lugar e exercício para se trabalhar a si mesmo na
busca e aprendizagem do sentido de viver. Uma pessoa que exercia
um ofício assim podia ser simplesmente alguém que só trabalha na
roça, na horta, mas a sabedoria que adquiria da vida universal era
muito grande. Através dessa compreensão universal, se estabelecia
um canal de comunicação entre diferentes ofícios. Uma pessoa que
rezasse, assim, que exercesse a arte de rezar, desse modo, e através de
todo esse exercício chegasse a uma iluminação e sabedoria, podia falar
do modo como rezava, do modo como trabalhar, a um artista, e em-
bora rezar e pintar nada tivessem exteriormente em comum, o artista
aprendia do religioso sobre o modo de como pintar. Mas, escutando
o pintor contar sobre o modo como ele trabalha, o religioso aprendia
a arte de rezar, e assim por diante. Acontece uma intercomunicação,
sem sair de seu próprio ofício. Hoje também encontramos esse tipo
de experiência. Será que não é assim, que na conversa com outra
pessoa, cujo modo de ser externo é completamente diferente do seu,
de repente você descobre certas coisas que você mesmo já experimen-
tou em sua vida? E se surpreende dizendo, mas isso eu também já

124 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 113-125, jul./dez. 2012


Trabalhar honestamente

experimentei. Vez por outra, é possível que cada um faça esse tipo de
experiência de comunicação.
Como exemplo dessa intercomunicação, talvez sirva um epi-
sódio um tanto engraçado. No decorrer de um curso, em Minas
Gerais, eu estava tentando montar uma apostila. Depois de muitas
discussões, compilei as mesmas num caderno bem resumido. Uma
irmã religiosa, que participava do curso, tinha um irmão que era
vendedor de xampu. Aquela apostila acabou caindo nas mãos daque-
le vendedor. Ele começou a se interessar muito pela apostila, porque
diz que o ajudava a vender xampu. Nós, espirituais, intelectuais, até
nos sentimos um tanto “humilhados” com o fato. Mas, pensando
bem, significa que a apostila estava direita, porque houve intercomu-
nicação. Um dia talvez se pudesse chamar essa pessoa para fazer uma
conferência sobre o modo de como estudar. Mas, seguramente, ele
não iria falar sobre o estudo; falaria sobre o modo de como vender.
Todavia, dá para entender.
O homem medieval era muito hábil. Quando Francisco diz
“aprenda uma arte, um ofício” ... e quando usa a palavra arte, ofício,
ele tem essa mentalidade. Significa que não é só um ganha-pão e,
por isso, ele recomendava que se deve trabalhar bem, honestamente.
A honestidade está diretamente ligada com comunidade univer-
sal. A atividade que exerço no ofício que desempenho está ligada
com a totalidade das relações humanas. É por isso que aprimorando
a arte do trabalho honesto, o homem medieval se tornava mestre, não
importando qual atividade exercesse. Mestre é alguém que aprendeu
a aprender e onde quer que esteja e atue exercita esse aprendizado.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 113-125, jul./dez. 2012 125


A organização curricular dos
estudos filosóficos do Guia
dos estudantes
Idalgo J. Sangalli*

Resumo: Este estudo pretende apresentar a divisão e a classifica-


ção da filosofia nos ensinamentos filosóficos da Universidade de Paris
até 1240. Partindo do modelo de divisão das ciências de Domingos
Gundissalvo, a exposição e análise parcial culminam na concepção e
no lugar ocupado pela filosofia, particularmente as obras de Aristóte-
les, no esquema curricular de estudos do Guia dos Estudantes (Ripoll
109). A contribuição desses dois esquemas e a comparação entre eles
dá uma boa ideia da evolução doutrinária e, principalmente, dos tex-
tos estudados e do espírito que animava os mestres e estudantes no
ensino e no estudo da filosofia no ambiente universitário parisiense.
Palavras-chave: filosofia, teologia, organização curricular, Guia
dos estudantes (Ripoll 109).
Abstract: This study aims to evaluate the division and classifica-
tion of Philosophy on the philosophical teachings at the University
of Paris until 1240. Based on the sciences division model of Domi-
nic Gundissalvo, the exposure and partial analysis culminate in the
idea and the place occupied by philosophy, particularly the works of
Aristotle, in the scheme of the curriculum of studies from the Guide
for Students (Ripoll 109). The contribution of these two schemes
and the comparison between them provides an idea of the doctrinal

* Professor doutor em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul – UCS.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 127-143, jul./dez. 2012 127


Idalgo J. Sangalli

evolution, and especially from the studied texts and the spirit that
stimulated teachers and students in the teaching and study of phi-
losophy in the University of Paris.
Keywords: Philosophy, Theology, Curriculum, Guide for Stu-
dents (Ripoll 109).
O aristotelismo latino existente por volta de 1250 em Paris ainda
era um “aristotelismo eclético” ou “aristotelismo avicenizante e agos-
tinizante”, como queria Nardi1. Aristóteles foi o principal expoente
grego em que os filósofos latinos se apoiaram. O não conhecimento
de todo o sistema aristotélico, assim como as dificuldades surgidas
pelas passagens obscuras (como no De Anima) ou mesmo as lacunas
(como na Metafísica) – percebidas pelos leitores cristãos que as liam
já a partir do paradigma do Deus criador –, favoreceram as tentativas
de explicar, comentar e mesmo completar tais lacunas. Este “ajuste”
foi facilitado pela influência neoplatônica e pela experiência árabe.
Isto é, na fusão da filosofia de Aristóteles com a tradição neoplatô-
nica, foram decisivos os dois escritos neoplatônicos: a Teologia de
Aristóteles, composta de extratos das Enéadas de Plotino, conheci-
da e presente nos comentários árabes e desconhecida diretamente
pelos escolásticos2, e o Liber de causis, baseado em Proclo, que foi
considerado pelos escolásticos como obra de Aristóteles3. Acrescen-
tando-se os escritos de Agostinho, dos Padres da Igreja, dos Árabes

1. NARDI, Bruno. Studi di filosofia medievale, p. 196-200. Nesta obra, Nardi


distingue três correntes principais do aristotelismo do século XIII: antes de 1250
(aristotelismo avicenizante e agostinizante); depois de 1250 (aristotelismo averro-
ísta, tendo Alberto Magno como iniciador) e (aristotelismo concordista de Tomás
de Aquino).
2. Cristina D’Ancona COSTA observa que “Le idee guida sostenute nelle parti ori-
ginali della Teologia hanno esercitato una influenza indiretta anche sul mondo di
lingua latina: l’autore del De Causis, infatti, le ha conosciute e approvate alpunto di
ispirarsi ad esse, nelle parti della propria opera indipendenti da Proclo” (“Un pro-
filo filosofico dell’autore della ‘Teologia di Aristotele’”. In: Medioevo, p. 83-134).
3. Cf. STEENBERGHEN, F.V. La philosophie au XIIIe siècle, p. 170.

128 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 127-143, jul./dez. 2012


A organização curricular dos estudos...

e Judeus, daí partiu a caracterização, sustentada principalmente por


Steenberghen, de que o aristotelismo latino foi um “aristotelismo
neoplatonizante”4.
Das traduções5 do árabe ou do grego para o latim e do conheci-
mento completo do Corpus aristotelicum, o pensamento do Estagiri-
ta passou a ser cada vez mais o centro das discussões e das preocupa-
ções dos escolásticos. Por um lado, de “ajustá-lo” ao dogma cristão
como fizeram Boaventura e Tomás de Aquino (aliás, de modo muito
diferente) e, por outro, seguindo uma motivação filosófica mais ra-
dical. Motivação respaldada apenas na razão natural com a pretensão
de total fidelidade interpretativa ao filósofo grego, embora usando
constantemente os comentários e renunciando à questão da conci-
liação com a fé, por exemplo, foi o empenho dos mestres de artes
comandados por Síger de Brabante. Não era mais possível ignorar a
sabedoria pagã, que mais e mais se impunha com o seu método de
análise e os seus critérios de cientificidade. A ideia de scientia, no
sentido aristotélico, era diferente da ideia agostiniana de sapientia,
de um tipo de conhecimento imediato e intuitivo plenamente possí-
vel apenas na beatitude celeste.
Qual era o lugar ocupado pela filosofia neste contexto doutrinal,
dominado pela teologia e catalogado de escolástica? Como e o que se
ensinava de filosofia? Até metade do século XII a divisão da filosofia
mesclava as artes liberais com a tripartição especialmente estóica em
física, lógica e ética, assumida por alguns autores da patrística como
Orígenes e Agostinho. A partir da segunda metade do século XII é a

4. Idem. Ibid. p. 171s. Este autor afirma: “De même, la formule ‘aristotélisme
néoplatonisant’ est, a mes yeux, une formule heureuse et exacte pour caractériser,
par exemple, la philosophie de Guillaume d’Auvergne”.
5. Sobre a invasão da filosofia pagã no final do século XII e primeira metade
do XIII, vide: STEENBERGHEN, F.V. Introduction à l’étude de la philosophie
médiévale, p. 75-81. Quanto ao problema das traduções e à influência árabe na
transmissão do pensamento aristotélico, vide a recente publicação: DE BONI, L.
A. A entrada de Aristóteles no Ocidente medieval, p. 23-56.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 127-143, jul./dez. 2012 129


Idalgo J. Sangalli

divisão aristotélica em física, matemática e teologia que começa a se


fazer presente pelas traduções de Severino Boécio e pelas contribui-
ções de Al-Farabi e de Domingos Gundissalvo. Como era dividida,
classificada a filosofia no período de surgimento dos estudos pro-
priamente universitários e, especialmente, nas primeiras décadas de
estudos na Faculdade de Artes?
Convém ter presente que não nos ocuparemos em distinguir e
analisar detalhadamente cada tipologia e nem mesmo tratar da dis-
tinção que pode ser feita entre a introdução à filosofia da classifi-
cação do saber. Das diferentes facetas que constituem o complexo
sentido do que tradicionalmente se denomina “escolástica”, abor-
daremos apenas uma delas, por julgá-la suficientemente relevante às
análises sobre métodos de ensino ou metodologia que foram utili-
zadas ou poderiam ser aplicados nos estudos filosóficos atuais. Para
tanto e apenas para exemplificar, escolhemos duas fontes6, dentre
muitas, que apresentam a divisão e a classificação da filosofia nos
ensinamentos filosóficos em Paris até 1240. De qualquer modo, a
seguir, a contribuição desses dois autores dá uma boa ideia da evo-
lução doutrinária7 e, principalmente, dos textos estudados e do es-
pírito que animava os mestres, com particular atenção ao Guia dos

6. A escolha da classificação das ciências de Gundissalvo foi por ser uma síntese da
dupla tradição árabe-latina e a do anônimo de Barcelona “Guia dos estudantes”,
por representar a organização escolar na Faculdade de Artes. Para conhecimento
de outras obras de introdução à filosofia, na Faculdade de Artes de Paris, além da
Divisio scientie, de Jean de Dacie e a Philosophia, de Aubry de Reims e o De ortu
scientiarum, de Roberto Kilwardby, situadas em torno de 1230 a 1250, vide: C.
LAFLEUR. Quatre introductions à la philosophie au XIIIe siècle, 1988. O autor
apresenta a edição crítica de quatro textos sobre o assunto: Accessus Philosopho-
rum VII artium liberalium, anônimo; a Philosophia disciplina, também anônima;
a Divisio scientiarum, de Arnoul de Provence e o Compendium circa quadrivium,
anônimo. (p. 01 e 02). Não menos significativo, neste sentido, é o De partibus
philosophie essentialibus, de Egídio Romano.
7. Para tanto, sugerimos o artigo de C. Lafleur, “Scientia et ars dans les introduc-
tions à philosophie …”, p. 45-65.

130 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 127-143, jul./dez. 2012


A organização curricular dos estudos...

Estudantes. Assim facilitará o entendimento sobre o contexto de um


período muito profícuo de ensino e estudo da filosofia no ambiente
universitário parisiense.

1 O modelo de Gundissalvo
Domingos Gundissalvo compôs em 11508 o Sobre a divisão da
filosofia (De divisione philosophiae), obra que, segundo Steenberghen,
foi marcante na história dos escritos introdutórios à filosofia: “[...]
é com esta obra, de fato, que se opera pela primeira vez a síntese de
uma dupla tradição, árabe e latina, ambas resultado do pensamento
grego”9. O autor introduziu a classificação das ciências no contexto
da escolástica latina, seguindo de perto as fontes árabes e divergindo
da tradicional classificação da preponderância e domínio exclusivo
da abordagem teológica – que algumas décadas antes Abelardo inau-
gurou como theologia christiana, diferente da especulação pagã ou
puramente filosófica sobre a divindade, adotada pela linhagem neo-
platônico-agostiniana – com a clara distinção entre saber humano e
saber teológico. A lógica foi entendida como instrumento de pesqui-
sa e ocupa um lugar como ciência “intermediária” entre as disciplinas
propedêuticas e as disciplinas filosóficas no sentido estrito. Seguindo
o modelo aristotélico de ensino, Gundissalvo dividiu a filosofia em
teorética e prática, tendo como novidade a redistribuição das disci-
plinas integradas das chamadas artes liberais (Trivium: gramática,
retórica e dialética. Quadrivium: aritmética, geometria, astronomia
e música). E, separadamente, está a “Divina Scientia”. Para facilitar

8. Foi publicado o texto por L. BAUR, em 1909, seguido de um estudo crítico de-
talhado. Este trabalho, que trata também de Miguel Scot e de Roberto Kilwardby,
foi resumido e completado, com informações mais recentes, por STEENBER-
GHEN, F.V. La philosophie au XIIIe siècle. p. 111-113.
9. STEENBERGHEN, F.V. Siger de Brabant d’après ses oeuvres inédites: Siger
dans l’histoire de l’aristotélisme, p. 569.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 127-143, jul./dez. 2012 131


Idalgo J. Sangalli

a compreensão da classificação de Gundissalvo, veja-se o esquema


apresentado por L. Baur e reproduzido por Steenberghen10:
HUMANA SCIENTIA (ou PHILOSOPHIA, Filosofia em sen-
tido amplo)
I. Scientiae eloquentiae (ciências, propedêuticas)
1. Scientia litteralis (gramática)
2. Scientiae civiles (poética e retórica)
II. Scientia media (lógica, em 8 partes).
III. Scientiae sapientiae (Filosofia em sentido estrito)
Physica (8 ciências)
1. Philosophia theorica Mathematica (7 ciências)
Theologia, Prima Philosophia
Politica
2. Philosophia practica Economica (inclui as artes mecânicas)
Ethica
DIVINA SCIENTIA (é a teologia ou a ciência da Revelação).

É evidente a consolidação da necessidade da filosofia, mesmo


como propedêutica à formação teológica. A teologia (divina scientia)
é a ciência dominante; na parte “scientiae sapientiae” da philosophia,
no seu âmbito teórico aparece, porém, a theologia, no sentido aristo-
télico. Resultado: a theologia é scientia sapientiae humana e, também,

10. STEENBERGHEN, F.V. La philosophie au XIIIe siècle, p. 112s e 116. Gui-


lherme Fraile apresenta um esquema mais detalhado desta mesma classificação, re-
produzindo as divisões principais do esquema de Baur, sem incluir a Divina Scien-
tia. Em outras palavras, Fraile expõe unicamente o esquema que compreende as
divisões da Humana Scientia. (FRAILE, G. Historia de la filosofia. Filosofia judía y
musulmana. Alta escolástica: desarrollo y decadencia. II (2), p. 113). Nesta mesma
obra, o ilustre histórico apresenta uma série de esquemas que reproduzem as dife-
rentes classificações realizadas pelos escolásticos, facilitando a compreensão de suas
concepções de filosofia e o lugar que esta ocupava em relação ao saber teológico.

132 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 127-143, jul./dez. 2012


A organização curricular dos estudos...

divina scientia, ciência da revelação. Terão ambas o mesmo objeto


de investigação? Num contexto mais amplo desta particular classifi-
cação, cabe perguntar, embora sem pretender responder, pois reme-
teria a um complexo problema que resultou na teoria do intelecto
único para toda a humanidade, de Averróis: há uma relação entre o
modelo aristotélico de “ciência teológica” e o ideal da teologia como
ciência da revelação? A teologia de Aristóteles pode ser dividida, por
um lado em metafísica e, por outro lado, em teologia revelada?

2 O esquema do Guia dos Estudantes


Quanto ao anônimo de Barcelona, o autor desconhecido do fa-
moso Guia dos Estudantes, um escrito presente no manuscrito de
Barcelona conhecido como Ripoll 109, foi encontrado por Grab-
mann em 1927, no Arquivo da Coroa de Aragão e publicado em
edição provisória pela primeira vez por Claude Lafleur, em 1992. O
manuscrito apresenta não apenas uma divisão diferente da divisão
de Gundissalvo, mas é muito importante, pois foi escrito provavel-
mente em Paris entre 1230 e 1240, por um mestre da Faculdade de
Artes, com o propósito de auxiliar (vademecum) os estudantes na
preparação dos exames11. Segundo Steenberghen,
O guia dos estudantes nos fornece uma soma de dois grupos de
dados interessantes: de uma parte, sobre a ‘concepção’ que o autor
desconhecido fazia da filosofia e de sua estrutura; da outra parte,
sobre a organização efetiva dos estudos na faculdade de artes no
momento em que ele escreve12.
O escrito mostra claramente os textos conhecidos, o que real-
mente estudavam e a contraposição nascente que será cada vez maior

11. Claude LAFLEUR, apresenta um completo estudo sobre isto em sua obra: Le
‘Guide de l’étudiant’ d’un maître anonyme de la Faculté des arts de Paris au XIIIe
siècle. (Ripoll 109), 1995; vide, também, seu artigo “Les ‘guides de l’étudiant’ de
la Faculté des Arts de l’Université de Paris au XIIIe siècle”. In: Philosophy and
Learning – Universities in the Middle Ages, 1995, p. 137-199.
12. STEENBERGHEN, F.V. La philosophie au XIIIe siècle, p. 111.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 127-143, jul./dez. 2012 133


Idalgo J. Sangalli

à organização escolar anterior, que reduzia as ciências profanas às


artes liberais. Por mostrar as condições e as circunstâncias reais da
faculdade, esse guia de estudos permite uma maior compreensão ao
pesquisador do que as interpretações restritas aos documentos e es-
tatutos da Universidade de Paris. Aliás, essa relação entre filosofia e
teologia que o plano apresenta e suas possíveis consequências, leva-
ram alguns estudiosos a apresentar leituras diferentes. Grabmann13,
por exemplo, avaliou o texto do Guia dos Estudantes, que é anterior
a 1250, como uma antecipação das controvérsias entre filósofos e
teólogos, que eclodiu posteriormente, especialmente num prenún-
cio das teses condenadas em 1277. Ou, ainda mais recentemente,
também Lohr14 interpretou que o texto evidencia uma nova atitude
intelectual em prol do interesse dos próprios artistas, como um novo
intelectual, e representaria o testemunho do avanço do aristotelismo
sobre a teologia cristã, que nas décadas seguintes vai definitivamen-
te triunfar. Por outro lado, os estudos de Steenberghen e Celano15
demonstram outra leitura, em que não houve uma antecipação no
Guia dos Estudantes em relação à metodologia que foi aplicada na
segunda metade do século XIII, na relação entre filosofia e teologia.
De qualquer forma, quanto mais as obras e o pensamento de
Aristóteles eram conhecidos, e o Guia apresenta-o como a principal
fonte de referência nos estudos, maior era a tendência a dar à filosofia
um novo lugar e um novo papel científico; que, segundo Domanski,
na identificação “[...] das artes liberais, a filosofia, preparou a con-

13. GRABMANN, M. Der lateinische Averreismus des 13. Jahrhundertes und


seine Stellung zur christlichen Weltanschauung. Munich, 1931, p. 76s.
14. LOHR, Charles. “The medieval interpretation of Aristotle”. In: The Cam-
bridge History of Later Medieval Philosophy. Cambridge, p. 86s.
15. STEENBERGHEN, F.V. La philosophie au XIIIe siècle. 1991; CELANO,
Anthony J. “The understanding of the concept of felicitas in the pre-1250 Com-
mentaries on the Ethica Nicomachea”. In: Medioevo. Rivista di storia della filo-
sofia medievale, p. 29-53; Idem. “The ‘finis hominis’ in the Thirteenth Century
Commentaries on Aristotle’s Nicomachean Ethics”. In: Archives d’Histoire Doc-
trinale et Litteraire du Moyen Age, p. 23-53.

134 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 127-143, jul./dez. 2012


A organização curricular dos estudos...

cepção puramente teórica e ‘científica’ da filosofia, tão características


do século XIII”16. A filosofia era definida como amor e estudo da
verdadeira sapiência e contemplação das coisas divinas e da natureza
com estudo e amor. No § 3 do texto latino, deste mestre anônimo,
se lê: “Ora, a filosofia é definida assim: filosofia é amor e estudo da
verdadeira sapiência. De outra maneira definiu Ysaac: filosofia é a
contemplação das coisas naturais e divinas com estudo e amor”17.
Este escrito, que representou o começo do aristotelismo em tor-
no de 1240 e mostra a situação dos estudos filosóficos na Faculdade
de Artes na primeira metade do século XIII, parte da tríplice divi-
são platônico-estóica: natural, prática ou moral e racional (naturalis,
pratica sive moralis e rationalis), sem esquecer-se da divisão aristoté-
lica teórico-prática. Não pretendendo uma análise mais detalhada de
todo o plano de estudo18, o que nos interessa aqui é, primeiramente,
que a Metafísica de Aristóteles, tanto a versão antiga (vetus) quanto
a “nova” tradução, juntamente com o Liber de causis, aparecem em
primeiro lugar, no âmbito teórico, como metaphysica. Ela designa o
que é separado do movimento e da matéria segundo o ser e a defini-
ção, conforme afirmou Aristóteles na Metafisica VI 1, 1026a 10-22.
Em segundo lugar, que a teologia, diferentemente do esquema de
Gundissalvo, é apenas uma das partes da Philosophia Practica e, as-
sim, ela é uma disciplina prática. Como bem observa Steenberghen,

16. DOMANSKI, J. La philosophie, théorie ou manière de vivre, p. 42.


17. LAFLEUR, C. Le “guide de l’étudiant” d’un maître anonime de la faculté des
arts de Paris au XIIIe siècle, p. 27. “Diffinitur autem philosophia sic: philosophia
est amor et studium vere sapientie. Aliter diffinit Ysaac: Philosophia est contem-
platio rerum divinarum et naturalium cum studio et amore”.
18. O excelente trabalho de Claude Lafleur com a colaboração de Joanne Carrier
destaca quatorze contribuições específicas do Guia dos Estudantes que refletem
a importância deste documento, vide: LAFLEUR, Claude. L’enseignement de la
philosophie au XIIIe siècle. Autour du “Guide de l’ étudiant” du ms. Ripoll 109.
Collaboration de Joanne Carrier, Collection “Studia Artistarum”, vol. 5, Turn-
hout, Brepols, 1997, XVIII, 722 p.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 127-143, jul./dez. 2012 135


Idalgo J. Sangalli

Esta maneira de ver a ciência sagrada como um saber de ordem


prática responde muito bem às tendências da faculdade de Teolo-
gia de Paris no começo do século e, mais geralmente, à concepção
agostiniana de sabedoria teológica; mais longe de subordinar as
ciências profanas à teologia, nosso autor faz desta uma modesta
seção da filosofia prática!19
Eis o esquema da classificação da filosofia do Guia dos estudantes20:
PHILOSOPHIA
I. NATURALIS
1. Metaphysica ... ... ... ... Aristoteles: Metaphysica vetus
Metaphysica nova
Liber de causis
2. Mathematica:
a) Astronomia ... ... ... traditur secundum unam partem in
Tolomeo,
secundum aliam partem in Almagesto
b) Geometria ... ... ... Euclides: Elementa
c) Arithmetica ... ... ... Nicomachus-Boethius: Institutio
arithmetica
d) Musica ... ... ... Boethius: Institutio musica
3. Physica (scientia naturalis inferior):
a) Corpus mobile in generali Aristoteles: Physica
b) Corpus mobile in particolari:
1. ingenerabile … … … Aristoteles: De caelo
2. generabile:
1. simplex … … … Aristoteles: De generatione
2. mixtum … … … Aristoteles: Meteora
Aristoteles: De plantis
De animalibus
3. animatum … … …
De anima [rationali]
Parva naturalia
[Alfredus]: De motu cordis

19. STEENBERGHEN, F.V. La philosophie au XIIIe siècle, p. 116.


20. Cf. Idem, ibid. p. 115s.

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A organização curricular dos estudos...

II. PRACTICA SIVE MORALIS


1. Vita animae in Deo: teologia (supernaturalis)
2. Vita animae in bono aliorum:
a) in familia: ypotica (=yconomica?) … … [Cicero]: Liber de vera
justitia
(= De officiis)
b) in civitate: politica … … … Leges et decreta
Aristoteles: Ethica nova
3. Vita animae in seipsa: ethica Ethica vetus
sive monastica … … … Plato: Tymeus
Boethius: De consolatione
III. RATIONALIS
1. Retorica … … … Cicero: De inventione
2. Grammatica … … Priscianus: Institutiones grammaticales
Donatus: Barbarismus
1. de esse logicae Aristoteles: Kategorica
Perihermeneias
Analytica priora
3. Logica: Topica
Elenchica
Porphyrius: Isagoge
Boethius: De syllogismo categorico
2. de bene esse De syllogismo hypothetico
logicae ... De differentiis topicis
De divisione
[Gilbertus]: Liber sex principiorum

Numa análise mais detalhada da segunda parte do esquema,


Practica sive Moralis, pode-se perceber: as relações entre filosofia e
teologia; o lugar ocupado por elas; e, também, permite identificar os
movimentos que antecederam a segunda metade do século XIII na

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 127-143, jul./dez. 2012 137


Idalgo J. Sangalli

tomada de posição dos aristotélicos radicais nas décadas seguintes e


as suas diferenças em relação ao próprio Guia dos Estudantes.
Primeiramente pode-se observar que a parte correspondente a
philosophia moralis, isto é, o estudo da vida moral, está subdividido
em três partes diferentes: 1) vita animae in Deo que corresponde à
theologia supernaturalis ou ciência sagrada; 2) vita animae in bono
aliorum, que corresponde a duas ciências: a oeconomica chamada
ypotica que diz respeito aos assuntos na família, e a politica que trata
dos assuntos civis, do cidadão na vida pública; 3) vita animae in se
ipsa que corresponde a ethica sive monastica, isto é, a ética individual,
baseada na ética de Aristóteles, no Timeu de Platão e na De consola-
tiones philosophiae de Severino Boécio.
Muito influenciada pelo pensamento agostiniano, a tradição
cristã tratou os problemas morais dos cristãos pela abordagem do “fi-
losofar na fé”, respaldada nos preceitos do Evangelho, dando respos-
tas do tipo teológico, como exemplo de vida ética a opção religiosa.
No caso do Guia dos estudantes, o modo de entender os problemas
relacionados à ética é diferente desta tradição, pois o espaço para
este “saber da sagrada escritura” fica reduzido apenas a uma das três
partes constituintes da filosofia moral e a apenas uma das quatro ci-
ências que tratam da vita animae. Sem dúvida, isto indica a perda do
monopólio teológico na ética, cedendo espaço para as outras ciências
(oeconomica, politica, monastica ou ethica) tratarem da importante
questão da determinação do fim último do homem.
Na leitura da parte que trata da vida da alma em si mesma (a
ética individual) e da possibilidade de ela e também de o corpo do
homem alcançar a felicidade depois da morte, fica claro que, além de
reduzir o campo da teologia, a atitude do autor é de filósofo. Ele se
atém aos limites da razão natural e àquilo que pode ser demonstrado
racionalmente, sem apelar para argumentos teológicos, diferencian-
do-se do modo tradicional de explicar e entender as questões éticas.
Afirma o autor anônimo no § 94:

138 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 127-143, jul./dez. 2012


A organização curricular dos estudos...

Da mesma forma se indaga se o corpo é apto para gozar da felici-


dade como a alma. E parece que sim, visto que é o instrumento
pelo qual a alma opera o bem. E assim parece que o corpo merece
da mesma forma que a alma. – Dizemos a respeito que, segundo
os teólogos, isto é verdadeiro [que o corpo pode alcançar a felici-
dade depois da morte], porque afirmam que a alma se reúne ao
corpo depois da morte. Mas isto é mais por milagre do que pela
via natural. No modo normal das coisas isto é inatural, e por isso
não é assunto da filosofia. E por causa disto, como a felicidade
acontece depois da morte, como prova este autor, e os filósofos
não afirmam que a alma se reúne ao corpo depois da morte, por
essa razão a felicidade pela via natural é devida propriamente só à
alma e não ao corpo21.
A passagem é clara e, considerando que o seu autor é um mestre
da Faculdade de Artes dos anos 30/40 do século XIII, é muito signi-
ficativa quanto ao limite do discurso filosófico e o alcance da filosofia
que não deve ir além da demonstração racional, posição defendida e
destacada posteriormente pelos aristotélicos radicais. Percebe-se que
cabe apenas ao teólogo e à teologia tratar da felicidade do corpo de-
pois da morte. Ao filósofo cabe tratar e fundamentar filosoficamente
a felicidade de um ponto de vista natural e, portanto, a verdadeira
felicidade só pode ser atribuída à alma depois da morte (felicitas per
naturam debetur solum anime) e não ao corpo. Em termos de vida
pós-morte, a felicidade existente para a alma e para o corpo só pode
ser sustentada pelos teólogos. Ao filósofo cabe o silêncio, já que ao
seu alcance só é possível demonstrar racionalmente a existência de

21. LAFLEUR, C. Le “guide de l’étudiant” d’un maître anonime de la faculté


des arts de Paris au XIIIe siècle, p. 59. “Item queritur utrum corpus sit natum
recipere felicitatem sicut anima. Et uidetur quod sic, cum sit instrumentum per
quod anima operatur bonum. Et ita uidetur corpus mereri sicut anima. — Ad hoc
dicimus quod secundum theologos hoc habet ueritatem, quia ponunt animam
reiungi corpori post mortem. Sed hoc est plus per miraculum quam per naturam.
Simpliciter enim hoc est innaturale, et ideo non ponitur a philosophis. Et propter
hoc cum felicitas sit post mortem, sicut probat hic auctor, et non ponunt philo-
sophi animam post mortem coniungi corpori, ideo proprie felicitas per naturam
debetur solum anime et non corpori”. 

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 127-143, jul./dez. 2012 139


Idalgo J. Sangalli

uma felicidade da alma, isto é, a estratégia metodológica pressupõe


evitar toda e qualquer incursão da teologia nas respostas construídas
pela filosofia.
Avançando no texto, o autor acrescenta outros argumentos para
demonstrar os limites da filosofia e a própria limitação da linguagem
humana. Isto quando pensa e fala como filósofo (loquendo philoso-
phice) ao tratar sobre assuntos como a causa de nossas boas ou más
ações e a necessidade da graça, já que pela perspectiva do discurso
teológico (loquendo theologice) não basta fazermos o bem sem a ajuda
da graça divina.
Esta divisão da filosofia é uma importante antecipação, no sen-
tido de tornar-se concepção comum no ambiente universitário, em
relação ao lugar, o ensino, o papel da filosofia e de seu status científi-
co, que encontraremos firmemente defendidos nos próprios escritos
dos mestres de artes, depois de 1250. O resultado desses escritos
introdutórios da filosofia é evidente, segundo Putallaz e Imbach:
“[...] a filosofia cessou de ser uma simples propedêutica às faculdades
superiores de teologia, de direito e de medicina; o estudo da filosofia
tornava-se um fim praticável e uma profissão”22. Neste sentido, a
busca do ideal de sabedoria e de felicidade especulativa parece aos
olhos dos “artistas”, isto é, dos professores e estudantes de filosofia,
da Faculdade de Artes da Universidade de Paris, possível de ser re-
alizado. E não somente pela alma na vida futura, como antecipou
o Guia dos Estudantes, mas também terrenamente com o auxílio da
poderosa razão. Aos olhos dos teólogos, este ideal usurpa o domínio
teológico, que é concebido como o único que pode realizar a felici-
dade da alma e do corpo, no plano da salvação; esse projeto, para a
filosofia, seria impossível demonstrar. É nesta moldura que se enqua-
dram às condenações de 1277.

22. PUTALLAZ e IMBACH. Professione filosofo. Sigieri di Brabante, p. 24.

140 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 127-143, jul./dez. 2012


A organização curricular dos estudos...

Considerações finais
As classificações, as divisões e a especialização dos saberes cada
vez mais frequentes, indicavam um reordenamento progressivo dos
estudos em níveis de ensino, acompanhando a criação das univer-
sidades no século XIII. Surgem as faculdades e uma hierarquia en-
tre elas, sendo a formação básica garantida pela Faculdade de Artes,
onde se ensinava basicamente as sete artes liberais acompanhadas de
obras de Aristóteles recentemente conhecidas. As faculdades ditas
superiores eram as de teologia, medicina e direito, almejadas pelos
estudantes como coroamento de seus estudos e profissão. Obvia-
mente, permanecer mais tempo do que o necessário ou pretender
ocupar-se profissionalmente no estudo e ensino na Faculdade de Ar-
tes não era uma opção desejada, exceto para os aristotélicos radicais.
Tratar do problema da sistematização dos saberes empreendida
na escolástica e, assim, compreender o lugar ocupado pela filosofia,
como ela se tornou o exercício de especulação escolar, como a filo-
sofia passou a ser valorizada e o próprio ideal filosófico defendido,
exige uma ampla investigação, que não pode ser feita aqui. No en-
tanto, pareceu-nos possível escolher duas fontes representativas que
apresentam a divisão e a classificação da filosofia nos ensinamentos
filosóficos em Paris até 1240. Nesta cidade iniciava uma nova fase
da filosofia na difícil tarefa de síntese entre as posições ortodoxas e as
novas propostas realizadas no seio da Faculdade de Artes.
Por outro lado, falar dos tipos de métodos de investigação, da for-
ma de discussão, de expressão e de ensino que constituíram a própria
concepção de universidade medieval é uma tarefa complexa, da qual
a breve análise acima apenas esboçou uma pequena parte. As próprias
concepção e definição de “escolástica” não se restringem aos métodos
de ensino e de disputas. Não dá para desconsiderar a relação entre
filosofia e o local de ensino nas escolas e, depois, na universidade; a
relação com a religião cristã e a teologia; a relação com a filosofia an-
tiga e a patrística e a própria influência de aspectos da vida cotidiana.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 127-143, jul./dez. 2012 141


Idalgo J. Sangalli

Parece ser uma tarefa interessante e trabalhosa, que exige adentrar


também nos estudos historiográficos da história da filosofia.

Referências
CELANO, Anthony J. “The understanding of the concept of felici-
tas in the pre-1250 Commentaries on the Ethica Nicomachea”. In:
Medioevo. Rivista di storia della filosofia medievale, n. XII, Padova:
Antenore, 1986. p. 29-53.
CELANO, Anthony J. “The ‘finis hominis’ in the Thirteenth Century
Commentaries on Aristotle’s Nicomachean Ethics”. In: Archives
d’Histoire Doctrinale et Litteraire du Moyen Age, 61, Paris: Vrin, p.
23-53.
D’ANCONA, Cristina Costa. “Un profilo filosofico dell’autore della
‘Teologia di Aristotele’”. In: Medioevo. Rivista di storia della filosofia
medievale, n. XVII, Padova: Antenore,1991, p.83-134.
DE BONI, Luis A. A entrada de Aristóteles no Ocidente medieval. Porto
Alegre: EST/Ulysses, 2010.
DOMANSKI, J. La philosophie, théorie ou manière de vivre? Les contro-
verses de l’Antiquité à la Renaissance, avec une préface de P. Hadot,
Fribourg: Ed. Universitaires Fribourg, 1996.
FRAILE, G. Historia de la filosofia. Filosofia judía y musulmana. Alta
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GRABMANN, M. Der lateinische Averreismus des 13. Jahrhundertes
und seine Stellung zur christlichen Weltanschauung. Munich, 1931.
LAFLEUR, Claude. “Scientia et ars dans les introductions à la philoso-
phie des maïtres ès arts de l’Université de Paris au XIIIe siècle.” In:
Miscellanea Mediaevalia. Scientia und ars im Hoch-und Spätmittel-
alter. Band 22/1 1994, p. 45-65.
LAFLEUR, Claude. Le ‘Guide de l’étudiant’ d’un maître anonyme de la
Faculté des arts de Paris au XIIIe siècle. (Ripoll 109), Paris, 1995.

142 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 127-143, jul./dez. 2012


A organização curricular dos estudos...

LAFLEUR, Claude. Quatre introductions à la philosophie au XIIIe


siècle. Textes critiques et étude historique. Montreal/Paris: Institut
d’Etudes Médiévales/Vrin, 1988.
LAFLEUR, Claude. L’enseignement de la philosophie au XIIIe siècle. Aut-
our du “Guide de l’ étudiant” du ms. Ripoll 109. Collaboration de
Joanne Carrier, Collection “Studia Artistarum”, vol. 5, Turnhout,
Brepols, 1997, XVIII, 722 p.
LOHR, Charles H. “The medieval interpretation of Aristotle”. In: The
Cambridge History of Later Medieval Philosophy. Cambridge, 1982.
NARDI, Bruno. Studi di filosofia medievali. Roma: Edizioni di Storia e
Letteratura, s/d.
PUTALLAZ, F-X. et IMBACH, Ruedi. Professione filosofo Sigieri di
Brabante. Milano: Jaca Book, 1998.
STEENBERGHEN, Fernand Van. Introduction à l’étude de la philo-
sophie médiévale. Louvain-Paris: Publications Universitaires-Béa-
trice-Nauwelaerts, 1974.
STEENBERGHEN, Fernand Van. La philosophie au XIIIe siècle. Deu-
xième édition, mise à jour (Philosophes Médiévaux, tome XXVIII),
Louvain-La-Neuve: L’ISP, Louvain: Peeters, 1991.
STEENBERGHEN, Fernand Van. Siger de Brabant d’après ses oeuvres
inédites. Siger dans l’histoire de l’aristotélisme, v. 2, tome XIII, Lou-
vain: EISP, 1942.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 127-143, jul./dez. 2012 143


Filosofia medieval
Emmanuel Carneiro Leão*

A filosofia medieval é uma árvore de 3 troncos: um tronco cris-


tão, um tronco árabe e um tronco judaico. Do tronco cristão brota-
ram três ramos: o cristão-sírio, o cristão-árabe e a escolástica.
Em todos os três troncos, a filosofia medieval se distingue da
filosofia da antiguidade clássica por uma relação íntima com as três
religiões monoteístas, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. São
as chamadas religiões abrahâmicas. É tão íntima a relação que, den-
tro da experiência grega de pensamento, é inevitável a pergunta se é
possível nascer, crescer e se desenvolver uma filosofia propriamente
dita, isto é, uma filosofia não somente autônoma, como sobretudo
autosuficiente, no solo de uma experiência de pensamento, cons-
truída na base e com base numa fé sobrenatural revelada? A única
questão colocada no fundo, e, como fundo de todos as problemas
levantados e desenvolvidos pelos medievais de qualquer um dos
troncos, é a possibilidade de uma filosofia. A comunidade primitiva
cristã sentiu a questão em todo o seu desafio, ao entrar em contato
com a filosofia grega do helenismo. E São Paulo deu uma primeira
resposta negativa à pergunta, em forma de apóstrofes que rejeitam
radicalmente toda “sabedoria do mundo”. Contudo, como toda ra-
dicalidade de exclusão não é suficientemente radical, o mesmo São
Paulo, em construindo uma teologia alternativa para as comunida-
des cristãs, faz uso abundante das categorias e posições filosóficas do
neoplatonismo e do estoicismo.

* Prof. do IFCS, UFRJ.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 145-175, jul./dez. 2012 145


Emmanuel Carneiro Leão

Em suas varias fases e em seus diferentes representantes, a fi-


losofia medieval dá um encaminhamento diferente e, por vezes,
conflitual às relações de convivência entre fé e saber, entre razão e
revelação, entre teologia e filosofia, nos seus muitos modos de ação
e reação, em suas diversas instituições, em seus variados padrões de
relacionamento. As religiões monoteístas fundem, numa unidade de
experiência, uma interpretação do mundo e da historia, uma visão
do homem e da natureza em sua origem e constituição, em seu fim
e destino que, em muitas consequências, se chocam com o saber e
o conhecimento da razão. Assim, ao longo de todo o desenrolar da
filosofia medieval, a racionalidade, a finitude, a imaginação formam
as três áreas principais, em que vem desembocar e a que remetem em
última instância todos os encontros e desencontros do pensamento
com as experiências da fé revelada.
Apesar de os medievais, de uma maneira geral, reconhecerem,
em princípio, que a filosofia é um conhecimento fundado em bases
próprias, construído com métodos próprios e seguindo procedimen-
tos específicos, a harmonia de ambos os modos de pensar em níveis
de conhecimento impõe e exige na prática que as interpretações da
fé, propostas pela Escritura e tradição e definidas pelas instituições
religiosas, ocupem um lugar central e desempenhem uma função
normativa, e não somente negativa, na elaboração do conhecimen-
to filosófico. Quase todos os problemas levantados e discutidos na
Idade Média nasceram e serviram a um interesse religioso em todos
os seus níveis, doutrinário, político, social, vivencial etc. Todo fi-
lósofo medieval, sem exceção alguma, é e quer ser teólogo. Tanto
a forma, como o conteúdo de seu conhecimento provêm de uma
experiência religiosa monoteísta e respondem ao impulso de viver
e conhecer melhor as verdades reveladas por Deus. Mesmo quando
se empenham todos em conhecer e pensar a filosofia dos filósofos
chamados pagãos, só o fazem com vistas a um aperfeiçoamento da
compreensão religiosa e buscando uma maior transparência para a
inteligência da fé. Em sua operação, o conceito de pagão é uma cate-
goria religiosa, pois o que é um pagão senão um não cristão, ou um

146 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 145-175, jul./dez. 2012


Filosofia medieval

não maometano, ou um não judeu. Só há e só tem sentido goyim


pava as hassidim! Santo Agostinho exprimiu esta relação de intrínse-
ca e recíproca dependência entre fé e inteligência numa formulação
lapidar: credo, ut intelligam, intelligo, ut credam! A famosa passagem
é a seguinte: Ao entenderem os filósofos gregos, ao interpretarem os
filósofos árabes, ao lerem os filósofos judeus, os escolásticos traziam
como diapasão e parâmetro de escolha e compreensão das doutrinas
os dogmas de sua fé e os princípios de sua própria experiência reli-
giosa, ambos estabelecidos em lutas ao longo da tradição histórica
das comunidades e forjados em disputas pelo trabalho secular dos
concílios e pelo esforço reflexivo e variado dos padres apostólicos,
dos padres apologetas e dos padres de toda a patrística.
A escolástica atravessou e se desenvolveu em três grandes períodos:
1° A pré-escolástica: é o período propedêutico de preparação do
material e dos primeiros exercícios de elaboração, vai do século I
ao século X. É o primeiro trabalho de “compor as palavras e os dis-
cursos” das muitas experiências de fé e pensamento tanto da Es-
critura como da tradição. Em toda a escolástica os termos scientia
et doctrina indicavam sobretudo este esforço de componere verba et
sermones. A famosa scientia experimentalis da Escola de Oxford do
franciscano Rogério Bacon, que muitos consideravam precursor de
Francisco Bacon de Verulam, não passou de um sucessor de Aris-
tóteles e sua empeiria, i.e, defensor de uma observação rigorosa da
percepção dos sentidos. Para um escolástico, os dados das sensações
integravam, como acidentes, a substância material, um composto hi-
lemórfico de matéria e forma. O real era, então, entendido dentro de
uma concepção de criatura de Deus que não podia nem necessitava
do experimento no sentido moderno. O fato de um mesmo termo,
“ciência”, ser utilizado para designar conhecimentos essencialmente
diferentes, em uma estrutura metafísica, como a filosofia e a teologia
medieval e a ciência e filosofia modernas, este fato não nos deve ofus-
car e confundir, induzindo-nos ao erro de pensar que se trata de uma
mesma atitude ontológica e de um mesmo perfil epistemológico!

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 145-175, jul./dez. 2012 147


Emmanuel Carneiro Leão

2° A protoescolástica: É o período das primeiras tentativas de fun-


damentação e síntese. Estende-se da primeira metade do séc. XI até
o final de séc.XII.
O termo scholasticus se acha plenamente consolidado. É o termo
que designava inicialmente qualquer pessoa que ensinasse as septem
artes liberales, as sete artes liberais, herdadas do antigo sistema de en-
sino. São elas a gramática, a dialética, a retórica, que formam os três
primeiros caminhos, o trivium, da educação; enquanto a aritmética,
a geometria, a música e a astronomia compõem os quatro outros
caminhos da formação fundamental de toda a idade média. São en-
sinadas desde Carlos Magno nas escolas do palácio, das catedrais e
dos conventos. Como os mestres de todo ensino, seja do primeiro,
do segundo ou do terceiro grau, são quase sempre teólogos, o ter-
mo scholasticus, na forma de doctores scholastici, foi sendo transferido
também para os professores e docentes de teologia, chegando, por
fim, a designar todos os que se ocupavam com a scientia numa ins-
tituição de ensino. O termo é uma latinização do grego skholastikos,
cujo uso mais antigo pode-se constatar numa carta de Teofrasto, su-
cessor de Aristóteles, na direção do Perípato, escrita a seu discípulo
Fanias, conservada em parte por Diógenes Laércio, um compilador
do segundo século (V; 5°). O termo grego se deriva do substantivo
skholé, em alemão Schule, em inglês school, em latim schola, nas neo-
latinas école, scola, escola, escuela. Skholé, em grego, diz o ócio criativo
de forças e valores culturais, os latinos traduziram por otium, o ócio,
e o contrário a-skholé, por neg-otium, o não ócio. Assim, o negócio,
supõe que se suspenda a criação e a inventividade cultural e se opere
com os recursos já criados em condições já dadas!
Assim, o termo scholastica, para designar um dos troncos da filo-
sofia medieval, não diz padronização nem esteriotipia. Ao contrário,
induz criação e diz pluralidade. As tentativas que se fizeram de carac-
terizar a escolástica pela uniformidade e repetição não correspondem
nem ao apelo da designação verbal dos séculos XI-XII, nem à outra
dos séculos XIII ou XIV. É uma em Santo Anselmo de Cantuária e
outra em Pedro Abelardo. A escolástica de São Boaventura, Alexan-

148 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 145-175, jul./dez. 2012


Filosofia medieval

dre de Hales, Henrique de Gent, não é a mesma nem entre si nem


muito menos ainda em Sigério de Brabante, Sto. Tomás, Alberto
Magno, João Duns Escoto ou Guilherme de Ockham, para lembrar
só alguns nomes mais significativos. Toda denominação abrangente
nunca deve perder de vista a transcendência singular de sua origina-
lidade. Por isso deve-se entender numa concretização plural as ca-
racterísticas que distinguem a filosofia escolástica, tanto da filosofia
antiga como da filosofia moderna. Estas características são próprias
e comuns ao mesmo tempo. São comuns por se fundarem numa
unidade de pressuposições iguais e por se plantarem em condições
culturais partilhadas por todos. São próprias, por estimularem a cria-
tividade e provocarem respostas múltiplas e diversas em seus autores.
Tais características remetem sempre às seguintes constantes com suas
respectivas variáveis:
a) Na escolástica vigora um estreito entrelaçamento com a teo-
logia, a fé e a religião. A filosofia, a razão e o conhecimento, embora
constituam um setor da vida cultural diferente da teologia e reli-
gião, dependem, contudo, de ambas e só têm sentido na medida em
que servem à fundamentação, ao esclarecimento e ao progresso da
fé revelada e da doutrina definida pela tradição e pela autoridade do
magistério. Para o medieval, é pressuposto, espontaneamente dado,
a subordinação da criatura ao criador e, em consequência, a sujeição
da razão à revelação e a obediência da filosofia à teologia. Philoso-
phia ancilla theologiae. Com isto, a escolha dos problemas a serem
tratados e a concordância das respostas a serem dadas já se acham
determinadas de antemão ou ao menos indicadas por instâncias ex-
trafilosóficas.
b) A dependência rigorosa da filosofia antiga, sobretudo de Pla-
tão e Aristóteles, através da intermediação do neoplatonismo, das
patrísticas e dos comentários e interpretações dos árabes e judeus. Os
conceitos, as categorias e os princípios, bem como toda a terminolo-
gia da filosofia grega, transmitidos e adaptados pelos neoplatônicos,
pelos estoicos, pelos árabes e judeus constituem o acervo comum de
toda a escolástica.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 145-175, jul./dez. 2012 149


Emmanuel Carneiro Leão

c) Uma criação original da escolástica foi seu método de inves-


tigação e ensino, que abrange tanto a pesquisa quanto a exposição.
Apresenta formas rígidas internas e externas de funcionamento.
Apesar de toda esta rigidez formal, oferece espaço para as mais di-
versas correntes de pensamento. E, não obstante tal pluralidade de
endereço, a rigidez externa causa a impressão de uma uniformidade
de conteúdo doutrinário e dá a aparência de igualdade e monotonia
ao trabalho filosófico.
d) a outra criação original da escolástica é a mística especulativa.
Não se trata de uma ascese em que o espírito procura dominar as
sensações dos sentidos e controlar os impulsos do corpo, as deman-
das e exigências da carne. E por motivo muito simples. Não há aqui
distinção entre corpo e espírito. A mística é a superação contínua de
toda e qualquer dicotomia. Existe ascese mas a ascese da mística é o
treinamento e a disciplina da unidade de tudo que é humano, corpo,
carne, alma, mente e espírito, cuja perda gera as dualidades todas,
tanto no corpo como no espírito, tanto na história como na socieda-
de, tanto no sentimento como na ação e no conhecimento. A mística
especulativa, seja no século XI com Santo Anselmo de Cantuária,
seja no século XII, com Bernardo de Claraval e os Victorinos, seja
no século XIV com mestre Eckhart, seja no século XV com Nicolau
de Cusa, não se opõe ao conceito e à reflexão, nem à dialética e ao
discurso da razão, antes os integra todos numa dinâmica concreta
das atividades de videre, sentire e experiri pela interiorização de um
ituitus originarius.
Duas questões de princípio pertencem a toda introdução na fi-
losofia medieval. A primeira diz respeito à escolha da escolástica. A
escolha da escolástica, ramo de um dos três trocos da árvore, para se
aprender a pensar com a filosofia na Idade Média, não é arbitrária ou
indiferente. É a melhor escolha, pelas seguintes considerações:
a) As contribuições filosóficas dadas pelos dois outros ramos, a
cristã-síria e a cristã-árabe, bem como pelos dois outros troncos da
árvore da filosofia, a filosofia dos árabes e a filosofia dos judeus me-

150 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 145-175, jul./dez. 2012


Filosofia medieval

dievais foram utilizadas e absorvidas pelos escolásticos. Claro que o


fizeram adaptando-as à sua própria perspectiva teológica. A filosofia
árabe e judaica, que eles nos propõem, já nos chega batizada pela
especificidade da fé cristã. Ademais, um mesmo ar respiravam todos
os pensadores medievais, um ar que se poderia caracterizar por uma
atitude de acolhimento e aceitação da realidade tal como se oferece
na diversidade do mundo, da natureza, da fé no monoteísmo reve-
lado. Nenhum medieval, de qualquer credo que seja, pretende as
conhecer, transformar a realidade e colocá-la a serviço do senhorio
do homem sobre a natureza e de sua maestria sobre a realidade, tal
como é o espírito e a mentalidade da idade moderna.
b) A riqueza e variedade dos muitos caminhos desbravados pelos
escolásticos superam em número, gênero e grau, todas as contribui-
ções dos filósofos árabes e judeus da idade média. Os escolásticos
abriram novos horizontes de questões e rasgaram outras dimensões
de interrogação que não se encontram nem entre os árabes nem en-
tre os judeus, embora tanto uns quanto os outros tenham dado uma
contribuição decisiva aos desempenhos da escolástica e tenham de-
senvolvido também uma mística própria, não, porém, uma mística
especulativa, no sufismo e na cabala.
c) Por que pertence a todo currículo de formação filosófica es-
tudar o pensamento medieval? O que há com a filosofia que não
se pode desvencilhar destes vencilhos históricos do pensamento no
passado? Que originalidade nos traz o pensamento já pensado na
escolástica para levar-nos a pensá-lo de novo?
Nestas perguntas, e em inúmeras outras, que se poderiam for-
mular no mesmo sentido, está em jogo nossa capacidade de pensar.
Quando criticamos as deficiências de um pensamento, denunciamos
a insuficiência de nossa própria proficiência em pensar. Somos tão
indigentes em pensar que não temos condições de chegar ao que ain-
da não foi pensado, mas nos foi legado, por isso mesmo, pelo pensa-
mento passado. Ora, na sucessão do pensamento, só nos tornaremos
verdadeiros herdeiros quando transformarmos a herança em novos

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Emmanuel Carneiro Leão

caminhos de pensar e descobrirmos no já pensado as provocações e


desafios do ainda não pensado, que aqueles que nos antecederam nas
peripécias do pensamento nos convidam sempre de novo a pensar.
Toda dificuldade dos dias atuais reside em aceitar este convite. Numa
preleção de 1953 na Universidade de Friburgo na Alemanha, intitu-
lada Was heisst denken?, sobre o sentido, a provocação e o chamado do
pensamento, Heidegger nos traz um apelo com a seguinte denúncia:
o que mais nos faz pensar em nosso tempo que nos dá tanto a pensar
é não pensarmos ainda, apesar de todo convite, de toda provocação
e de todo chamado, que o pensamento nos faz nas indigências, nas
carências, nas penúrias de nossa situação! Os ruídos da técnica, as
distonias do progresso e as ansiedades do crescimento, enchem nossos
ouvidos de surdez para a voz de todos estes convites do pensamento.
Por isso, dos escolásticos só nos encontramos com o dito e pensado de
seus problemas, do seu ensino, de suas doutrinas. Já não escutamos a
voz de sua origem no mistério de ser e realizar-se de todo real.
Não estudamos os medievais, nem qualquer outro pensador da
história, para pensar, como eles pensaram, para repetir em outra lín-
gua as palavras que disseram, os problemas que colocaram, as res-
postas que deram. Estudamos os escolásticos para pensar, com o que
eles pensaram, novos caminhos de pensamento. Só assim é que nos
sentiremos conosco em todo esforço que fizermos de estar com eles.
De certa feita, Nietzsche disse que o grande inimigo da verdade
não é a mentira. Pois a mentira só tem pernas curtas porque as per-
nas da verdade são mais curtas ainda. O grande inimigo da verdade é
a convicção das ideologias, porque são cegas para si mesmas, opacas
para suas origens e impermeáveis aos limites de suas próprias possi-
bilidades.
Por isso, continua Nietzsche, temos de seguir os caminhos da
origem de todas as nossas certezas, pois, então, tudo a nosso redor
far-se-á estranho e nós mesmos sentir-nos-emos estrangeiros em
toda veneração e em qualquer culto; pois, então, tudo tornar-se-á
mistério do desconhecido, mas do seio do próprio mistério irá cres-

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Filosofia medieval

cendo uma árvore, cujas sombras há de nos dar nova vida, a árvore
do que está por vir.
Com esta disposição para o porvir, o estudo da filosofia escolásti-
ca descobrirá no cruzamento de antigos caminhos, novas encruzilha-
das de ser e não ser num contínuo e diuturno vir-a-ser!

A passagem
Todos os esforços filosóficos na e da passagem de Santo Agosti-
nho para a escolástica se ligam a sete nomes: Claudianus Mamertus,
Martianus Capella, Martinus de Bracara, Isidorus Hispalensis, Beda
Venerabilis, Severinus Boethius, Magnus Aurelius Cassiodorus.
Claudianus Mamertus é um padre de Vienne na Gália, no Dau-
phiné. Nasceu no início do século V e combateu nos meados do
século o semipelagianismo de Faustus. Faustus era, desde 452, bispo
de Reglum na Gália, que, juntamente com Gennadius e Hilarius
de Poitier, defendia a corporidade da alma humana, pois somente
Deus não tem corpo. Para Faustus, toda criatura é uma unidade de
matéria e forma e por isso mesmo limitada em sua natureza, dispon-
do, em consequência, de uma localização no espaço e, portanto, de
uma existência e modo de ser corporais. Tudo que é criado possui
qualidade e quantidade, visto que somente Deus se acha acima de
qualquer categoria e delimitação. Ora, quantidade inclui necessa-
riamente corporidade e, portanto, espacialidade. De vez que a alma
mora num organismo e não pode existir fora dele, é sempre uma
substância corporal.
A esta maneira estoicizante de entender a relação entre corpo
e alma no homem, Claudianus Mamertus se opôs num pequeno
escrito composto em 468-69, De statu animae, o Estado de alma, de
inspiração neoplatônica e augustiniana. Concedia que toda criatura,
portanto, também a alma humana, se enquadra em categorias, i. é,
em modos de ser genéricos e universais, concretizados em diferenças
específicas e princípios singulares. Como substância, a alma possui

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Emmanuel Carneiro Leão

também determinações, mas exclusivamente de qualidade, i. é, seus


limites são ordinais e não cardeais, em outras palavras, a alma tem
ordens de qualidade, mas não tem nenhuma quantidade. Assim, não
se enquadra em todas as categorias, como um corpo qualquer, e,
sobretudo, não realiza seu modo de ser em nenhuma extensão ou
grau numérico, em sentido local. A sua grandeza não é espacial, é
superior, i. é, está acima de qualquer divisão de partes. O movimen-
to da alma é temporal, no sentido de mudanças de condição de ser
e nunca de lugar no espaço ou de troca de partes, como um corpo.
Por isso, o tempo da alma não é quantificável e, em consequência,
é essencialmente diferente do tempo dos corpos, cujo movimento é
troca de partes e de lugar no espaço. Em outras palavras, os corpos se
movem no espaço e no tempo, a alma só se pode mover nas diferen-
ças qualitativas do tempo. Como se pode ver, a distinção cartesiana
entre res cogitans e res extensa remonta há muito tempo na história
qualitativa do pensamento.
Outro argumento produzido por Claudianus Mamertus se refe-
re à unidade qualitativa. O modo de unidade da alma não se dá por
aglutinação de partes, não é, portanto, uma coesão. Trata-se de uma
exigência de sua incorporidade: A memória, o pensamento, a von-
tade, o sentimento não são partes que se combinam para formar a
unidade da alma. São modos de a alma realizar-se a si mesma, são re-
lações da alma consigo mesma e com os outros. Não induzem, por-
tanto, uma pluralidade de almas mas uma unidade simples, numa
multiplicidade sem fim de relacionamento e comportamento. É esta
simplicidade da alma que torna a clonagem humana impossível. Por
ser simples, a alma está toda presente, atuando ontologicamente,
na memória, no pensamento, na volição da vontade, no sentir do
sentimento. A alma não existe e depois sente, pensa, quer, recorda.
Não! É sentindo que a alma existe toda, e quando se diz aqui toda,
quer-se dizer, que ao sentir, a alma simultaneamente, pensa, quer, se
lembra e vice-versa. Enquanto pensa, a alma sente, quer, se lembra e
vice-versa. É no pensamento que a alma se realiza toda, como alma,
é querendo, que a alma é alma; é recordando que a alma vem a ser
toda a alma que ela é.

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Filosofia medieval

Mas também no tocante ao corpo vivo e orgânico, a alma é e


realiza um todo simples. É também pela unidade de sua simplicidade
que a alma reúne as sensações de todos os sentidos na percepção e,
para isto, está presente vigindo em toda sensação e percepção. Assim,
o corpo não abarca a alma, é a alma que abrange o corpo, mantendo-
-o coeso na multiplicidade de suas funções e organização. Pela alma,
a fisiologia e anatomia não somente se limitam como também se visi-
tam. Seguindo Santo Agostinho e todo o neoplatonismo, Claudianus
Mamertus entende que a alma está toda presente em todas e em cada
uma das partes do corpo, tanto na estrutura como no funcionamento,
assim como Deus está presente continuamente criando todos os seres
do mundo. A alma, por ser livre de quantidade, extensão e movimen-
to espacial, sobretudo por sua unidade simples assemelha-se a Deus,
enquanto, por sua condição de criatura e pela dependência de quali-
dades, princípios de ordem e movimento temporal, se distingue essen-
cialmente de Deus, e se assemelha ao mundo dos corpos. Quando se
amputa um membro ou uma parte do corpo ou quando se interrompe
uma função micro- ou macro-fisica do corpo, a alma não perde nada
nem se encolhe. Quando o dano é de monta a impossibilitar a união
das estruturas e funções orgânicas, o corpo desfaz sua composição e
integração. É a finitude da unidade simples da alma que não pode
manter a integridade e integração do corpo em suas partes e funções.
Assim, a força de integração corporal é sempre acompanhada de uma
contra-força de desintegração, porque a animação do corpo pela alma
é limitada por condições de possibilidade vital.
É esta doutrina de incorporeidade da alma que constitui a con-
tribuição de Claudianus Mamertus para a filosofia escolástica do ho-
mem, que servirá de ponto de partida e modelo de intermediação
entre a patrística latina de Agostinho e o movimento da escolástica.
O aperfeiçoamento posterior vai se concentrar em refinar a integra-
ção de corpo e alma e diminuir um pouco a dicotomia demasiado
acentuada de corpo e alma! A influência recíproca, na singularidade
do indivíduo, de corpo e alma em mão dupla, ainda tem muito chão
a percorrer, sobretudo para descobrir o papel da personalidade!

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Emmanuel Carneiro Leão

O segundo nome na transição da patrística para a escolástica é


Martianus Capella. Trata-se de um cidadão romano que não se con-
verteu para o cristianismo. Lá pelos anos 430 produziu um escrito
de grande influência em toda a cultura da idade média. O título do
escrito é De nuptius mercurii et Philologiae, as núpcias de mercúrio
com a filologia. É um compêndio das artes liberais. Contém o mais
antigo manual que se conservou sobre o ensinamento das escolas
do 1° e 2° de toda a idade média cristã. Foi comentado ao longo
dos séculos por muitos autores escolásticos, como por exemplo, por
Remigius de Auxerre. No século XI, Notker Labeo o traduziu para
o alemão. O conteúdo ensinado se restringe ao trivium e ao quadri-
vium, isto é, às disciplinas da linguagem, a saber, gramática, retórica
e dialética, e às disciplinas práticas, a saber, aritmética, geometria,
astronomia e música.
O terceiro nome desta passagem é de longe o mais importante,
é Anicius Manlius Torquatus Severinus Boethius, nasceu em Roma
no ano de 475-80 e morreu executado em 525. Seguindo o costume
neoplatônico desde Plotino, Boécio concebeu um grande plano, o
plano de traduzir para o latim todas as obras de Platão e Aristóteles.
Pretendia também mostrar como ambos os filósofos concordavam
nos principais pontos da filosofia. É o que ele mesmo nos diz no
proêmio de seu comentário ao livro De Interpretatione, Peri hermé-
neias, do Organon, de Aristóteles. De todo o seu projeto, só conse-
guiu realizar uma pequena parte. Possuímos a tradução do livro Peri
herméneias, junto com dois comentários — um para principiantes,
o outro para mais adiantados, escrito entre 507-509. Junto com a
Consolatio, é a sua obra mais importante em filosofia.
Temos ainda a tradução das categorias junto com um comentá-
rio de 510 e o comentário de antes de 505 à tradução de Hilarius
Victorinus da Isagoge de Porfirio. Ele mesmo preparou uma tradução
da Isagoge com um comentário também anterior a 510. Além das
traduções e comentários, Boécio escreveu os seguintes tratados de
lógica: Introductio ad categoricos syllogismos, De syllogismo categori-
co, De syllogismo hypothetico, De divisione, De differentis topicis. O

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Filosofia medieval

comentário aos Tópicos de Cícero não se conservou todo. Para os


comentários à Isagoge, valeu-se da interpretação do neoplatônico
Amnamius Hermiae.
As traduções de outras obras de Aristóteles constantes das obras
não são de Boécio, mas de Jacobus Venetia, de 1128, usadas em
1468 pelo Humanista João Argyropulos. A confusão de autoria se
deve ao fato de o próprio Boécio dizer que traduziu do grego para
o latim os Tópicos e os Primeiros Analíticos e trabalhava na tradução
dos Segundos Analíticos. Ambas as referências são confirmadas no sé-
culo XI por Abelardo e por um anônimo tradutor do século XII dos
Segundos Analíticos. Entre os escritos de Boécio, constam duas obras
apócrifas, a saber, De definitione de Marius Victorinus e De unitate
de Dominicus Gundisalvi.
Pelos anos 500, Boécio já trabalhava em obras de matemática da
Antiguidade: De institutione musica é compilada de Nicomachus de
Gerasa. De institutione arithmetica é um breve resumo da aritmética
de Nicomachus de Gerasa. De geometria, uma tradução quase literal
dos stoxeia de Euclides. Tanto nos escritos de lógica quanto nos de
matemática, a finalidade de Boécio não é originalidade, mas a educa-
ção e o ensino, visando transmitir de modo simples e compreensível
as produções dos filósofos antigos. A contribuição destes escritos nos
séculos posteriores da escolástica foi enorme e decisiva.
Por intrigas políticas, Boécio foi encarcerado, onde escreveu sua
obra original Consolatio philosophiae, em prosa e verso, onde nos
proporciona uma visão de sua concepção de vida e de mundo. Toda
a obra se funda em princípios neoplatônicos e estoicos. A finalidade
é escrever uma obra do gênero protréptico, demonstrando que tudo
que acontece de bom e de mau nesta vida é um envio de Deus para
o bem dos homens. Por isso só temos de ter esperança e gratidão em
nossas esperas. Todas as preces, orações e pedidos testemunham fé,
esperança e gratidão.
A contribuição filosófica mais importante da Consolação se re-
fere às investigações da experiência e do conceito de tempo e eter-

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Emmanuel Carneiro Leão

nidade. Boécio continua e completa famosos pensamentos de Sto.


Agostinho. O mundo não teve começo nem terá fim, mas nem por
isso perde temporalidade e se identifica com a eternidade de Deus.
Boécio propõe, então, uma definição da eternidade que atravessou
séculos: aeternitas est interminabilis vitae tota simul et perfecta posses-
sio: a eternidade é a posse perfeita e totalmente simultânea de uma
vida sem fim. É aqui que se encontra a reflexão escolástica sobre
a duração, que vai alcançar em João de Pedro Olivi e Guilherme
Ockham sua completa compreensão. Para os escolásticos três são os
modos de duração no ser dos seres:
O modo temporal: duram e perduram no tempo os seres que
começam a ser, têm seu ser em sucessão e findam, deixando de ser.
Os seres temporais têm seu ser com principio, com sucessão e com
fim: começam, se desenvolvem e terminam. São os seres materiais
que duram no tempo. Mas há ainda o modo de duração, que não é
temporal, mas eviterno. São os seres espirituais que começam a ser,
têm, portanto, princípio, e desenvolvem seu ser em momentos, têm,
portanto, sucessão, mas nunca findam, não têm, portanto, fim. São
os seres eviternos cuja duração se mede e avalia pelo evo! Por fim,
existe ainda, um ser, cuja duração não tem nem princípio nem fim
nem sucessão; é a duração eterna que Boécio definiu. Como ainda
veremos, dois escolásticos franciscanos, João de Pedro Olivi e Gui-
lherme Ockham não aceitam o modo intermediário de duração, o
aevum, entre tempo e eternidade. Toda duração ou é temporal ou
eterna. Ockham é curto e grosso: angeli mensurantur per tempus et
non per aevum, quia aevum nihil est: “os espíritos angélicos medem
sua duração pelo tempo e não pelo evo, porque o evo não é nada”.
Ockham não diz simplesmente que o evo não existe. Ele diz muito
mais! Pois o evo poderia não existir e ser alguma coisa. Ockham diz
as duas coisas: o evo nem existe nem é coisa alguma.
Boécio entende que a ilimitação temporal faz do mundo uma
cópia e imagem da eternidade de Deus, de um lado, porque não ter
fim assegura à duração do mundo uma sucessão interminável, de

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Filosofia medieval

outro, porque em toda duração temporal, o presente é o único modo


real de os seres temporais durarem (Consol. 5,6).
Os tratados teológicos de Boécio são: De Sancta Trinitate; De
persona e duabus naturis Christi contra Etnychen et Nestorium; Utrum
Pater et Filius et Spiritus Sanctus de divinitate substantialiter praedi-
centur; e o chamado liber de hebdomadibus, que tem como questão
a pergunta: “quomodo substantiae in eo quod sint, bonae sint, cum
non sint substantialiter bona?” Trata-se da antecipação da famosa
discussão sobre os transcendentais que, a partir do século XIII, vai
ocupar a preocupação da metafísica escolástica. Estes tratados cha-
mados de opuscula sacra tiveram a autoria posta em dúvida pelo fato
de se questionar a fé cristã de Boécio, em razão de a Consolatio philo-
sophiae não se referir explicitamente ao cristianismo. É uma alegação
sem consistência diante da tradição manuscrita e do testemunho ex-
presso de Cassiodoro, um discípulo de Boécio. O escrito, porém, De
fide christiana não é de Boécio, mas de autor posterior.
Os estudos teológicos foram estudados e comentados em todas
as fases da escolástica, assim no século IX por João Scotus e Remígio
de Auxerre, no século XII pelo chamado Pseudo-Beda e Gilberto de
la Porrée; no século XIII por Sto. Tomás de Aquino.
Ainda mais numerosos são os comentários da Consolatio philoso-
phiae, um dos livros mais estudados da Idade Média, mesmo fora do
âmbito da escolástica, como demonstram Dante Alighieri e Boccaccio.
Também encontram numerosas traduções para as línguas na-
cionais e um sem número de imitações, como Consolatio rationis de
Pedro de Compostella, no século XII a Consolatio theologiae de João
de Tambach no século XIV, e muitas outras.
Esta história da obras de Boécio deixa clara a grande influência
que exerceu em toda escolástica. Junto com Agostinho, Boécio seja
talvez o maior mestre e autoridade decisiva de toda a primeira fase
da escolástica. É muitas vezes chamado de noster summus philosophus.
Através de seus escritos a passagem da Patrística Latina para a Pré-es-

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Emmanuel Carneiro Leão

colástica foi efetuada sob a égide do neo-platonismo e do aristotelis-


mo. Foi ele que legou à Idade Média Latina a lógica e a metodologia
de Aristóteles e um apanhado da ontologia de Aristóteles e do neo-
platonismo. Tornou-se o paradigma e o modelo das interpretações
filosóficas e teológicas de toda a latinidade medieval. Com base e
fundamento neoplatônico e estoico construiu a primeira concepção
de vida e de mundo harmonizada com a teologia cristã. Ensinou aos
medievais como uma teologia cristã pode-se valer da filosofia clássica
para construir um sistema de conteúdo religioso e de fé revelada.
Os conceitos filosóficos e as distinções filosóficas fundamentais, tais
que substância, acidente, essência, natureza, pessoa, potência e ato,
matéria e forma, principium quod e principium quod agendi et essendi,
eternidade e temporalidade e muitos outros, encontraram em suas
obras definições e explicações paradigmáticas para a evolução futu-
ra dos pensamentos escolásticos. O lema que guiava todos os seus
escritos se tomou padrão de todos os esforços na teologia e filosofia
cristã. Seguindo Sto. Agostinho, Boécio estabeleceu a divisa: Fidem
si poteris rationemique coniuge!: se puderes, junta a fé e a razão.
Obras de Boécio
1°) Traduções, Compilações e Comentários
1.1. Traduções: De categoriis
Organon - De interpretatione - De primis analyticis - De secundis
analyticis - De sophisticis Elenchis
Isagoge de Porfirio: a tradução
Praedicabilia
a) Genus est unum, quod de pluribus specie differentibus in eo quod
quid est praedicatur: = gênero é algo que se diz de várias coisas
especificamente diferentes, enquanto se diz que é algo. Exemplo:
linha: curva, linha reta, elipse, círculo. Linha é o gênero que se
diz de uma pluralidade de espécies. Isto significa: a linha designa
o que em si mesma cada espécie é.

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Filosofia medieval

b) Species est unum, quod de pluribus solo numero differentibus in


eo quod quid est praedicatur = a espécie é algo que se diz de várias
coisas diferentes apenas em número, enquanto se diz que é algo.
Os diversos círculos.
c) Differentia specifica est unum quod de pluribus praedicatur in
quale essentiale = a espécie é algo que se diz de várias coisas como
uma qualidade essencial. Racional do homem.
d) Proprium est unum, quod de pluribus praedicatur in quale ne-
cessarium = o próprio é algo que se diz de várias coisas como uma
qualidade necessária.
e) Accidens est unum, quod de pluribus praedicatur in quale con-
tingens = o acidente é algo que se diz de várias coisas como uma
qualidade contingente.
O quarto nome desta passagem da antiguidade posterior para
a idade média latina é Magnus Aurelius Cassiodorus (ou Cassiodo-
rius), um senador do império dos Ostrogodos, discípulo e continua-
dor de Boécio. Nasceu em 477 no lugarejo de Squillace na Calábria e
morreu com mais de noventa anos em 570. Durante muitos anos foi
secretário particular na corte dos Ostrogodos. Em 540 abandonou o
posto e recolheu-se ao convento Vivarium que ele mesmo fundara.
Desde então desenvolveu uma rica atividade intelectual, empenhado
em estimular e promover o cultivo das ciências nos diversos conven-
tos. O cultivo consistia predominantemente num trabalho de multi-
plicar as cópias dos escritos disponíveis.
A grande atividade literária de Cassiodoro não procurava estimu-
lar o progresso do conhecimento. Ele estava convencido de que tal
desenvolvimento pressupõe um nível de informação bastante alto.
E neste sentido concentrava suas forças em divulgar o mais possível
o conhecimento disponível. Das obras, que lia e estudava, oferecia
sempre uma compilação do que achava mais importante. Com tal
intenção, escreveu, além de uma crônica e história dos Godos, uma
“Historia ecclesiastica tripartita”, composta de material de 3 historia-

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dores gregos (Sócrates, Sozomeno e Teodoreto), que foi muito utili-


zada em toda a idade média. Em 537 publicou as Variedades (Variae)
e alguns escritos de exegese, como as “Complexiones in psalmos”.
Sua obra mais importante são de 544, “Institutiones divinarum
et saecularium lectionum”. O primeiro livro é uma introdução à Te-
ologia, que no essencial consta de estudos da Bíblia. O segundo livro
é um resumo das Septem artes liberales.
No escrito, De anima, fundado em Agostinho e Mamertus, de-
fende que só o homem possui uma alma substancial e imortal. A vida
dos seres vivos destituídos de razão se reduz às condições e vitalidade
do sangue (De an.1). A alma humana apesar de sua racionalidade,
não é uma parte de Deus, nem mesmo uma participação de Deus,
por dois motivos. Primeiro porque Deus não pode ter parte e, segun-
do, porque a alma não é imutável, de vez que pode escolher o mal.
Todavia a alma humana é capaz de se aproximar e assemelhar a Deus
através do cultivo e exercício da virtude (De an.2). Criada como e
para ser a imagem de Deus, é espiritual, visto ser capaz de conhecer
o universal e transcendente. O corpo, na sua generalidade, consta
de extensão, de vez que se estica em três dimensões, comprimento,
largura e altura. Possui limites e só pode ocupar de cada vez um lugar
determinado no espaço, estendendo suas partes no vazio do espaço.
A alma, ao contrário, não tendo partes, pode estar toda em todo
lugar do espaço e por isso no corpo orgânico do homem está toda
presente em todas suas partes, não podendo ser limitada a nenhu-
ma parte do corpo. No De an.2, escreve Cassiodoro: “Quia ubique
substantialiter inserta est; tota ergo est in partibus suis, nec alibi maior,
alibi minor, sed alicubi intensius, alicubi remissius, ubique tamen vitali
intensione porigitur; 4). Em oposição a Mamertus, Cassiodoro não
aceita a categoria da qualidade em sentido próprio, na alma. Como é
para ser entendido isto? As determinações do ser material são, quale,
quantum, quid, tempus, ubi locus. A questão é a distinção da qualida-
de em sentido próprio e uma definição distintiva que se acrescenta
como acidente à substância. ... (De na.3) A imortalidade da alma é
um exercício da simplicidade e espiritualidade.

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Filosofia medieval

No segundo livro das Institutiones de artibus ac disciplinus libera-


lium litterarum, Cassiodoro trata das sete artes e ciências liberais: as
três primeiras, que chama de artes seu scientiae sermocinales: a gramá-
tica, a dialética, a retórica, e as quatro outras, que chama de disciplinae
seu scientiae reales: aritmética, geometria, música e astronomia. Ele as
recomenda para uma compreensão das sagradas escrituras e para se
conhecer a Deus, embora seja possível conhecer a verdade cristã sem
elas e é o que, na grande maioria dos fieis, acontece (De hist. 28).
Esta exposição de Cassiodoro rivaliza, com a de Martianus Capella,
enquanto manual de ensino fundamental em todos os séculos da es-
colástica. Aduzindo material de Cícero e Mário Víctorino mas sobre-
tudo de Boécio compõe uma dialética, que apresenta um resumo de
todo o Organon de Aristóteles. O conteúdo das disciplinas reais, ele
retira de Boécio, Apuleius, Nicômaco, Ptolomeu e Agostinho.
O quinto e o sexto nome da transição para a Escolástica são
Martinho de Braga e Isidoro de Sevilha, denominado Isidorus His-
palensis. O papel que representaram na Itália Boécio e Cassiodoro
para os visigodos, desempenharam aqueles na Espanha para os sue-
vos e os godos ocidentais. Foram eles que conservaram e transmiti-
ram os tesouros e as riquezas culturais da antiguidade.
Martinus de Braga, foi primeiro abade, depois bispo de Dumio
e terminou metropolita de Braga. Morreu em 580. Em suas obras se
dedicou sobretudo a questões de ética. Sua obra principal se intitu-
lava: formula vitae honestae ou De quattuor virtutibus e foi dedicada
ao rei dos suevos, Miro (570-583). Contém uma exposição da ética
filosófica, seguindo as quatro virtudes cardeais de Platão: prudentia,
magnanimitas, continentia, iustitia. Ele se apoia na obra de Sêneca,
De officiis, bem como, depende de Sêneca o tratado De ira, e o De
paupertate se compõe de material retirado das cartas de Sêneca. Trata-
-se de coleções de excertos, bem como os dois outros escritos, Ae-
gyptiorum patrum sentenciae e Verba seniorum, nos quais apresenta
traduções do grego que o próprio Martinus fez primeiro e que depois
seu companheiro de mosteiro, Paschasius realizou sob sua orientação.

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A ética desde a antiguidade tem sido uma ética das virtudes e dos
vícios. Já Filon de Alexandria conciliou os ensinamentos de Aristóte-
les e dos estoicos com os ensinamentos da Bíblia. A lei dada por Deus
serve para aperfeiçoar as virtudes inatas no homem pela criação.
Para o cristianismo, a doutrina das virtudes constitui a estrutura
moral e o pensamento ascético da vida cristã. Para transmitir tanto
a estrutura como o pensamento, os Padres Gregos e Latinos, sobre-
tudo Evrágrio do Ponto e Santo Agostinho, retomam os princípios
e axiomas sobre as virtudes dos estoicos: por exemplo, a virtude é o
único bem e o vício, o único mal, o resto é indiferente. A virtude
está no justo meio entre os dois extremos. O prêmio da virtude é a
própria virtude. A via da virtude é difícil, o caminho do vício, fácil.
A virtude é uma só, os vícios são muitos. A pluralidade das virtudes
são aplicações da unidade da virtude. Todas as aplicações incluem a
unidade. É a famosa anakolouzia das virtudes = uma virtude supõe e
acompanha todas as virtudes.
Martinho de Braga se baseia em Origines, que identifica as vir-
tudes com Cristo. Pois Cristo é a Justiça, a Sabedoria, a Verdade.
Enquanto os cristãos e os homens não são as virtudes, no máximo
têm virtude, na medida em que participam da vida de Cristo. Mar-
tinho ainda não distingue, como depois se faz na Alta Escolástica,
entre virtudes “materiais” e virtudes “substanciais”. Seguindo Santo
Agostinho e os Padres da Patrística, aceitou com Sêneca e os estoicos
a divisão de Platão das 4 virtudes cardeais: 1º) a prudência, que aper-
feiçoa a mente; 2a ) a coragem, que mobiliza a energia da vontade
contra o mal; 33) a temperança, que resiste à concupiscência; 43) a
justiça, que harmoniza e equilibra na devida proporção o exercício
das virtudes.
Seguindo os estoicos, Martinho parte da convicção de que a
maldade, a malícia não pertence à natureza do homem, dotado de
integridade. A maldade vem de fora; é criação no pensamento do es-
pírito do mal. Orígenes diz que a fonte de todo mal são pensamentos
adventícios, que se implantam em 3 etapas: a primeira rebelião é a

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Filosofia medieval

prosbolé, a sugestão, que Santo Agostinho chama de suggestus; a se-


gunda rebelião é o deleite do trato e da conversação com a sugestão. A
terceira rebelião é o consentimento, é gunkatazesid, dado à sugestão.
Estas três etapas compõem uma luta interior entre o apelo da malícia
e resistência para libertar-se. Esta resistência é a paxé. O consentimen-
to repetido cria dependência do vício, a aixmalosia. Santo Agostinho
fala de suggestus – delectatio – consensus – contentio – consuetudo.
A sugestão, diz Martinho de Braga, é impossível evitar. E para
não dar o consentimento deve-se contornar as conversações através
de distrações.
A condição prévia para a distração é o discernimento, a identi-
ficação das formas de sugestão. Seguindo Evrágrio, Martinho apre-
senta o elenco dos sete vícios capitais: 1°) a gula; 2°) fornicação; 3°)
avareza; 4°) inveja; 5°) a ira; 6°) o ócio 7°) orgulho — vanglória; 8°)
soberba.
Isidoro, arcebispo de Sevilha, chamado de Isidorus Hispalensis,
morto em 636. É o mais erudito dos escritores eclesiásticos de Espa-
nha na época. Desenvolveu extraordinária atividade na transmissão
da cultura antiga para a formação teológica e profana de seus con-
temporâneos. Na verdade, os seus escritos têm caráter compilatório.
Mas justamente porque traziam extraordinária quantidade de mate-
rial da tradição tornaram-se indispensáveis para a evolução posterior.
Suas crônicas e histórias dos godos, dos vândalos e suevos bem como
o liber de viris illustribus continuavam a linha desenvolvida por Jerô-
nimo e Gennadius no final do século IV e até meados do século V,
em suas histórias da literatura cristã. As obras teológicas de Isidoro
também são compilações, exceto o De fide catholica contra iudaeos,
que tem caráter apologético.
A obra mais importante de Isidoro, por ser a maior e a mais rica
em informações de toda espécie é intitulada Origines seu Etymolo-
giae. É uma enorme coleção enciclopédica de todo o conhecimento
disponível tanto profano quanto patrístico. São 20 livros. Esta obra
serviu de modelo para toda a literatura medieval de enciclopédias e

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Emmanuel Carneiro Leão

glossários de toda espécie e foi amplamente utilizada na tradição dos


cursos das diversas escolas da primeira etapa da escolástica. Outros
escritos também enciclopédicos, como o De ordine creaturarum e
sobretudo o De rerum natura, compilado de autores clássicos latinos,
Suetônio, Higino, Lucrécio, Palladius, Servius e de padres latinos,
Ambrosio, Agostinho e muitos outros, apresentam uma descrição
da natureza e do mundo e servem de fonte de conhecimento para as
épocas posteriores. Especial menção merecem os livros das senten-
ças, Libri sententiarum, um compêndio de teologia doutrinária (1)
e de Ética (2 e 3) elaborado com passagens retiradas de Agostinho e
Gregório. Esta obra junto com a coleção de sentenças de Prosper de
Aquitania, discípulo fiel de Agostinho (450), e no século VII com o
livro de sentenças do bispo Samuel Tajus de Saragossa, deram o im-
pulso decisivo e o modelo para a proliferação de sentenças em toda
a idade média.
O último nome da transição é o abade Beda Venerabilis, nas-
cido em 674 na Inglaterra e morto em 735 no mosteiro de Jarrow.
Também produziu para os ingleses coleções de excertos e compên-
dios enciclopédicos, como Isidoro na Espanha. Assim, os escritos
De Arte Métrica, De Schematibus et tropis, De Orthographia visam à
primeira formação dos anglo-saxões. A obra mais importante é De
Rerum Natura, que exerceu em toda a escolástica uma influencia
decisiva no tocante ao conhecimento da natureza, da cosmografia,
meteorologia e geografia. Trata-se também de uma compilação de
autores antigos. A ele se atribuía ainda o escrito, De Mundi Constitu-
tione, importante para os conhecimentos medievais de astronomia,
mas que certamente é-lhe posterior. Também escreveu sobre crono-
logia, Liber de Temporibus, De Ratione Temporum, importantes para
o calendário medieval. Suas homilias sobre quase todos os livros da
Bíblia apresentam rico material haurido das obras da Patrística. A
sua Historia ecclesiástica Gentis Anglorum inaugurou a historiografia
entre os povos germânicos.

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Filosofia medieval

As fontes da escolástica
O surgimento da Escolástica se prende a fontes que lhe fornece-
ram problemas e doutrinas da Filosofia e Teologia da Antiguidade.
O modo e a medida do acervo recebido vão determinar as tendências
e as correntes, características e limites das fases de sua evolução na
pré-escolástica, na proto- e na alta escolástica. Por isso, é de suma
importância para compreender a escolástica ter uma ideia geral dos
mananciais de que a filosofia na escolástica retirou as forças, a dinâ-
mica e os endereços de seu crescimento. São três as vertentes, com
suas bifurcações, que chegaram, ao longo dos séculos, até o esforço
de pensamento e reflexão dos medievais: o acervo filosófico da an-
tiguidade clássica e posterior e o depósito da teologia cristã com a
Bíblia, a tradição e os concílios.
No séc. XII se completou o cânon de 7 escritos lógicos que ser-
viu de base para as atividades de ensino, pesquisa e reflexão.
Para se compreender o espírito da filosofia escolástica, é indis-
pensável conhecer o método de exercício, i é, o conjunto dos prin-
cípios de interpretação, dos padrões de organização, das práticas
de operação, que caracterizam as diversas formas de exposição, de
investigação e transmissão do conhecimento e ensino. O método
escolástico é uma criação original da idade média cristã. Como há
sempre uma unidade prática e subordinada da filosofia à teologia, os
procedimentos, os instrumentos e técnicas criados valem para ambos
os níveis de conhecimento. A lectio, a disputatio e compositio são as
formas de procedimento tanto na teologia quanto na filosofia.
A essência da filosofia escolástica reside e está numa a sistema-
tização de um imenso material múltiplo e diverso, herdado da tra-
dição filosófica e teológica. O caráter do método escolástico está a
serviço desta essência, comprometido sempre com um esforço de
síntese. Por isso, o entendimento dos escolásticos de scientia e doctri-
na é, em qualquer diferença, aplicação; “componere verba et sermones”
é a atividade de todo escolástico, o que exclui o sentido moderno de

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Emmanuel Carneiro Leão

pesquisa da produção do conhecimento, seja na filosofia, seja na ci-


ência. Isto equivale a dizer que a atitude em que o medieval entendia
o conhecimento não tem nada a ver com a atitude em que o homem
moderno entende o conhecimento da ciência moderna. Em outras
palavras, o ideal de saber medieval é da aceitação da herança recebi-
da, que será, então, harmonizada entre si, enquanto o ideal de saber
moderno é de transformação do real pela reflexão da experiência e
pela operação do experimento. A operação transformadora do real
é o supremo tribunal em que se avalia e julga da verdade a herança
recebida. A essência da verdade já não é adequação e correspondên-
cia entre o conhecimento e o real, como na escolástica. A essência da
verdade do conhecimento é operativa, depende da segurança com
que a operação do real obtém sucesso. A vigência da técnica apodera-
-se progressivamente do conhecimento da ciência.
No início do séc. XX, M. Grabmann publicou uma obra sobre
o método da escolástica. “Geschichte der Scholastischen Methode”,
que se tomou clássica. O primeiro Volume (1,36) define com pre-
cisão histórica e sistemática o método escolástico: “O método es-
colástico pretende, com a aplicação da razão filosófica às verdades
reveladas, alcançar uma percepção, a maior possível, do conteúdo
da fé, a fim de, assim, aproximar a verdade sobrenatural, em seu
conteúdo, do pensamento do espírito humano, para, deste modo,
possibilitar uma exposição sistemática, organicamente coerente, da
verdade da salvação e poder, destarte, dissolver as objeções e argu-
mentos levantados pela razão contra o conteúdo da revelação. Num
desenvolvimento gradual, o método escolástico criou uma determi-
nada técnica externa, uma forma, e, por assim dizer, encarnou-se e
se tomou sensível”.
Die scholastische Methode will durch Anwendung der Vernuft, der
Philosophie, auf die Ofenbarungswahrheiten möglichst Einsicht in
den Glaubensinhalt gewinnen, um so die übernatürliche Wahrheit
dem denkenden Menschengeist inhaltlich näher zu bringen, eine
systematische, organisch zusammenfassende Gesamtdarstellung
der Heilswahrheit zu ermöglichen und die gegen den Offenbarun-

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Filosofia medieval

gsinhalt vom Vernunftstandpunkt aus erhobene Einwände lösen zu


können, in allmählicher Entwicklung hat die scholastiche Methode
sich eine bestimmte äussere Technik, eine äussere Form geschcafen,
sich gleichsam versinnlicht und verleiblicht.
Contra esta definição de Grabmann, M. de Wulf (Hist. de la Phi-
losophie Mediévale, 1924, p. 3) alegou que ela só vale para teologia
escolástica e não para a filosofia escolástica. Não há dúvida de que
a filosofia na Idade Média estava a serviço da teologia, mas não es-
gotava com isso sua função, pois a filosofia era um setor de conheci-
mento e ensino autônomo e próprio, ao lado da teologia. E com isto,
a questão do método na escolástica não pode, de forma alguma, ser
respondida completamente com o serviço que ela presta à teologia.
O termo “método escolástico” teve três sentidos de acordo com
o uso que dele fez a escolástica em todas as suas fases de desenvolvi-
mento: num primeiro sentido, designa o serviço que a filosofia presta
à teologia. Num segundo sentido, o termo se refere ao procedimen-
to lógico de qualquer conhecimento, seja teológico, seja filosófico.
Num terceiro sentido, o termo indica o conjunto dos procedimentos
de ensino, investigação e exposição de que se valia a escolástica, tanto
na teologia quanto na filosofia.
No primeiro sentido, o método escolástico remonta à patrísti-
ca, tanto grega como latina, em Clemente de Alexandria, Orígenes,
Gregório de Nissa, João Damasceno, Agostinho, Boécio, Ambrósio
etc. A escolástica medieval é a continuação da teologia patrística e
realiza, em consequência, uma integração da filosofia na teologia.
No entanto, o modo de fazê-lo foi diferente, devido à nova maneira
de se determinar os limites e com eles as relações entre filosofia e te-
ologia. Esta novidade está em se reconhecer, em principio, a filosofia
como uma ciência em si mesma própria e autônoma. Até a maneira
como a escolástica tratava e construía a teologia era uma maneira
específica e particular, pois os escolásticos, em parte, elaboravam a
teologia de acordo com os princípios e as regras de procedimento da
epistemologia de Aristóteles. Era uma atitude nova, que realçava a
autonomia e especificidade da filosofia.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 145-175, jul./dez. 2012 169


Emmanuel Carneiro Leão

Todas estas objeções à definição de Grabmann não tocam no


ponto nevrálgico da questão. São alegações que se restringem a fa-
tos, ao que acontecia na escolástica. Todavia são magni grassus, sed
extra viam, usando o procedimento da disputa escolástica, devemos
dizer: “concedo forum, sed quid ad vem!” Pois a questão é se houve ou
não na idade média escolástica um método de investigação que não
estivesse a serviço da teologia. O ponto de partida e o fundamen-
to de todo esforço filosófico da escolástica, seja metodológico, seja
lógico, seja ontológico, é sempre a verdade revelada, seu esclareci-
mento, como tal, i. é, como revelada, e sua defesa contra objeções.
O progresso filosófico provém sempre de dificuldades referentes à
crença de verdades reveladas. As questões dos universais, a questão
dos transcendentais, a questão dos princípios do ser e agir, a questão
da diferença entre natureza e pessoa, entre tempo e eternidade, entre
emanação e criação, entre processão e divisão, e todas as demais nas-
cem direta ou indiretamente de questões teológicas a respeito de ver-
dades reveladas. Assim, geneticamente qualquer problema filosófico
da escolástica é teológico, mas não somente geneticamente, também
sistematicamente é um problema que recebe seu encaminhamento
em dependência da verdade revelada pelas Escrituras ou decidida
pela função magisterial da Igreja. O medieval acreditava na infali-
bilidade da Igreja e não necessariamente na do Bispo de Roma. A
famosa sentença de Sto. Agostinho: Roma locuta, causa finita, é uma
convicção pessoal que ele aduz em sua própria (2) causa (1). Não
se trata de definição de um concílio que comprometa a Igreja toda.
O mesmo sentido de processamento e não de invenção tem o
método escolástico no tocante ao material filosófico herdado da
Antiguidade. A filosofia na escolástica, do ponto de vista do pro-
cedimento, é também uma síntese de elementos legados pelos fi-
lósofos antigos. Não resulta de novas descobertas, não propõe algo
que ainda não havia nem estivesse dado e processado na experiência
humana. Os medievais não conheciam a reflexão da experiência e
muito menos o experimento como fontes independentes e autôno-
mas de dados e conhecimentos filosóficos. Seu ponto de partida e

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Filosofia medieval

fundamento é a tradição teológica das verdades religiosas reveladas.


Sua tarefa e finalidade consistiam em apropriar-se e elaborar, em de-
senvolver e compatibilizar, em articular e ordenar, em fundamentar
e demonstrar o material herdado referente à fé e à revelação. Cons-
truir sistematizações constitui o cerne e a orientação da atividade
de pensamento na idade média, tanto na teologia, como na filoso-
fia. Os desempenhos mais originais e as contribuições admiráveis se
concentram na virtuosidade de suas performances de sistematização.
Nos livros das sentenças do século XII, nas sumas e ordenações do
séc. XIII e XIV, o trabalho criativo dos escolásticos encontrou os
frutos e o auge de seu gênio.
Se a meta era sistematizar o acervo herdado, o caminho para
alcançá-lo só poderia ser mesmo o método dedutivo, com seus ins-
trumentos de divisões, definições, distinções, classificações, argu-
mentações, que a silogística herdada dos gregos proporcionava.
Na lógica aristotélica, cujos escritos do Organon conhecidos des-
de meados séc. XII, a escolástica dispunha de um instrumental de
raciocínio e explanação de primeira ordem. E nos Elementos de Eu-
clides, traduzidos do grego por Boécio e do árabe por Abelardo de
Bath, encontram um modelo clássico de sistematização axiomático
a que se poderia aplicar a lógica dedutiva. Ademais, em seu Liber de
Hebdomatibus e em outros opúsculos teológicos, Boécio apresentava
o método matemático, como o método mais perfeito de todo conhe-
cimento e de toda ciência. No proêmio de seu livro escreve Boécio:
“Ut igitur in mathematica fieri solet caeterisque etiam disciplinis, prae-
posui terminos regulasque, quibus carreta, quae scientur efficiam”. As-
sim não é por algum acaso que se pode constatar um vigoroso surto
de sistematização a partir da segunda metade do séc. XII, quando se
tornaram conhecidas as principais obras do Organon de Aristóteles.
Assim também não é de se admirar o caráter fortemente dedutivo
nas obras dos escolásticos a partir de então. Definições, sentenças e
axiomas começam a seguir em cadeias ordenadas de silogismos e se
impõem, como a chave mestra que promete abrir todas as portas do
conhecimento e da ciência. Desde a primeira fase, a dedução cons-

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 145-175, jul./dez. 2012 171


Emmanuel Carneiro Leão

tituía o método lógico predominante que só fez crescer e ampliar-se


no período áureo da alta escolástica do século XIII. Somente com o
conhecimento dos escritos físicos e biológicos de Aristóteles é que
começaram a aparecer as primeiras tentativas de um procedimento
empírico e analítico mas que não foram suficientes para estimular
e promover o desenvolvimento sistemático de uma lógica e meto-
dologia indutiva. Somente em alguns círculos restritos de interesse
pelos fenômenos materiais, em escolásticos, como Alberto Magno,
Rogério Bacon, Dietrich Von Freiberg e outros, sentiu-se a necessi-
dade de se aprofundar procedimentos empíricos de pesquisa, o que
só veio a crescer e alargar-se’ na chamada Escolástica posterior dos
séculos XIV e XV.
Ao lado do método dedutivo de sistematização, impressionam
também as formas técnicas e externas com que os escolásticos reves-
tiram suas criações metodológicas. São formas e instrumentos des-
tinados ao ensino e à transmissão de suas sistematizações. Aqui se
verifica a originalidade do espírito medieval. Trata-se das três formas
e instrumentos de ensino que dominavam todas as fases da Escolás-
tica. A lectio, a disputatio e o procedimento conhecido como sic et
non. São formas e instrumentos criados e elaborados de dentro da es-
pecificidade do conteúdo doutrinário e do método correspondente.
É que a ciência escolástica foi sempre um conhecimento acadê-
mico dependente da atmosfera técnica da escola. As salas de aula e os
quartos de estudo das escolas nas catedrais, nos conventos e abadias
dos primeiros séculos e, desde 1200, nas universidades e nos Studia
Generalia das ordens, constituíam os únicos espaços, onde a ciência
escolástica tinha condições e encontrava forças para desenvolver-se.
Neste ambiente a lectio, isto é, o comentário e explanação de textos
dados, tanto teológicos quanto filosóficos, era a única maneira não
somente de ensino mas de reflexão e pensamento. Este método de
transmissão do conhecimento encontrava paradigma e modelo nos
comentários de Boécio de início e mais tarde nos escritos traduzidos
dos comentadores árabes e judeus, nas interpretações e na herme-

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Filosofia medieval

nêutica das Escrituras dos padressobretudo dos padres latinos. Os


frutos e resultados deste método e procedimento didático se acham
conservados na rica literatura dos escritos escolásticos. Nos séculos
XIII e XIV multiplicaram-se os comentários às Sentenças de Pedro
Lombardo e aos escritos de Aristóteles, de Avicena e Aveirois e dos
neoplatônicos com o nome de Aristóteles.
As lectiones encontraram desde o século X um complemento nos
exercícios e na prática das disputationes. Uma disputatio era um de-
bate público, rigorosamente ordenado de acordo com as regras do
silogismo, em que se discutiam e decidiam questões controversas,
quer deliberadamente escolhidas antes, quer sorteadas na hora. João
Saresberiense, em seu escrito Metalogica II, 10 (PL 199, 910 C) diz
que a organização destas disputas tinha por base o oitavo livro da tó-
pica de Aristóteles. Na estruturação dos cursos das universidades do
século XIII as disputas constituíam o principal recurso de formação
acadêmica, tanto na forma de disputationes ordinariae, cuja questão
era selecionada de antemão, quanto na forma de disputationes de
quolibet, cuja questão era sorteada, como ainda veremos em detalhes.
Tanto a Lectio como a disputatio se caracterizavam, em seu pro-
cedimento, por operarem com autoridades. Todo conhecimento e
ciência da idade média se fundam na autoridade: organizam-se e se
vestem da forma de sentenças. Desde o século XIII, para se obter o tí-
tulo de doutor em qualquer universidade medieval era indispensável
que o candidato comentasse os quatro livros das Sentenças de Pedro
Lombardo. As sententiae auctorum formam o material sobre o qual
se edifica, pelo método dedutivo, o sistema da teologia e filosofia. As
sentenças se apresentam como definições e axiomas. Delas retiram-se
as distinções e classificações bem como as premissas dos silogismos e
das demonstrações. Esta metodologia fundada sistematicamente na
autoridade não é uma característica externa e adventícia na escolás-
tica. Decorre de sua concepção sobre a natureza do conhecimento e
da ciência escolástica, que consistia essencialmente em “compor pa-
lavras e discursos” da tradição teológica e filosófica. O medieval via

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 145-175, jul./dez. 2012 173


Emmanuel Carneiro Leão

na tradição o maior tesouro de sua crença. Junto com a Escritura a


tradição forma o depositum fidei, o acervo da fé. Suas sentenças, suas
teses e doutrinas estavam cingidas pela auréola da verdade, garantida
pela revelação da Bíblia e pela infalibilidade da Igreja nas decisões
de seus concílios. Assim para se conhecer a verdade, bastava aceitar
a autoridade e tomá-la como norma de toda e qualquer verdade. E
uma atitude que se estendia, em sentido rigoroso, e sem nenhuma
exceção, para os autores aprovados da teologia, para as sentenças do
Antigo e do Novo Testamento, para as sentenças dos Padres da Igreja
e para as decisões dos concílios e os cânones da Igreja.
Esta atitude não valia apenas para a teologia. Aplicava-se também
para as autoridades de qualquer conhecimento ou ciência. Aqui só se
admitia critica e divergência. quando aparecesse e ocorresse alguma
contradição e oposição às verdades da fé revelada. Caso contrário,
as sentenças e doutrinas dos autores consagrados eram aceitas como
norma e diapasão da verdade. E sobre elas era edificado o sistema
do conhecimento de qualquer área. Assim o método da autoridade
valia por toda parte. O papel do conhecimento teológico e filosófico
era resolver as contradições, harmonizar as oposições e compor as
divergências que sempre ocorriam entre as sentenças, de vez que a
tradição oferecia as sentenças separadas dos seus contextos nas ta-
bulae, nos compêndios e florilégios. Os escolásticos acreditavam até
que contradições, aporias e divergências sempre constituíram êmulo
de progresso e desenvolvimento. A divergência dos autores forçava a
necessidade de tomar posição própria. Mas esta posição própria não
passava de composição. Era convicção aceita que qualquer contradi-
ção entre as autoridades era apenas aparente. E a tarefa do escolástico
consistia em buscar caminhos de harmonização e conciliação. Era o
sentido que tinha, então, o verbo, com-ponere, quando usado na
determinação do sentido de ciência e doutrina para um medieval.
Assim, o principio da autoridade, como método de conhecimento,
se transformava, na prática, no princípio de harmonia e conciliação.
O percurso desta transformação atravessa três momentos ou fases de
operação, no método escolástico de ensino e exposição:

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Filosofia medieval

a) a contraposição: as diferentes autoridades eram contrapostas


em suas posições, na forma das expressões pro e contra, de videtur
quod non, sed contra: é a primeira fase da exposição;
b) resolução e fundamentação, na forma dos termos: solutio, cor-
pus, respondeo dicendum: é a segunda fase da exposição;
c) a composição, na forma dos termos ad primum dicendum, ad
secundum dicendum, onde se compunham e harmonizavam as
aparentes oposições e contradições.
Este procedimento do método de composição das autoridades
assegurava o progresso e desenvolvimento do conhecimento esco-
lástico tanto na teologia quanto na filosofia. Este esquema de pro-
cedimento com suas regras e princípios de harmonização provinha
da tradição canônica, muito antes do escrito de Abelardo, sic et non.
Através de Abelardo e sua escola e seus contemporâneos, o método
foi introduzido na teologia sistemática e levado a sua plenitude no
século XIII pelos grandes sistematizadores da Alta Escolástica em
suas Sumas e Questões.
Na filosofia aconteceu o mesmo percurso. Assim Roberto Gros-
satesta em seu livro, Summa Philosophiae, utiliza o mesmo proce-
dimento metódico de exposição. A harmonização das diferenças
e contradições entre as doutrinas dos diversos autores força quase
sempre a leitura e interpretação das passagens, desgarradas de seu
contexto histórico e doutrinário. Conhecida e investigada a este res-
peito é a atitude de Santo Tomás face aos textos de Santo Agostinho.
É o que demonstrou com pertinência o estudo de G. von Hertling,
“Augustinus-Zitate bei Thomas von Aquin”, no relatório diante da
Academia de Ciências da Baviera, de 1924.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 145-175, jul./dez. 2012 175


Traduções
Do modo de aprender
e meditar*
Hugo de São Vítor

1. A humildade é necessária aos que querem aprender


O princípio do aprendizado é a humildade, pois, uma vez que
são muitos os documentos, cabe ao leitor principalmente essas três
coisas. Primeiro, que não considere nenhum escrito como vil. Se-
gundo, que não se envergonhe de aprender de ninguém. Terceiro,
quando tiver obtido a ciência, que não despreze os demais. Muitas
pessoas se enganam no fato de quererem ver-se sábios antes do tem-
po, e assim se envergonham de aprender dos outros aquilo que não
sabem. Mas tu, filho, aprende com carinho aquilo que não sabes.
Será mais sábio que todos se quiseres aprender de todos. Os que
recebem de todos são mais ricos que todos. De modo algum consi-
deres qualquer ciência como vil, porque toda ciência é boa. Se tens

* Este opúsculo de Hugo de S. Vítor é provavelmente uma compilação feita no


século XIII, por algum discípulo, de extratos de textos do próprio Hugo, com
a finalidade de montar um opúsculo destinado à orientação ao aprendizado, ao
ensino e ao método de estudo e leitura. O título original soa De modo dicendi
et meditandi. Todavia, conforme Javier vergara Ciordia (El de modo dicendi et
meditandi de Hugo de San Victor. Una lectio sobre la pedagoría Del Siglo XII,
Revista española de pedagogia, LXV, n. 238, 2007, p. 519-544), mais ou menos
85% da obra é extraída do Didascalicon de Studio legendi. Supõem-se e faz mais
sentido algum copista ter suprimido o “s” do verbo discendi, ficando dicendi.
Uma suposição que se fundamenta pelo conteúdo da obra.
Texto traduzido de Migne, Patrologia latina, vol. 176, cols. 877-880.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 179-185, jul./dez. 2012 179


Hugo de São Vítor

tempo vago, não desprezes nenhum escrito nem sequer qualquer lei.
Se nada ganhas, tampouco nada perdes. O Apóstolo, pois, disse: Ler
de tudo e reter o que é bom (1Ts 5). O bom leitor deve ser humilde e
manso, completamente alheio aos cuidados do mundo e à sedução
dos prazeres, e diligente para que de tudo aprenda com gosto. Nunca
presuma de sua ciência, não se veja a si mesmo como douto, mas
queira sê-lo, que busque os ditos dos sábios, e se esforce ardentemen-
te para mantê-los sempre diante de seus olhos, sendo como que um
espelho diante de seu rosto.

2. Três coisas são necessárias ao estudante


Três coisas são necessárias aos estudantes: natureza, exercício e
disciplina. Na natureza vem considerado que perceba facilmente o
que ouve e retenha firmemente aquilo que percebeu. No exercício,
que cultive o senso natural com trabalho e diligência. Na disciplina,
que vivendo de forma louvável, conjugue costumes e ciência.

3. Que seja capaz de inteligência e memória


Os que trabalham com ensinamento devem ser capazes de ter
ao mesmo tempo inteligência (ingenium) e memória. Pois essas duas
estão tão interligadas em todo estudo que, se faltar uma delas, tam-
pouco a outra pode levar à perfeição, assim como todo lucro não
pode trazer utilidade onde falta custódia; e em vão guarda o baú
aquele que nada tem para guardar.

4. Da inteligência
A inteligência é certo vigor natural implícito no ânimo, que tem
vigência por si mesmo. A memória é a percepção das coisas, das
palavras, das sentenças e dos sentidos, firmíssima do animo ou da
mente. A inteligência descobre, a memória custodia. A inteligência

180 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 179-185, jul./dez. 2012


Do modo de aprender e meditar

enuncia a partir da natureza, é auxiliada pelo uso, vai se apagando


pelo trabalho imoderado, ganha acuidade pelo exercício temperado.
A memória é auxiliada maximamente e adquire vigor pelo exercício
de reter e de meditar assiduamente. São duas as coisas que exercitam
a inteligência: a leitura e a meditação. A lição se dá quando somos
instruídos, através de regras e preceitos, a partir do que está escrito.
Assim, a leitura tem por assunto a investigação do senso. O gênero
da leitura tem três modalidades, docente, discente ou autodidata.
Dizemos pois, leio o livro para ele, leio o livro por ele, e leio o livro.

5. Da meditação
A meditação é um cogitar freqüente, com instrução, que inves-
tiga prudentemente causa e origem, modo e utilidade de cada coisa.
A meditação toma seu princípio da leitura, embora não se construa
com as regras ou preceitos da lição. Deleita-se pois em discorrer num
espaço aberto, onde afixa aguda e livremente a vista para contemplar
a verdade; e tocar essas causas das coisas, ora aquelas, ora penetrar algo
profundamente, nada deixando de duvidoso ou de obscuro. O prin-
cípio da doutrina está na leitura, a consumação na meditação. Pois se
alguém aprendesse a amá-la com familiaridade, querendo dedicar-lhe
bastante tempo, a vida se torna agradável e, na tribulação, presta-lhe
o máximo consolo. É ela, pois, que maximamente separa a alma do
estrépito dos feitos terrenos, e permite degustar nesta vida também,
de algum modo, a doçura do repouso eterno. E uma vez que já apren-
deu a buscar e compreender quem fez, a partir daquilo que foi feito,
então instrui a alma igualmente pela ciência e aprofunda-a pela ale-
gria: e com isso, resulta que na meditação está o máximo de deleite.

6. Três gêneros de meditação


Três são os gêneros da meditação. Um consiste no exame dos
costumes, outro em perscrutar os mandamentos, e o terceiro na

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Hugo de São Vítor

investigação das obras divinas. Os costumes estão nos vícios e nas


virtudes. Dos mandatos divinos, uns são prescritivos, outros de pro-
messas e outros assustadores. A obra de Deus é aquilo que cria pela
potência, modera pela sabedoria e coopera pela graça. Quanto mais
conhece alguém das coisas que são dignas de admiração, tanto mais
atentamente se habitua a meditar as maravilhas de Deus.

7. Deve-se confiar à memória aquilo que nos foi ensinado


Recolhendo, a memória custodia aquilo que a inteligência in-
vestiga e descobre. Aquilo que divisamos aprendendo, é preciso que
recolhamos e confiemos à memória. Recolher (colligere) é redigir
aquilo que se escreveu ou sobre o que se disputou de forma mais
prolixa num breve ou compendioso resumo, chamado pelos grandes
de epílogo, ou seja, uma breve recapitulação do que foi dito acima.
A memória do homem, portanto, goza de brevidade, e quando divi-
dida em muitas coisas fica menor em cada uma. Portanto, em todo
estudo ou doutrina, devemos recolher algo breve e certo, que seja
reconduzido à pequena arca da memória, donde, depois, quando
a situação o exigir, de lá se derive algo. Mas isso também deve ser
repassado seguidamente, sendo necessário invocá-lo do ventre da
memória para o gosto do paladar para que não obsolesça por um
intervalo muito longo.

8. Três visões da alma racional. Diferença entre meditação e


contemplação
Três são as visões da alma racional. A cogitação é quando a mente
é tocada pela noção transitória das coisas, quando essa coisa se apre-
senta de súbito ao ânimo através de sua imagem, ou tendo entrado
pelos sentidos ou surgindo da memória. A meditação é a reaborda-
bem assídua e arguta da cogitação, esmerando-se por explicar algo
de obscuro, ou sondando para penetrar no oculto. A contemplação é

182 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 179-185, jul./dez. 2012


Do modo de aprender e meditar

um intuir perspicaz e de espírito livre de coisas a serem investigadas


e difusas por toda parte. Entre a meditação e a contemplação parece
haver esse intermédio, que a meditação é sempre de coisas ocultas à
nossa inteligência; mas a contemplação, de coisas manifestas, segundo
sua natureza ou segundo nossa capacidade; e que a meditação sempre
se ocupa em buscar com cuidado algo singular; mas a contemplação
se estende a muitas coisas ou até a universalidade das coisas a serem
compreendidas. Assim, a meditação é certo vigor da mente, curiosa
e sagaz, para investigar coisas obscuras e explicar coisas intrincadas.
A contemplação é aquela vivacidade da inteligência que, tendo todas
as coisas presentes, compreende-as numa visão manifesta, e assim, de
certo modo, aquilo que busca a meditação, a contemplação possui.

9. Dois gêneros de contemplação


A contemplação é de dois gêneros, um, que é o primeiro e dos
principiantes, está na consideração das criaturas, o outro, que é o
último e dos perfeitos, está na contemplação do Criador. Nos pro-
vérbios, Salomão como que avança meditando, no Eclesiastes sobe
para o primeiro grau de contemplação, no Cântico dos Cânticos se
transporta ao supremo. Portanto, para distinguirmos esses três com
suas próprias palavras, o primeiro é a meditação, a segunda é a espe-
culação, e a terceira a contemplação. Na meditação, a perturbação
das paixões carnais que surgem inoportunamente obscurece a mente
incendiada por uma devoção piedosa; na especulação, a novidade da
visão insólita subleva-a para a admiração; na contemplação, o gosto
da doçura admirável transforma toda a mente em gozo e alegria.
Portanto, na meditação há solicitude, na especulação admiração e na
contemplação doçura.

10. Três coisas na exposição


A exposição contém três coisas, a saber, letra, sentido (sensum)
e sentença (sententia). A letra é uma ordenação congruente das pa-

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Hugo de São Vítor

lavras, que também chamamos de construção. O sentido é certa fi-


guração fácil e apta, oferecida pela letra à primeira vista. A sentença
é intelecção mais profunda, que não pode ser encontrada a não ser
pela exposição ou interpretação. Nelas, a ordem exige que venha
primeiro a letra, depois o sentido, e por fim a sentença: através disso,
a exposição é perfeita.

11. Três gêneros de vaidades


São três os gêneros de vaidades. A primeira é a vaidade da mu-
tabilidade que inabita em todas as coisas caducas como condição.
A segunda é a vaidade da curiosidade ou do desejo, que inabita nas
mentes humanas pelo deleite desordenado das coisas transitórias e
vãs. A terceira é a vaidade da mortalidade, que inabita o corpo hu-
mano como penalização

12. Funções da eloqüência


Disse alguém eloqüente e falou a verdade que se deve chamar de
eloqüente a quem ensina, deleita e convence (AGOSTINHO, De
doctrina Chtistiana, Lib. IV, cap. 14). Por fim acrescentou: Ensinar é
questão de necessidade, deleitar, de suavidade, convencer é questão
de vitória. Dessas três coisas, a primeira , isto é, a necessidade de
ensinar está radicada nas coisas que dizemos e as duas restantes no
modo como as dizemos. Quem, portanto, dizendo, busca persua-
dir sobre o que é bom, nada dessas três deve desprezar, para poder
ensinar, deleitar e convencer; diga e aja para ser ouvido de modo
inteligente, com gosto e com obediência. Pois, ao fazer isso de forma
apta e conveniente pode ser chamado com razão de eloqüente, mes-
mo que o assentimento do auditório não o siga. A essas três coisas,
a saber, que ensine, que deleite e que convença, o próprio autor da
eloqüência romana vê pertencerem outras três coisas, ao dizer ainda:
Será eloqüente quem consegue dizer as coisas pequenas de forma

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Do modo de aprender e meditar

submissa, as medianas de forma temperada e as grandes de forma


grandiosa. Quem quer conhecer e ensinar aprenda todas as coisas
que devem ser ensinadas e obtenha a faculdade de ensinar adequada
a um homem eclesiástico. Quem pois, quer ensinar pelo dizer, não
considere ter dito aquilo que quer dizer a ele quem quer ensinar,
enquanto não for compreendido; pois, mesmo que diga o que ele
mesmo compreende, não se deve considerar que o tenha dito a quem
não o compreendeu. Mas se foi compreendido, seja lá de que modo
o disse, ele o disse. O doutor e defensor da reta fé e o delator do erro
devem ensinar as coisas boas das Sagradas Escrituras, e pela obra do
sermão conciliar os que estão separados, erguer os remidos, intimar
os ignorantes sobre o que devem fazer, o que devem esperar. Mas
onde encontra pessoas benévolas, atentas, dóceis, ou que ele próprio
consegue fazer com que fiquem assim, há que se agir no mais confor-
me exige a ocasião. Se os que ouvem são os que devem ser ensinados,
deve-se fazê-lo com narrações, se for o caso de que o assunto em
questão fique claro. Mas é preciso que as coisas duvidosas fiquem
certificadas, deve-se raciocinar acrescentando testemunhos.

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 179-185, jul./dez. 2012 185


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