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Resumo
A peça As fias de mamãe (1998) coloca em cena temas sobre a experiência urbana, a
partir de duas personagens que sugerem, em suas histórias cotidianas, o que significa
viver às margens da economia de mercado e diante da precariedade das políticas
públicas, numa cidade como Cuiabá. Capital, que se encontra num momento de
passagem de século e de milênio. Tendo como direcionamento teórico os estudos
folkcomunicacionais, este trabalho entende o teatro como modalidade crítica da cultura,
principalmente no caso ora proposto, em que ele expõe politicamente as ranhuras da
vida local. Esta, por sua vez, em contato com o processo civilizatório, cria uma imagem
de cidade que se produz e reproduz, enquanto experiência urbana nos anos 90.
Palavras-chave: Experiência urbana; Teatro; Cidade.
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Trabalho apresentado no GP Folkcomunicação, Mídia e Interculturalidade do XVII Encontro dos Grupos de
Pesquisa em Comunicação, evento componente do 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
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Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pelo PPGECCO-UFMT, Pós-Graduando em Mídias Digitais para a
Educação EaD-UFMT, email: joilson.francon@gmail.com.
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Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea PPGECCO-UFMT; Mestre em Educação PPGE UFMT e Bacharel
em Comunicação Social –Habilitação Radialismo IL UFMT, email: alinewendpap@gmail.com.
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marginalização dos grupos de teatro, que não conseguiam ter acesso aos recursos
públicos, patrocínios, apoios e incentivos aos projetos cênicos que buscavam emergir na
cidade. De modo inédito, para uma geração de cuiabanos, que passou ao largo do hábito
de ir ao teatro, pela ausência de produções locais e de circulação de peças produzidas
em outros estados, alguns artistas na cidade de Cuiabá encararam a temática local e a
afirmação do que significa ser cuiabano, como oportunidade de, simultaneamente, gerar
renda e produzir crítica social. Era preciso, portanto, fazer uma espécie de elogio da
cultura local, nas fricções produzidas com as alteridades que atravessavam o estado de
Mato Grosso. Os costumes foram transformados em ferramenta de produção, não
apenas da vida social, mas também do fazer artístico.
Personagens com características cuiabanas constituíram momentos das artes
cênicas de atores e diretores, que conquistaram destaque nos espaços sociais e
midiáticos, produzindo um fenômeno instigante na cidade de Cuiabá: a superlotação de
teatros e espaços cênicos alternativos, com a encenação de peças que colocavam em
destaque personagens emblemáticos e com características dos cuiabanos, tudo isso em
um momento atravessado por intensas experiências de urbanização.
Na trama de As fias de mamãe, a demanda é por um teatro com marcadores
simbólicos da cultura popular rural, que transita para uma característica urbana, em
Cuiabá. A língua falada, que diverge com força da norma culta, por se tratar, segundo
Cristina Campos (2014, p. 116) de um “dialeto cuiabano” explicado por ela como sendo
uma variedade regional da língua padrão, e que apesar de possuir um sistema de signos
e regras combinatórias da mesma origem que a língua oficial, não tem o mesmo estatuto
cultural e social. No entanto, se apresenta como marca afirmativa da cultura popular, em
especial numa comédia de costumes, que expõe modos de relações familiares e sociais e
os atritos entre modernização e aquilo que insiste em entrar, a seu modo, na
modernidade.
Cuiabá, na década de 1990, enredava-se – com dinâmicas próprias – no processo
de urbanização nacional. Os fluxos da modernização, em escala global, implicam nos
avanços de capitais financeiros e tecnologias nas regiões brasileiras e nas áreas
periféricas da cidade. As cidades e as hinterlândias – caracterizadas por Luiz Beltrão
como lugar “mergulhado num quase isolacionismo e falta de condições e predisposições
para aceitar novas ideias e efetuar uma mudança social a curto prazo” (BELTRÃO,
2001, p. 238) – entretanto, não estão isoladas neste sentido. O Oeste brasileiro é
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meio de uma “cotinha”, para amenizar a situação precária do velório, expressam o nível
das relações sociais dos personagens e o modo de lidar com a precariedade apresentada.
Na mesma linha estratégica, o muxirum (mutirão) aparece como mais uma prática
comum, que visa economizar gastos com mão de obra. Bastante empregado em ações,
como: construções, reformas, limpeza de lotes, ou mesmo transporte de pessoal em
camionetes ou caminhões, etc. Para tanto, organizava-se um cardápio de baixo custo, que
desse de comer aos envolvidos (parentes, vizinhos ou membros da comunidade). Tudo isso
tendo como foco uma benfeitoria direcionada a um indivíduo, ou a mesmo a coletividade.
Portanto, a ação de empréstimo da "tombeira" (caminhão caçamba), pelo vizinho e amigo
da família, Seu Alis, para transportar a falecida até o cemitério insere-se neste âmbito. O
fator cômico da cena, aparece no momento em que todos os acompanhantes do cortejo
são expulsos do cemitério da hinterlândia Sucuri, por Chulipa, rival de Amazonina na
disputa pelo mesmo homem.
Catar piolho, como ausência de noções de saúde, entrar na fila de distribuição de
sacolão (cesta básica) pela LBA (Legião Brasileira de Assistência), engolir cuspe para
matar a fome, aparar goteira com panelas velhas no chão, vender móveis no pregão,
colocar a casa à venda, somam-se às experiências de se realizar um funeral que utiliza
rede, flores de papel crepom na ornamentação da rede, flores de plástico para a coroa
fúnebre, com faixa de TNT (tecido não tecido), escritos feitos com cola glitter, poucas
velas para durar um dia inteiro, uma dentadura sobressaindo à boca aberta da falecida,
que junta moscas; evidenciam mais características da condição social dos personagens e
como eles, de forma criativa e bem humorada, se reinventam. Enfim, os recursos
dramáticos da peça mostram a necessidade de sobrevivência e a dinâmica psicossocial
dos personagens, que permeiam o arcabouço de significados culturais, sobre o que
significava viver em Cuiabá pelas margens do urbano.
As fias de mamãe esgarça o imaginário da cidade, que ironiza sua própria
performance no enfrentamento da vida moderna. A rua do bairro onde moravam não
tinha asfalto e a água encanada muitas vezes faltava, devido aos problemas na rede de
abastecimento. Elas usufruíam de luz elétrica, transportes táticos em sistemas de
charretes, bicicletas, moto-táxi, ônibus ou caronas. Neste caso, considera-se a ironia de
si, como procedimento moderno de autocrítica, no qual os projetos que constituem a
vida contemporânea devem estar constantemente sob avaliação dos próprios atores
sociais.
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Nos anos 90, era uma prática comum presentear um morador da cidade com uma
sacola cheia de legumes, ervas medicinais, ovos, produtos cultivados no quintal ou na
roça. As memórias da sociabilidade ainda eram cultivadas no espaço urbano, mesmo ao
enfrentar a espera de um ônibus precário sob o sol forte da região, carregando o peso da
sacola de presentes e disputando lugar no ônibus desconfortável, com outros que
também utilizavam transporte público entre a hinterlândia e a cidade. Aumentar os
mantimentos da cozinha com os produtos colhidos na roça era uma forma saudável de
se alimentar e diminuir despesas da casa. Na sacola de Amazonina tinha mandioca,
abobrinha, maxixe, banana da terra, limão, laranja, doces, produtos de horta, raízes para
cura de enfermidades, tudo narrado como forma de presentear a mãe que vive na cidade.
Em dias de sábados, era comum acontecer bailes pela cidade. Estar com boa
aparência para frequentar as rodas sociais faz parte do cotidiano em As fias de mamãe.
Também faz parte deste cotidiano deixar a faxina da casa para os sábados. Uma dona de
casa cuiabana elege este dia para poder mudar os móveis de lugar, rearranjando-os
numa nova composição de ambiente da casa. Trocava-se o forro dos móveis, lavava-se
tudo que esteja empoeirado ou necessitando de reparos. Teias de aranha eram retiradas e
quando se tinha água encanada ou no reservatório, ela era usada para dar conta da
limpeza da casa. Todas estas práticas domésticas se realizam costumeiramente com
música tocada em alto volume, no rádio, no toca-discos ou no aparelho de fita K7
(cassete).
Sabe-se, ao menos em hipótese, que o nível de educação formal, a dinâmica da
globalização das informações, a condição de classe social e o nível do poder de consumo
da sociedade influenciam no gosto, na aproximação e na identificação com as produções
musicais difundidas pela indústria cultural. Deste modo, ouvia-se, sucessos locais e
nacionais dos anos 90, popularmente chamados de "música internacional-romântica-
lenta-traduzida". Um tipo de música de melodia e letras de fácil decodificação que, de
certa maneira, transcreveu uma realidade ou um imaginário e por isso mesmo entrava no
gosto do ouvinte, por dizer o que ele sente ou deseja sentir. Dentre os artistas
destacavam-se: Gretchen, Pinduca, Menudo, Giliard.
As músicas são divulgadas em diversos meios, em todas as classes e pode
abranger todas as camadas do público, sem distinção. Aliás, como contextualiza Gisela
Castro “Desde a consolidação da indústria fonográfica, quando a música gravada passou
a atrair o gosto do grande público e os aparelhos domésticos de som (...) foram
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dos espaços e dos desejos dos que vivem na cidade. Entretanto, aos poucos o tempo
moderno e cronológico passa a ditar o ritmo do cotidiano, e, altera, forçadamente, os
costumes, diante do mundo do trabalho que se instala.
Na peça, o sentimento das personagens reproduz o imaginário criado por
telenovelas e filmes de ficção. Tendo como parâmetro rituais fúnebres de famílias de
classe média, representados midiaticamente com muito choro, escândalo, gritaria, além
do desejo de ir-se junto com o morto, ou, o drama de como a ausência física impõe
sofrimento aos que permanecem vivos. Porém, ao mesmo tempo, no funeral da peça,
conhecidos e familiares conversam e contam piadas, de acordo com a vida real. Bem
como "bebem o morto" – prática comum que podia, e, ainda pode ser observada nestas
ocasiões – com bebidas alcoólicas, como forma de homenagem.
Nos modos locais de socialidade, o velório e o processo de enterramento tornam-
se, simbolicamente, um acontecimento. Pessoas que não se viam há tempos se
reencontram, incluindo as personagens. Amizades e inimizades são feitas. Durante o
ritual fúnebre, em certos lugares, como nas hinterlândias das zonas rurais, deixam-se o
protocolo e a formalidade de um velório para se entrar num acontecimento social com
características de entretenimento, lazer e saudosismo pelos entes queridos.
Na peça, os personagens desejavam realizar um funeral cristão e moderno: urna
de madeira, castiçais, crucifixo, velas, terços, transporte funerário com cortejo e,
principalmente, uma sepultura digna de morto na década de 1990, numa cidade como
Cuiabá, que tinha seus cemitérios antigos (como o Cemitério da Piedade, no Centro de
Cuiabá) e novos conceitos de cemitérios-jardins (como o Cemitério Parque Bom Jesus,
no bairro Parque Atalaia). Mas o fato de as personagens não terem recursos financeiros
para pagar as despesas de um funeral, não impediu os personagens de realizarem, de
modo criativo, o ritual de morte da matriarca, na sala da residência, sob doses de licor
de pequi.
Apelidos, codinomes e nomes de personalidades como Zaramela, Caititu, Maria
Taquara, Zé Boloflô, Jejé, Seu Emilianinho, Libória, Dona Maria do Pão Doce, Seu
Dutra do Fumo Bom, Dona Fia, Dona Belinha e outros, destacam a importância ou o
desejo de, através do nome que arbitrariamente se atribui aos pares, dotar-se de
reconhecimento social. Atribuir um apelido a um amigo ou conhecido, por exemplo,
torna-se um modo de vincular-se socialmente, tornar o conhecido mais próximo
(CAMPOS, 2014), na medida em que o apelido, ao gerar riso, promove um modo de
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da sociedade. Neste sentido, o texto da peça As fias de mamãe nos apresenta indícios da
preocupação com a tradição, considerada aqui como princípio de resistência social, com
o interesse das manifestações culturais frente ao progresso transformador, que também
permite pensar um pouco mais sobre a mobilidade, o fluxo constante das pessoas que
estão mais abertas e interconectadas pelas novas tecnologias, desenraizando-se.
Configura-se novas relações de pertencimento com a ampliação do espaço urbano.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Trad. Vinicius
Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.
CAMPOS, Cristina. O falar cuiabano. Cuiabá: Carlini & Caniato Editorial, 2014.
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem Anos de Solidão. Rio de Janeiro / São Paulo:
Record / Altaya, 1967.
______ , Lúcia Helena Vendrúsculo. NEDER, Maria Lúcia Cavalli. Material Didático
para EaD: Processo de Produção. Cuiabá: EDUFMT, 2009.
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