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DA REJEIÇÃO DE UM SIGNIFICANTE PRIMORDIAL

Temos abordado o problema das psicoses pela questão das estruturas freudianas.

A estrutura aparece no que se pode chamar, no sentido próprio, o fenômeno. Mas a


confiança que depositamos na análise do fenômeno é inteiramente distinta daquela que
lhe deposita o ponto de vista fenomenológico, que se aplica em ver nele o que subsiste
de realidade em si.

Se a psicanálise habita a linguagem, ela não poderia sem alterar-se desconhecê-la em


seu discurso. É aí nesse ponto que estamos a respeito das psicoses. A promoção, a
valorização na psicose dos fenômenos de linguagem é para nós o mais fecundo dos
ensinamentos.

A questão do ego é manifestamente primordial nas psicoses, já que o ego, em sua


função de relação com o mundo exterior, é o que aí foi posto fora de ação.

Retomando o texto de Freud sobre o Narcisismo para compreendermos melhor esta


questão, o ego seria a instância que regularia as relações do sujeito com mundo a sua
volta, fato que só poderia ocorrer após o processo do narcisismo.

O Narcisismo seria esta etapa do desenvolvimento sexual do sujeito situada entre o


auto-erotismo, momento marcado pelo investimento libidinal nas zonas erógenas
corporais e um momento posterior no qual a libido seria investida em objetos do mundo
exterior. O que marcaria justamente essa passagem seria a constituição de um eu que
permitiria ao sujeito sair da fragmentação corporal para a construção de uma unidade
corporal que lhe confere uma identidade.
O ego também tem a função de defender o aparelho psíquico do sujeito, reprimindo
conteúdos que poderiam gerar desprazer e garantindo uma certa organização da
economia libidinal.
A defesa estaria na origem da paranóia. O ego que representa o mundo exterior das mais
diversas maneiras, faria, no caso da psicose, surgir do mundo exterior algum sinal,
destinado a prevenir, sob a forma da alucinação.
O ego para Lacan assume uma concepção diferente, já que segundo o mesmo, um ego
nunca está totalmente só. Ele comporta sempre um estranho gêmeo, o eu ideal... A
fenomenologia mais aparente da psicose nos indica que esse eu ideal fala. É uma
fantasia, mas ao contrário da fantasia, ou do fantasma, que mostramos com clareza nos
fenômenos da neurose, é uma fantasia que fala, ou mais exatamente, é uma fantasia
falada. É nisso que esse personagem que faz eco aos pensamentos do sujeito intervém, o
vigia, designa gradativamente a sequência de suas ações, as comanda.
Mas quem fala no eu?
É o outro cujo reflexo eu lhe expus na dialética do narcisismo, no transitivismo infantil,
o outro que se concebe tão bem pela ação captante da imagem total do semblante? Seria
esse outro imaginário, esse outro que é para nós muito semelhante na medida em que
nos dá a nossa própria imagem, em que nos fornece a projeção da nossa totalidade, é ele
quem fala?
Esse é outro imaginário implicado no mecanismo da projeção. A projeção se articulação
ao transitivismo imaginário que faz com que, no momento em que a criança bateu no
seu semelhante, ela diga – Ele me bateu, porque para ela é exatamente a mesma coisa.
Isso define a relação imaginária.. Há nesse sentido um ciúme por projeção, que projeta
sobre o outro a tendência a infidelidade do sujeito, ou as acusações de infidelidade que
ele tem de fazer pesar sobre si mesmo.
Na ordem do imaginário a alienação é constituinte. A alienação é o imaginário enquanto
tal. Não há nada a esperar do modo de abordagem da psicose no plano do imaginário,
pois que o mecanismo imaginário é o que dá a sua forma à alienação psicótica, mas não
a sua dinâmica.
...temos a noção de que além do outro com a minúsculo do imaginário, devemos admitir
a existência de um Outro.
Essas premissas por si só põem em questão a teoria da cura analítica que a reduz a uma
relação a dois. Ela é logo captada na relação do eu do sujeito com o eu ideal, do eu com
o outro, um outro cuja qualidade pode variar sem dúvida, mas que será sempre o outro
sozinho e único da relação imaginária.
Isso levaria a uma espécie de incorporação imaginária que resultaria em uma
incorporação do discurso do analista. Ou seja, o contrário de uma análise.
A resposta, seguindo Lacan, está no entendimento sobre como se dá a relação do sujeito
com a realidade. Do Innenwelt com o Umwelt.
Tudo deixa transparecer que tudo o que nos mostra nossa experiência analítica se
satisfaz em ser disposto nas três ordens de relações, a questão sendo a de saber a que
momento cada uma dessas relações se estabelece. (O simbólico, o imaginário e o real).
A realidade é marcada de saída pela aniquilação simbólica.
Há a necessidade estrutural de pôr uma etapa primitiva em que aparecem no mundo os
significantes como tais.
Antes que a criança aprenda a articular a linguagem surgem significantes que já são da
ordem simbólica. Quando falo de uma aparição primitiva do significante, é alguma
coisa que implica a linguagem. O dia e a noite são significantes que se apresentam
precocemente para o bebê, conotando uma presença e uma ausência, sobre a qual Freud
faz girar toda a sua noção do além do princípio do prazer.
O dia é um ser distinto de todos os objetos que ele contém , ele é mais pesado e presente
do que todos eles, e é impossível pensar como o simples retorno de uma experiência.
Basta evocar a prevalência, nos primeiros meses, de um ritmo de sono, para que
tenhamos boas razões para pensar que isso não é uma apreensão empírica – é assim que
ilustro as primeiras aniquilações simbólicas – o ser humano se despregue do dia.
O ser humano não está, como tudo nos leva a pensar que o animal está, simplesmente
imerso em um fenômeno de alternância do dia e da noite. O ser humano põe o dia como
tal... contra um fundo que não é um fundo de noite concreta, mas a ausência de dia. O
dia e a noite são códigos significantes, e não experiências.
É preciso buscar a paz do anoitecer.
Nesse campo de articulação simbólica, se produz a Verwerfung. Sobre ela Freud diz que
o sujeito não queria nada a saber da castração, mesmo no sentido do recalque. No
sentido do recalque, sabe-se ainda algo daquilo de que nem mesmo não se quer, de uma
certa maneira, nada saber, e cabe à análise nos ter mostrado que se sabe isso muitíssimo
bem. Se há coisas de que o paciente não quer nada saber, mesmo no sentido do
recalque, isso supõe um outro mecanismo.
Do que se trata a Verwerfung? Trata-se da rejeição de um significante primordial em
trevas exteriores, significante que faltará desde então nesse nível. Eis o mecanismo
fundamental que suponho na base da paranóia. Trata-se de um processo primordial de
exclusão de um dentro primitivo, que não é o dentro do corpo, mas aquele de um
primeiro corpo de significante.
É no interior desse corpo primordial que Freud supõe se constituir o mundo da
realidade, já estruturado em termos significantes. A primeira apreensão da realidade
pelo sujeito é o julgamento da existência, que consiste em dizer – Isso não é meu sonho
ou minha alucinação ou minha representação, mas um objeto.
Trata-se de um pôr a prova do exterior pelo interior, da constituição da realidade do
sujeito na redescoberta do objeto. O objeto é reencontrado numa busca, aliás não se
encontra jamais o mesmo objeto.
Eis o que é suposto por essa singular anterioridade que, na Verneinung, Freud dá ao que
ele explica analogicamente como um julgamento de atribuição, em relação ao
julgamento da existência.
Temos aí um mito originário do interno e do externo, que Freud lança mão para situá-lo
como prévio à função do julgamento da existência. Para que depois possa ser
questionado em sua existência, o objeto necessita ser inscrito como significante,
numa behajung originária. É preciso que ele seja afirmado primordialmente numa
realidade significante para que possa ser posto à prova em sua realidade de existência.
Ou seja, ele deve existir necessariamente como significante para o sujeito. Lembro que
existir como significante - seria mais rigoroso dizer inscrever-se como significante -
pressupõe que tenha sumido como coisa - das Ding.
Ao descrever a "experiência de satisfação alucinatória", Freud nos fala de uma inscrição
mnêmica originária do sujeito, que produziria um primeiro traço para onde o sujeito
retornaria em busca de encontrá-lo. A experiência de satisfação alucinatória seria, pois,
um reinvestimento desse traço perceptual, movido pelo princípio do prazer. O caráter
alucinatório dessa experiência tem que ser vencido pelo sujeito de forma que possa
fazer um movimento em busca de um objeto no mundo externo. É necessário, pois, um
distanciamento dessa realização alucinatória, função essa atribuída ao princípio de
realidade. O abandono dessa experiência acompanharia o fracasso da satisfação
alucinatória. Paulatinamente, o sujeito iria abdicando dessa experiência, de forma a
encontrar um objeto no mundo externo que possa dispor de alguma satisfação. Se não
faz isso, permanece numa vivência alucinatória com o objeto, por não tê-lo perdido. Na
verdade, temos aí uma dupla perda, pois quando o objeto se inscreve como traço já está
automaticamente perdido. É necessária uma segunda perda do objeto enquanto traço
perceptual para que daí se faça um movimento em busca do objeto externo.
O que Freud descreve aí é uma experiência mítica de emergência do desejo a partir da
inscrição significante. É o movimento em que o objeto se perde como coisa - das Ding -
marcando as relações do sujeito, daí por diante, apenas com seus traços.
Na Carta 52 Freud retoma o circuito do aparelho psíquico. Trata-se do aparelho psíquico
formulado a partir da observação de seus doentes, como observa Lacan, já que na sua
clínica Freud se deparava com distúrbios de memória.
A memória freudiana não se situa numa espécie de contínuo da reação à realidade
considerada como fonte de excitação. Freud fala de desordem, restrição, gravação,
enfim, de que a memória não é simples. Ela é gravada de diversas maneiras.
O fenômeno da consciência e o fenômeno da memória se excluem e isso já pressupõe
um apriori significante de seu pensamento.
No início do circuito da apreensão psíquica, há a percepção, essa percepção implica a
consciência.
O bloco mágico é feito de uma substância cor de ardósia sobre a qual há uma lâmina de
acetato. Vocês escrevem no acetato e quando vocês o levantam, não há mais nada, ele
está sempre virgem. Em compensação, tudo o que vocês escreveram em cima reaparece
como sobrecarga na substância ligeiramente aderente, que permitiu a inscrição do que
vocês escrevem pelo fato de que a ponta do seu lápis faz o acetato colar com esse fundo
que aparece momentaneamente escurecendo-o de leve. Aí está metáfora fundamental
por onde Freud explica o que concebe o mecanismo da percepção em suas relações com
a memória.
Nessa memória há duas zonas, a do inconsciente e a do pré-consciente, e depois do pré-
consciente vê-se surgir uma consciência acabada que não poderia ser senão articulada.
O ego se situaria nessa zona pré-cs – cs.
Esse aparelho funciona como sistema de defesa, trabalhando para que as experiências
desprazerosas não sejam lembradas. Mas em alguns momentos surgem falhas e
construímos defesas patológicas. O que dá a defesa seu caráter patológico é que, em
torno da famosa regressão afetiva, manifesta a regressão tópica. Uma defesa patológica,
quando ela se manifesta de maneira indominável, provoca então ressonâncias
injustificáveis, porque o que vale em um sistema não vale em outro. É dessa confusão
de mecanismos que resulta a desordem. A memória é construída retroativamente.
(Emma)
Seguindo Lacan, na carta 52, Freud admite que a Verneinung primordial comporta uma
primeira sinalização, Wahrnehmungzeichen. Ele admite a existência desse campo que
chamo do significante primordial e tudo o que diz a seguir sobre a dinâmica das três
grandes neuropsicoses às quais ele se prende, histeria, neurose obsessiva, paranóia,
supões a existência desse estado primordial que é o lugar eleito do que chamo a
Verwerfung.
W (Wahrnehmungen (percepções)] são os neurônios em que se originam as percepções,
às quais a consciência se liga, mas que, nelas mesmas, não conservam nenhum traço do
que aconteceu. Pois a consciência e a memória são mutuamente exclusivas.
Wz [Wahrnehmungszeichen (indicação da percepção)] é o primeiro registro das
percepções; é praticamente incapaz de assomar à consciência e se dispõe conforme as
associações por simultaneidade.
Ub (Unbewusstsein) [inconsciência] é o segundo registro, disposto de acordo com
outrasrelações (talvez causais). Os traços Ub talvez correspondam a lembranças
conceituais; igualmente sem acesso à consciência.
Vb (Vorbewusstsein) [pré-consciência) é a terceira transcrição, ligada às representações
verbais e correspondendo ao nosso ego reconhecido como tal. As catexias provenientes
de Vb tornam-se conscientes de acordo com determinadas regras; essa consciência
secundária do pensamento é posterior no tempo e provavelmente se liga à ativação
alucinatória das representações verbais, de modo que os neurônios da consciência
seriam também neurônios da percepção e, em si mesmos, destituídos de memória.
É preciso supor uma organização anterior, pelo menos parcial, de linguagem, para que a
memória e historicização possam funcionar. Os fenômenos de memória pelos quais
Freud se interessa sempre são fenômenos de linguagem..é preciso ter o material
significante para fazer significar seja o que for. No Homem dos Lobos, a impressão
primitiva da famosa cena primordial permaneceu lá durante anos, não servindo para
nada, e no entanto já significante, antes de ter o direito de exprimir seu efeito na história
do sujeito. O significante é, pois, dado primitivamente, mas ele não é nada enquanto o
sujeito não o faz entrar na sua história, que toma sua importância entre um ano e meio e
quatro anos e meio. O desejo sexual é com efeito o que serve ao homem para se
historicizar, na medida em que é nesse nível que se introduz pela primeira vez a lei.
O delírio deles, os psicóticos o amam como amam a si mesmos. Dizendo isso, Freud ,
que não fez ainda o seu artigo sobre o narcisismo, acrescenta que é aí que jaz o mistério
do que se trata. Qual será a relação do sujeito com o significante que distingue os
próprios fenômenos da psicose? O que faz com que o sujeito caia totalmente nessa
problemática?

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