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O HUMOR CUIABANO PELO WHATSAPP: a interatividade plena

Aline Wendpap Nunes de Siqueira1


Lúcia Helena Vendrúsculo Possari2

Com o advento das Tecnologias de Comunicação e Informação (TICs), a


facilitação de produção, recepção, envio, troca, comentários etc. sobre quaisquer
conteúdos vem sendo superada frequentemente, numa velocidade e num fascínio
atemporal e aespacial pouco vistos na história dos processos comunicativos.

Neste texto buscamos trazer parte de nossos estudos de cibercultura e de


ciberespaço, focando no tema humor veiculado pelo WhatsApp. A pesquisa em
andamento trata principalmente da interatividade produzida e difundida pelo
personagem “Xômano que mora logo ali”, figura criada à partir de brincadeiras
ciberespaciais, que um jovem publicitário de Cuiabá fazia para “zoar seus amigos”. Sua
identidade “é mantida em sigilo para não perder a graça da brincadeira”, como explica
em matéria o jornalista Raoni Ricci (2015). De acordo com Ricci, Xômano começou
“trolando” os amigos em sua página pessoal do Facebook e como as postagens
repercutiram muito, ele criou uma página pública para o personagem. Os resultados
demonstram o imenso sucesso, pois hoje a página conta com mais de 80 mil curtidas e
até o presente momento é assunto comentado por mais de 23mil pessoas. Com todos
estes índices, seus conteúdos extrapolam o contexto do Facebook e suas postagens são
compartilhadas e divulgadas também pelo Instagram, YouTube, além do aplicativo
WhatsApp, para o qual este trabalho volta seu olhar.

Os conteúdos mantém a abordagem humorística como uma constante e variam


entre imagens (sobretudo memes) e textos audiovisuais. A produção acontece
normalmente à partir da reelaboração ou ressignificação de produtos canônicos, ou seja,
aqueles já consagrados pelo público e/ou crítica, originários de diversas mídias, como:
cinema, televisão, vídeos, quadrinhos, literatura, YouTube, dentre outras plataformas.

O cenário geográfico de evidência deste personagem, que iniciou suas atividades


no ciberespaço é a cidade de Cuiabá. Aqui, a veia humorística sempre pulsando,

1
Doutoranda do Programa de Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT. Bolsita CAPES;
alinewendpap@gmail.com
2
Orientadora do trabalho. Professora Titular do Programa de Estudos de Cultura Contemporânea da
UFMT; luciahvp@hotmail.com
atravessou os séculos com sátiras – como as de teor político escritas por Rubens de
Mendonça (1978) –; com chistes; com teatro de comédia – cuja maior estrela foi Liu
Arruda, com seus marcantes personagens, mas que reinventa-se com “Nico & Lau”
(desde a década de 90, até hoje), com “As Fias de Mamãe” (1999) e em “Segredos de
Almerinda” (2001) –; em seções de jornais e revistas (destaque também para Liu Arruda
com a Comadre Nhara); também pelo rádio (Totó Bodega); pela TV – com Nico & Lau,
Comadre Pitú – e, mais recentemente pela internet.

O que se observava nos textos DE QUEM? era, geralmente, uma ironia fina
sobre o falar cuiabano, ou mesmo uma desfaçatez em relação a ele. Superado o
momento que Possari (2005) nomeou como “operação resgate” da cultura cuiabana –
em que os envolvidos estavam imbuídos em “fazer com que o linguajar e a cultura
musical dos cuiabanos fossem respeitados” (POSSARI, 2005, p. 171), no contexto
atual, o falar cuiabano continua a ter lugar privilegiado, embora não mais com sentido
de resgate, em audiovisuais, que buscam o riso, vide as inserções televisivas da dupla
“Nico & Lau”, que usam o risível (baseado especialmente no linguajar), para chamar a
atenção a assuntos de utilidade pública.

Outro exemplo de inserção midiática de personagens que “falam


cuiabanamente” (POSSARI, 2005) é o próprio “Xômano que mora logo ali”. Pois, ele
juntamente com outro personagem mascarado também fenômeno da internet, o “K-beça
pensante” repaginaram o linguajar cuiabano, desde a perspectiva dos jovens.
Protagonizaram, assim como Liu Arruda em sua época, um movimento de ascensão do
cuiabano ou da “cuiabania” na rede mundial de computadores. Devido ao grande
sucesso e número de seguidores provenientes da internet eles passaram a apresentar o
quadro “Cê Qué Vé Ixcuta”, que vai ao ar toda sexta-feira, dentro do “Programa Pop
Show” comandado pelo apresentador e político Éverton Pop e veiculado pela TV Band
Mato Grosso.

Tais acontecimentos corroboram com o pensamento de Geertz (2000, p. 183),


quando ele afirma que trava-se pelo humor ações simbólicas da paixão e do sentimento.
Até porque veremos que ainda há, no trato do falar cuiabano, piadas, o que não deixa de
ocorrer também sobre os demais falares aqui presentes, representando a vasta migração,
e o jogo entre os de cá e os de lá. O meme abaixo é uma amostra a interculturalidade
possível à partir da situação climática atípica vivida pelos moradores de Cuiabá em
junho de 2016.
Título: Trocando as bolas
Autor: Xômano que mora logo ali

Fig. 01 – Meme elaborado pelo “Xômano que mora


logo ali” recebido por WhatsApp em 29.06.16

A esse respeito Gruzinski (2001) observa que as culturas podem se misturar


quase sem limites, até se perpetuarem, pois os elementos opostos da cultura tendem a se
excluir mutuamente, mas ao mesmo tempo, tendem-se a se interpretar e a se identificar.

O humor é um elemento da cultura, que além de promover a resistência,


apresenta-se como sabedoria. O humor inteligente é capaz de, com simplicidade e graça,
fazer rir. O leitor, ao rir, compartilha do texto com o autor, interagindo com aquele, seja
no apelido, na caricatura ou na piada, produzindo sentidos, e, com isso, contribuindo
com a cultura da graça ou da ironia. (CONFORTIN, 1999).

APORTE TÉORICO DOS CONCEITOS DE INTERAÇÃO E INTERATIVIDADE

Os processos interacionais dizem respeito à produção conjunta de sentidos: polo


da emissão e polo da recepção. O autor/produtor/diretor e o leitor de todos os gêneros
textuais necessitam interagir, a partir das condições de produção do texto e das
condições de produção de leitura, para a construção conjunta de sentidos. É o que se
tem feito desde há muito: alguém produz um texto, alguém lê o texto. Os sentidos
atribuídos ao texto pelo leitor, exigem que sua história de vida e de leituras contribuam
para a leitura.
Os textos, antes das condições hipertextuais e ciberespaciais podiam ser lidos,
interpretados e, às vezes, dependendo do veículo, até questionados, com a opinião do
leitor. Todavia, tudo isto faz parte do processo de interação, pois, não havia e ainda não
há, em alguns casos, como interferir diretamente no texto original para modificá-lo. Esta
é a diferença entre interação e a possível interatividade.

Interação é o processo pelo qual interlocutores “inter-agem” e


decorrem daí os efeitos de sentidos. Interlocutores são entendidos
como dois polos de qualquer situação de comunicação (verba, não-
verbal, mediada por tecnologias ou não). Os interlocutores constroem
sentido conjuntamente (POSSARI, 2009, p. 41).
Interatividade diz respeito a ação do receptor que é a de interferir,
modificar o que está sendo objeto de aprendizagem (POSSARI, 2009,
p.41).

A interatividade a que nos referimos trata da possibilidade, nos processos de


ensino-aprendizagem, portanto, na construção do conhecimento, de o polo interator
contribuir individualmente ou, na construção coletiva/colaborativa de conhecimento.

Sobre isto Braga (2004) difere sistema de retorno e sistema crítico. Para o autor,
o sistema de retorno refere-se às potencialidades críticas da sociedade, agindo
concretamente sobre a produção, seus processos objetivos e suas qualidades. O sistema
crítico, por sua vez, pode se efetivar pelo retorno. (BRAGA, 2004, p.63). Para ele os
retornos são a crítica do leitor a determinado tema/artigo; gosto ou não gosto por
determinada propaganda.

Diferentemente dessas abordagens, nossos estudos referem-se menos ao retorno


e à crítica e mais à interatividade permitida pelas TICs, computador, internet, redes
sociais etc., tendo como único locus, cenário de pesquisa, o WhatsApp. Dentro do
WhatsApp nos interessa apenas os textos já modificados de sua origem, enviados e
reenviados por todos e para todos por intermédio do aplicativo, e, é claro, comentados
por alguns.

Interatividade, então para nós, é a concepção de que textos podem ser


modificados – desde que a tecnologia permita – para que outros sentidos possam ser
atribuídos pelo leitor. Neste caso, os sentidos gerados são de humor.
METODOLOGIA QUE ESTÁ SENDO CONSTRUÍDA EM ATO

Nossa pesquisa é de abordagem qualitativa. Partimos do referencial teórico da


cultura das mídias, das hipermídias, da cibercultura. Fez-se necessário ir aos cânones
dos textos audiovisuais, desvendá-los no que diz respeito a seus roteiros, direção,
enquadramentos, trilhas sonoras e edição, para traçar os paralelos entre eles e suas
releituras, a fim de elaborar as análises. Partindo dessas constatações inicia-se a coleta
dos textos-objeto de análise: os WhatsApp.

A investigação é feita através de netnografia, método de pesquisa derivado da


técnica etnográfica, em que a busca do pesquisador consiste em “compreender as
atitudes e valores sócio-culturais envolvidos nas ações do grupo estudado”
(PETERSON, 2005, p. 184). A netnografia é adequadamente usada para o
monitoramento de comunidades online, porque lançando mão dela, o pesquisador
submerge no mundo que estuda por um tempo determinado e leva em consideração as
relações que se formam, entre quem participa dos processos sociais, com o objetivo de
dar sentido às pessoas. (MONTARDO e ROCHA, 2005) Neste método, tanto o
ambiente em que se pesquisa, quanto a ferramenta usada para a coleta de dados é a
internet, popularmente conhecida como net, por isso o nome “netnografia”.

A pesquisa tem como objeto de estudo os produtos imagéticos ou audiovisuais,


frutos de interatividade com obras anteriormente concebidas para outros fins (como
filmes, clipes ou imagens sérias); que após esse processo de interatividade tenham
adquirido caráter humorístico e que sejam veiculadas pelo aplicativo WhatsApp.

Vimos coletando, os textos, durante três meses, para compreensão, análise dos
mesmos, no que se refere à interatividade, possibilidades de o leitor atribuir outros
sentidos, para muito além do texto original. Da mesma maneira, acompanhamos a
interação, os comentários. Não que este último seja a razão, mas para a confirmação de
se a modificação no texto mesmo, em sua forma e conteúdo, possibilitou ao leitor
atribuir sentidos pretendidos, ou mesmo, outros sentidos, para o que foi modificado do
cânone (texto original).

A internet mudou o mundo na sua constituição e complexidade. Assim também a


leitura e a atribuição e sentidos foram afetadas. O que é feito no “Xômano que mora
logo ali” já é consequência de processo interativo. É instigante. Cabe-nos investigar,
pois, na cibercultura, ler significa hibridar, escolher, optar, decidir, montar, colar,
ressignificar. (POSSARI, 2009).

A CULTURA CONTEMPORÂNEA

O fortalecimento das culturas locais tem se tornado algo essencial no combate à


implantação de uma identidade planetária, ou nas palavras de Felix Gattari e Suely
Rolnik (1996): da subjetividade capitalística. Subjetividade esta, que já vem pronta e
bem embalada, forjada pelo processo de globalização como sendo inclusiva, mas que na
realidade mostra-se "desequilibrada e com traços perversos como não poderia deixar de
ser, porque foi arquitetada pelas empresas e governos dos países desenvolvidos em
busca de novos consumidores, já que seus mercados internos estavam saturados"
(SENNA, 2011, p. 11).

Entretanto, esta mesma via pode ser usada pelas culturas locais como fonte do
que resistência (GATTARI e ROLNICK 1996), ainda mais após o advento,
consolidação e expansão da internet. A evolução tecnológica fez com que os processos
interativos ganhassem mais potência, como já dissemos acima. Pois, antes da
informatização da sociedade, estes ficavam restritos muito mais, a pura e simples
interação. O que significa dizer que o indivíduo, somente recebia os conteúdos. E
mesmo que tivesse vontade de alterar o que era recebido, não lhe era oferecida essa
possibilidade, pois não detinha as condições de produção.

Todavia, ainda que de maneira superficial, a interatividade é um processo que


sempre existiu. No bojo da contemporaneidade, onde os avanços tecnológicos se
tornaram palpáveis para grande parte da população, a interatividade alcança um estado
de plenitude. É óbvio, que desigualdades sociais ainda persistem, e questões
educacionais ou instrucionais continuam importantes e fazem diferença. Porém, o
acesso às condições de produção e difusão, que possibilitam que qualquer um seja
autor, nunca estiveram tão fáceis e próximas. Mauricio Falchetti (2011) costura o
pensamento de vários autores, para pertinentemente ilustrar as transições do indivíduo
frente ao processo comunicacional. Este autor afirma ser possível situar três momentos
históricos durante o processo comunicacional da indústria cultural:
O primeiro remete ao indivíduo alienado que absorve toda a
informação que lhe é imposta (ADORNO E HORKHEIMER).
No momento seguinte, o indivíduo passa a discernir o conteúdo
midiático que lhe interessa e a descartar o restante (HAL, 2006);
e, em um terceiro momento, o indivíduo, além de filtrar as
informações, também passa a produzir conteúdo próprio e
difundir em meios segmentados (JENKINS 2008). É possível
observar essas três etapas ainda hoje, algumas delas em escala
menor, mas ainda existindo.

Este terceiro momento apontado por Falchetti (2011) em consonância com


Jenkins (2008) é precisamente o vivido por nós hoje. Porque o ciberespaço 3, antes
alcançável principalmente pelos computadores conectados por internet fixa. Encontra-se
hoje acessível ao toque de um dedo, via pacote de dados. Os dedos nervosos “ticando” a
tela do celular faz alusão a obra “A criação de Adão” de Michelangelo 4, como mostra a
imagem abaixo.

Fig.02 - http://acidcow.com/pics/10205-modern-
remakes-of-classic-paintings-45-pics.html

Assim, este “complexificador do real” – expressão com a qual Lemos (2013, p.


128) caracteriza o ciberespaço –, reinventa-se e mescla-se a realidade (aliás, ele não é
desconectado dela). Suscitando o que Adriana Silva (2006, p. 28) postula como sendo
realidade híbrida, aquela que “ocorre quando não mais se precisa ‘sair’ do espaço físico
para entrar em contato com ambientes digitais”. Neste contexto, a figura do espelho que

3
Termo inventado pelo escritor de ficção cientifica William Gibson no romance Neuromancer de 1984.
Designa um espaço não físico ou territorial composto por um conjunto de redes de computadores através
das quais todas as informações (sob as suas mais diversas formas) circulam. Gibson o chama de “A
Matrix” e diz que é a mãe, o útero da civilização pós-industrial onde os internautas vão penetrar.
(LEMOS, 2013. p.127)
4
A Criação de Adão foi pintada entre os anos de 1508 e 1510 pelo italiano Michelangelo Buonarroti.
<<http://noticias.universia.com.br/tempo-livre/noticia/2012/08/22/960448/conheca-criaco-ado-
michelangelo-buonarroti.html>>
http://acidcow.com/pics/10205-modern-remakes-of-classic-paintings-45-pics.html
leva “Alice5” a imergir no “País das Maravilhas” é extrapolada, uma vez que a completa
imersão do usuário não é mais necessária (embora ainda ocorra).

Como aponta Silva (2006, p. 28) “as bordas entre os espaços digitais e físicos,
aparentemente claras com a Internet fixa, se tornam difusas e não mais completamente
distinguíveis.” Portanto, torna-se difícil estabelecer onde começa a primeira realidade e
onde termina a segunda, porque elas estão imbrincadas. Tanto que Norval Baitello
Júnior (2004, p. 05) fala sobre a simbiose entre primeira e segunda realidade
(ciberespaço), que “interagem reciprocamente, em dupla mão de direção.” O autor
explica contudo, que mesmo uma sendo visceralmente plantada na outra, “o espírito
dual do nosso tempo” insuflou em cada uma delas a soberba da auto-referência
cindindo-as de maneira que nem a mobilidade e a fluidez do nosso tempo conseguissem
impedir (p.06).

O exemplo mais contundente dessa exacerbação para Baitello Júnior são os


fundamentalismos, que ao imperar sobre a “primeira realidade” incitam o sonho das
máquinas como deuses e quando age na “segunda realidade” tem-se a negação dos
corpos e da sua existência complexa. Norval (2004, p.06) conclui dizendo que “Em
ambos os casos a grande lesão que se produz recai sobre os sistemas de vínculos”.
Retomando as colocações de Adriana Silva, que contemporaniza esta discussão, ao
inserir o uso do celular como recurso de conexão entre as duas realidades. Ela não
contraria o que Norval coloca, ao contrário é a partir deste ponto que suas falam se
convergem para dizer sobre a interposição das realidades.

Em sentido prático, a vida na sociedade contemporânea possibilita que um


indivíduo munido apenas de seu aparelho smartphone produza, realize e difunda uma
obra audiovisual, por exemplo. Consequentemente tornando-se autor ou co-autor de
obras. A propósito, qualquer criança com um celular em mãos hoje é um cineasta,
videomaker ou repórter em potencial. É possível aos novos autores, tanto colaborar com
conteúdo apresentado pelos meios de comunicação tradicionais (dando sugestões de
mudanças para finais de novelas, por exemplo), quanto criar seu próprio conteúdo,
como os fã-filmes. (FALCHETTI, 2011). Afinal vivemos diuturnamente um processo
de construção colaborativa, que Jenkins (2008) chama de cultura participativa.

5
Personagem de Lewis Carroll recentemente adaptada para o cinema sob a direção de James Bobin
Uma das características mais recorrentes nos meandros da cultura participativa é
o humor. Os escritos sobre o assunto remontam a Antiguidade, com Aristóteles e outros
autores gregos, como Hipócrates e Sócrates, segundo Slavutzky (2008). Mas é possível
que ele estivesse presente, desde os tempos mais remotos da humanidade. A esse
respeito, a animação “Os Croods” produzida pela DreamWorks em 2013, mesmo sendo
uma obra de ficção apresenta de modo peculiar, como as narrativas, e porque não dizer
também, o humor começaram a ganhar representatividade na cultura humana.

Partindo deste ponto é possível elucubrar que o homem é a única criatura do


universo que sempre teve aptidão para o riso, para o humor. Como coloca Freud (1903)
outros animais não dispõem desta capacidade, o que está em consonância com a
afirmação de Bergson (1940, p. 07) de que “não há comicidade fora do que é
propriamente humano.” Portanto, somos levados a pensar que é necessário ter algum
intelecto para chegar ao riso. Como coloca Saliba (2002) somente se chega ao riso
quando se entende a mensagem transmitida. Ou seja, mesmo em um meio onde as
máquinas fazem a intermediação da comunicação, como é o caso do ciberespaço, em
que a propagação de mensagens é mais veloz do que um “rastilho de pólvora”, a
mensagem deve ser compreendida por quem a está acessando, para que o riso aconteça,
pois a capacidade de rir continua sendo inerentemente humana.

No Brasil, os principais responsáveis pela atual conjuntura social são: os


avanços tecnológicos, a popularização do acesso a esses avanços, somados a
instabilidade política.

Sobre os avanços tecnológicos é possível dizer que, nos últimos tempos, o ponto
crucial de mudanças ocorreu com a evolução da internet (tanto fixa, quanto móvel). Em
primeiro lugar, a transformação da Web 1.0 para a Web 2.0. Segundo Blattmann e Silva
(2007, p. 04) esta questão representa “uma revolução (...) na maneira de gerenciar e dar
sentido ou ofertar a informação on-line”, pois segundo os autores esta nova internet
“possibilita a criação de espaços cada vez mais interativos, nos quais os usuários
possam modificar conteúdos e criar novos ambientes hipertextuais” (p. 02).
Paralelamente a Web 2.0, a internet móvel (usada nos dispositivos móveis: celulares,
tablets, pages, etc.) também vem apresentando mudanças significativas. No presente
momento, esta última encontra-se em sua quarta geração, por isso recebeu o apelido de
Internet “4G”. Cardoso, Rodas e Andrade (2014) afirmam que a velocidade deste tipo
de conexão é “até dez vezes superior às redes atuais.” Estes autores pontuam que a
tecnologia “4G permitirá melhor acesso a conteúdos multimídia como vídeos em alta
definição, videoconferências e músicas diretamente da internet.”

Na esteira dos avanços tecnológicos, o consequente barateamento do acesso a


eles, juntamente com o crescente poder aquisitivo das classes menos favorecidas
economicamente (via parcelamentos) gerou a imensa popularização dos aparelhos
smartphones (que possuem a capacidade de gravação, edição e disseminação de vídeos
pela internet). Estes aparelhos causaram uma revolução na forma de ver e se conectar
com o mundo. O que na verdade, ainda é imensurável, pois faz parte do presente. Esses
dispositivos comprimiram o tempo e o espaço, de maneira muito mais expressiva, do
que a internet fixa já havia feito, permitindo o acesso diversos segmentos sócio-
culturais.

O terceiro elemento que dá forma ao cenário contemporâneo brasileiro é a


instabilidade política. Esse item traz agregado em si, a mais importante faísca para o
revigoramento da chama humorística já inerente à sociedade brasileira. Ainda que os
elementos anteriores (desenvolvimento tecnológico e popularização do acesso) também
colaborem para o acendimento da fogueira do riso, que pulsa no peito da grande maioria
dos brasileiros. O povo que ri, mesmo durante os atos de sua própria tragédia.

Qualquer sociedade, que disponha de um sistema político, seja ele qual for,
nunca disporá de uma a situação completamente estável. Mesmo em regimes totalitários
ou absolutistas, forças contrárias ao poder se coadunam para ganhar vitalidade e tentar
derrubar o que está instaurado. Ou não é isso que vemos em Shakespeare e
Maquiavel?!? Entretanto, existem soslaios de tranquilidade. Na jovem democracia
brasileira, a relativa calmaria democrática foi quebrada a partir das manifestações de
junho de 20136.

Uma característica doo povo brasileiro, ao ser sistematizada e ganhar corpo em


algum tipo de linguagem gera o riso carnavalizante (LÚCIA HELENA, 2004). Na
literatura, uma das primeiras e principais manifestações deste veio cômico e
antropofágico vem à tona com Gregório de Matos, que ao optar “pelo tom rebelde e
audaz do MUITO RISO, POUCO SISO” insere o riso de escárnio como uma crítica ao
contexto social. Porque o riso carnavalizante “não fala o discurso do poder, mas nele
penetra e o descontrói” e num segundo momento “é uma confluência de discursos,
6
<http://www.portalintercom.org.br/anais/centrooeste2014/resumos/R41-0509-1.pdf>
descontínuos e repentinos” (LÚCIA HELENA, 2004, p. 28 e 29). A autora diz ainda,
que este elemento “Coloca em cena e encena um grande carnaval povoado de máscaras.
(...) É o riso do louco, do bufão, do clow chapliniano, de todo aquele que tenta se pôr,
simultaneamente, como o sujeito e o outro” (LÚCIA HELENA ,2004, p. 28 e 29). É
muito particular do humorista tentar pensar a partir desses dois lugares, do seu próprio e
do outro.

Talvez porque precise antever a resposta, ou a próxima pergunta, para poder


elaborar as sátiras, as paródias, etc. Logo, este riso não necessariamente, substitui uma
verdade por outra, mas, na esteira de Gregório de Matos, dissolve “a verdade, no non-
sens”. Deste modo, o humor age como transformador de olhares e visões, formulando a
geração de novos sentidos, ou sentidos outros, para questões profundas e delicadas.

A instabilidade política brasileira e os ânimos acirrados em Brasília têm sido


alvo de inúmeras piadas, charges, memes, sátiras, paródias, etc. Como demostra a
imagem abaixo recebida várias vezes, por whatsapp, no mês de maio de 2016.

Fig.03 – “Brasília tá pegando fogo”

Em Mato Grosso, mais especificamente na capital Cuiabá, as conturbações no


cenário político também tem sido constantes. O agravamento da situação ocorreu
principalmente após a escolha da “cidade verde”, como umas das sub-sedes da Copa do
Mundo de Futebol de 2014. Culminando com a prisão do ex-governador Silval Barbosa
em setembro de 2015, acusado de desvio ilegal de verbas nas obras da Copa. Uma vez
que, a crítica política é um dos elementos motores do humor praticado pelo sujeito aqui
estudado “Xômano que mora logo ali”, esse episódio, assim como alguns que o
antecederam, além de seus desdobramentos suscitaram a produção de montagens de
imagens e textos audiovisuais. Como a que segue abaixo.

Título: Onde está Silval Barbosa?


Autor: Xômano que mora logo ali

Fig. 03 - Releitura do “Xômano” para “Onde está


Wally?”

A figura acima foi produzida por ocasião do sumiço do ex-governador de Mato


Grosso, que teve pedido de prisão preventiva decretado em 15 de setembro de 2015, mas só se
apresentou à Polícia no dia 17 do mesmo mês, passando dois dias como procurado. Neste
interim “Xômano” produziu o meme em conexão direta e explícita com a série de livros
infanto-juvenil “Onde está Wally?” criada pelo inglês Martin Handford em 1987, sucesso
mundial, que levou a criação de uma série animada e uma tira de jornal. Nesta imagem Silval,
o Wally da vez, está segurando uma espada e usa uma roupa de soldado romano, diferente do
Wally verdadeiro que sempre usa roupa e gorro listrados. Está localizado na parte central e
inferior da figura, embaixo da plataforma amarela e próximo de uma escada, que dá acesso ao
topo da mesma, onde há várias pessoas sentadas.

Outro viés bastante explorado por este personagem, para a sua produção imagética e
audiovisual é a condição climática de Cuiabá. As altas temperaturas já se tornaram marca
registrada da capital mato-grossense para restante do país. Contudo, quando o frio aparece, ou
mesmo tenciona aparecer por aqui a produção e circulação de memes, piadas, chistes, etc. fica
pululante. Inclusive uma das produções de maior repercussão do “Xômano”, repassada em
vários grupos oriundos da baixada cuiabana no ano de 2015, que voltou à baila no inverno de
2016 foi o vídeo intitulado “Cuiabozen” (figura abaixo).

Título: “Cuiabozen”
Autor: Xômano que mora logo ali

Fig. 04 – Print do vídeo “Cuiabozen”


no YouTube do “Xômano”

Este vídeo é uma releitura da cena em que a personagem Elsa canta a música “Let it go”.
Que se tornou tão famosa e tão repetida nas casas e nas rádios, a ponto de os autores da
música pedirem desculpas publicamente aos pais de todo o mundo pela composição. A
referida cena é a mais famosa da animação “Frozen” produzida pela Disney em 2013 e se
tornou um clássico e febre sobretudo entre as crianças. Para o vídeo “Cuiabozen”, “Xômano”
utilizando-se da melodia original do filme escreveu uma nova letra para a canção, baseado na
situação climática vivida pelos residentes em Cuiabá no inverno de 2015. Neste vídeo apenas
a parte sonora sofre alterações, enquanto o quesito imagens permanece inalterado, exatamente
como se encontra no cânone original. Todavia, ainda que tenha sido alterado apenas a
sonoridade, a produção de sentidos abre tantas possibilidades, que não daríamos conta de falar
sobre todas elas neste artigo.

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Nossos estudos continuam no cenário do que concebemos por cibercultura:
cultura contemporânea, marcada pelas tecnologias digitais. E, ainda, lugar
(ciberespaço), onde ficam armazenados temas diversos e que, a qualquer tempo,
pode ler lidos, relidos, reconstruídos.

Isto nos leva a pressupor que os atores sociais de múltiplas origens recebem e
ofertam sentidos a todos os textos disponibilizados.

A oferta do humor, no caso do nosso objeto, enseja cuidado na análise, pois


reapresenta textos que podem, ou não, inserir o desdém. E para se rir, desde que não
riamos de nós mesmos faz-se necessário, afastar, segundo Bergson (1982), a
emoção. Ainda que isto não seja nosso interesse primeiro de análise, esperamos
encontrar a oscilação entre o desdém e a lisonja. Continuaremos indagando...

Para o que intentamos até então, a capacidade interativa: tecnológica, de roteiro,


direção, diálogos, crítica sócio-político-cultural, dos realizadores do “Xômano que
mora logo ali” os elementos textuais de todos os gêneros, mídias geradoras,
formatos e plataformas, que ensejam o riso, é presente e pode ser conferida por
todos os seus elementos constitutivos.

REFERENCIAS
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