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A ZOOPOÉTICA E O PENSAMENTO ECOSÓFICO PARA NARRAR A VIDA DOS

ANIMAIS1

Patrícia Lessa 2
Resumo: No mercado de carnes e corpos a pecuária representa o encarceramento, tortura e morte de bilhões de vidas de
pessoas não-humanas, representa o desmatamento de florestas, que por sua vez, representa a morte de milhares de
espécies. É fruto da ganância dos ruralistas, responsáveis, em parte, pela expulsão de indígenas de suas terras, pela
poluição da água, do ar e da terra, pela escassez de água, pelo envenenamento dos alimentos, pelo aquecimento global.
Não é somente uma questão de mudar a alimentação que está em jogo. Para além do comportamento alimentar, estão o
desmatamento, os incêndios propositais, o extermínio de vidas não capturadas pela mundialização capitalística. A
zoopoética, neste contexto, pode ser percebida como uma forma sensível e propositiva de pensar a vida dos animais
agenciando ao pensamento ecosófico e a poética animalista, perspectiva que nos ajuda a articular as questões críticas,
geopolíticas e socioculturais. O nosso objetivo, é, portanto, articular os dois conceitos com três histórias-memórias de
como ser-com-o-animal em uma perspectiva feminista animalista. Pessoas humanas e não-humanas constroem
narrativas de vida passiveis de serem percebidas como poéticas.

Palavras-chave: Zoopoética. Ecosofia. Feminismo animalista.

Ao espectar a estante de livros, bem no alto, meus olhos encontram com o olhar sereno de
Ágata, que está deitada ao lado da caminhada de elefantes africanos que andam pelas savanas. A
imagem descrita foi pintada pelas mãos do artista afro-uruguaio Mario Black, em 2014. O artista
pintou uma África quente, repleta de pássaros e na margem esquerda se lê: “Cada mañana en Africa
una gasela se levanta y save que debera correr si no el leon se la comera. Cada mañana en Africa un
leon se levanta y save que debera correr mas que la gasela o sino se morira de hambre. Entonces
recuerda que no importa si eres leon o gasela que asi cada mañana cuando te levante ya saves que
debera correr...”.
Entre o olhar de Ágata, ao lado da caminhada dos elefantes, de Mario Black, e do leão e da
gazela que correm durante o despertar africano, posso afirmar que múltiplas conexões se
estabelecem e produzem, em mim, processos de subjetivação. As relações multiespécie acontecem
diariamente, por todo lado. Podem se dar encontros interespécies nos processos de resgate e de
adoção ou em meio ao sangue derramado nos matadouros ou mesmo nas ficções e criações
artivistas. É possível dizermos que, diariamente, as diferentes animalidades deixam rastros ao redor

1 Agradeço à Ângela Donini, minha parceira no ST 82: “Fazendo artivismo: feminismos animalista, vegano e ecosófico
em rede”. E parabenizo, ela, Gabriela Leite (in memorian), João W. Nery e a atriz Juliana Dorneles, pelo inspirador
filme: “Corpos que escapam” (2015) premiado na mostra audiovisual do 13º MM & FG 11º. Também, agradeço a
Rosangela Cardoso pelo diálogo com o texto e sugestões apontadas.
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Pós-Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense, em Niterói, no Rio de Janeiro. A pesquisa, orientada
por Sebastião Votre, foi sobre os usos da Testosterona no esporte e na transgeneridade (ver em: LESSA, Patrícia. O
sexo a quem compete? Revista de História da Biblioteca Nacional, a. 10, n. 108, p. 52-55, set. 2014). Professora do
Departamento de Fundamentos da Educação, na Universidade Estadual de Maringá, em Maringá, Paraná/Brasil.
Contato: mafalda_cat@yahoo.com.br.

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do planeta Terra, como aqueles encontrados/arquivados/analisados/reescritos por Darwin em seu
diário de viajem no HMS Beagle (1831-1836).
Quando escrevo que as pessoas humanas e as não-humanas constroem narrativas de vida
passiveis de serem percebidas como poéticas digo, também, que é justamente nestes encontros e
desencontros que a vida acontece, ali, naquele instante percebido, pode ser lida uma narrativa nas
naturezaculturas (HARAWAY; AZERÊDO, 2011). Quando penso nas vidas conectadas através das
memórias e das narrativas visuais, encontro Haraway e Azerêdo (2011) que me instigam a pensar
que neste tornar-se-com muitas relações se cruzam, seja nas relações de morte e de vida, seja nas
relações de sangue e produtivismo do agronegócio onde as mortes são diárias e a vida vale menos
que um pé de soja transgênica esturricada pelo veneno. Veneno aspirado nestes campos, que não
são mais verdes e que ao serem aspirados fazem conspirar venenos outros. Depois do Golpe de
2016 ouvimos o Brasil cantar em uma só voz: Demarcação Já! Vemos nosso patrimônio cultural
imaterial ser leiloado por um governo golpista que faz da política um balcão de negócios com os
ruralistas. A Constituição brasileira de 1988 garantiu o direito à terra aos povos indígenas e hoje
vemos um governo ilegítimo negociar com os ruralistas, que querem usar o critério de marco
temporal para retirar a população indígena de seu lugar de direito.
Nesta relação, diferentes modos de tornar-se-com aparecem: por um lado, os povos
indígenas e seus cultos vinculados ao respeito à natureza, por outro, os grandes proprietários de
terra negociando/incentivando/financiando novas formas de etno-genocídio. Hoje, o Parque
Nacional do Xingú, localizado na região nordeste do Estado do Mato Grosso, na porção sul da
Amazônia brasileira, legalizado em 1961, durante o governo de Jânio Quadro, primeira terra
indígena homologada pelo governo federal, abriga 16 povos, sendo que são, aproximadamente, 6
mil pessoas humanas e milhares de vidas não-humanas, plantas e espécies outras está na mira dos
ruralistas. As terras indígenas e quilombolas correm risco de desapropriação ilícita neste novo
colonialismo bélico e imperialista. O mesmo ocorre, embora de modo distinto, com os povos
indígenas Mapuches, do Chile, que hoje estão em luta contra a militarização de suas terras.
Narrar as vidas que se cruzam neste emaranhado é mais do que contar histórias, é uma luta
permanente pela vida, é um sim à vida. Em minhas três histórias-memórias humana-felinas se
cruzam e traçam caminhos feitos ao trilhar, sem um plano de viagem, encontros que acontecem ao
caminhar. Foi assim que, em algum dia do mês de setembro de 1996, eu andava da casa de minha
mãe, na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, por um caminho onde, obrigatoriamente, iria
passar em frente à casa da vó Iva (Imagem 1). Quando, já bem próxima da casa de minha avó, ouvi

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um coro de miados-choros-de-crianças, meus olhos perseguiram o som e encontraram uma caixa em
frente uma casa antiga, típica daquela região, com a porta de grande altura plantada diante da
calçada, em um degrau onde a caixa foi depositada. Fui ao seu encontro e me deparei com a
ninhada, nem cogitei em levar toda a caixa para casa, estava sem condições e desempregada, foi
assim que peguei um só filhote, andei meia quadra, dobrei a esquerda e lá estava ela: vó Iva,
sentada em frente a sua pequena casa, na região portuária da cidade. Tão logo nos encontramos, ela
sorriu para mim e pediu para pegar o gatinho no colo.

Imagem 1: Vó Iva e Lili

Arquivo pessoal da autora (Créditos: Ivana Santos)

Rapidamente descobrimos que era uma gatinha, assim nasceu Mafalda (Imagem 2), nos
encontramos durante minhas andanças pelas ruas de Pelotas. Eu sabia que minha estadia na cidade
deveria ser curta. A cidade guarda uma história longa, banhada pelo sangue das charqueadas, ela foi
rica para alguns e foi um martírio para outro tanto de pessoas humanas e não-humanas. Durante o
século XVIII, a cidade abrigou 40 charqueadas na região conhecida como Tablada, estima-se que
nelas cerca de 400/500 vacas e bois eram mortos por ano. O gado era levado pela região dos
Pampas e chegava à cidade para ser abatido nas charqueadas, arquitetonicamente, plantadas nas
margens do Arroio Pelotas, por onde, em seus 60 km de extensão, o sangue corria veloz. Neste
contexto, o povo negro escravizado sentia o preço do charque na chibata que comia suas carnes e
fazia jorrar seu sangue misturado ao dos não-humanos, assim como dos povos indígenas que antes
viviam ali ou já havia sido dizimado ou expulsos de suas aldeias, enquanto a pecuária engordava os
bolsos e as panças de poucos, alguns daqui, outros além-mar, sobretudo do povo europeu, que na
região estava miscigenado entre portugueses e castelhanos, típico contexto daquela região
fronteiriça (Brasil-Uruguai).

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Imagem 2: Mafalda

Arquivo pessoal da autora (Créditos: Estéfano Lessa)

Pelotas é um local marcado por múltiplas relações interespécies e com uma longa história de
expropriação e voraz economia que incluía corpos e carnes misturadas/capturadas/desapropriadas.
Quando penso nesta longa história do local onde nascemos, Mafalda e eu, lembro daquilo que nos
ensina Haraway:
Tais “tornar-se-com” são, na verdade, o mundo mortal, o único que temos; e, então, cuidar
do “tornar-se-com” não é opcional. Nosso problema, a meu ver, é nos engajarmos
seriamente na enormidade de práticas reais através das quais animais trabalhadores (e suas
pessoas) são tornados incompetentes, de modo a serem reduzidos à condição de valor. Nós
– quem quer que seja que venha a reconhecer e se responsabilizar por essas práticas –
devemos agir sem perpetrar ainda mais extermínios, obliterações, reduções e genocídios de
multiespécies humano-animal-vegetais (HARAWAY; AZERÊDO, 2011, p. 393-394).

Neste encontro entre pessoas humanas e não-humanas se cruzam diferentes formas de


estabelecerem relações nas naturezaculturas. Nestas relações, visivelmente, os corpos matáveis
eram corpos negros, corpos indígenas e de espécies múltiplas que serviam a uma economia em
crescente expansão, para poucas pessoas usufruírem. Nada igual ao que viria depois, nos
matadouros, onde a morte ganhou proporções industrializadas, serializadas chegando a atingir, em
2003, aproximadamente, 50 bilhões de animais não-humanos mortos anualmente para o consumo
humano, sem contar nos usos para testes ou para o vestuário, aqui computados somente corpos
usados para a farra da “carne fraca”, que depois do escândalo nacional ficou mundialmente
conhecida por seu misto de sangue, papel e outros resíduos.
Nas charqueadas, o povo escravizado era usado para fazer o “serviço sujo”,
matar/salgar/expor ao sol as carnes putrefatas que atravessariam o oceano para servir a grade farra
europeia civilizada, bem-educada e culta. O colonialismo praticou um etnocídio sem precedentes na
história latino-americana. Hoje, adota-se nos trópicos a teoria pós-colonialista sem pensar nas

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implicações das novas formas de colonialismo impostas pela indústria bélica e pela indústria
farmacoquímica norte-americana, somente se descarta aquele período e suplanta-se um novo: o pós-
colonial como se a história fosse uma linha continua e sem uma política de localização que nos
distancia do norte do continente ou mesmo da Europa. Se o colonialismo foi sanguinário com
diferentes etnias e espécies é de se imaginar o que marcou a pele felina, ainda, assinada com a
insígnia do demônio.
É na cultura cristã do povo europeu que encontramos indícios do repúdio aos gatos que,
assim como as feiticeiras, com o selo do demônio, nos dizeres de Nise: “Em 1220, foram até
organizados processos contra gatos ocorrendo o absurdo desses animais serem acusados de
manobras diabólicas e à semelhança de mulheres acusadas de bruxaria, foram condenados a perecer
em fogueiras” (SILVEIRA, 1998, p. 27). Neste contexto, tornar-me-com Mafalda foi outra longa
história...
Em fins de 1997, terminei minha dissertação sobre Giordano Bruno e sabia que teria que
achar outro lugar. Passei em um concurso no Paraná e, no ano de 1998, fretei uma Combi e lá
fomos nós: Mafalda, Gato Amarelo, Safira e eu rumo à Cascavel. Naquela ocasião, recebi muitas
críticas: para que estes gastos desenfreados? De que adiante levar estes gatos se eles não gostam de
gente, somente se apegam ao lugar? Eram frases que ouvia nos dias que antecederam a viagem, são
frases que refletem o pouco conhecimento sobre esta espécie e muita coisa sobre o que diz Nise da
Silveira (1998, p. 27): “Ainda hoje o gato é repudiado por alguns e poucos o aceitam com amor”.
Chegando em Cascavel, a “cobra fumou”! Foram seis meses de risos no bar da Rose. Ela me
alugou um imóvel que ficava no mesmo terreno do bar. Nos fundos do terreno, vivíamos eu, a
Mafalda, o Gato Amarelo e a Safira. Na parte da frente do terreno, ela cuidava sozinha de um bar e
de duas crianças, uma menina pequena e um menino de colo. Foi neste contexto, no qual havia
ingressado, aos 27 anos de idade, como docente na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, que
encontrei o preconceito e a discriminação por parte de intelectuais da universidade motivados pelo
local onde eu morava. Foi, por meio de um colega doutor em educação, que apesar do título, era
desprovido de empatia e de respeito ao próximo, falava de algo que ele estava longe de conhecer,
pois nunca fora convidado e nunca havia pisado naquele local que me fez tão bem. O colega, que se
achava porta-voz da sabedoria sócio-geográfica, me alertou do perigo que era morar próxima
daquele bar com aquela mulher sem homem. As fofocas e a infâmia proferidas feriam meus
ouvidos, pois, o que eu via/sentia/vivia era a presença de uma mulher doce, amiga, independente,
forte e autônoma, características detestadas pelos machistas de plantão que acreditam que toda

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mulher precisa de um macho-provedor. Ele chegou a dizer-me que lá haviam prostitutas, ao que eu,
ironicamente, retruquei: “que ótimo! Ainda não as encontrei, as putas, as feministas e as sapatas
conjugam relações historicamente conflituosas, mas acima de tudo estamos na mesma barca que vai
na contramaré do patriarcado”.
Nos seis meses de muito choro e desespero, era no bar da Rose, que cuidando das crianças
ou jogando cartas, me distraia e deixava o tempo correr. Quando eu ia para o bar, o Gato Amarelo
prontamente me acompanhava, ele virou uma presença conhecida e até ganhou bons amigos. Em
um dia qualquer, trabalhei a tarde e, ao voltar, não encontrei a Safira, procurei... procurei-a em vão.
Minha gatinha siamesa, com olhinhos brilhantes, que toda a noite se divertia repetindo a mesma
façanha, derrubava a água que eu havia deixado ao lado do colchão. Eu olhava para ela para
repreendê-la, e toda noite, ao ver seus olhinhos brilhantes que pareciam rir pelo divertimento de
assistir a água cair do copo e molhar a parte de baixo do colchão, eu me rendia e brincávamos juntas
na água derramada.
Uns dias depois de seu desaparecimento, a Rose resolveu me contar que ela havia sido
atropelada e, para prevenir maior sofrimento, ela providenciou que enterrassem a gatinha no campo
em frente ao bar. Depois de perder minha gatinha com olhinhos brilhantes, os dias ficaram mais
sombrios e comecei a ficar mais atenta às violências típicas de uma região dominada pelo tráfico de
armas e de drogas. Ao mesmo tempo, havia dias muito alegres, motivados pela companhia da Rose
e de seus clientes, além, é claro, das duas crianças que adoravam a presença do Gato Amarelo. Foi
neste contexto que decidi pedir demissão e ir para Maringá, antes mesmo de saber se me chamariam
para uma vaga em um concurso na Universidade Estadual de Maringá, local onde eu havia passado
em concurso público e o qual já estava quase por vencer.
Na despedida de Cascavel, minhas turmas de Pedagogia e a amiga Rose fizeram-me uma
festa surpresa na qual havia uma faixa escrita: “Foucault ficou!”. Foi lindo! Mas depois da festa, eu,
Mafalda e o Gato Amarelo fizemos as malas e voltamos para a estrada, agora em um ônibus. Gato
Amarelo foi morto em Maringá com uma pancada na cabeça, já a Mafalda mudou de casa várias
vezes junto comigo, chegamos a morar em uma república mista e interespécie onde haviam sete
pessoas e uma cadelinha chamada de Cibalena. Foi muito triste perde-lo desta forma tão violenta e
sem sentido, logo ele, o mais simpático e gentil, que adorava a minha colega que logo tornou-se
nossa amiga, a Marta Bellini. Toda vez que ela ia em casa, ele a acompanhava na chegada e na
saída. Ele morreu em 2001 e, apesar de ser filho da Mafalda, era um gatão enorme, bem diferente
dela, tanto na personalidade como na corporeidade. Ele era dado. Ela era para poucas pessoas. Não

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lhe agradava muito a presença de gente estranha. Por conta disso, creio que ela viveu muito mais
tempo que seu filho, o Gato Amarelo.
Foi em 2010, aqui, neste local onde hoje eu, Ágata, Fênix, Zeca Pagodinho, Cocadinha,
Morgana, Panda, Pink Froid, Damiana, Hercules e Charles Darwin convivemos com outras tantas
espécies animais e vegetais diariamente, que a Mafalda partiu. De onde escrevo, neste local, onde
ela me fazia companhia nas longas noites de escrita foi que a minha amada companheira de viagens
morreu um ano depois de constatada uma Lipidose Hepática. A Mafalda, que era mãe do Gato
Amarelo, coincidentemente ou não, veio a óbito no mesmo ano do falecimento da minha Vó Iva.
No dia de sua morte eu estava no Rio de Janeiro, minha querida amiga Marta providencio o enterro
e, no final de 2015, a amiga artista Denise Zeidan presenteou-nos com um mosaico em memória à
Mafalda, no lugar onde ela havia sido enterrada.
Movida por um impulso de dor, disse a mim mesma: gata/o/s nunca mais! No ano seguinte,
indo comprar umas grades em um ferro velho que serviriam para arrumar o canil, conheci a Ágata
(Imagem 3). Ela é a gatinha do início deste texto, que dorme no alto da estante de livros, ao lado do
quadro de Mario Black. Nosso encontro foi sem conflitos, foi amor à primeira vista, digo, à
primeira miada. Quando cheguei ao local, muito cedo, tudo ainda estava fechado, só ela estava lá e
miava forte. Eu chamei-a e ela veio correndo, peguei-a no colo e não desgrudamos mais. Quando o
proprietário do estabelecimento chegou, eu perguntei se era dele ao que o mesmo disse que
provavelmente jogaram lá para se livrarem dela. Assim foi que ela veio para casa comigo e, agora,
justo neste momento de escrita ela me acompanha, inclusive em alguns momentos tenta fazer eu
parar de escrever e voltar a prestar atenção em nós tornando-nos-com e sendo assim, é participe
viva desta narrativa. Ela não chegou a conhecer a Mafalda, mas é bem parecida com ela, tanto
fisicamente quanto no caráter, não é chegada em gente, mas é afável e severa com os da espécie que
aqui chegaram depois dela. Gosta de estar entre os livros e entre as plantas e sempre está perto de
mim enquanto escrevo, estudo ou preparo minhas aulas.

Imagem 3: Ágata

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Arquivo pessoal da autora

Ágata é um tipo de mineral, uma variação da criptocristalina de quartzo, uma subvariedade


da calcedônia que se caracteriza pela variedade das cores, dispostas em faixas paralelas, assim como
a pelagem da Mafalda e da Ágata. Pelagem conhecida vulgarmente como casco de tartaruga e que
contém todas as variações de cores em duas predominâncias: na cor preta ou na cor cinza. A
Mafalda teve uma filhota na pelagem casco de tartaruga com predominância cinza, gostaria de ter
ficado com ela, mas aquela casa era em um local perigoso, onde os carros passavam velozes e ao
ver morrerem dois dos irmãozinhos dela, tratei de doar ela e o outro filhote que sobreviveram à
velocidade das ruas. Hoje convivo com duas gatinhas desta pelagem. Um ano depois da chegada de
Ágata, o encontro com a Fênix (Imagem 4) foi bem mais forte. Não por acaso, ela ganhou o nome
daquela lendária águia que renasceu das cinzas e alçou voos altos mesmo depois de pensarem que
ela estava morta.

Imagem 4: Ágata e Fênix

Arquivo pessoal da autora

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Fênix chegou no dia 25 de julho de 2012, provavelmente nasceu em maio daquele ano. No
dia de sua chegada eu estava bem feliz. Era meu aniversário e eu estava tomando o café da manhã
com ilustres companhias. Minha mãe, tia Maira e tia Lulu, que veio a falecer muito jovem, dois
anos depois. O telefone tocou e uma vizinha me pediu ajuda para socorrer uma gatinha que havia
sido atropelada. Era cedo, horário no qual o pessoal que sai atrasado para o trabalho ou para os
estudos costuma correr acima do permitido na lei, um comportamento humano característico
crescente e muito prejudicial para outras pessoas não-humanas e humanas, que diariamente são
esmagados pela velocidade.
A gatinha com, aproximadamente, 2 a 3 meses, havia sido largada na rua de manhã e estava
próxima da calçada quando foi vista por vizinhas ao ser atropelada propositalmente, por um
agroboy, que corria veloz com sua imponente camionete, símbolo do poder e da riqueza advinda do
agronegócio. Quando cheguei ao local, me assustei ao vê-la jogada, desmaiada, dentro de uma caixa
de sapatos, já dada como morta. Não pensei duas vezes tomei-a em meu colo e seu sangue
misturou-se às cores de minha roupa. Iniciei um processo para reanimá-la, enquanto conversava
com ela, chamando-a de volta à vida. Não demorou muito ela voltou, já com as pequenas e
molengas unhas de nenê grudou em meu peito e gritou forte em uma visível luta pela vida. Levei a
Fênix na veterinária onde costumo levar toda a turma. A veterinária constatou que ela havia
quebrado a finíssima mandíbula. A cirurgia foi muito delicada, mas foi um sucesso. Porém, durante
algum tempo, ela sofreu convulsões fruto da pancada forte. Toda vez que isso acontecia, eu ficava
firme ao seu lado mesmo quando em prantos. Minha amiga Bel Toledo acompanhou estes dias
difíceis e, ao mesmo tempo, lindos, pois, ela virou um bebê de colo, teve que ficar durante seis
meses sendo amamentada na mini mamadeira, pois, seu osso facial ainda estava recalcificando. A
foto é a prova maior de sua total recuperação. Minha amada Fênix renasceu mais linda do que
nunca, jamais deixaria ela voltar a ficar tão vulnerável. Estamos juntas até hoje. Ágata a acolheu
com amor e ajudou na sua educação. Hoje ela é a mais amorosa e calma companhia da casa. Sempre
linda e companheira, adotou como filhos: o Zeca Pagodinho, a Cocadinha e a Morgana.
A Fênix me fez pensar na imobilidade e insensibilidade da mulher que a colocou na caixa,
apática e ávida por se livrar de um problema. O que nos remete à urgência na ação mais que na
teorização de gabinete e, além disso, precisamos mudar as palavras para mudar o mundo. A
importância da interseccionalidade: “mas, como toda a opressão está conectada?”, pergunta Tatiana.
Ser vegana/o e, num mesmo movimento praticar o machismo, o racismo, o classismo ou mesmo

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usar o veganismo para promover a intolerância religiosa, em um pais onde as religiões afro-
brasileiras lutam contra o assassinato em massa das crianças negras e periféricas, seria no mínimo
uma incoerência.
Por isso, desde a décima edição do Fazendo Gênero, nomeado “Desafios Atuais dos
feminismos”, realizado na Universidade Federal de Santa Catarina, entre os dias de 16 a 20 de
setembro de 2013, no qual coordenamos, eu e Aline Bonetti, um simpósio temático (ST) sobre a
temática: “Desafios atuais dos Ecofeminismos: aproximações entre o sexismo e o especismo”, foi
sendo colocado em pauta a importância em pensar/agir na interseccionalidade com as questões
étnico-raciais, sexuais, sociais, religiosas etc. Desde então, venho propondo um veganismo político.
Acredito que o projeto abolicionista, por hora, é um projeto herdeiro das utopias do século
XIX e do humanismo e existencialismo saudosista, um tanto apático, plantado mais na crítica do
que na criatividade, na teorização sobre a ética do que na ação direta e nas lutas e embates no
campo político, uma espécie de militância de escritório. Isso posto, é preciso nos perguntarmos:
vamos esperar o mundo mudar ou vamos agir em função de novas experiências/vivências e
causarmos micro revoluções? Rupturas diárias nos modos de ser e nas práticas sociais. Por isso,
prefiro adotar a palavra “veganismo político”, emprestado das feministas radicais dos anos 1970,
que estudei em minha tese de doutorado, na qual estive engajada em escrever sobre a emergência do
movimento lesbiano no Brasil e suas rupturas e continuidades com as afiliações feministas e
LGBTTs. Além disso, como estamos com uma literatura defasada, precisamos menos de ídolos e
mais de novas ideias, por isso, as traduções são importantíssimas para a produção nacional não ficar
estagnada ou restrita a uma elite intelectual que tem acesso a escolas de línguas.
Entendo que a palavra veganismo político pode ser um mecanismo que ajuda a escapar da
quantidade de objetos, medicamentos e produtos químicos, inclusive da ração que usamos para
alimentar cães, gatos e tantas outras espécies resgatadas e, ainda assim, pode politizar os discursos
sobre as relações multiespécies não as reduzindo a uma questão de prato ou de teoria consolidada
nos séculos passados e desconectadas dos acontecimentos recentes. A fabricação e o sangue dos
corpos mutilados de outras espécies se misturam, seja na feitura de produtos, seja nos testes de
novos produtos como, desde o início do século XX, Maria Lacerda de Moura já denunciava. Foi
muito importante para nós, veganistas e animalistas, termos um local de fala entre as feministas do
Fazendo Gênero (participamos com ST nas edições 10 e 11). Neste caminhar, nosso processo de
subjetivação abriu portas para a positividade, muito mais do que para a crítica e o foco em nossas

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diferenças, avançamos quando saímos da primeira edição e retornamos para a segunda com uma
produção escrita e conectada a outros países.
Tatiana nos diz algo importantíssimo para pensarmos este novo momento dos
artivismos/ativismos/poéticas veganas e animalistas: “Não precisamos ser iguais, para nossas lutas
fazerem sentido e se conectarem, não precisamos nos diferenciar a todo custo para nos tornarmos
mais humanos (por que isso importa tanto, afinal?). Como aprender a falar de nós sem silenciar
a/o/s outras/o/s?” (SANTOS, 2017, p. 43). O que ela propõe é acionarmos o trabalho em redes de
afetos, de empatia. Em um mundo que, claramente, vê, diante das telas mundializadas, o ressurgir
dos fascismos, por exemplo, na eleição de Trump nos EUA, na venda de armas e militarização das
sub- economias, no ódio às diferenças e às minorias, em um novo Golpe de Estado no Brasil, que
quer perpetrar regalias para uma minoria às custas da exploração de bilhares de outras vidas, as
vidas matáveis, devemos sair de nosso lugar de conforto. Em nossas discussões no ST em 2017,
Daniel Kirjner, disse algo com o qual eu e Guattari concordamos, é preciso menos ética de gabinete
e mais ação direta, precisamos quebrar cativeiros: “Fazer emergir outros mundos diferentes daquele
da pura informação abstrata; engendrar Universos de referência e Territórios existenciais, onde a
singularidade e a finitude sejam levadas em conta pela lógica multivalente das ecologias mentais e
pelo princípio de Eros de grupo da ecologia social e afrontar o face a face” (GUATTARI, 1990, p.
53).
Neste pensar ecosófico, vamos nos envolvendo naquilo que Félix Guattari (1990) propõe
como um reconectar-se com a vida planetária, que significa colocar a vida acima das coisas, do
consumismo, da captura dos desejos e dos afetos, dos grandes heróis e pioneiros inertes, das
vaidades intelectuais. O que o autor nos propõe é pensar estas três ecologias, ou seja, nossas
relações subjetivas, intersubjetivas e planetárias. Hoje, vivemos um tempo de grandes mobilidades
humanas forçadas pelas guerras e pela devastação das florestas e invasão do agronegócio,
precisamos avançar na empatia ou caminhamos rapidamente em direção ao colapso.
Ao pensar os modos de vida contemporâneos Guattari (1990), no livro “As Três Ecologias”,
diz que após a revolução da informática nem o trabalho humano nem o meio ambiente serão os
mesmos. Uma veloz mutação começou na modernidade, movidas por avanços tecnológicos-
científicos; a industrialização e a maquinização do mundo foram, em parte, responsáveis por
mudanças irreversíveis. Em muitos casos, graves acidentes ambientais, tais como aqueles
denunciados, em livros clássicos dos anos 1970. “Primavera Silenciosa” e “Antes que a natureza
Morra” foram os gritos de alerta para uma degradação contínua do meio ambiente. Os veganismos e

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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
os animalismos do século XXI, diferentes de suas origens, estão mais conectados aos
acontecimentos, mais descolonizados, com menos ídolos e modelos e mais ação política. A
zoopoética e a ecosofia são apenas conceitos provisórios, não se pretendem torná-los categorias
fixas ou salvadoras, servem para pensar um tempo onde o veganismo e o animalismo se expandem
e dialogam com artivismos e dissidências.
Enquanto eu acabo de escrever este texto, para reverberar o debate, mesmo tendo findado o
evento, para pensar questões importantes sobre a luta anti-especismo presente entre as feministas e
queers, a caçulinha, a Morgana, despenca do alto da estante de livro. Ela cai em pé, para, olha em
meus olhos como se dissesse que está tudo bem e segue correndo alegre e brincalhona me
lembrando que está na hora de parar de escrever e começar a me mover neste lugar multiespécie
repleto de vidas.

Referências

GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas: Papiros, 1990.


HARAWAY, Donna; AZERÊDO, Sandra. Companhias multiespécies nas naturezaculturas: uma
conversa entre Donna Haraway e Sandra Azerêdo. In: MACIEL, Maria Esther (Org.).
Pensar/escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica. Florianópolis: EdUFSC, 2011, p.
389-417.
SANTOS, Tatiana Nascimento. Mas como toda opressão está conectada? LESSA, Patrícia;
GALINDO, Dolores. Relações multiespécies em rede: feminismos, animalismos e veganismo.
Maringá: Eduem, 2017, p. 37-45.

SILVEIRA, Nise. Gatos: a emoção de lidar. Fotos de Sebastião Barbosa. Rio de Janeiro: Léo
Cristinao Editorial, 1998.

Zoopoetics and ecosophical thinking to narrate the lives of animals


Astract: In the meat and livestock market, livestock represents the incarceration, torture and death
of billions of lives of nonhuman people, representing the deforestation of forests, which in turn
represents the death of thousands of species. It is a result of the greed of the ruralists, partly
responsible for the expulsion of indigenous people from their lands, pollution of water, air and land,
water scarcity, food poisoning and global warming. It is not just a question of changing the food
that is at stake. Beyond food behavior are deforestation, deliberate fires, the extermination of lives
not captured by capitalist globalization. Zoopoetics, in this context, can be perceived as a sensible
and purposeful way of thinking about the lives of animals, acting on ecosphonic thinking and

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animalistic poetics, a perspective that helps us to articulate critical, geopolitical and sociocultural
issues. Our aim, therefore, is to articulate the two concepts with three animal-to-animal-memory-
stories in an animalistic feminist perspective. Human and nonhuman people construct narratives of
life that can be perceived as poetic.
Keywords: Zoopoetics. Ecosophy. Animalistic feminism.

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