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Dra. Ana Gaudêncio Dr.

Fernando Pinto Bronze,


Dra. Mara Lopes Lições de Introdução ao Direito

[TÍTULO DO DOCUMENTO]
INTRODUÇÃO AO
DIREITO I

Diana Esteves
1º ANO 1º Semestre
Índice
Objetivos: .............................................................................................................................................. 2
1. Índole da Introdução ao Direito: ........................................................................................ 2
2. Confronto das várias perspetivas e rejeição das mesmas; adoção da
perspetiva normativa .................................................................................................................... 2
3. Adoção da perspetiva normativa dirigida ao Quid Iuris. O Direito enquanto
quid ius e não quid iuris ................................................................................................................ 3
Análise da Ordem Jurídica: ............................................................................................................. 4
O que é a ordem jurídica? ............................................................................................................ 4
Estrutura: .......................................................................................................................................... 4
1ª Linha - Linha de Base .................................................................................................................. 5
2ª Linha- Linha de Ascendente ....................................................................................................... 6
3ª Linha- Linha Descendente .......................................................................................................... 6
Síntese da estrutura da ordem jurídica: ......................................................................................... 8
Funções ............................................................................................................................................. 9
Função primária/prescritiva ........................................................................................................... 9
Função Secundária/organizatória................................................................................................. 12
Notas caracterizadoras de uma Ordem Jurídica em geral ............................................. 13
A ordem como cosmos natural: .................................................................................................... 13
O caráter comunitário ................................................................................................................... 14
Objetividade .................................................................................................................................. 14
Projeção de autoridade ................................................................................................................. 15
Os efeitos imediatos de uma qualquer ordem jurídica ..................................................... 15
A racionalização............................................................................................................................. 15
A institucionalização ..................................................................................................................... 15
A segurança/previsibilidade ......................................................................................................... 15
A liberdade enquanto responsabilidade e não como arbítrio..................................................... 16
A Paz como antecipação regulativa (a Paz e a Justiça) ................................................................ 16
O Direito é o fundamento dos nossos pensamentos

Objetivos:
1. Índole da Introdução ao Direito;
2. Confronto das várias perspetivas (epistemológica, filosófica e
sociológica) e rejeição das mesmas; adoção da perspetiva normativa;
3. Adoção da perspetiva normativa dirigida ao quid iuris. O Direito
enquanto quid ius e não quid iuris;

1. Índole da Introdução ao Direito:


Procuremos entender o Direito como dimensão normativa da nossa prática – este é o
fundamento e o critério de muitos dos nossos comportamentos, pois avalia a
validade/invalidade, licitude/ilicitude de muitas das ações através das quais interagimos
comunitariamente.

Deste modo, o Direito é uma norma de dever ser e, por isso, padrão construtivo da
própria ação e das relações que estabelecemos uns com os outros.

Esta nossa perspetiva (normativa) é a única que se adequa à específica tarefa do jurista,
pois este é aquele que assume a intenção nuclear do Direito (normatizar) para o projetar
regulativamente na realidade social.

Sumariamente, o direito é fundamento (o que deves fazer) e critério (o que acontece se


não o cumprir/ se o cumprir) dos nossos comportamentos.

2. Confronto das várias perspetivas e rejeição das mesmas; adoção


da perspetiva normativa
Comecemos por referir que é possível encontrar várias perspetivas diferentes na
abordagem desta disciplina, entre as quais:

 Perspetiva Sociológica: já que o Direito é inquestionavelmente um fenómeno


social;
 Perspetiva Filosófica: pois se o Direito nos dirige deveres e nos imputa
responsabilidades podemos questionarmo-nos com que fundamento o faz
 Perspetiva Epistemológica: visto que o Direito é um objeto que aí está, aberto ao
nosso conhecimento
 Perspetiva Normativa: a que o jurista deve adotar; olha para o Direito de uma
forma interna, como um dever ser
Ainda no quadro de uma perspetiva normativa, podemos afirmar que a atitude do
jurista perante o direito pode ser:

Uma atitude técnico-profissional: na qual o jurista pretenderia conhecer as leis


para as aplicar às controvérsias que surgissem no grande mercado de interesses
em que se transformaria o mundo, sem qualquer compromisso cultural com o
direito e exercendo um ofício puramente técnico, pelo que só deveria atender
aos meios sem ter que problematizar os fins, que lhe seriam pré-impostos por uma
outra instância; nesta primeira hipótese, o Direito seria dado ao jurista, que o
mobilizaria como objeto.
Uma atitude criticamente comprometida com os objetivos práticos do Direito:
nesta, o Direito é uma tarefa que o toca, procura encontrar a sua
intencionalidade prático-normativa.

Por qual destas posições optar?

Ambas

Percebemos que o jurista deve compreender a especificidade da tarefa e o sentido dos


problemas culturais que o direito lhe coloca, envolvendo-se neles; devendo ainda
preocupar-se com as questões éticas, não podendo deixar de atender da concreta
determinação das ações axiologicamente louváveis, como das pressuponentes (questões
prévias) e constituendas questões de saber o que é o “bem”, o “dever ser”. O jurista
também só poderá ajuizar do mérito jurídico dos problemas concretos com que
institucionalmente se veja confrontado se tiver pré-compreendido o particular sentido das
devenientes (ininterruptas) exigências que perpassam (percorrem) o Direito.

3. Adoção da perspetiva normativa dirigida ao Quid Iuris. O Direito


enquanto quid ius e não quid iuris

O direito, normalmente perspetivado, pode ser considerado de dois modos diferentes:

a) O direito aparece como critério de solução, em questões de direito, ou de quid


iuris (em que se pergunta: o que de direito se pode dizer neste caso?); nestes
casos, o direito é pressuposto, não é ele próprio interrogado; o direito é olhado
como um conjunto de soluções.
b) Se interrogarmos e questionarmos o próprio Direito (interrogação do próprio
Direito), como um autêntico problema do quid ius (em que se pergunta: o que é
o direito? O que é isso a que chamamos direito?), isto porque o direito para ser
aplicado necessita sempre de um mediador e vai-se constituindo à medida que
se realiza. Esta é a questão que o jurista privilegia – pois é aquela mais importante
e fecunda para o estudo de Introdução ao Direito, e porque nunca desonerou o
jurista do esclarecimento radical de direito (quid ius), visto que o direito não é
cognoscível, ou seja, nunca chegaremos a uma conclusão sobre o quid ius.
Análise da Ordem Jurídica:
 O que é a ordem jurídica?
 Estrutura
 Funções
 Notas caracterizadoras de uma ordem jurídica em geral
 Os efeitos jurídicos de uma qualquer ordem jurídica

O que é a ordem jurídica?


O Homem vive em sociedade. Todas as relações sociais são regulamentadas por um
estatuto de Direito, que define as faculdades, as responsabilidades, os deveres e os ónus
(encargos) de cada um dos intervenientes. Por isso é que o direito nos toca extensa e
profundamente. A ordem jurídica é artificia, algo criado pelo homem para se poder
relacionar com os outros pacificamente em sociedade, que estabelece regras condições e
limites.

O domínio do Direito é o problema da delimitação e compossibilitação (tornar possível)


das nossas relações no horizonte do mundo que pretendemos compartilhar; o Direito regula
o estatuto das nossas relações sociais.

Antes de analisar a ordem jurídica, importa precisar por que é que ela é necessária: era
crucial a instituição de uma regra suscetível de ordenar a relação de cada um com os outros.

E falamos de Ordem jurídica porque o Direito apresenta-se-nos como um cosmos e não


como um caos; a Ordem Jurídica é uma criação cultural com uma certa racionalidade; e a
Ordem que o Direito constitui é a ordem da juridicidade (legalidade, justiça): esta é a síntese
de uma estrutura formal e de um sistema com um determinado conteúdo material.

Estrutura:

Para caracterizarmos estas linhas devemos atender às questões:

Quais os sujeitos intervenientes? Quais são os valores que abrange?


Quais as funções de direito? Quais as ideias de justiça?
Qual o ramo de direito?
1ª Linha - Linha de Base
A linha das relações entre sujeitos particulares (ordo partium ad partes): valores da liberdade e da
igualdade; justiça comutativa/troca; direito privado.

 Quais os sujeitos intervenientes?

Nesta linha estão as relações juridicamente relevantes que estabelecemos uns com os
outros enquanto sujeitos de direito privado, em que todos pretendemos atuar a nossa
autonomia para realizar interesses; somos particulares perante particulares e relacionamo-
nos em termos de paridade, ou seja, ambos os intervenientes estão em pé de igualdade.

A sociedade aqui não é sujeito da relação, é apenas sua condição – os particulares (os
verdadeiros sujeitos intervenientes na primeira linha) vivem em sociedade, mas esta não se
constitui como sujeito nesta linha.

 Quais as funções de direito?

Aqui é a Ordem Jurídica quem define e delimita as nossas autonomias, permitindo a


realização dos nossos interesses (que, por vezes, nestas relações, são conflituantes).

Assim, a função que o Direito desempenha é a de garantir a atuação das autonomias


reciprocamente delimitadas e a de fornecer um critério de resolução dos conflitos que
possam surgir.

 Quais são os valores que abrange?

Nesta linha, avultam essencialmente dois valores:

Liberdade individual e relativa: Igualdade:

atendendo que as Desde que se verifiquem


centrada
autonomias, que se todos os respetivos
em cada
um relacionam, se pressupostos, todos podem
relativizam mutuamente realizar os seus interesses

 Quais as ideias de justiça?

Esta primeira linha relaciona-se com um certo


tipo de justiça: justiça comutativa/troca. Esta
significa “a medida do homem para o homem”,
a composição válida das nossas relações, ou o
modo como vemos a nossa situação relativa por
mediação de certos valores ou referências com
os quais nos identificamos e que, por isso,
procuramos regulativamente projetar na ordem
comunitária entretecida (intercalada) pelas
relações sociais. A justiça traduz “o que devemos
aos outros e os outros nos devem a nós para
podermos ser, cada um de nós e todos,
verdadeiramente pessoas”, pelo que é a
chamada de todos à expressão normativa do
axiológico-intencional (axiológico: tudo aquilo a
que se refere a um conceito de valor) comum
comunitário, precisamente com a justiça da
troca comutativa.

 Qual o ramo de direito?


É nesta linha o domínio do Direito Privado, pois este versa sobre a liberdade (autonomia) e a
igualdade (paridade) numa intenção horizontal à justiça comutativa.

2ª Linha- Linha de Ascendente


A linha das relações entre os cidadãos e a sociedade (ordi partium ad totum): valores da liberdade e
da responsabilidade (comunitária); funções de garantia individual, de tutela social e de
responsabilização comunitária; justiça protetiva; direito público;

 Quais os sujeitos intervenientes?

Nós não somos só apenas indivíduos, também somos socii, ou seja, indivíduos da sociedade.

Nesta linha estão as relações que se estabelecem entre cada um e a sociedade tomada
no seu todo; a Sociedade já não está apenas como fundo, emergindo para primeiro plano
como sujeito das relações que estabelecemos com ela;

Com efeito, a Sociedade tem ela própria valores e interesses a garantir, que nos dirige e
cujo cumprimento nos impõe; se violarmos tais interesses e bens jurídicos fundamentais, a
sociedade pede-nos responsabilidades.

Nesta linha também os indivíduos dirigem à sociedade exigências que derivam da


afirmação da sua autonomia.

Nas relações que estabelecemos com a sociedade estamos todos diante dela e não
perante os outros e, por isso, a segunda linha regulamenta as relações das partes com o todo.

 Quais as funções de direito?

Nesta segunda linha o Direito visa regulamentar as exigências que a Sociedade nos
dirige, mas também institucionalizar, legitimar e limitar o poder do Estado, pois também nós
temos interesses em reivindicar, como é o caso dos Direitos Fundamentais. Ou seja, a
sociedade pode exigir-nos prestações, mas não arbitrariamente. Assim, o direito pretende
tutelar os nossos direitos e garantir que os outros me deixem exercer os meus direitos, sendo
que o Estado não pode utilizar um poder arbitrário.

 Quais são os valores que abrange?

Encontramos, nesta linha, acima de todos os valores, o de salvaguarda da nossa


autonomia em momentos fundamentais como são todos aqueles em que estejam em causa
a liberdade pessoal singularmente enucleada e a responsabilidade social de cada um.

 Quais as ideias de justiça?

Quanto ao tipo particular de justiça, estamos perante a justiça geral, que se traduz em
tudo aquilo que em nome de todos se pode exigir a cada um ou tudo aquilo que cada um
pode exigir ao todo; estamos também e ainda perante a justiça protetiva, pois o Direito é
aqui chamado a institucionalizar formalmente, a limitar e a controlar o poder e,
consequentemente a garantir a situação dos particulares que com ele se confrontam.

 Qual o ramo de direito?

Nesta linha encontramos ramos do Direito como o Direito Processual, Constitucional,


Penal, Fiscal, Militar.

3ª Linha- Linha Descendente


A linha das relações entre a sociedade os cidadãos- destinatários (ordo totius ad partes): valores de
liberdade e da solidariedade; justiça distributiva e justiça corretiva; direito público

 Quais os sujeitos intervenientes?


A sociedade/ Estado dirige-se a nós com um programa estratégico, tendo-nos como seus
destinatários (pogramas políticos com medidas financeiras económicas).

Esta terceira linha vem fechar o triângulo a que aludimos: nesta, a Sociedade é
considerada como uma entidade atuante, dinâmica, que tem um programa estratégico
que quer atuar para atingir os objetivos a que se propõe.

Estes objetivos podem ser-nos favoráveis, mas também podem visar o benefício da
própria sociedade (como é o caso do direito da previdência e da assistência social, em que
aparecemos como beneficiários, mas também temos que contribuir para determinados
fundos socias).

 Quais as funções de direito?

Por isso, é se que se afirma que o Direito aparece aqui como um estatuto de atuação,
mas também de limitação. Por exemplo: quando se elabora um regulamento, prosseguem-
se sempre duas finalidades: racionalizar a ação e limitar a própria ação;

Funções do Direito na
3º Linha

Estatuto de limitação:
Estatuto de atuação:
-limita a nossa
-regula a ação
atuação

 Quais são os valores que abrange?

Os valores que aqui se relevam são o da liberdade pessoal comunitariamente radicada e


o da solidariedade.

A igualdade não é o meio, mas o critério – vamos tentar aplicar medidas por vezes
desiguais para atingir o objetivo: igualdade total.

Note-se que este valor da solidariedade impõe frequentemente uma atuação em termos
de desigualdade para se atingir, no fim, a igualdade (ou melhor, a diminuição das
desigualdades); digamos que nesta sede, a igualdade não aparece aqui como critério, mas
como objetivo, como que seja, o “ponto de chegada” e não o “ponto de partida” –
pretende-se alcançar uma aproximação à igualdade pelo caminho da desigualdade.

Igualdade vertical: Igualdade horizontal:

Tratar diferentemente situações desiguais/ Tratar igualmente situações iguais/ aplicar


aplicar medidas desiguais a situações desiguais medidas iguais a situações iguais

 Quais as ideias de justiça?

A modalidade de justiça que se afirma nesta linha é a justiça distributiva que impõe uma
atuação de recolha e redistribuição de meios, e uma justiça corretiva.

 Qual o ramo de direito?

Nesta linha cabe-nos referir o Direito Público em geral, nomeadamente o Direito


Constitucional, o Direito administrativo, O direito de previdência social – benefícios (pensões,
baixas…); os indivíduos são também beneficiários do estado de direito social –, O Direito
Público da economia, o Direito do Ambiente.

Nota importante: atendendo aos vários tipos de justiça abordados em cada uma das linhas da
estrutura da Ordem Jurídica, podemos afirmar que a justiça é uma categoria complexa,
constituída por várias dimensões que se precipitam noutros tantos princípios, como sejam a
igualdade, o da oportunidade e adequação social, pelo da segurança e paz jurídicas.

Síntese da estrutura da ordem jurídica:


A estrutura formal da ordem jurídica encerra manifestações de determinadas dimensões
axiológicas, o que não é de estranhar, visto que não só a forma e o conteúdo se implicam
reciprocamente como também é possível constatar que esses valores são constitutivos e
fundamentantes do Direito.

As três linhas a que aludimos delimitam o espaço triangular da OJ: na sua linha de base,
estamos uns perante os outros, como pares; numa segunda linha, ascendente, vimo-nos
perante a sociedade; e depois, numa terceira fase, é ela numa linha descendente, a atuar

Linha de Base- 1ª Linha Ascendente - 2ª Linha Descendente-


Linha Linha 3ª Linha
Sociedade e sujeitos
particulares (cidadãos-
Sujeitos particulares destinatários) – ordo
(cidadãos) e a sociedade totius ad partes. A
Sujeitos particulares-
Sujeitos (como representante do coletividade social
ordo partium ad
intervenientes Estado) – ordo partium ad dirige-se a um ou mais
partes (particulares
totum. Os particulares membros da sociedade
enquanto sujeitos do
dirigem-se à comunidade (aqui o indivíduo é
direito privado)
social. tratado como um mero
membro da sociedade)
Garantir a atuação
das autonomias
reciprocamente
delimitadas-delimitar Garantia individual- dos Fundar/legitimar,
a esfera de direitos fundamentais regular e limitar o
Funções do liberdade; Tutela Social- dos bens global projeto cultural,
Direito Fornecer um critério jurídicos político, social e
de resolução dos económico da
conflitos que sociedade
possam surgir
Direito Privado- direito Direito Público: direito Direito Público: direito
Ramo do civil, direito do penal, direito fiscal, direito constitucional, direito
Direito trabalho e direito constitucional, direito administrativo, direito
comercial militar, direito processual social
Igualdade material
Liberdade individual
Liberdade (autonomia (como fim)
Valores que (autonomia) e
individual) Responsabilidade
abrange relativa
Responsabilidade solidária
Igualdade
comunitária (solidariedade
Modelo de Justiça Justiça Geral Justiça Distributiva
Justiça comutativa/troca Justiça Protetiva Justiça Corretiva
sobre nós o respetivo programa social (seja a seu favor e/ou em nosso benefício).
Funções
A título preambular diremos serem duas as funções da ordem jurídica:

A função primária ou prescritiva, em que a Ordem Jurídica prescreve critérios à


ação, dirigindo-nos esses modelos de comportamento; toma os sujeitos jurídicos
como destinatários, definindo prescritivamente direitos e deveres, faculdades e
responsabilidades e valorando juridicamente condutas;
A função secundária ou organizatória, na qual a Ordem Jurídica se volta sobre si
mesma para se auto-ordenar.

Função primária/prescritiva
 O direito como princípio de ação e critério de sanção

Nesta função, a Ordem Jurídica aparece-nos como princípio de ação e como critério
de sanção:

Como princípio de ação, a Ordem Jurídica define prescritivamente os nossos direitos


subjetivos e as nossas responsabilidades e valora os nossos comportamentos como lícitos os
ilícitos; fixa-nos direitos, responsabilidades, prerrogativas, etc. Significa isto que a Ordem
Jurídica visa influenciar, através de critérios, a nossa ação, levando-nos a proceder
licitamente, validamente. Deste modo, podemos afirmar que como principio de ação, a
Ordem Jurídica estabelece o nosso estatuto social.

Mas a Ordem Jurídica não se fica por aqui, não se limita a comunicar que os nossos
direitos são “estes” e que as nossas responsabilidades são aquelas… seria insuficiente; se
assim fosse, estaríamos diante uma pura ordem moral.

A relevância de uma normatividade não se pode limitar a este plano de consciência


(pois o que pode ser muito importante para certos homens dificilmente o será para todos);
deverá atender às relações sociais.

No campo das relações sociais, se alguém interferir no modo como o outro pode fruir o
mundo comum, cometendo violações à pré-instituída ordem de repartição do mundo, será
por esse facto responsabilizado – a Ordem Jurídica se, por um lado, prescreve critérios de
fruição do mundo (sendo, portanto, princípio de ação), por outro lado, concorre também
para que esses critérios se realizem praticamente, apresentando-se igualmente como
critério de sanção;

A sanção é todo o meio que a Ordem Jurídica mobiliza para tornar eficazes as suas
prescrições; sancionar significa efetivar, consagrar, tornar sérios, dignos de respeito
imperativos jurídicos.

 A ideia de coercibilidade
Direito VS Moral
Existem vários critérios para distinguir o direito da moral:

1) Critério do Mínimo Ético (âmbito ou extensão): De acordo com este critério o


direito abrange apenas as regras morais cuja observância se revela indispensável para
garantir a paz, a justiça e a liberdade no plano social, ou seja, para preservar aquele mínimo
denominador comum das diferentes construções éticas socialmente vigentes.
Crítica: Contudo, se assim fosse, o direito e a moral seriam materialmente idênticos e
distinguiam-se apenas no que respeita à sua extensão, na medida em que o direito apenas
coincidia e sancionaria o núcleo essencial dos valores éticos. O direito identificaria a zona de
interseção entre as várias conceções éticas socialmente vigentes, que deste modo
corresponderia à zona com maior densidade ética resultante da sobreposição das várias
perspetivas. Os bens mais importantes seriam os mais consensuais em termos éticos. A moral é
mais ampla, o direito vai apenas sancionar as condutas que são mais importantes.
Conceções
éticas (o
mínimo ético)
valores éticos mais
valiosos

direito (preocupa-
se com os valores
mais importantes)

Moral
Realidade:

moral direito

2) Critério da autonomia (Fonte ou fundamento de motivação/determinação):


de acordo com este critério, a moral é autónoma, porque os seus preceitos têm por fonte e
juiz o próprio cumprimento da consciência individual, ao passo que o direito traduz sempre
uma forma de heteronomia (antónimo de autonomia), pois implica uma vinculação e
sujeição a regras alheias ou externas.
Crítica: Contudo, não podemos esquecer que a autonomia consiste numa adesão e
cumprimento dos imperativos da razão, logo o direito não pode existir sem uma generalizada
aceitação e essencial adesão das pessoas à ordem jurídica. Logo, não podemos esquecer
também que as próprias regras morais também adquirem uma certa heteronomia.
3) Critério da exterioridade ou da perspetiva (perspetiva que assumem): De
acordo com este critério, a moral incide sobre o lado interno dos atos praticados
(interioridade) exigindo uma adesão interior aos imperativos da consciência ética (como
motivação dos comportamentos), e o direito limitava-se a atender aos aspetos exteriores da
conduta, contentando-se com a mera observância externa dos seus preceitos.
Crítica: Contra este critério, impõe-se referir que o direito não desconsidera a intenção
com que os sujeitos agem e, por outro lado, também a moral atende à manifestação externa
dos comportamentos dos sujeitos.
4) Critério do fim ou da teleologia (fim que visam alcançar): De acordo com este
critério, o direito tem por objetivo a realização da justiça e a instauração da paz social (fim
social), enquanto que a moral visa orientar para o fim supremo da sua plena realização,
ajuizando da conformidade dos atos pessoais com esse modelo de perfeição (fim pessoal).
Crítica: Contra este critério, podemos referir que apesar de tudo a moral também se
interessa pelo fim social e o direito pelo fim pessoal.

5) Critério da bilateralidade/unilateralidade (estrutura que assumem): De acordo


com este critério podemos afirmar que o direito e a moral apresentam estruturas diferentes;
a moral teria um caráter unilateral e imperativo, visto que constitui um conjunto de deveres
ditados pela consciência ao indivíduo (a consequência para o desrespeito desses deveres é
igualmente interna e pessoal – o sentimento do remorso). Já o direito propõe-se regular as
relações sociais dos homens mediante as quais se condicionam reciprocamente, isto porque
propõe-se regular as relações sociais dos homens reconhecendo direitos mas impondo
sempre deveres: podemos então afirmar que o direito apresenta uma estrutura bilateral.
Crítica: Contra este critério, podemos referir a existência de normas jurídicas sem sanções e
de outras que apenas apontam deveres.

Moral – unilateral; apenas impõe regras

Direito – bilateral; impõe deveres mas também reconhece direitos


6) Critério de coercibilidade (relação que mantêm com a força ou a coação):
impõe-se a referência à coercibilidade, ou seja, o direito pode recorrer à força, o que não
significa violência, para garantir a eficácia e a observância das suas normas. O mesmo não
sucede com moral, cujas normas devem ser cumpridas espontaneamente sem a
possibilidade de recorrer aos meios coercivos. A sancionabilidade jurídica designa/traduz-se
na possibilidade de atribuir eficácia através dos meios adequados.
Podemos concluir que o verdadeiro critério distintivo é o da sancionabilidade, ou seja, o
direito é diferente da moral por ser sancionável.

Questão – Mas porque necessita o Direito desta parte sancionária?


É que compartilhando nós o mesmo mundo, podemos ser tentados a abusar dele,
impedindo injustificadamente os outros de o fruírem, ou dificultando-lhes sem fundamento
essa fruição.

Deste modo, não podemos limitar-nos a dirigir, neste âmbito, meros apelos uns aos outros;
na esfera do direito, cada um pode exigir ao outro o cumprimento das suas obrigações.

Neste horizonte de intersubjetividade, é razoável que se instituam meios destinados a


evitar ou punir tais abusos – as sanções.

 Tipos/modalidades de sanção

A) Autotutela: a autotutela tem um caráter excecional, ou seja, por regra, não


podemos admitir uma tutela privada; teremos de cumprir os requisitos que a lei
estabelece nos casos em que esta é admitida:
1. legítima defesa (art. 337º CC);
2. ação direta (art. 336º CC);
3. estado de necessidade (art. 339º CC)
B) Heterotutela: é aplicada pelo Estado; compreende vários tipos de sanções:
1. Preventivas: São medidas destinadas a impedir a violação da ordem
jurídica; procuram evitar a inobservância/incumprimento das normas 9
jurídicas; a atividade das autoridades públicas desempenha um papel de
relevo, visando limitar e fiscalizar a ação dos particulares. Exemplos: o
internamento de inimputáveis, a inibição do exercício da tutela para os
sujeitos que praticaram crimes que façam duvidar do seu exercício.
2. Compulsivas/compulsórias: São sanções que procuram compelir o infrator
de uma norma para que este adote a conduta devida sessando a
violação em curso. Exemplo: sanção pecuniária compulsória (art. 829 -A):
visa constranger o incumpridor de uma obrigação a pagar uma
determinada quantia pecuniária por cada dia de atraso do cumprimento.
3. Reconstitutivas: Estas medidas visam o restabelecimento da situação que
existiria se a norma jurídica não tivesse sido violada. Esta modalidade de
sanção conhece várias espécies: a reconstituição em espécie e a
indemnização. Dá-se sempre preferência à reconstituição, ou seja,
procuramos a reposição da situação anterior à ocorrência da violação;
Exemplo: parti o vidro de uma janela; a reconstituição innatura é substituir
por um vidro igual – mesma espécie. Execução especifica: através desta
vamos procurar a reposição da situação através de um bem que não
sendo aquele que foi efetivamente lesado está em condições de o
substituir e procura desempenhar a mesma função (por exemplo, um
vidro de cor diferente do original. Só nos casos em que não é possível a
reconstituição da situação é que recorremos à indemnização.
4. Compensatórias/ressarcitórias: Estão pensadas para os casos em que não
é possível restituir a situação anterior, logo procuram atribuir uma quantia
que visa reproduzir uma situação valorativamente equivalente. Em termos
rigorosos quando falamos em indemnização procuramos ressarcir danos
patrimoniais, ou seja, suscetíveis de avaliação pecuniária. Falamos de
compensação quando procuramos ressarcir danos de índole pessoal ou
não patrimonial. Exemplo: compensação da dor ou de um desgosto.
sofrido.
5. Punitivas: São as medidas mais pesadas para o infrator. Podem ser:
a) Criminais: são sanções do direito penal que apenas intervêm em
ultima estância. Ex.: Pena de multa e pena de prisão.
b) Contraordenacionais: são medidas aplicadas pela administração
pública (direito administrativo) e punem certas condutas que lesam
interesses fundamentais, como a violação das regras de trânsito. Ex.:
coimas
c) Civis: são medidas que pertencem ao direito civil e ocorrem em caso
de verificação de comportamentos indignos que lesam normas no
direito civil. Ex.: retirar a um filho que mata o pai o direito à herança.
d) Disciplinares: aplicam-se à infração de deveres por parte de
determinadas categorias profissionais no exercício das respetivas
funções. Ex.: repreensão, suspensão, despedimento
6. Recusa de efeitos jurídicos: encontramos nesta ultima categoria a
ineficácia em sentido amplo.

Inexistência jurídica: um casamento celebrado sem a


declaração da vontade de um dos nubentes não produz
qualquer efeito jurídico: o ato não existe juridicamente
Nulidade: se ofenderem
interesses públicos –
mais grave (art. 286º)
Recusa de Invalidade: quando um ato materialmente existente
efeitos está corrompido na sua validade por um vício também
Anulabilidade: se
deixa de produzir efeitos jurídicos por invalidade
jurídicos ofenderem interesses
particulares (art. 287º)

Ineficácia em sentido restrito: casos em que o ato


transgressor não produz total ou parcialmente os
seus efeitos

Função Secundária/organizatória
Função secundária (sem esta não seria possível existir a função primária): organização da
maquina estadual para que cada um de nós possa fazer valer os nossos direitos (quando
estes não são respeitados, podemos recorrer aos tribunais), por sua vez com regras de
organização.

 A par da função primária ou prescritiva da Ordem Jurídica, encontramos a função


secundária ou organizatória, no âmbito da qual esta se volta para si própria a fim de se
auto-organizar para conseguir subsistir, evitando a natural desorganização própria da
natureza humana;
 Esta necessidade de organização surge também porque a Ordem Jurídica integra uma
multiplicidade de exigências e elementos entre os quais podem surgir
incompatibilidades ou contradições, como é o caso dos conflitos de direitos, as
antinomias entre as normas ou entre normas e princípios.
 Percebe-se bem a importância da coerência e da unidade sistemática, porque sem ela
a Ordem Jurídica não constituiria sequer uma “segunda natureza” (de carater cultural)
viabilizadora da própria co-existência humana;
 Por outro lado, o Direito está inserido na história e no tempo – como tal, as normas
modificam-se, pelo que a sucessão de critérios pode não coincidir com a sucessão das
relações que aqueles são chamados a regular.
 Esta segunda função permite conciliar a dialética estabilidade vs. evolução. Uma
ordem jurídica para ser estável e durar muito tempo necessita da criação de órgãos
institucionais, que tanto precisam de ser estáveis como de se adaptar à novidade do
dia a dia, ou seja, evoluir.
 Compreende-se que a ordem jurídica tenha também que resolver estas dificuldades e
antinomias; a Ordem Jurídica organiza os modos da sua própria realização, daí que nos
diga também cabe solucionar os mencionados conflitos: normalmente são dissidentes
institucionalmente legitimados que desempenham esta tarefa, recorrendo, em regra,
ao direito pré-objetificado.
 Deste modo, a Ordem Jurídica cria órgãos a quem compete as funções implicadas: os
tribunais, mas também os órgãos da administração e até certas entidades privadas;
quanto ao poder legislativo, cuja atuação é igualmente balizada pela Ordem Jurídica
compete-lhe ciar os mais dos critérios que os tribunais e a Administração depois
mobilizam.
 Esta dimensão orgânica da função secundária da Ordem Jurídica remete-nos para a
figura dos órgãos que são dotados de uma certa competência que devem exercer de
um modo determinado; esta última faceta da sua atuação remete-nos para a
referência ao processo;
 O Processo racionaliza a ação dos órgãos e controla o próprio órgão; o Processo
constitui um modo de controlar um determinado poder (estamos a pensar, em
particular, no processo jurisdicional) Pretende-se dar relevo à
Importância do processo: seguinte ideia: o Processo
1) Racionalizar a ação não só concorre para
2) Controlar o próprio órgão- criando regras e limites racionalizar a decisão,
3) Permitir que as partes possam exercer os seus como para garantir às
partes, com transparente
direitos e garantias através da sua participação
visibilidade, uma sua
adequada participação
na respetiva obtenção;

Em suma: a Ordem Jurídica não define apenas (através da função primária ou


prescritiva) uma normatividade, ela auto-organiza-se também através da sua função
secundária: e esta auto-organização é fator da sua própria subsistência como Ordem; a
especificidade desta função reflexa da auto-organização é tão essencial a um seu
funcionamento eficiente que alguns autores sustentam mesmo ser ela a decisivamente
caracterizadora da Ordem Jurídica.

Notas caracterizadoras de uma Ordem Jurídica em geral


A ordem como cosmos natural:
 Afirmamos, de forma elementar e singela, que a Ordem Juridica é uma Ordem… Na
verdade, ao afirmarmos que a Ordem Juridica é um cosmos, estamos a dizer que não é
um puro caos.
 A Ordem Juridica, por ser Ordem (invocando estabilidade, dinâmica e unidade) evita e
sana indesejáveis contradições, apresenta-se como um todo tendencialmente
coerente
 Por outro lado, traduz um esforço cultural necessário para compensar o já apontado
carater onto-geneticamente deficiente do Homem e a cultura é um esforço que visa
esse objetivo.

O caráter comunitário
 Reconhecemos que a Ordem Jurídica constitui um esforço tendente a assegurar a
integração comunitária, pois representa uma instância de controle da vida comum.

 Somos uns com os outros e a ordem Jurídica define formalmente o comum normativo
de uma comunidade concreta, mas é sobretudo referida aos valores que
materialmente a fundamentam que a ordem Jurídica aparece como um autentico
integrante comunitário.

Objetividade
 Como já o afirmámos, a ordem jurídica integra o nosso horizonte cultural, e, por isso,
a “segunda natureza” do Homem
 Isto significa que a ordem jurídica constitui um mundo particular com que
deparamos, ao lado de outros, como o mundo biológico, sociológico ou o cultural
em geral
 Quando afirmamos que a Ordem Jurídica nos aparece como um mundo estamos a
reconhecer-lhe uma objetividade: a ordem jurídica está aí, como a natureza, com a
sua heteronomia; estando nós nela, ela existe independentemente de a querermos
ou não.

autárquica:
plano
institucional
objetividade
dogmática:
plano
intencional

 Apesar de tudo isso, a ordem jurídica não é um objeto (“entidade subjetiva”)


qualquer: a sua objetividade apresenta, desde logo, uma auto-suficiência (a ordem
jurídica subsiste por si) podendo, por isso, qualificar-se como autárquica (objetividade
autárquica);
 A autarcia da ordem surge como uma exigência da própria objetividade; a
subsistência da ordem jurídica assenta nas suas próprias forças, das quais salta o
caráter autárquico da respetiva objetividade.
 Por um lado, a ordem jurídica, na sua existência, na sua realidade, apresenta, ao
nível institucional, uma objetividade autárquica; deparamo-nos, portanto, com a
ordem jurídica como auto-subsistente: isto é assim, porque mediatamente a Ordem
Jurídica tem de resolver o problema da sua legitimação;
 Por outro lado, intencionalmente e ao nível do conteúdo, a ordem jurídica apresenta
uma objetividade dogmática. (DOGMA= Construções pré-existentes; estabilizados)
 O Homem está na história num permanente esforço crítico de novos caminhos; neste
sentido, a prática apresenta uma ineliminável dimensão dogmática; na verdade,
todo o universo prático-cultural tem referentes que se postulam e constituem pontos
de partida para as ações que o entretecem;
 No Horizonte da prática, o Homem tem de agir, tem de tomar decisões; esta última
nota não invalida a irremissibilidade de uma dimensão dogmática na prática
humana.
 A prática humana tem pressupostos dogmáticos.
 Nas ações-decisões, o Homem não parte do nada: mobiliza esta experiência
culturalmente transmitida, vai reconstituindo a sua subjetividade e o seu mundo.
 Contudo, podem apontar-se razões culturais e políticas que parecem repelir o que
acaba de se afirmar.

Projeção de autoridade
 A ordem jurídica, pela sua natureza, impõe as suas regras e os seus princípios, mesmo
quando são violados pela força jurídica que apresenta. Esta força ou eficácia é
projetada nas autoridades estaduais que, pela sua força jurídica e pela ideia de
autoridade, se impõem a todos nós, mesmo contrariando a nossa vontade. Ou seja,
as regras, os princípios e as normas jurídicas projetam-se através das autoridades e
fazem-se cumprir pela força jurídica que apresentam.
 Deste modo, mesmo que o Homem viole reiteradamente os princípios que integram
a ordem jurídica, esta tem como sua característica a faculdade de se projetar e de
exigir a observância das suas prescrições.
 Logo, a ordem jurídica, pela sua natureza, assume uma autoridade e faz-se valer,
mesmo à força.

Os efeitos imediatos de uma qualquer ordem jurídica


A racionalização
 A ordem jurídica traduz um esforço de racionalização; e esta exigência quer
significar nuclearmente a articulação horizontal de diversos fatores numa certa
conexão unitária que no limite se apresentará como sistema;
 Na verdade, sendo o Homem um ser livre, não codificado, ele é necessariamente um
ser dispersivo; todavia, o Homem não pretende que o seu comportamento seja
contingente e, para isso, tem de fazer um esforço cultural de racionalização.
(dispersivo= não é organizado, ordenado).
 Como consequência da racionalização surge a institucionalização

A institucionalização
 Questão: o que é uma instituição?
 Instituição deriva de in-status, pelo que significa entrar naquilo que persiste, pois
status é o que conseguiu organizar-se para subsistir; ou seja, institucionalizar é
estabilizar
 A ordem jurídica, como instituição que é, define padrões de comportamento
subsistentes, com sentidos e com valores simbólicos
 A instituição é um padrão estandardizado de comportamentos que assimilou
determinados valores; ou seja, a Ordem Jurídica constitui uma grande instituição que
se desdobra em pequenas instituições
 A instituição é sempre uma organização estável dos comportamentos e, neste
sentido, uma permanência no tempo, pois havendo uma instituição a natural
diversidade dos comportamentos tem um referente que os coordena
 Facilmente se percebe a razão porque carece o Homem de instituições: o Homem
sente-se como que tirado para o mundo em que existe, sente-se exposto ou exilado
num local inabitável.

 Liberdade vs Comunidade: por isso, as instituições nunca podem considera-se


definidas e acabadas; vivem da assimetria entre a liberdade e a estrutura social, da
dialética entre a invenção e a fixação, têm que sujeitar-se à crítica, apresentam-se
como vias abertas, mas não previamente traçadas, e daí que elas não sejam rígidas,
mas reflexivas, pois estruturam-se em correspondência com as sempre novas
experiências problemáticas e referências axiológicas que, respetivamente,
demarcam o seu objeto e constituem o seu fundamento (dialética= força de tensão
oposta).

A segurança/previsibilidade
 Vivendo nós no seio da ordem jurídica, conhecemos antecipadamente os efeitos
dos nossos comportamentos juridicamente relevantes dos outros que connosco
convivem;
 O direito condiciona cada um de nós e uns e outros, pelo que podemos pré-ver os
resultados dos comportamentos sócio-juridicamente interferentes – e a segurança
não é mais do que isto.
 Acrescentamos ainda que o imprevisto representa sempre uma agressão, gerando a
insegurança; a Ordem institucionalizada diz-nos com o que podemos contar,
transmitindo-nos segurança: permite-nos que calculemos as consequências dos
nossos atos, adverte-nos antecipadamente do que nos espera e ao fazer isso faz
com que possamos organizar e programar a nossa vida, dá-nos segurança.

A liberdade enquanto responsabilidade e não como arbítrio


 Podemos perguntar-nos se tem sentido falarmos aqui de liberdade, depois de termos
sublinhado a importância da institucionalização e da segurança;
 E faz, pois, o Homem, só concederá um lugar à liberdade se consentir em limitar a
liberdade; ora, para que cada um não esteja sujeito ao arbítrio do outro, temos
todos que aceitar submeter-nos a certas regras e uma regra corresponde sempre a
uma limitação.
 Teremos que acordar em definir o lícito e o ilícito e aquele que ultrapassar o limite do
lícito transpõe a barreira da sua liberdade societariamente consonante.
 Ao mesmo tempo que limitamos o outro, estamos a preservar a liberdade que com
ele se cruze e vice-versa;
 Ou seja: a prático-consonante limitação da liberdade é uma garantia da própria
liberdade; e a institucionalização limita a liberdade para a salvar em termos
praticamente razoáveis.

A Paz como antecipação regulativa (a Paz e a Justiça)


 Numa tradição que remonta a textos bíblicos, a justiça é apontada como o
“caminho esquecido para a paz”;
 Ou seja: o Direito é uma via de substituir a força bruta pela razão; pois num tribunal,
as partes não utilizam a força, mas argumentos (fundamentos de significação
contextual e de reconhecida validade), sejam eles já instituídos ou novos;
 Mesmo em caso de conflito aberto entre as partes, o Direito pré-ordena-se pela paz,
pois resolve o problema a favor de quem tiver a razão argumentativamente mais
forte e não quem lançar mão da força empírico-factualmente mais bruta.
 Por outro lado, o Direito será tanto mais logrado quanto mais prevenir, em vez de
apenas se limitar a resolver conflitos;
 O societariamente mais relevante efeito da Ordem Jurídica é o da prevenção dos
conflitos; pautamo-nos por esse “princípio de ação” e compreendemos que a
Ordem Jurídica é um decisivo fator de paz.

FIM MATÉRIA 1ª FREQUÊNCIA


A ordem jurídica e o sentido do direito – síntese e conclusão provisória
Começamos por estudar o direito através de uma análise externa, formal – o estudo da
ordem jurídica. Mas apesar de todos os esclarecimentos até ao momento, procuramos
ainda determinar qual é o sentido do direito; a circunstância da Ordem Jurídica ser uma
Ordem não garante que se lhe deva reconhecer o sentido predicativo do Direito; isto
porque uma coisa é a explicação do Direito a partir dos fatores que formalmente o
identificam, outro é a compreensão do seu sentido.

Não podemos ficar pela exterioridade do fenómeno da Ordem Jurídica para


compreendermos o sentido do direito; não basta uma mera referência à Ordem em que o
Direito objetivamente se integra.
O apuramento do sentido traduz a compreensão de um fenómeno na sua interioridade
(e não na sua objetiva exterioridade); ora uma interioridade só pode ser compreendida por
outra interioridade (compreender é bem diferente de explicar).

Cumpre-nos esclarecer o seguinte: não há Direito sem Ordem (sem a estrutura, as


funções, as notas e os efeitos a que aludimos); a existência de uma Ordem é, portanto,
condição necessária do Direito – mas será sua condição suficiente? NÃO.

Estamos perante uma Ordem, mas será uma ordem de Direito? Ora, o Direito (a Ordem
autenticamente de
Direito) tem uma carga
axiológica que o Homem,
enquanto sujeito-ético,
assume – não é apenas
uma Ordem com as
características que
analisámos até agora;
tem também um sentido
que importa
compreender.

Questão: o que é
então o Direito? O Direito
é uma Ordem com um certo sentido que é necessário conhecer numa perspetiva meta-
positiva, razão pela qual não nos podemos ficar pela mera consideração descritiva da
Ordem Jurídica.

Notas determinantes do sentido de uma Ordem autenticamente de direito:


A ordem jurídica manifesta dois tipos de insuficiências para a podermos considerar
necessariamente uma ordem jurídica.

Insuficiência objetiva
A Ordem Jurídica manifesta uma insuficiência objetiva, pois não basta, só por si, para
nos desvelar o sentido do Direito; existem outras ordens sociais (também elas dotadas de
estrutura formal, funções, notas caracterizadoras e efeitos tal como a OJ), mas que podem
ter sentidos diferentes ou até opostos ao da OJ (são antípodas do direito, e podem
inclusivamente provocar não a nossa adesão, mas a nossa repulsa).

Questão: Será que podemos resolver o nosso problema referindo a Ordem Jurídica à
estadualidade? Ou seja, se acrescentarmos a nota da estadualidade, será que isso chega
para colmatar as insuficiências? NÃO.

Não basta a qualificação de estadualidade da Ordem para a reconhecermos como de


direito porque facilmente concluiremos que, não obstante o Estado ocupar um lugar
importante, Estado e Direito são realidades diferentes, por 3 razões basilares:

1) O direito e o estado não se identificam

Na verdade, o Estado e o Direito distinguem-se culturalmente porque têm


histórias diferentes; isto porque a invenção do Estado é recente, surgiu apenas
na Idade Moderna; e se com o Estado moderno surgiu um certo tipo de direito
(o direito-legislação), a verdade é que antes dessa época já existia direito (exs.
Direito grego, direito romano, etc.).

O direito-legislação é o Direito do Estado, mas isso nada tira a que tenha


havido antes e continue a haver hoje, outros tipos de direito; a expressão direito
identifica realidades muito diversas: abrange o direito-legislação, mas também o
direito internacional, o direito primitivo… ou seja, apesar de ser o modo de
constituição da normatividade jurídica vigente mais relevante, não absorve todo
o direito, pois existem outras fontes de direito.

Principais distinções entre direito e estado:


a) O Estado é uma organização de poder, enquanto que o Direito é uma
Ordem normativa e remete para um sistema de princípios, que afirmam
Nem sempre uma validade
assenta nos b) O Estado visa fins (programa político que visa incutir aos cidadãos), mobiliza
valores do
o poder e intende à eficácia; diferentemente, o Direito baseia-se em valores,
direito
atua uma normatividade e procura uma validade;
c) A racionalidade do Estado é estratégica, de meio-fim; a do Direito é uma
racionalidade axiológica implicada pelo juízo-julgamento;
d) O Estado afirma um poder e este liga-se a uma estratégia, que se define
pelos objetivos que visa; a validade do direito, está conexionada com
valores em que se funda uma obrigatoriedade;
e) Os valores são universais, enquanto que a estratégia é discriminadora, pois é
seletiva (escolhe o que for conveniente e elimina o que dessa ótica se
relevar inconveniente);
f) Os partidos políticos são discriminadores, porque a lógica da conquista do
poder é a lógica de uma estratégia; o Direito centra-se em valores e estes
são universais.

2) A ordem de direito não é exclusivamente criada pelo Estado

Nem todo o Direito que existe é constituído pela imediata mediação do


Estado; grande parte tem como fonte o poder estadual, mas não tem de sê-lo.
Para o comprovar, basta pensar na circunstância de nem todos os sistemas
jurídicos serem de legislação (como é o caso dos sistemas de Common Law); e
mesmo num sistema de legislação como o nosso, nem todo o Direito vigente é
criado pelo Estado – o direito consuetudinário resulta de uma prática social
estabilizada; o direito da autonomia privada ou o direito das associações
privadas é, em grande medida, moldado pelas partes; as normas deontológicas
são um exemplo comum de auto-regulação.

Com isto não se pretende defender uma desestadualização, nem uma


desjurisdicionalização.

Note-se ainda que a distinção entre Estado e Direito se manifesta logo na


própria expressão “Estado-de-Direito”, fórmula que integra duas dimensões: a da
estadualidade e a da juridicidade; só é possível estabelecer uma relação por se
tratar de categorias ou realidades diferentes.

Estado-de-Direito é o específico tipo de Estado que encontra o seu


fundamento no Direito; isto significa que, admitindo que o Direito é essencial para
a sua validação, nem todos os Estados se podem dizer de direito (como é o caso
do Estado nacional-socialista, o Estado soviético);

Ou seja: só estaremos perante uma Estado-de-direito quando a juridicidade


(e, portanto, a validade) que nele se manifesta for autónoma do poder político;
logo, uma Ordem jurídica não será de direito só por lhe aditarmos a nota da
estadualidade.

3) O poder político que o Estado titula não é o fundamento da Ordem Jurídica


(sendo, pelo contrário, a juridicidade que fundamenta materialmente a
estadualidade)

A razão em que o direito assenta não pode ser o poder político mas a
validade; para ser aplicado tem de seguir e cumprir valores.
É certo que o Direito e o Poder se cruzam: o Direito precisa de autoridade, e
por trás dela está o poder político; mas o poder político não é o fundamento do
direito – se o fosse, qualquer norma criada pelo Estado seria direito.

Na verdade, há valores jurídicos que transcendem a legalidade, o que


significa que a legislação, para constituir uma ordem de Direito, tem de seguir os
parâmetros de validade do mesmo.

Aliás, a aspiração que hoje se manifesta é até a inversa: a de dar dimensão


de direito ao poder, ou seja, a de juridicizar o Estado; é por isso que o Estado
tende a ser hoje um Estado-de-Direito material – um estado em que o direito é
não apenas o limitador do poder, mas o seu verdadeiro fundamento legitimante.

Em suma: ser Ordem é um elemento necessário para que se possa falar de Direito, mas
não é um elemento suficiente; uma ordem socialmente regulamentadora não pode
dizer-se de direito pelo facto de ter sido criada pelo Estado.

Subsiste a pergunta: o que é que dá sentido de Direito à ordem Jurídica?

Será uma dimensão normativa, sem a qual não haverá uma verdadeira
Ordem de Direito. Contudo, veremos que a OJ apresenta também uma
insuficiência normativa.

Insuficiência normativa
Teremos que caracterizar o significado desta dimensão normativa, distinguindo três
momentos:

1) A imanência intencional de uma Ordem Jurídica


2) Identificar o sentido dessa ordem
3) Intenção normativa fundamentante e de validade do Direito

O Direito refere-nos a uma normatividade, a um dever-ser - e é no conteúdo dessa


normatividade que importa procurar o seu sentido. Com isto chegamos a um ponto
relevante sublinhado logo no início do curso: só de uma perspetiva normativa se logra
aceder à compreensão do sentido do Direito; isto porque os valores (materialmente
constitutivos da mencionada dimensão de dever-ser) é que nos dão o seu sentido. É
portanto, nos valores assumidos pela normatividade (pelo dever-ser) do Direito – na
axiologia, no mérito que apresenta – que poderemos reconhecer o seu sentido.

Ou seja: a ordem jurídica, quando empírico-analiticamente considerada, manifesta, ao


lado de uma insuficiência objetiva, uma insuficiência normativa pois ela não é bastante, só
por si, para nos desvelar o sentido do Direito.

A ordem jurídica, para constituir uma autêntica ordem de Direito, tem, portanto, que
manifestar uma dimensão normativa positiva, uma validade.

Como devemos compreender essa dimensão normativa?

Em primeiro lugar devemos recordar que uma ordem jurídica assimila valores; estes
sintetizam plenitudes de significação num determinado horizonte cultural, e densificam-na,
conferindo-lhe uma interioridade com a qual a nossa interioridade pode dialogar. Uma
ordem terá que assentar em valores para poder perdurar durante o tempo.

Uma ordem jurídica tem uma imediata dimensão prescritiva pois distingue o válido ou
inválido, o lícito do ilícito.

Só que todas as conclusões ao nível prescritivo se fundam em algo: esses critérios


prescritivos implicam um conjunto de valores que lhes dão sentido. É que uma coisa é um
fundamento e outra um critério:
É neste plano da imanência constitutiva da ordem jurídica que discerniremos o seu
sentido positivo ou negativo – só se for justificadamente positivo é que a reconhecermos
como ordem de Direito.

A materialidade normativa de ordem jurídica é determinada pelo conjunto de referentes


axiológicos em que assenta a sua validade, que tem uma enorme importância prática: na
verdade, uma ordem jurídica subsiste como vigente não por ter atrás de sim um poder que
a imponha, mas porque se louva em valores crítico-reflexivamente discernidos e
espontaneamente mobilizados pelos sujeitos destinatários dessa ordem (cidadãos) ou pelos
sujeitos a quem tiver sido institucionalmente cometidas a tarefa de realizar a sua específica
intenção problemática (juristas).

São precisamente esses valores que conferem uma dimensão normativa à ordem de
Direito, e esta específica dimensão que a distingue de outras ordens com as quais se
poderia formalmente confundir.

A intenção normativa é, portanto, uma exigência que se funda em valores e que uma
comunidade histórico-socialmente concreta pretende que se realize na prática. Uma ordem
de Direito não apresenta, pois, apenas uma determinada estrita, funções, notas
caracterizadoras e efeitos; tem também um conteúdo material que lhe é conferido pela
normatividade.

A ordem jurídica, para que possa se considerada como autenticamente de Direito, tem
que exibir uma normatividade material vigente; tem que traduzir a síntese de um conteúdo
reconhecido como materialmente válido e como sociologicamente eficaz – ou seja, a
vigência abarca duas dimensões: a validade e a eficácia.

Só que não nos podemos ficar por aqui; se o fizéssemos, a ordem jurídica resumir-se-ia
tendencialmente à normatividade constituída – e o Direito seria uma entidade
historicamente consumada. E não é assim. O Direito não é uma entidade cultural finita; é
antes uma intenção, uma ideia regulativa. Com efeito, podemos estar perante uma
controvérsia juridicamente relevante e não dispor de Direito constituído (pré-objetivado)
para lhe dar resposta - é o tradicionalmente discutido problema das lacunas. Ora só é
possível resolver essas questões porque o Direito não se esgota no já constituído. E onde se
encontrará o fundamento dessa permanente constituição? Precisamente numa ideia
regulativa - o que significa, por um lado, que não revela aqui o conceito de Direito, mas o
seu principium (pois este, diferentemente daquele, apela a um sentido constituendo) e, por
outro, que a normatividade prática do Direito radica neta dimensão regulativa.

Quanto à análise da necessária dimensão normativa da ordem jurídica, para que possa
ser qualificada como uma ordem de Direito, acrescentamos que muitos dos princípios que,
num determinado momento histórico, marcam a dimensão normativa de uma ordem
jurídica concreta estão nela objetivados de uma forma contingente: como sabemos,
ocorrem por vezes ruturas nas ordens jurídicas. De modo que pode pôr-se a pergunta: se
uma revolução fizer cair uma ordem jurídica concreta, porventura ficaremos aí sem Direito?
Abri-se-á, no domínio que ela antes ocupava, um vazio de juridicidade?

Já percebemos que não, porque o Direito é uma intenção de valor e de sentido, que
transcende todas as suas objetivações – pois se o valor é radicalmente cunhado pela
historicidade, o sentido é, ele próprio, caminho a percorrer. O Direito é, assim, um princípio
normativo, um regulativo, um conjunto de valores com uma particular intenção, que o
homem quer projetar na sua prática – objetivo este que, todavia, nunca conseguirá realizar
completamente. E como princípio normativo, o Direito é, portanto, transpositivo.

A validade é que constitui o Direito como Direito. A intenção normativa é fundamentante e


instituinte de uma validade que nos permite reconhecermo-nos uns aos outros como pessoas –
e é esta matriz axiológica que justifica o Direito naquilo que é e naquilo que há-de ser.

A dimensão normativa culmina assim na afirmação de uma validade; só ela permitirá


discernir o sentido do Direito e justificar a sua autonomia no universo global da prática.

Por tudo quanto fora exposto em relação à OJ impõe-se uma conclusão provisória:
sublinhámos que a OJ nos localiza e situa uns com os outros
no mundo, procurando afastar-nos de um individualismo, NOTAS CONCLUSÃO: o direito está
mas também de uma massificação do coletivismo – na história – sofre sempre uma
portanto, procurando evitar a instauração do igualitarismo, evolução; uma ordem de direito,
pressuposto por qualquer uma das duas atitudes externas. É para poder ser reconhecida por nós,
tem de ter uma evolução
a ordem que controla e regula a nossa relação com os
reconhecida e permitida e devemos
outros e com as coisas; logo, é uma ordem de direito que é
perceber que não podemos sufocar
marcada por uma dimensão histórica, e deverá integrar o o eu no individual e o eu do coletivo,
horizonte da prática. entre os quais tem de haver um
equilíbrio; a ordem de direito tem de
A OJ, enquanto autêntica ordem de direito, aparece como permitir o cruzamento das duas
uma teia de correspondências de sentido relacionada com experiências. Tudo isto é possível
as interações humanas, e por isso reconstitui-se através do retratar-se na realidade social.
seu substrato material; traz certas exigências e experiências
que nos colocam numa intencionalidade problemática. Ou
seja, a ordem de direito articula dois problemas irredutíveis: o raciocínio que utiliza é
analógico e discorre do particular para o particular; afirma-se no universo da realidade
social.
O Direito e a Sociedade

1. O direito na sociedade
Ainda no âmbito da matéria respeitante ao apuramento do sentido geral do Direito
abrimos agora uma nova secção em que se tentará localizar o mundo jurídico no universo
do nosso mundo comum – na esfera da sociedade.

O direito não é uma ilha: a normatividade jurídica tem uma base societária e atua no
seio da realidade social. É por isso natural que nos interroguemos sobre a sociedade que
constitui o meio ambiente do direito, tentando compreender a posição e o papel que o
direito nela ocupa e desempenha respetivamente.

a) A Sociedade (ponto de vista sociológico): sentido geral e a problemática da


sua concepção teórica (a “insociável sociabilidade”)
Vejamos melhor o conceito de sociedade – de um imediato, mas muito esquemático,
ponto de vista sociológico: Noção e sentido geral. A problemática da sua conceção teórica.

(Convém sublinhar que a sociedade em que vivemos é por nós insuficientemente


apreendida, pois não nos distanciamos dela o bastante para a compreendermos em termos
satisfatórios. Não é portanto fácil dizer em que consiste a Sociedade, justamente porque
estamos imersos nela. A própria sociologia tem dificuldade em definir o seu objeto.

Segundo Castanheira Neves, “A sociedade é a realidade da convivência humana,


enquanto esta convivência se traduz na multiplicidade e no conjunto de interações
humanamente significativas que se oferece aos membros participantes em termos de uma
particular e objetiva autonomia e na qual eles, quer através de formas de convivência (seja
integrada, seja conflituante), quer através de fins ou intenções gerais (em que comungam
ou que, de qualquer forma, se propõem), se encontram conexionados mediante uma
realidade unitária que lhes é comum.”

Nesta noção de sociedade estão contidos in nuce os referentes fundamentais;


Decompondo-a analiticamente, temos então que:

a) A sociedade é a realidade da própria convivência humana


b) A convivência humana surge aqui entendida como o conjunto das interações
dotadas de significado;
c) Essas interações apresentam-se àqueles que nelas participam com uma certa
objetividade e autonomia;
d) A sociedade, feita dessas interações entre os homens, constitui uma realidade
unitária que lhes é comum através da qual eles são conexionadas entre si.
e) Essa conexão resulta tanto da comunhão ou proposição de certos fins ou
intenções gerais, como de formas de convivência integrada ou conflituante
Em suma: a sociedade constitui, para os seus membros, uma realidade unitária que
têm em comum e que se lhe oferece com uma objetividade autónoma, i.e., quase
como se lhes fosse exterior e constituísse uma entidade própria (a se). Contudo,
essa realidade é constituída pelas próprias interações entre os membros da
sociedade, que os liga uns aos outros, seja porque partilham certos objetivos, seja
porque se relacionam de forma conflitual ou integrada.

O problema de “equilíbrio”

A noção de
sociedade há pouco dada lança levanta duas questões nucleares a seu respeito:

1) Ela constitui uma realidade em si, ou apenas a estrutura sistematizante das nossas ações?
2) É necessário determinar como se constitui esse mundo comum, sendo nós tão diferentes
uns dos outros e perseguindo fins tão distintos

Já sabemos que o homem é simultaneamente um ser de socialização e de isolamento,


dilacerado pela tensão entre pulsões centrípetas e centrífugas (a insocial sociabilidade de que
falava Kant).

Torna-se por isso necessário articular os sujeitos autónomos que se relacionam entre si,
integrá-los mediante a referência a algo que lhes seja comum; a sociedade, enquanto
realidade comum, integrante das nossas diferenças, é uma resposta a este problema.

Ao caracterizarmos a sociedade nestes termos estamos a definir duas coordenadas


fundamentais que a balizam, e, portanto, dentro de cuja demarcação a mesma se constitui:

Todavia, estas
coordenadas, na
sua dinâmica,
manifestam uma
tensão e é por isso
que há
sociedades em
que uma delas
(qualquer que
seja) se hipertrofia
e avantaja à outra
(exemplo: numa
sociedade
totalitária, a
segunda coordenada que relevámos tende a asfixiar a primeira; e numa sociedade inspirada
por um liberalismo radical, é o inverso que se verifica).
Mesmo sem estes excessos a sociedade nunca consegue eliminar a atrás referida
“insociável sociabilidade” do homem. E é assim porque nós somos seres centrífugos (somos
seres de liberdade individual) que convivem num horizonte centrípeto (a sociedade
chama-nos a si, pois precisamos dela par nos realizarmos humanamente). De um lado
somos insociáveis, do outro sociáveis - e a dinâmica da história resulta desta (e é animada
por esta) tensão.

As respostas da sociologia
Levantando a questão acerca da caracterização da sociedade, encontramos vários
autores que procuram dar resposta para o problema de equilíbrio entre o mundo coletivo e
a integração unitária da autonomia das pessoas individuais e a coletividade e a
consequente interação da sua convivência; o homem é um ser que simultaneamente
convoca uma tendência para a socialização e o isolamento. Procurando respostas na
sociologia, encontramos duas teorias ou duas perspetivas: a perspetiva da ação, de Max
Weber e a perspetiva do Sistema, de Luhmann.

Perspetiva da ação (Max Weber)


Procuramos retirar da sociologia a explicação teorética da sociedade; a este propósito
encontramos a perspetiva da ação construída por Max Weber, segundo a qual é a partir da
ação individual que se pode vir a compreender o todo. Isto porque cada um de nós só age
quando se dirige, com sentido, ao outro, pois só então este outro o poderá compreender e
responder-lhe com uma ação suscetível de também ter sentido para aquele primeiro.

Não deve qualificar-se como ação social o facto de, por exemplo, um de nós se
encontrar ao lado de outras pessoas na fila para o autocarro, pois o que aí se nos apresenta
é uma acidental justaposição de discretas ações individuais.

A este propósito são apresentadas várias formas de socialização: o consenso e o


conflito. Como formas de consenso encontramos dois modos de socialização: a
solidariedade mecânica (tem lugar quando os indivíduos se associam atendendo ao que
têm em comum e procuram articular os seus esforços para realizar uma tarefa comum ou de
interesse comum, como, por exemplo, os membros de uma associação) e a solidariedade
orgânica (também designada por “solidariedade por diferenciação”; diz respeito com
aquela que radica na especialização profissional, originante de recíprocas dependências
entre todos, que assim se tornam interdependentes). A solidariedade orgânica é a mais
característica das sociedades atuais, marcadas por uma nítida divisão social do trabalho;
contudo, a solidariedade mecânica não deixa de se afirmar neste quadro, articulando-se
com a solidariedade orgânica.

Neste ponto de vista, a sociedade é a teia integrante das nossas ações, pelo que, na
sociedade, só estaríamos materialmente nós próprios, todavia interagindo.

A orientação mais recente da sociologia não avança da parte para o todo, mas
centra-se nesse todo estruturado, compreendendo a sociedade como o sistema social, ou
seja, como uma entidade integradora que subsiste numa unidade.

Perspetiva do sistema (Parsons, Luhmann)


Segundo Parsons há muitos sistemas. Desde logo, cada um de nós é um sistema, pois
cada indivíduo apresenta uma estrutura com uma capacidade funcional de subsistência; e
a sociedade, globalmente considerada, não o é menos, pois apresenta-se como um todo,
dotado de estruturas estáveis, que tendem a subsistir apesar do dinamismo do mundo.

Coloca-se assim uma outra questão: como será que uma dimensão estática (constituída
pelas estruturas as que aludimos) se articula com uma outra dinâmica (já que o mundo não
pára)? Parsons entende que a “função” se encarregaria de resolver a questão, pois esta
identifica, precisamente, o dinamismo possível dentro de uma determinada estrutura. E daí
que a sociedade, no seu conjunto, consista na definição de estruturas funcionais.

Assim, dentro da sociedade globalmente considerada:


 a dinâmica da utilização dos meios disponíveis, seria estruturada na economia;
 a dinâmica das ações concretas segundo certas estruturas padronizadas,
justificaria a existência de normas e, nomeadamente, de normas jurídicas;
 a instância de carácter estrutural que “equilibraria” todo este dinamismo seria a
cultura.

A posição de Luhmann, muito embora se insira igualmente na categoria sistema, é


diferente. Na verdade, enquanto Parsons pensa o sistema como um todo que é mais do que
a mera somas das partes, Luhmann segue outro caminho: para este a sociedade é um
sistema social que representa a compossibilidade, ou seja, a coerência funcional de fatores
diversos que a compõem na sua totalidade.

O problema nuclear que os homens têm de resolver é o decorrente do facto de viverem


conjuntamente num mesmo mundo, que se apresenta como muito complexo; logo, aquilo
que importa é reduzir essa complexidade, e é com este objetivo que os homens criam os
diversos sistemas culturais.

Desta perspetiva, um sistema social é, portanto, uma resposta às exigências do mundo


exterior. Dois grandes pólos estão aqui em causa para Luhmann:

• o interior – sistema
• o exterior – o mundo da realidade

Não sendo o homem capaz de dominar toda a inabarcável complexidade do mundo,


procura naturalmente reduzi-lo (e à respetiva complexidade) às suas (limitadas) possibilidades
de reposta, que revelar-se-ão funcionalmente ajustadas a esta complexidade quando
permitirem uma ordenada orientação dos homens no mundo.

Como tal, Luhmann entende o “sistema social” como um sistema autopoiético portanto
autoorganizado e auto-reprodutivo, radicado em atos comunicativos, e segundo o qual é
necessário o efeito da institucionalização; este corresponde à definição (e, portanto à
estabilização) de funções tendo em vista a simplificação do mundo do nosso encontro.

A síntese reflexiva: o equilíbrio estrutural entre o “mundo da vida” e o “sistema”


Habermas defende que o dinamismo da sociedade se processa no quadro de uma
articulação recíproca da sua preordenada base material e da sua culturalmente densificada
dimensão prático-comunicacional.

Este autor, através de uma síntese reflexiva, procura conjugar uma dimensão sistémica e
uma dimensão prática, avançando que na sociedade é possível alcançar o equilíbrio
estrutural entre “o mundo da vida” e o sistema.

Em conclusão, podemos referir que o lugar que o direito assume na sociedade é o de


definir a ticitude social (razão pela qual a sociedade tem no direito um subsistema
decisivamente importante.

Categorias fundamentais de análise do sistema social: o “status” e os “papéis”


Cada um de nós está na sociedade com um (ou vários) estatuto(s) e a desempenhar
determinados papéis; o estatuto de cada um de nós marca o nosso próprio papel; o papel é,
portanto, a atuação especifica resultante de um determinado status. Esta categoria de status
e papel permite uma relevante redução da complexidade.

O problema da integração: o “consensus” e o “conflito”


A sociedade integra-nos comunitariamente; importa por isso dedicar duas palavras a
este problema: “consenso” e “conflito”.

Como ensina Castanheira Neves: o sistema de valores que cunha em termos materiais
uma determinada sociedade não se limita nem aos objetivos da vontade política, nem aos
valores constitutivos do ordenamento de Direito dessa comunidade, pois é mais amplo
(embora não ignore) do que estes dois planos; a sua eficácia integrativa depende da sua
capacidade de inspirar a própria ordem jurídica concretamente em causa, uma vez que o
Direito é, sem dúvida, no nosso hemisfério cultural, o mais importante elemento de
integração social.

Deste modo, pode dizer-se que os valores materialmente densificantes de uma


determinada sociedade identificam o consensus comunitário e que, portanto, funcionam
como fator de coesão social e como elemento fundamental e fundamentante da
integração comunitária.

Com efeito, uma sociedade não se define apenas como uma realidade de integração
(integração esta por sua vez garante da estabilidade histórica, da harmonia sociológica e
do consenso axiológico da comunidade concretamente em causa).

Se olharmos para as sociedades dos nossos dias, logo compreendemos que o consenso
é apenas uma face de uma medalha, que apresenta um reverso: a tendência para a
afirmação do antagonismo, que está na base da evolução societária.

Ou seja, o consenso e o conflito aparecem-nos, portanto, como incindíveis (isto é,


como complementares) vetores nuclearmente constitutivos de uma sociedade.

Por outro lado, note-se, ao conflito é imanente um quantum de integração, desde logo
porque a existência de uma comunidade (que não é definível sem o recurso à mencionada
nota de integração) é um pressuposto da possibilidade da própria emergência do conflito:
no fundo, só há conflito porque há comunidade, isto é, integração convivencial.

O Direito nesta realidade social: o sentido da relação social juridicamente relevante; o


problema da institucionalização.
O Direito é o estruturante macroscópico, o tecido conjuntivo, sub-sistema normativo
regulador das relações que se entretecem na sociedade.

Mesmo que apenas baseados na análise estrutural da sociedade em que até agora
nos centrámos, estamos já em condições de compreender o lugar que nela ocupa o Direito:
este define, em termos normativos, a tecitura social, razão pela qual é um sub-sistema
decisivamente importante da sociedade.

O Direito não esgota a nossa relação, mas temos de reconhecer que se relevarmos o
seu núcleo duro estamos fundamentalmente diante de deveres e direitos recíprocos.

O Direito é, pois, o subsistema que a sociedade mobiliza para conseguir uma suficiente
harmonia na integração das várias afirmações individuais no contexto comunitário.

Mas o Direito não consegue eliminar todos os conflitos: a nossa posição eminentemente
pessoal transcende sempre a nossa posição especificamente social e, por isso, aquela
primeira pode divergir desta segunda; cada um de nós titula sempre vários estatutos, de
modo que os papéis inerentes a cada um deles podem colidir.

Até ao momento considerámos a sociedade de uma perspectiva estrutural (formal). E


com os esclarecimentos que a sociologia nos disponibilizou confirmámos o que havíamos
apurado quando referimos o efeito de institucionalização da ordem jurídica.

b) A sociedade (em perspetiva material): análise estrutural da sociedade


Supomos serem de três tipos diferentes os elementos materiais constitutivos da
sociedade: os interesses, o poder e os valores.

1. Os interesses, que identificam a dimensão económica da sociedade;


2. O poder, que define a dimensão política da sociedade;
3. Os valores, que são a expressão da dimensão axiológico-cultural da sociedade.

O direito como síntese seletiva dos fatores mencionados: é critério sobre os interesses
(ajuíza do mérito relativo destes) no quadro de um poder e, para cumprir essa tarefa,
mobiliza alguns valores (deixando outros de lado – critério seletivo).

2. O direito função da sociedade?


Na Lição anterior olhámos a sociedade como resultado das estruturas a que aludimos
(dos estatutos e dos papéis) e dos irredutíveis elementos materiais que mencionámos (dos
interesses, do poder e dos valores).

Surge uma segunda pergunta: Será o Direito uma pura função dependente da sociedade?
Há na verdade teses que o sustentam, isto é, respondem afirmativamente a esta
questão. Para estas orientações o direito seria um mero resultado dos elementos materiais
constitutivos da sociedade (interesses, poder e valores), não se lhe reconhecendo qualquer
autonomia. Isto significa que existem correntes defensoras da ideia de que o direito
depende, em exclusivo, da economia, da política ou da cultura.

Caracterizaremos então sumariamente cada um destes redutivismos.

A redução do direito ao económico


Para o economicismo – que sustenta a redução económica da normatividade jurídica –
o direito é a mera expressão normativa das relações económicas.

É esta a posição do marxismo originário, (que teve o seu contributo para a redução aqui
enunciada); no seu entender, seria a “estrutura económica da sociedade”, a sua “base
real”, que determinaria todas as dimensões de “sentido” e de “valor” da vida humana” –
desde a sua consciência individual à super estrutura jurídica e política que se viesse a
institucionalizar. Para Marx (em virtude do positivismo material), cada cultura seria
determinada pelas “relações de produção” constitutivas da mencionada “estrutura
económica da sociedade”. O Direito, como vetor integrante da referida super-estrutura, não
passaria igualmente de um segregado da aludida infra-estrutra, tal como as ideologias, pois
de um ponto de vista cultural estas não são mais do que tentativas de justificar os interesses.

Em suma: desta perspetiva, o económico seria o elemento determinante, e o Direito,


como estrato integrante da super-estrutura, seria determinado por aquela infraestrutura.

Todavia, pouco a pouco, o marxismo e este economicismo linear, que sustentava haver
relação direta entre a economia e a cultura, foram abandonados.

O económico (por si só) ganhou então importante relevo nos séculos XVIII-XIX; em estrita
articulação com o individualismo capitalista, surge um importante movimento de um
modelo teórico – “Law and Economics”, segundo o qual a economia é um elemento
dominante e determinante da História.

A racionalidade do económico é da mera eficácia pragmática. A racionalidade


económica é, pois, funcional, instrumental, de meio-fim; só ajuíza em termos de eficácia,
pelo que deve ser qualificada como uma racionalidade técnica. Significa isto que, se a
realidade social fosse totalmente dominada pela economia haveria apenas uma única
racionalidade – a racionalidade puramente técnico-funcional –, e isso poderia resultar no
perigo da instrumentalização do direito aos interesses.

Em conclusão, o que podemos dizer em relação à apreciação crítica da tese redutivista


do direito à economia:

Podemos concluir que o económico não reduz, pois, nem teoricamente, nem ao nível da análise histórica,
nem atendendo à intencionalidade dos dois domínios, o ético-jurídico, tendo, portanto, de contar com ele.

A redução do direito ao político


Para esta conceção, o direito seria somente a concretização da voluntas política, ou
seja, o direito seria apenas uma política traduzida ou concretizada em normas.

O político é assim o húmus axiologicamente densificante e fundamentante da prática


de qualquer comunidade concreta; mas a política é diferente: em termos esquemáticos,
diremos que esta identifica um programa finalístico, que tem a sua estratégia e que é
assumido por um governo, daí que sejam sempre possíveis várias políticas no quadro de um
mesmo horizonte político (exemplo: cada partido interpreta diferentemente os consensuais
valores capitais de uma comunidade).

A autonomização da política deu-se com a afirmação do Estado Moderno, que assumiu


a titularidade de toda a prática da comunidade e, portanto, também do direito. Foi então
nesta época que se cedeu à tentação de reduzir todo o universo prático à política. Com o
Estado Moderno o Direito passou a ser legislação: primeiro, como mero enquadrante
racionalizador das liberdades, e ainda como fator de limitação do poder do Estado; mais
tarde ainda como critério orientador das próprias ações concretas (pura emanação da
voluntas política). Deriva desta circunstância histórica a tentação de reduzir o direito à
política. Esta concessão conhece várias modalidades da redução do Direito à política:

• legalismo normativista, que defende a redução do direito à lei;


• funcionalismo tecnológico, segundo o qual o direito é o regulativo instrumental de
objetivos político-sociais;
• funcionalismo ideológico, em que o direito seria equiparado à política.
Sobre estas modalidades podemos apresentar uma crítica em dois planos:

• o plano institucional (o problema das relações entre o direito e o poder): levanta-se a


questão da legitimidade do poder, ou seja, o poder invoca a normatividade para se
legitimar e a normatividade necessita do poder para existir e subsistir. Hoje, releva-se
o poder mas não se deixa de impor limites, e o estado de direito material é isso
mesmo – ou seja, uma limitação do poder em nome do direito, das exigências éticas
que lhe reconhecemos, e representa uma tentativa de resolver o problema e da
tensão entre o poder e as validades. Assim, a juridicidade é o hoje o fundamento
material do poder. Após uma análise institucional, chegamos à conclusão que o
direito não se pode reduzir nem à política nem ao poder.
• o plano intencional (procura abordar as intenções específicas do jurídico e da
política: teremos que invocar que a política e o direito têm racionalidades diferentes,
uma vez que são realidades historicamente diferentes e visam objetivos diferentes;
assim, impõe-se não concordar com a redução do direito à política, porque o direito
distingue-se da legislação política e o pensamento jurídico apresenta um auditório
argumentativo e dimensões materiais que impõem a sua distinção do poder político.

Podemos concluir que o económico não reduz, pois, nem teoricamente, nem ao nível da análise
histórica, nem atendendo à intencionalidade dos dois domínios, o ético-jurídico, tendo, portanto, de
contar com ele.

A redução do direito ao axiológico-cultural


O direito assimila os valores que compõem a ordem axiológica da comunidade e
condicionam os problemas concretos da mesma comunidade.

Contudo, de acordo com as palavras do Dr. Castanheira Neves, o direito só o será


verdadeiramente se for vigente, ou seja, quando a normatividade constituir uma dimensão
real da prática concreta; a vigência é a síntese da validade e da eficácia. De acordo com
autor, o direito é “um dever-ser que é”, ou seja, é uma normatividade (uma validade ou um
dever-ser) que tem de ser (que tem que se concretizar na prática e que, portanto, é).

O Direito é dever-ser, porque é uma intenção de validade que transcende os factos


sociais para poder ajuizar deles; mas o Direito é porque apresenta como outra irremissível
nota caracterizadora, para além da mencionada validade, a eficácia.

Uma cultura será vigente, quando se nos apresenta como uma efetiva dimensão de
sentido de uma certa prática, conformando axiológico-intencionalmente e histórico-
socialmente a pluralidade das manifestações existencialmente predicativas de uma
determinada comunidade.

De acordo com esta teoria, e de acordo com uma corrente jusnaturalista, o Homem não
traduzia mais do que uma sua auto-compreensão, o que significa que o homem projeta no
ser a sua própria racionalidade. Compreende-se que o homem do jusnaturalismo era um ser
contemplativo e por isso teorético; diferentemente, o homem de hoje sabe que a
transcendência não é totalmente transparente, sendo agora uma tarefa a cumprir. Assim, o
homem, na sua prática, tem consciência da sua finitude, percebendo que é um ser
histórico, e por isso pretende tomar posição sobre si próprio.

O jusnaturalismo (ao centrar-se num puro Direito ideal, nega o seu condicionamento
histórico e, portanto, constitui a expressão exemplar do redutivismo que estamos a
considerar) repousa em três argumentos:

Antropologia
clássica afirma-se hoje a
pessoalidade do
Homem.
Metafísica
clássica afirma-se hoje a
Ontologia transracionalidade
clássica afirma-se hoje a da transcendência
historicidade do ser

Temos deste modo justificado o afastamento do jusnaturalismo; como foi esta a


orientação que circunscreveu o direito ao axiológico-cultural, podemos agora concluir que
o direito, embora não seja alheio a valores (pois é neles que radica a sua dimensão de
validade), não se reduz a eles: o direito para se afirmar como tal também deverá ser
também ficaz, pois só assim pode ser considerado vigente.

Em conclusão geral, o Direito não se reduz nem ao económico, nem à


política, nem ao axio-cultural.
Tendo assim respondido negativamente à segunda interrogação posta
(será que o Direito é uma mera variável dependente de qualquer um dos
elementos materiais irredutivelmente constitutivos da sociedade?), podemos
formular assim uma terceira pergunta: que papel tem o direito na
sociedade? Ou qual a função específica do Direito no atual contexto sócio-
cultural?

3. A Sociedade função do Direito


Será a sociedade função do direito? E qual será a função especifica do direito? Ou seja,
vamos abordar o problema do “para-quê”.

A função específica do direito e a sua condicionalidade histórica – três grandes


ciclos histórico-funcionais
Existem três condições fundamentais para a emergência do direito ou da juridicidade:
• Condição mundanal: o problema necessário da repartição por todos nós de um
mesmo mundo;
• Condição antropológica: ligada ao modo de ser do homem e ao facto da nossa
natural indeterminação dever ser compensada com uma determinação, da nossa
natural divergência ter de ser compensada com uma convergência e da nossa
natural mutabilidade dever ser compensada com uma imutabilidade;
Estas duas condições exigem a institucionalização de uma ordem social, politicamente
disciplinadora, que dê respostas aos problemas que se colocam. Mas não determinam que
tenha de ser uma ordem de direito. Para isso é necessário que intervenha uma terceira
condição complementar:

• Condição ética: as pessoas surgem como seres de liberdade que dialogam uns
com os outros, trocando exigências e reconhecendo-se como reciprocamente
responsáveis; assim já terá sentido dizer que essa ordem tem de ser uma autêntica
ordem de direito;
Estas três condições têm de verificar-se cumulativamente para que o direito possa emergir.

Esta ultima – a condição ética – apresenta conteúdos sucessivamente diferentes, porque


o homem tem problemas específicos diferentes. E como é esta condição ética (ou variável)
que determina a função do direito, percebemos já que esta função depende da situação
histórica concretamente em causa.

Nessa análise diacrónica das funções que o direito, compreendido como ordem de
validade, foi desempenhando ao longo dos tempos devem distinguir-se três grandes ciclos:
época clássica pré-moderna, época moderno-iluministas e época contemporânea (atual).
Em cada uma das épocas o direito foi desempenhado tributos diferentes.

Época clássica pré-moderna e época moderno-iluminista

Época clássica pré-moderna Época moderno-iluminista


• a função a destacar consiste numa • a função a destacar consiste numa função constituinte de
função legitimante do direito e uma uma legalidade, uma função de universalizar (ou seja, de
intenção declarativa de uma ordem racionalizar) a liberdade.
natural pressuposta. • O homem moderno era o homem da dúvida universal e a crítica
• o homem (cidadão não pessoa) estava radical – um homem revolucionário; fez tábua rasa das ordens
inserido numa ordem (radicada pressupostas, porque absolutizou a sua liberdade racional. O
“natureza das coisas”) que não discutia contratualismo apareceu como esquema paradigmático desta
– era apenas o hermeneuta dessa autonomia do homem – o contrato era o vínculo que os próprios
ordem. O homem não era o senhor do sujeitos constituíam. Significa isto que, para o homem moderno, a
mundo, nem sequer o senhor da sua ordem politico-jurídica era produto de uma deliberação do próprio
ordenação: vivia num mundo homem. Se na época pré-moderna a ordem estava já instituída (o
pressuposto, que encontrava já homem era apenas o intérprete dessa ordem), agora o homem
ordenado. O direito encontrava o seu constituía ele mesmo essa ordem: a sua vontade instituinte criava o
critério na translegalidade da ordem direito ex novo, e a expressão dessa vontade racional era a lei. Na
natural e era, portanto, uma mera época moderno-iluminista, o direito era a lei, o ponto de partida
instância de explicitações (em termos essencial; era o homem que instituía a sua própria ordem, que se
declarativos) da mencionada ordem. dava a si mesmo a sua lei, que era legislador de si mesmo. O direito
era então um normativo universal em que se exprimia a liberdade.

Época Contemporânea (atual)


Em primeiro lugar o direito, ao constituir uma ordem, cumpre uma função integrante, pois
possibilita a nossa vida em comum. Na verdade, a ordenação integrante é a possibilidade da
convivência de vários diferentes num comum. Assim, o direito concorre para viabilizar a
indispensável integração comunitária, porque desempenha três subfunções:

Função integrante
Subfunção de tutela Subfunção de resolução
Subfunção de garantia
ou imunização dos conflitos de interesses
A ordem que o direito O direito opera a distribuição Está ligada à institucionalização (e
institui sanciona o de bens e serviços, e oferece portanto, à limitação) do poder. Com
respeito por certos critérios de resolução dos efeito, o direito, ao mesmo tempo
valores, por certos conflitos de interesses que daí que limita o poder, garante-nos
bens jurídicos, por podem surgir. Na verdade, é contra os seus arbítrios. Mas não é só
certos interesses no horizonte do mundo que da nossa perspetiva que esta função
fundamentais. Há, de compartilhamos que somos é importante; ela é-o igualmente da
facto, no âmbito de chamados a realizar os perspetiva do próprio poder. Isto
cada cultura, valores, nossos interesses, muitas porque o direito, ao institucionalizar e
bens jurídicos e vezes divergentes; o direito consequentemente limitar o poder,
interesses intocáveis. procura compossibilitar não deixa de o possibilitar: limita-o,
Compreende-se, pois, preventivamente esses porque lhe levanta obstáculos em
que o direito os defina interesses, mas, se o não nosso benefício, mas possibilita-o,
e que sancione os conseguir, tem critérios para porque define e estabiliza os padrões
comportamentos que a resolução dos eventuais da respetiva atuação, criando
os violem. conflitos. condições para que ele se potencie.
Exemplo: Direito Penal Exemplo: Direito Privado:
Exemplo: Direito Constitucional; Direito
(o direito sancionatório Direito Civil e Direito
Administrativo e Direito Penal.
em geral). Comercial.

Pois bem: as três subfunções que incluímos na função integrante conexionam-se, na


medida em que concorrem para possibilitar a convivência humana, não obstante a
pluralidade das mundividências que socialmente se afirmam. E elas integram-nos porque
nos dão segurança (o que agora nos aparece como uma função que o direito
desempenha na comunidade, surgiu-nos então como um efeito decorrente da ordem
jurídica formalmente perspetivada.

O sentido negativo e dogmaticamente formal da intenção imediata da função integrante:


A função integrante tem um caráter negativo, uma vez que o direito, ao tutelar certos valores
e interesses fundamentais, proíbe (sanciona negativamente) a sua transgressão; ao fornecer
critérios para a repartição dos bens e ao resolver os conflitos de interesses que possam
irromper, impede a perturbação injustificada das posições jurídicas em que cada um esteja
validamente investido; e ao consagrar o princípio da legalidade da incriminação, limita a
legitimidade punitiva do poder.

O sentido positivo específico do direito como validade: Contudo, o direito tem,


efetivamente, algo a exprimir que é positivo, pelo que participa ativamente na constituição
da nossa realidade comunitária.

Vivemos hoje num Estado Social, que realiza certos objetivos de desenvolvimento e de
bem-estar, sobretudo a favor dos mais carenciados e dependentes. Todavia, o mencionado
objetivo não se deve absolutizar, pois, assim, o direito perde a sua autonomia para apenas
cumprir a estratégia do poder (tornando-se um instrumento do seu programa sócio-político-
económico).

O sentido positivo do direito – a sua função específica – está, pois, neste nosso tempo, na
afirmação que ele faz dos valores da vida, da liberdade, da igualdade e da validade dos
meios para atingir os fins (em suma, da dignidade da pessoa humana) e no empenho com
que os realiza na comunidade (temos de exigir que o direito – como normatividade
ordenadora que é da nossa prática – os assimile e realize).

A função integrante é de sentido negativo, mas há outras duas de sentido positivo: a função
regulativo-constitutiva e a função de validade legitimante e crítica:

função regulativo- função de validade legitimante e


constitutiva crítica
O direito não se reduz aos critérios O conjunto de princípios e de valores que
jurídicos pré-objetivos; entretecem a trans-objetividade do direito
Por ser um dever, transcende o (perante a política) funciona como instância de
que é em cada momento. Por isso validade e crítica da nossa convivência social, em
a própria ideia de direito, valores e geral, e do poder político, em particular.
fundamentos, regulam o que o O direito, ao mobilizar certos valores universais e ao
direito vai sendo: é um atuar através de instituições que especificamente
constituendo reconhecido pelas os convocam, afirma, ainda hoje, no horizonte da
próprias ideias. prática, uma autêntica dimensão axiológica.
A constituição de um novo sistema O direito desempenha hoje, por isso, uma função
de direito é sempre, de instância viabilizadora de uma efetiva
autenticamente, uma comunicação intersubjetivamente significativa –
reconstituição; bem como uma verdadeira instância crítica.
A função regulativa aponta o Apesar de não dispor de forças armadas, nem
caminho para o direito a constituir, por isso deixa de conseguir, através dos seus
porque nela vão pesando os princípios, assumir-se como a má consciência do
valores e princípios conformadores poder.
do sentido último do direito.

O sentido específico do Direito


I. Alusão à determinação do sentido normativo específico do
Direito no pensamento prépositivista
Ao longo de toda a época pré-positivista, o direito não era considerado um dado:
identificava antes uma normatividade muito complexa, que provinha de vários fatores e
que os próprios juristas iam constituindo à medida que a realizavam.

Para o pensamento jurídico pré-positivista, o direito era um problema do âmbito da


filosofia prática.

Nesta longa época pré-positivista, podem distinguir-se três fases:

 Na época clássica romana o direito radicava na prudência das situações


concretas.
 Na época medieval o direito era ainda uma iuris-prudentia, mas agora
radicada numa hermenêutica de textos (Corpus Iuris Civiles).
 Na época moderna abandonou-se a anterior impostação jurisprudencial e
passou-se a compreender o direito como uma construção dedutiva feita a
partir de uma racionalidade axiologicamente afirmada:
O homem moderno libertou-se da transcendência teológica medieval
e passou a pretender constituir uma ordem nova a partir de si mesmo;
O humanismo moderno veio sublinhar os valores da contingência
humana como fundamentais;
A ciência moderna veio aproveitar a racionalidade axiomaticamente
dedutiva para se afirmar.
II. O problema da compreensão e determinação do sentido
atualmente fundamental do Direito - positivismo jurídico
O positivismo jurídico – Fatores determinantes do positivismo jurídico
O positivismo veio afirmar uma conceção inovadora: rompeu com a impostação das
coisas e imputou a constituição do direito à vontade política do poder legislativo. É o
referente crítico da compreensão atual.

Pensamento humano-cultural moderno-iluminista

Fator antropológico Fator Cultural


O Homem Moderno vai procurar cortar todas as amarras
que o prendiam às entidades supraindividuais – a Igreja, Secularismo: sustentava-se que o homem era
o Feudo, a Comunidade, a Cooperação. Até à responsável pelos valores próprios da história,
Modernidade, os Homens autocompreendiam-se por rejeitando as projeções da vontade ou da
referência ao estatuto socialmente pré-determinado razão divinas
(povo, clero, nobreza) em que estavam inseridos, que Racionalismo: o homem moderno agia
condicionava toda a sua perspetiva do mundo e o reconhecendo como última instância a razão,
modo de agir nele. que se devia bastar a si mesma e arrancar de si
própria ou dos axiomas que postula quando se
Com a Modernidade e com o Iluminismo, o Homem vai trata de construir os sistemas acabados de
pretender libertar-se de todos os referentes externos e todos os domínios do saber e, portanto,
encontra-los ele próprio a partir da sua razão. Só que, ao também do Direito.
faze-lo, acaba por hipertrofiar a sua autonomia. Historicismo: o pensamento moderno-iluminista
Imagina-se átomo ou partícula indivisível capaz de se veio privilegiar a empiricamente constatável
autodeterminar totalmente com base na sua razão e sucessão de ocorrências pontualizadas,
dando origem ao individualismo, segundo o qual é a reconhecendo a importância da história
partir da sua autonomia que o homem constrói a ordem para compreender a cultura e a realidade.
do mundo, legislando-a.

Fator Social Fator Político


Uma vez liberto de todas as teias O Homem é entendido como um individuo livre, autónomo, e racional,
ético-religiosas, ou seja, de todas que prossegue voluntariamente os seus interesses. Coloca-se o
as orientações de sentido problema essencial da convivência: procuramos articular as liberdades
veiculadas nos contextos sociais, atomizadas; a solução para foi a proposta do contratualismo,
o Homem viu-se a sós consigo segundo o qual a criação de vínculos jurídicos só pode resultar da
para determinar as razões da sua vontade humana por via convencional ou contratual, tanto no que se
conduta. Nesse isolamento os refere aos contratos entre os particulares, como também no que diz
seus desejos manifestaram-se, e a respeito à construção da própria sociedade e à sua ordenação
relação com o Mundo enquanto através da lei. Entendeu-se que os cidadãos procuravam participar
objeto (o interesse) converteu-se num contrato através do qual se constituía ou inventava a sociedade,
no seu principal critério de ação. estabelecendo voluntariamente as respetivas regras sob inspiração da
Compreendida enquanto forma razão humana. Estas regras procuravam justamente conciliar a esfera
de satisfazer os interesses com da liberdade de todos os cidadãos com a liberdade de cada um.
bens e serviços limitados, a Dentro dessa esfera cada um atuaria como entendesse para perseguir
economia criaria condições para os seus interesses, desde que não se intrometessem na esfera alheia. É
o surgimento do capitalismo; relevante referir vários modelos contratualistas construídos por diversos
gradualmente legitimou-se a autores como Hobbes, Grotius, Locke, Rousseau ou Kant. As três
atuação pautada por uma propostas mais emblemáticas são a de Hobbes (o contrato visa
preocupação específica de assegurar a segurança individual), Locke (há Direitos Naturais anteriores
eficiência, em vez de orientada à constituição da Sociedade, entre os quais destacamos a vida, a
por ideais éticos ou liberdade, e a propriedade) e Rousseau (o contrato visava assegurar a
mandamentos religiosos, autonomia individual e coletiva, o que só seria possível através de uma
traduzida individualmente na liberdade em condições de igualdade). O direito é o estatuto de
prossecução do lucro, do êxito, e coordenação das liberdades de todos e de cada um e as regras de
do sucesso como realização convivência que o definem são leis, pois são produto do próprio
pessoal – sendo que a acordo constitutivo da sociedade. São gerais (iguais para todos),
acumulação de capital é o seu abstratas (referem-se a tipos de ação pensados como categorias
maior símbolo. lógicas) e formais (apenas definem as condições do jogo, delimitando
a esfera de cada um relativamente à dos outros).
O contexto ideológico
Os fatores referidos potenciaram duas ideologias: a liberal e a democrática.

O liberalismo afirma a liberdade preponderantemente à igualdade (sobrevaloriza as


garantias individuais), enquanto que a democracia afirma a igualdade com mais ênfase do
que a liberdade (acentua a igualdade e a vontade da maioria). O problema do Estado no
século XIX foi de resolver esta tensão que se estabelecia entre dois planos complementarmente
integrantes da validade de uma ordem de direito (desigualdade e igualdade).

Estas duas ideologias acabaram por se sintetizar e dar origem ao Estado demoliberal. E
culminaram politicamente numa exigência comum: de que a vivencia social fosse definida
por leis (pois só estas, atenta a respetiva generalidade e abstração, poderiam recorrer para
realizar a liberdade e a igualdade entendidas como valores formais)

Facto político
A Revolução Francesa foi precisamente o facto político que pretendeu transformar em
realidade este pensamento, instituindo o Estado de legalidade formal.

Quando nos centramos no pensamento moderno-iluminista, vimos a codificação a


transformar o direito natural em direito positivo. Agora, acabamos de ver a revolução como
o mediador necessário da realização histórica deste pensamento, levando-o à efetivação
na prática política.

Conceção racionalista do direito


Para o positivismo, o jurista apenas conhece o direito, mas não colabora na sua constituição:
para o pensamento jurídico positivista, o direito estava dado nas leis que, por isso mesmo, se
criavam antes para se aplicarem depois.

 Paradigma do pensamento positivista: segundo a visão formal do direito, este é associado à


lei, que é produto da vontade geral e norma racionalmente universal – com uma estrutura
hipotética condicional (prevê a hipótese e dá-lhe uma resposta) e com as características
específicas referidas (generalidade, abstração e formalidade em sentido estrito).

Escola Histórica Alemã e Escola Exegese (França)


Perante a realidade de um Direito legalmente organizado em códigos completos, as
reações académicas foram diversas. Em França desenvolveu-se uma Escola dedicada a
interpretar de modo fiel os textos, a Escola da Exegese.

Na Alemanha, Savigny, principal nome da Escola Histórica do Direito, desaconselhou a


aprovação de um Código Civil Alemão; a EH visava combater o legalismo emergente em
França e constituiu um importante fator propiciatório da emergência do positivismo jurídico,
tendo se levantado contra a racionalidade abstrata dominante. E opôs-se-lhe, sustentando
que o direito não era um produto de uma vontade racionalizada em termos abstrato-
universais, mas que constituía uma manifestação geral da história cultural de cada povo
(devendo ser procurado nas instituições culturais de cada um em particular). A EH pretendia
criar uma ciência histórica do direito (caráter histórico).

Positivismo Epistemológico:
O último fator determinante do positivismo jurídico foi o triunfo do Positivismo Cientifico, que
vigoraria todo o século de 800. Como corrente filosófica, foi criada por Augusto Comte com a
pretensão de estender os princípios e métodos das ciências empírico-analíticas a todos os
domínios da reflexão humana. Depois de uma era humana dominada pela religião,
destacamos uma outra direcionada para a metafísica e para as ciências, durante a qual se
verificou a redução de toda a validade cultural ao esquema das disciplinas empírico-analíticas.

Também o Direito quis ascender o estatuto científico e participar do mesmo prestígio das
ciências: o pensamento jurídico tinha o seu núcleo no direito pré-dado, nas normas criadas
pelo legislador, e aos juristas cumpria apenas conhecer essas normas, pelo que que a sua
tradicional tarefa prática se transformou numa (teorética) preocupação de conhecimento
de um objeto.
O positivismo jurídico – coordenadas caracterizadoras
Coordenada político-institucional
O positivismo radicou numa certa compreensão do Estado: a do Estado moderno do
contratualismo individualista, ou Estado representativo demoliberal, que deu origem ao
Estado de Direito de legalidade formal, estruturado por três princípios basilares:

• Princípio da Separação de Poderes – está ligado a dois autores: Locke e


Montesquieu. Para este último a melhor forma de combater o monopólio do
poder régio seria reparti-lo e dividir os vários poderes, mas esta proposta foi
ultrapassada na prática pelo ascendente do poder legislativo (o Supreme Power
de John Locke) sobre os poderes judicial e executivo. Como expressão da
Vontade Geral e instituição soberana no Senado inglês, o Parlamento torna-se o
novo detentor do poder supremo da ordem interna e na esfera internacional e o
lugar eleito para a manifestação normativa da vontade nacional.
• Princípio da legalidade – a lei, agora entendida como estatuto geral, abstrato e
formal da prática política e da ação concreta, estava na base de toda a vida
de relação; os poderes executivo e judicial tinham, portanto, que atuar
cumprindo, de modo estrito, o prescrito pela lei (supremacia/prevalência da lei);
assim, a lei é a única fonte imediata de direito (reserva de lei).
• Princípio da independência judicial – a proclamada independência do poder
judicial definia-se como uma mera obediência do juiz à lei, através do
paradigma da aplicação: silogismo lógico-dedutivo

Visava-se que os juízes não recebessem ordens de ninguém aquando da decisão de casos concretos;
contudo, o juiz tem sempre uma necessária participação no processo constitutivo da juridicidade vigente.

Coordenada especificamente jurídica


Traduz-se na identificação do direito com a lei. Através de uma perspetiva
especificamente jurídica, o positivismo caracterizou-se por uma redução do direito à lei. De
acordo com uma conceção político-social contratualista, todas as ordens culturais nascem
na sequência de um ato de vontade dos homens livres. Neste entendimento, na base do
direito estaria um acordo de vontade dos homens livres e racionais, relativamente às regras
que deviam regular a vida social.

A lei era a forma jurídica da vontade geral, que seria geral porque se dirige a todos, e
ainda seria abstrata porque alheia-se do concreto, do específico e do particular para
alcançar o comum e o típico. Por outro lado, era apenas formal, ou seja, apenas
enquadrava a ação, definia os limites da autonomia individual sem indicar os interesses e os
objetivos a alcançar, e ainda tem uma pretensão de estabilidade, ou seja, seria uma
prescrição jurídica ditada pela razão. A lei apresenta duas dimensões imprescindíveis: uma
voluntária e outra racional, ou seja, a lei enquanto comando, prescrição ou estatuição
normativa tem a sua fonte na vontade do povo e no poder soberano que a representa. A lei
é assim uma norma racionalmente universal, geral, abstrata e formal, subtraída à
contingência e mutabilidade do individual, do concreto e do histórico (ou seja, imutável).
Coordenada axiológica
Traduz os valores formais da igualdade perante a lei e da certeza do Direito. Devido à
consideração da lei como a expressão jurídica da razão, acreditava-se que bastaria a
submissão do Direito à forma legal para que se realizassem e cumprissem estes valores; a
racionalidade da lei concretizaria as exigências normativas da juridicidade, com a sua:

• Generalidade: assentava na liberdade, mas também excluía o arbítrio e os


privilégios, procurando concretizar uma ideia de autossubsistência e uma
exigência de igualdade
• Abstração: procurava assimilar o comum parificador, e também procurava
atingir e assegurar uma ideia de permanência
• Formalidade: procurava definir o status das possibilidades de atuação e
autodeterminação dos sujeitos, sem impor fins para permitir a cada um a
prossecução/realização dos seus próprios fins e interesses; a lei procurava afirmar
a pureza jurídica da sua intencionalidade enquanto norma, garantindo uma
função politico-socialmente estatutária para assegurar a ordem das liberdades
de um modo igual e objetivo, permanente e seguro.
• Permanência/Imutabilidade: surgia enquanto condição da segurança. Uma vez
criado o Direito, a sua consagração concretizava-se em normas pré-escritas
gerais, abstratas, formais e imutáveis, permitindo aos cidadãos conhece-las
(certeza do Direito).

Coordenada funcional
Traduz a separação entre o Direito e o pensamento jurídico. Durante a Idade Pré-
Moderna, o Direito ia-se constituindo à medida das necessidades práticas da realidade
social, de tal modo que o pensamento que o refletia mantinha sempre uma
intencionalidade prática e o Direito impunha sempre uma reflexão constitutiva a propósito
dos vários casos. Na sequência do princípio da Separação de Poderes e da compreensão
legalista do Direito, as funções de criação, reflexão e aplicação jurídica são separadas de
forma intencional, institucional, e metodológica: uma coisa é a função de criar as leis, que
cabe aos órgãos políticos; outra é a tarefa de o conhecer na sua autonomia formal; e outra
ainda é a de aplicar o Direito já constituído, que deveria caber ao poder judicial.

Quebra-se assim a unidade intencional da filosofia prática Pré-Moderna, surgindo então


uma sisão entre o Direito pressuposto e de criação politica e o próprio pensamento jurídico,
que procura conhece-lo e que se lhe dirija.

A função do jurista era então apenas a de conhecer, em termos epistemologicamente


corretos, o direito-objeto; a sua função deixou de ser prático-normativamente judicativa
para ser teorético-axiomaticamente aplicativa.

Coordenada epistemológica-metodológica:
Do jurista prático apenas se esperava que conhecesse o Direito pré-escrito pelo
legislador, de forma a aplica-lo de modo neutro aos casos; com isto pretendia-se que o
Direito fosse concebido como uma ciência, e a sua metodologia como uma lógica
silogístico-subsuntiva. A ciência do Direito dedicava-se à interpretação das normas cujo
conteúdo não discutiam.

O método-jurídico positivista decompunha-se em três momentos fundamentais:

1) Um momento hermenêutico: interpretação dos textos legislativos através de uma


investigação filológica e uma análise centrada nos aspetos gramaticais.
2) momento epistemológico: elaboração de conceitos a partir das normas jurídicas
positivadas e posterior concretização logico-formal, para formar um sistema que
permitiria multiplicar os conceitos por abstração e determinação e deduzir
soluções das próprias construções conceituais (a genealogia dos conceitos).
3) momento técnico: aplicação lógico-dedutiva das normas aos casos segundo o
esquema do silogismo judiciário.
O positivismo jurídico – atual superação
Comprovaremos, em primeiro lugar, a completa alteração, entretanto ocorrida, do
contexto histórico-cultural e político-social em que emergiu e floresceu o positivismo; e
constataremos, depois, a profunda modificação, que abalou, nas últimas décadas, o
especificamente jurídico horizonte por ele pressuposto.

Fatores do contexto histórico-cultural e político-social


Das relações do direito com a sociedade verificamos que o ius não é um fenómeno isolado,
porque reflete sempre o contexto histórico-cultural e político-social em que se manifesta.

Uma nova cultura:


Diferente perspetiva antropológico-cultural:
O positivismo tinha como fundo o cientismo, que vigorou durante o século XIX:
acreditava-se que a ciência era a chave de tudo.
No fim do século, no entanto, o cientismo entrou em crise, e reconheceu-se,
finalmente, que o homem não tinha todos os problemas enquadrados e
tendencialmente resolvidos pela ciência. É que os problemas práticos implicam
uma relação de meio-fim; são diferentes dos problemas técnicos, que pressupõem
uma validade (relação de fundamento). Surge uma nova compreensão do
Homem em relação ao mundo: passou a conceber-se enquanto sujeito concreto,
histórico e social – ou seja, enquanto pessoa circunstancial e histórica –, em vez de
um individuo compreendido de forma abstrata. O Homem passa a compreender-se
enquanto sujeito ligado ou relacionado a um tempo e a um lugar.
Novo quadro epistemológico:
Ao lado das ciências empírico-analíticas, começou a falar-se em ciências históricas
e ciências culturais. Assim, o mundo humano tornou-se bem mais complexo,
integrando muitas outras dimensões.
Uma nova intencionalidade político-social
Num plano político-social, no contexto pós-segunda guerra mundial, assume-se uma
visão diferente do estado. Passa-se de um estado liberal para um estado social (que
visa a diminuição de desigualdades e o combate das carências), influenciando a
construção da legislação, que até aqui se reduzia a normas.
As leis aparecem como uma estrutura final, e o direito é direcionado para fins. A
passagem do pensamento formalista para o pensamento finalista baseia-se nas:

 leis-plano: define-se um grande programa Estas leis estão limitadas pelo


final e depois convoca-se um conjunto princípio da superação dos
de meios para o atingir.
poderes, pelo que têm de estar
 leis-medidas: vêm contrariar a lei justificadas, e têm também de
moderno-iluminista – são leis particulares respeitar a igualdade material
destinadas para determinados indivíduos e
(tratar igual o que é igual e
casos concretos, e são ainda temporárias.
diferente o que é diferente).
Do ponto de vista financeiro não é possível fazer face a todas as necessidades
sociais – daí a crise do Estado providência.

Fatores especificamente jurídicos


Alteração do sentido do principio da igualdade Caráter lacunoso do direito constituído
Deixa-se de compreender uma igualdade formal perante a lei, Há mais direito do que aquele que o sistema
para se adotar uma igualdade material perante o direito (o direito formalmente pré-escrito objetiva; há casos,
não se reduz à lei, é mais do que ela, ou seja, a igualdade material justificadamente reconhecidos como juridicamente
tem um fundamento translegal). relevantes, para os quais o sistema pré-objetivado
A lei é um insuficiente critério de igualdade, porque não constata deveria ter previsto um critério de resolução, mas
as situações concretas e só garante a igualdade para os casos não o fez – há, portanto, lacunas no direito já
que prevê, deixando de fora casos concretos. constituído.
Passagem do Estado de Direito Formal para o Estado de Direito Recuperação da distinção entre lei e
Material (Estado de Jurisdição ou mesmo de justiça) direito

O positivismo legou-nos o Estado de Direito de legalidade formal, e a


Antes da afirmação do positivismo havia
sua superação implicou a conversão desse modelo de Estado num
várias fontes de direito; contudo, com
autêntico Estado de Direito material, que invoca princípios para além
este pensamento todo o direito passou a
da lei e se preocupa em compossibilitar na prática a intencionalmente
ser lei.
legitimante normatividade jurídica com o pragmaticamente poder
No processo de recuperação desta
político.
distinção afirma-se que há critérios para
Alterou-se, portanto, a relação entre os poderes tradicionais do Estado
além da lei (como a doutrina e a
de Direito de legalidade, uma vez que cresceu a importância do poder
jurisprudência) que também fazem
jurisdicional na constitutiva conformação do direito vigente. Assim,
parte do direito. Os direitos
cabe aos tribunais ajuizar da validade das leis, revelando-se o
fundamentais e os princípios normativos,
importante papel do juiz na fundamentação dos princípios e
por exemplo, existem antes e acima da
exigências de valor que o direito mobiliza para dar respostas justas e
lei, transcendendo, assim, a legalidade.
racionais aos problemas (processo dialógico-argumentativo).
Superação do paradigma positivista (juridicismo formal) por uma intenção jurídica material
A experiência mostrou que o direito não poderia continuar alheio às soluções das lacunas do direito já constituído.
Começou então a ganhar forma a ideia de que aquele juridicismo formal teria que ceder lugar a uma autêntica
juridicidade materialmente densificada.
O Direito Privado é um dos campos onde é possível considerar o problema referido, uma vez que nos apresenta vários
exemplos que demonstram esta superação da visão individualista do homem.
O regresso à comunidade (culturalmente reconhecida), à qual associamos um conjunto de valores, permite-nos
ultrapassar a visão individualista e assegurar o equilíbrio necessário entre autonomia e responsabilidade:

Positivismo Superação
apenas deu importância à autonomia Reconheceu compromissos práticos entre autonomia e responsabilidade

O homem é um ser de interesses e é preciso equilibrar o individualismo com preocupações de caráter social. Contudo,
esta superação fez-se de forma perversa através da criação de grupos, que protegiam interesses individuais, mas inseridos
em corporações.
Revela-se a importância do princípio da autonomia privada (estruturante do direito civil):

Positivismo Superação
é assumido de forma equilibra-se com base nos direitos, deveres e limitações a abusos previstos. Ex: a observância
individualista da boa-fé impõe um compromisso que flui da vontade e da bondade. (arts 227º e 762º/2 CC).
Na esfera do direito contratual:

Positivismo Superação
princípio pacta sunt servanda: princípio da imprevisão: há certas circunstâncias que exigem alterações ou
os contratos deviam ser pontual mesmo a resolução do contrato apenas por uma das partes (se puser em
e estritamente cumpridos causa, nomeadamente, a boa-fé).

Positivismo Superação
se um indivíduo fosse titular de um direito critério do abuso do direito (artigo 334º CC): o titular não pode
e tivesse capacidade requerida para o ultrapassar os limites normativo-jurídicos do direito particular
exercer, poderia fazer dele o que quisesse subjetivo invocado.

As cláusulas gerais, na medida que implicam uma vigilante atenção à intencionalidade problemático-normativa dos
princípios materialmente densificadores de uma certa comunidade, apresentam-se-nos com um conteúdo material só
concretizável em referência ao caso decidido e, portanto, apenas determinável por mediação judicativa (em lugar de
terem um caráter formal, abstrato e pré-determinado).
Verifica-se a utilização cada vez mais frequente e propositada de formulações mais vagas e indeterminadas (sendo que
só é possível recorrer-se a expressões que sejam ambíguas).
Conclui-se a importância do caso concreto no estado de direito material ou de jurisdição, que remete para a doutrina e
a jurisprudência a interpretação).

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