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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação

40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017

As Fias de Mamãe: O Popular na História de uma Peça de Teatro em Cuiabá1

Joilson Francisco da CONCEIÇÃO 2


Aline Wendpap Nunes de SIQUEIRA3
Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT

Resumo
A peça As fias de mamãe (1998) coloca em cena temas sobre a experiência urbana, a
partir de duas personagens que sugerem, em suas histórias cotidianas, o que significa
viver às margens da economia de mercado e diante da precariedade das políticas
públicas, numa cidade como Cuiabá. Capital, que se encontra num momento de
passagem de século e de milênio. Tendo como direcionamento teórico os estudos
folkcomunicacionais, este trabalho entende o teatro como modalidade crítica da cultura,
principalmente no caso ora proposto, em que ele expõe politicamente as ranhuras da
vida local. Esta, por sua vez, em contato com o processo civilizatório, cria uma imagem
de cidade que se produz e reproduz, enquanto experiência urbana nos anos 90.
Palavras-chave: Experiência urbana; Teatro; Cidade.

A peça As fias de mamãe (1998) apresenta a história de duas irmãs que se


reencontram em Cuiabá, para resolver questões pertinentes à morte da mãe, falecida de
modo dramático, ao engasgar-se com a própria dentadura. O conflito inicial surge do
fato delas não terem condições financeiras, para realizar o funeral sob os protocolos da
vida urbana na cidade, que, ao final do século XX, adotou práticas modernas de
sepultamento, consequentemente deixando para trás hábitos antigos como enterrar as
pessoas em redes, ou velar os mortos em casa. As personagens, com memórias do
passado que permanecem na atualidade, enfrentam a realidade, buscando soluções para
viver na cidade.
As fias de mamãe coloca em cena temas contemporâneos, em especial os
relacionados às bruscas transformações sociais, impostas pelo processo de
modernização. Desta maneira, tenta esgarçar os debates sobre a experiência urbana, em
histórias cotidianas, de quem vive às margens da economia de mercado e diante da
precariedade das políticas públicas em Cuiabá.

1
Trabalho apresentado no GP Folkcomunicação, Mídia e Interculturalidade do XVII Encontro dos Grupos de
Pesquisa em Comunicação, evento componente do 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2
Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pelo PPGECCO-UFMT, Pós-Graduando em Mídias Digitais para a
Educação EaD-UFMT, email: joilson.francon@gmail.com.
3
Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea PPGECCO-UFMT; Mestre em Educação PPGE UFMT e Bacharel
em Comunicação Social –Habilitação Radialismo IL UFMT, email: alinewendpap@gmail.com.

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A metodologia de criação teatral buscou não se resumir a um mero reprodutor de


informações. Uma vez que, o teatro refere-se a um campo artístico, no qual, em alguma
medida, inventa-se um processo de criação e comunicação, que envolve diretor, atores e
espectadores. Sendo assim, todo este universo ficcional ganha corpo e materialidade,
tanto pelas histórias escritas do texto, quanto pela contribuição dos atores, além, das
possibilidades criativas provindas também dos espectadores.
A questão comunicacional que se instaura neste contexto possui caráter ativo e
participativo, pois sustenta-se nos conceitos de interação – construção de sentidos
conjuntamente (POSSARI, 2002) – e interatividade – “processo que permite a coautoria
entre emissor e receptor, ensejando a este último transformar-se, a partir de suas ações,
em coprodutor de sentidos” (POSSARI, 2009, p. 41) – ou seja, a contribuição do
público é bem-vinda. Já que este, na medida em que, se abre para o diálogo, pode
interagir com o texto exposto e ressignificar os sentidos, que nunca são fechados em si
mesmos.
No caso desta peça teatral, mais que representação ela trata da recriação do
cotidiano, na proporção em que cada cena busca produzir, uma espécie de segunda
realidade, conceito este que, na perspectiva de Ivan Bystrina é a realidade construída
(...) a partir daquele material da primeira realidade que sofre
reestruturações modificadoras. Assim, a cultura surgiu para operar
como significante no plano da segunda realidade. Surgiu ao lado do
profano e da técnica material que definem o comportamento dos
homens no mundo circundante. Desde então, podemos afirmar que
fazem parte da vida humana o mito, o canto popular, o rito, a arte, a
utopia e a ideologia (BYSTRINA, 2013, p. 5-6).
Em um momento em que os estudos sobre as teorias do contemporâneo passam a
repercutir diretamente no discurso da arte teatral, esta pesquisa visa produzir reflexões e
diálogos circunstanciais sobre a necessidade de se pôr em cena, a crítica da
modernidade em dois aspectos: a) ao reconhecer as diferenças e as singularidades dos
distintos modos de vida e b) ao promover, na cena teatral, o acesso a questões relativas a
modos de existência, sob o intenso processo de globalização da economia e da
mundialização dos costumes.
Ao descrever a relação entre os personagens, o imaginário da cidade e a busca de
sentido sobre o que significa viver no Oeste brasileiro, coloca-se nesta pesquisa uma
lente, e, um pretexto para se indagar a existência de indivíduos e coletividades no
espaço urbano. Os dramas da experiência urbana nacional, ao ter como pano de fundo as
transformações no imaginário e a singularidade das práticas culturais em Cuiabá,

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permitem anotar e pensar sobre o teatro como modo de se testemunhar e registrar as


transformações do imaginário de uma época.
De modo específico, na perspectiva da criação teatral, enfatizam-se os indícios
da experiência da modernização, pelo olhar de duas personagens. Estas são forçadas a
assistir à intrusão do capitalismo global, na Baixada Cuiabana, ou melhor dizendo, na
Região Metropolitana do Vale do Rio Cuiabá (RMVRC).
O texto do dramaturgo mato-grossense Joilson Francisco, se constitui de
histórias ouvidas, observadas, vividas e comentadas na cidade de Cuiabá e seus
arredores durante a década de 90. Destacam-se como procedimentos de criação:
a) A utilização do sotaque caracterizadamente cuiabano 4, de forte conotação
satírica, principalmente quando carrega o sentido de ser uma produção de
linguagem, que, num sentido mais consciente, afronta propositalmente as
normas cultas da língua portuguesa. Pensando-se historicamente e, no âmbito da
cultura popular, o sotaque cuiabano responde por um modo singular de criar
ambientes de socialidade, o que inclui o costume de se colocar apelidos nos
amigos e nos parentes, numa gradação, que de acordo com a pesquisadora da
linguagem Cristina Campos “vai do carinho à sacanagem” (p. 2014, 127)
produzindo assim, coesão social através da sátira.
b) A criação de uma imagem visual, que reinventa a paisagem local. A partir, por
exemplo, do figurino. Caracterizado por peças de vestuário, em que prevalecem
o tecido conhecido popularmente como chita (usado na confecção das saias das
dançarinas de Siriri5 e na decoração de ambientes devido a seu baixo custo), ou
ainda, retalhos que, costurados em tecido, ganham adições de artesanatos de
crochê e de fuxico. A paisagem do teatro reinventa também os cenários teatrais
tipificados como locais, utilizando-se de elementos da culinária cuiabana que,
por si só, expõe peixes de rio, comidas à base de produtos de agricultura
familiar, além de utensílios domésticos e decorativos, entre outros, como ponto
principal nas produções.
O autor também valeu-se de suas inquietações para manifestar na peça o seu
descontentamento com a política cultural, então, em vigência na cidade de Cuiabá. A
produção praticamente artesanal de As fias de mamãe responde ao processo de
4
Reconhecido como patrimônio imaterial do Estado, pela Portaria nº 017/2013 da Secretaria de Estado de
Cultura de Mato Grosso publicada em 22 de Abril de 2013 (CAMPOS, 2014, p. 09)
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Dança típica e tradicional da região em que as dançarinas se ventem com longas e coloridas saias
rodadas.

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marginalização dos grupos de teatro, que não conseguiam ter acesso aos recursos
públicos, patrocínios, apoios e incentivos aos projetos cênicos que buscavam emergir na
cidade. De modo inédito, para uma geração de cuiabanos, que passou ao largo do hábito
de ir ao teatro, pela ausência de produções locais e de circulação de peças produzidas
em outros estados, alguns artistas na cidade de Cuiabá encararam a temática local e a
afirmação do que significa ser cuiabano, como oportunidade de, simultaneamente, gerar
renda e produzir crítica social. Era preciso, portanto, fazer uma espécie de elogio da
cultura local, nas fricções produzidas com as alteridades que atravessavam o estado de
Mato Grosso. Os costumes foram transformados em ferramenta de produção, não
apenas da vida social, mas também do fazer artístico.
Personagens com características cuiabanas constituíram momentos das artes
cênicas de atores e diretores, que conquistaram destaque nos espaços sociais e
midiáticos, produzindo um fenômeno instigante na cidade de Cuiabá: a superlotação de
teatros e espaços cênicos alternativos, com a encenação de peças que colocavam em
destaque personagens emblemáticos e com características dos cuiabanos, tudo isso em
um momento atravessado por intensas experiências de urbanização.
Na trama de As fias de mamãe, a demanda é por um teatro com marcadores
simbólicos da cultura popular rural, que transita para uma característica urbana, em
Cuiabá. A língua falada, que diverge com força da norma culta, por se tratar, segundo
Cristina Campos (2014, p. 116) de um “dialeto cuiabano” explicado por ela como sendo
uma variedade regional da língua padrão, e que apesar de possuir um sistema de signos
e regras combinatórias da mesma origem que a língua oficial, não tem o mesmo estatuto
cultural e social. No entanto, se apresenta como marca afirmativa da cultura popular, em
especial numa comédia de costumes, que expõe modos de relações familiares e sociais e
os atritos entre modernização e aquilo que insiste em entrar, a seu modo, na
modernidade.
Cuiabá, na década de 1990, enredava-se – com dinâmicas próprias – no processo
de urbanização nacional. Os fluxos da modernização, em escala global, implicam nos
avanços de capitais financeiros e tecnologias nas regiões brasileiras e nas áreas
periféricas da cidade. As cidades e as hinterlândias – caracterizadas por Luiz Beltrão
como lugar “mergulhado num quase isolacionismo e falta de condições e predisposições
para aceitar novas ideias e efetuar uma mudança social a curto prazo” (BELTRÃO,
2001, p. 238) – entretanto, não estão isoladas neste sentido. O Oeste brasileiro é

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capturado no decorrer da narrativa, ao desconstruir o que poderia ser o imaginário dos


que vivem em outra região do Brasil, pela construção textual, do que de fato nele se
pode encontrar. Seja pela experiência ou pelo ficcionado pelas memórias.
Deste modo, o imaginário cuiabano constitui-se com as narrativas de povo
receptivo, acolhedor, bem humorado e que cultiva hábitos singulares na culinária, na
produção musical, nos modos gerais de se vincular às transformações no mundo
cotidiano. Muitos ainda cultivam modos particulares adquiridos pelos costumes dos
antepassados e que não seguem os padrões midiáticos. Outros tantos são influenciados
pelos produtos midiáticos, aderindo-os ao seu cotidiano da vida.
A memória de uma sociedade vislumbra o futuro, com traços culturais
presentes. Práticas sociais como jogo de amarelinha, lavagem de santo e enterro de
morto em rede de tecido indicam um modo antigo, bem anterior à década de 1990, ou
remetem para além dos sertões, com poucas habitações, povoamento rarefeito,
infraestrutura incipiente e pouca comunicação com o mundo. Todavia, reflexões sobre
as experiências do passado permitem imaginar as contribuições no processo de
transformação urbana da cidade frente à modernização. Em corroboração com este
pensamento, a fala de Campos reitera o que foi aqui apresentado, ao dizer que: “Estudar
e conhecer o falar cuiabano significa mais do que se deliciar com as peculiaridades de
um dialeto: é apresentar traços culturais que revelam a sabedoria ancestral proveniente
da interação entre o homem e a natureza” (CAMPOS, 2014, p. 23).
As personagens são duas brasileiras, cuiabanas, órfãs de pai e mãe, com suas
esperanças, sonhos e medos. A primeira é Amazônina Bocaiúva, que vive numa
hinterlândia, busca ser uma mulher madura, emancipada, responsável, mãe, esposa,
letrada pelo Mobral6, ocupa cargo de educadora em escola municipal (ensino básico).
Prefere vestir-se por combinações de peças e cores, reservada, defende o que é seu por
direito racionalmente. Cultiva bons costumes, na medida do possível, e desenvolve uma
agricultura familiar de subsistência para ajudar no orçamento. Mora com esposo, dois
filhos e a idosa tia Doquinha, no sítio, em Acorizal-MT, cidade distante 67km de
Cuiabá. Foi chamada à capital, pois sua mãe estava passando muito mal.
Em contraposição, Benedita Sampaio, mais nova que Amazonina, vive na cidade
com sua mãe. Solteira, letrada, vive dos rendimentos que os cajás-manga colhidos no
quintal lhe proporcionam. Vaidosa e adepta do consumo por influência social e
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Campanha de alfabetização de adultos para que aprendessem a ler e escrever, sem preocupação com a
formação do caráter humano.

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midiática. Veste-se em tentativas de estar na "moda" e como quem desafia a libido


masculina. Ela é emotiva, não pensa duas vezes em perder a compostura para defender o
que lhe convém. Benedita foi quem chamou sua irmã, após receber a notícia da morte,
no instante que desfrutava dos benefícios de um salão de beleza, este equipado com um
espelho, uma escova e uma chapinha para alisar cabelos comprada no camelô. Porém,
Benedita não conta que a mãe já estava morta e que, passa por dificuldades ao lidar com
a experiência de estar sozinha na cidade, sem condições econômicas para realizar um
funeral moderno (enterro com caixão e serviços de funerária) e a necessidade de se
praticar um enterro em cova rasa em cemitério, numa hinterlândia, já fora do perímetro
urbano de Cuiabá.
Como de costume, Benedita aproveita o serviço de comunicação da rádio AM,
ainda muito presente e de grande apelo popular nos interiores do Brasil, afinal, este é
“um meio fortemente local” (TRIGO-DE-SOUZA, 2004, p. 297). Por isso, lança mão
do veículo para comunicar-se com os entes queridos, pois tem sua carta lida durante a
programação, com alto índice de audiência, pelos que vivem à margem do perímetro
urbano, nas hinterlândias. Ela aproveita, ainda, para pedir que sua irmã leve seus
pertences, inclusive o "cinto de tala-larga" e o batom que havia esquecido no sítio.
Com a morte da matriarca, decidem fazer a partilha dos bens e vender tudo que
possa lhes dar mais condições econômicas de sobrevivência e alívio dos pesos que os
fatos do cotidiano impõem. E isso tudo virou um caso para Presidente, o cachorro da
família que precisava ficar fora do cotidiano dos personagens. O cachorro, que, por
vezes fazia guarda da casa, agora passa a ser alvo das pelotadas, no acerto de contas
entre as irmãs.
No decorrer do velório, as preocupações, que marcam uma situação
extraordinária como um enterro, neste caso, voltam-se principalmente para a
precariedade material dos personagens, quais sejam: as dificuldades de realizar o evento
com serviço funerário que contemple dentre outras coisas, urna para a mãe, velas em
castiçais, crucifixo de prata, livro de registro e dedicatórias, traslado até o cemitério e
jazido com epígrafe.
A peça destaca manifestações no velar o morto, de modo simples e subjetivo. Dá
indícios de que, desde antes de morrer, até o enterro no cemitério, o indivíduo era
acompanhado pelas pessoas mais próximas. Todo este processo de morrer, ser velado e
enterrado, durava dias ou, no mínimo, vinte quatro horas para ser concluído. Mesmo

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depois da finalização do ritual, os entes queridos visitavam o seu túmulo durante um


grande período de suas vidas, ou pelo resto de suas vidas.
Com o decorrer do tempo, os ritos passados de geração a geração ganharam
novos modos de realização. Algumas características foram incorporadas, enquanto
outras foram abstraídas. As fias de mamãe registra e encena essas transformações do
comportamento social, marcado necessariamente pelas condições materiais. Uma das
cenas mais marcantes, neste sentido ocorre no momento da narrativa de Benedita sobre
a causa morte da mãe, que aconteceu de forma dramática e patética. A referida
personagem conta que a mãe faleceu ao engolir a dentadura, entretanto, de maneira mais
sutil explica que isso se deu após a idosa levar uma "rasteira", numa disputa por cestas
básicas, que eram distribuídas por uma entidade assistencial (antiga LBA – Legião da
Boa Vontade). Esta cena ilustra a discussão a respeito do crescimento das cidades, sob
influência das redes de circulação de indivíduos, em busca de realizações no seu
processo de existência e pertencimento social, ao mesmo tempo que, aponta para as
disputas na ocupação do espaço urbano.
Nos dias atuais, um fator principal que contribuiu para as mudanças de atitudes
para com os ritos fúnebres são os deslocamentos de sentidos nas relações entre lugar,
pessoas e morte. Não raro, a maioria dos indivíduos prestes a morrer passa a última
etapa de suas vidas em um hospital, ou no serviço (unidade) de pronto atendimento. As
formas de tratamento médico possibilitam o prolongamento da vida. Desta forma, já não
se morre em casa, rodeado pela família, mas, no hospital. O funeral em geral é realizado
em capelas (salas equipadas para receber os rituais fúnebres) comercializadas pelas
funerárias.
Na trama de As fias de mamãe explora-se dramaturgicamente tais
transformações e as confusões familiares pertinentes à situação de um enterro, que
deveria à priori ser encarado como um momento dramático. Todavia, ganham um viés
satírico, como forma de “driblar” o fator econômico e reafirmar o pertencimento social
das personagens no espaço por elas conhecido.
Coleta de capim cidreira, no quintal, para fazer chá e pão velho doado por “Dona
Maria do pão doce”, para fazer a torrada, que seria servida juntamente com a bebida às
visitas do funeral eram estratégias e táticas que os personagens apresentaram para lidar
com as dificuldades que a modernização lhes apresentou. Reclamar das visitas que não
levaram uma garrafa de pinga e não estavam dispostos a ajudar financeiramente por

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meio de uma “cotinha”, para amenizar a situação precária do velório, expressam o nível
das relações sociais dos personagens e o modo de lidar com a precariedade apresentada.
Na mesma linha estratégica, o muxirum (mutirão) aparece como mais uma prática
comum, que visa economizar gastos com mão de obra. Bastante empregado em ações,
como: construções, reformas, limpeza de lotes, ou mesmo transporte de pessoal em
camionetes ou caminhões, etc. Para tanto, organizava-se um cardápio de baixo custo, que
desse de comer aos envolvidos (parentes, vizinhos ou membros da comunidade). Tudo isso
tendo como foco uma benfeitoria direcionada a um indivíduo, ou a mesmo a coletividade.
Portanto, a ação de empréstimo da "tombeira" (caminhão caçamba), pelo vizinho e amigo
da família, Seu Alis, para transportar a falecida até o cemitério insere-se neste âmbito. O
fator cômico da cena, aparece no momento em que todos os acompanhantes do cortejo
são expulsos do cemitério da hinterlândia Sucuri, por Chulipa, rival de Amazonina na
disputa pelo mesmo homem.
Catar piolho, como ausência de noções de saúde, entrar na fila de distribuição de
sacolão (cesta básica) pela LBA (Legião Brasileira de Assistência), engolir cuspe para
matar a fome, aparar goteira com panelas velhas no chão, vender móveis no pregão,
colocar a casa à venda, somam-se às experiências de se realizar um funeral que utiliza
rede, flores de papel crepom na ornamentação da rede, flores de plástico para a coroa
fúnebre, com faixa de TNT (tecido não tecido), escritos feitos com cola glitter, poucas
velas para durar um dia inteiro, uma dentadura sobressaindo à boca aberta da falecida,
que junta moscas; evidenciam mais características da condição social dos personagens e
como eles, de forma criativa e bem humorada, se reinventam. Enfim, os recursos
dramáticos da peça mostram a necessidade de sobrevivência e a dinâmica psicossocial
dos personagens, que permeiam o arcabouço de significados culturais, sobre o que
significava viver em Cuiabá pelas margens do urbano.
As fias de mamãe esgarça o imaginário da cidade, que ironiza sua própria
performance no enfrentamento da vida moderna. A rua do bairro onde moravam não
tinha asfalto e a água encanada muitas vezes faltava, devido aos problemas na rede de
abastecimento. Elas usufruíam de luz elétrica, transportes táticos em sistemas de
charretes, bicicletas, moto-táxi, ônibus ou caronas. Neste caso, considera-se a ironia de
si, como procedimento moderno de autocrítica, no qual os projetos que constituem a
vida contemporânea devem estar constantemente sob avaliação dos próprios atores
sociais.

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Nesta comédia, a cidade de Cuiabá expandiu o seu perímetro urbano, embora as


hinterlândias continuassem distantes, e os fluxos globalizadores impulsionassem a
construção imaginária, do que significa, para cada indivíduo ter que se adaptar à
sociedade urbana. As personagens não percebem, na peça, que possuem casa própria,
relações familiares e vínculos sociais, o que seria, ao menos em hipótese, um indício de
boa qualidade de vida. Mas entendem, que pobreza não está ligada ao objeto dinheiro e
que a precariedade é um reflexo de como sentem e pensam a vida cotidiana.
O enterro em cova rasa, em "sete palmos abaixo da terra", é realizado sob
sentimento de economia de tempo, de contenção de esforço físico para cavar e, da
sensação, de familiares e pessoas mais próximas, de livrar-se do morto. Túmulos dos
cemitérios urbanos precisam do serviço burocrático da Prefeitura, para liberação do
enterramento, ou até mesmo, dos atravessadores ilegais e oportunistas. Nas
hinterlândias, a questão é só conseguir um espaço para acomodação do morto. De
preferência, sem custo para a família e, para continuar o tom cômico e realista da peça,
longe dos urubus, que rondam mais uma futura "carniça".
As personagens destacam que o tempo passou, e, apesar de os homens temerem
a morte, elas encontram maneiras peculiares de se relacionar com isso. Será que um
lugar, "não vai pra frente mesmo", por causa da cabeça de burro enterrada ali, como
sugerem as crendices, os mitos e superstições? Ou, isso é uma forma de desviar o olhar,
frisando que a dinâmica ali é outra, frente à modernização?
Benedita e Amazonina não esperaram o protocolo da vida moderna e burocrática
dos escritórios e dos caríssimos serviços funerários, para dar um desfecho à situação.
Nesta experiência com a cidade, elas trataram logo de incumbir o Santo Antônio a fazer
parte deste processo de metropolização, em que suas vidas embarcam. Enterram a mãe
na cova que lhes é possível, no entanto, a sensação de orfandade continua.
Ritual cumprido, a vida segue tendo como expoente principal ainda a falta de
dinheiro, tanto para comprar esmaltes, quanto mantimentos de cozinha, que já estão no
fim. Isso sem falar nas dívidas anotadas na caderneta do bolicho (pequena venda,
comércio de secos e molhados), na ausência de créditos no celular, nas contas de luz, de
água e de Imposto Predial e Territorial Urbano - IPTU. Portanto, revirar o lixo da feira,
para tentar conseguir algum alimento e fazer uma sopa, é uma possibilidade. Enquanto,
lavar "roupas de ganho" está fora de cogitação, pois pode estragar a unha feita. Insinuar
a sua prostituição poderia também ser uma parcial resolução dos problemas.

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Nos anos 90, era uma prática comum presentear um morador da cidade com uma
sacola cheia de legumes, ervas medicinais, ovos, produtos cultivados no quintal ou na
roça. As memórias da sociabilidade ainda eram cultivadas no espaço urbano, mesmo ao
enfrentar a espera de um ônibus precário sob o sol forte da região, carregando o peso da
sacola de presentes e disputando lugar no ônibus desconfortável, com outros que
também utilizavam transporte público entre a hinterlândia e a cidade. Aumentar os
mantimentos da cozinha com os produtos colhidos na roça era uma forma saudável de
se alimentar e diminuir despesas da casa. Na sacola de Amazonina tinha mandioca,
abobrinha, maxixe, banana da terra, limão, laranja, doces, produtos de horta, raízes para
cura de enfermidades, tudo narrado como forma de presentear a mãe que vive na cidade.
Em dias de sábados, era comum acontecer bailes pela cidade. Estar com boa
aparência para frequentar as rodas sociais faz parte do cotidiano em As fias de mamãe.
Também faz parte deste cotidiano deixar a faxina da casa para os sábados. Uma dona de
casa cuiabana elege este dia para poder mudar os móveis de lugar, rearranjando-os
numa nova composição de ambiente da casa. Trocava-se o forro dos móveis, lavava-se
tudo que esteja empoeirado ou necessitando de reparos. Teias de aranha eram retiradas e
quando se tinha água encanada ou no reservatório, ela era usada para dar conta da
limpeza da casa. Todas estas práticas domésticas se realizam costumeiramente com
música tocada em alto volume, no rádio, no toca-discos ou no aparelho de fita K7
(cassete).
Sabe-se, ao menos em hipótese, que o nível de educação formal, a dinâmica da
globalização das informações, a condição de classe social e o nível do poder de consumo
da sociedade influenciam no gosto, na aproximação e na identificação com as produções
musicais difundidas pela indústria cultural. Deste modo, ouvia-se, sucessos locais e
nacionais dos anos 90, popularmente chamados de "música internacional-romântica-
lenta-traduzida". Um tipo de música de melodia e letras de fácil decodificação que, de
certa maneira, transcreveu uma realidade ou um imaginário e por isso mesmo entrava no
gosto do ouvinte, por dizer o que ele sente ou deseja sentir. Dentre os artistas
destacavam-se: Gretchen, Pinduca, Menudo, Giliard.
As músicas são divulgadas em diversos meios, em todas as classes e pode
abranger todas as camadas do público, sem distinção. Aliás, como contextualiza Gisela
Castro “Desde a consolidação da indústria fonográfica, quando a música gravada passou
a atrair o gosto do grande público e os aparelhos domésticos de som (...) foram

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disseminados, a interdependência entre música, tecnologia e consumo tornou-se


evidente” (2007, p. 213). Os segmentos populares encontram na música "internacional-
romântica-lenta-traduzida" formas de ver, representar, ressignificar e transformar o
mundo. Uma vez que, a precariedade no cotidiano das personagens abre espaço para a
busca de soluções, que nascem na família, onde o indivíduo no geral, aprende
moralmente a noção do que é certo ou errado no plano social. Depois, este indivíduo
passa a sofrer influências mais amplas, incluindo aí amigos e colegas, que contribuem
para a formação da opinião, dos tipos de consumo e de perspectiva cultural que essas
pessoas passarão a consumir ao longo de sua vida.
As irmãs Amazonina e Benedita assumiram suas funções no cotidiano de As fias
de mamãe assim que a mãe morreu. Sob o forte calor da cidade, o dia começa com o
cocoricar das galinhas no quintal, seguido pelo som e movimento do ralar do pau de
guaraná na grosa, fruto considerado tonificante para o corpo. Assim, revigoradas pelo
guaraná ralado, e, apenas desejantes de ter um “quebra-torto” (prato feito com sobras de
comidas incrementadas com temperos e, as vezes, finalizado com farinha de mandioca),
acompanhado de chá de capim-cidreira, apontam as necessidades da vida. A ordem do
dia começa por lavar a roupa suja, apesar do pouco sabão, e estendê-la no varal, de
arame farpado, instalado no quintal. Enquanto se lava a roupa, planeja-se o que será
feito para o almoço. Porém, como os recursos são parcos, o fator principal é a
economia, para que o que sobrou na casa renda por mais tempo.
As crenças dos personagens revelam-se por adereços e objetos de cena, como:
véus nas cabeças, terços em punho, vela acesa, imagens sacras no oratório e nos quadros
dependurados nas paredes, que ao mesmo tempo denotam formas de agradecer e/ou
solicitar novas graças a Santo Antônio, São Benedito, Nossa Senhora Aparecida e
Senhor Divino Espírito Santo. Procissão e festa de santo são momentos de religiosidade
e lazer que sugerem oportunidade de participação nas relações sociais e também o
momento de desfrutar de comes e bebes de graça, já que muitos alimentos são
arrecadados em processo de doação.
Para que as dores, energias ou pensamentos negativos fossem eliminados do
corpo dos personagens, elas se apegavam às bênçãos de benzedeiras, que segundo a
sabedoria popular combatem quebranto, arca-caída, mau-olhado, erisipela, picadas de
insetos, inchaços e outros males.

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Com a morte da matriarca, aquela casa deixou de ter o mesmo sentido. Os


almoços de domingo, a costura de roupas para ir aos bailes, ou mesmo a credibilidade
na região, tudo, foi embora com a morte da mãe. Afinal, era ela que resolvia os
problemas financeiros da família. Na época, crédito no comércio equivalia a anotar
numa caderneta a dívida das compras feitas no bolicho – designação dos pequenos
comércios de secos e molhados em Cuiabá –. Ao passo que a prática do "fiado", compra
de produtos com pagamento posterior, era uma oportunidade para as filhas conseguirem
consumir alimentos que não necessariamente fossem de primeira necessidade. Tudo isso
indica os modos como, no desenvolvimento de um capitalismo tradicional, se
desenvolvia uma alimentação à base de produtos artificiais: suspiro, maria-mole,
chiclete com anel de brinde, doce de abóbora, bananada, pão de cacau e mel.
Vestir-se na moda, só quando alguém doasse peças usadas, ou não buscasse as
roupas deixadas, com a mãe costureira, para reforma. Os personagens tinham ciência de
suas condições socioeconômicas, porém, faziam desta uma alavanca para irreverência, à
criatividade, à ironia e ao modo diferente de ser. Enfrentavam com personalidade a
produção de suas cidadanias. Entre as brincadeiras de infância, juventude e maturidade,
há vestígios de um certo modo de vida, que se institui como referência simbólica na
peça teatral, pois remetem ao passado, para situar os personagens no presente, ao
mesmo tempo em que cria uma visão de futuro.
Ao tratar alguns dos hábitos populares da "Baixada Cuiabana" projeta-se, a partir
da realidade local e regional, uma dimensão universal das massas populacionais que
transitam entre a vida rural e a vida urbana, fenômeno socioeconômico e cultural
reproduzido nos mais diversos rincões do planeta, também sob o desenvolvimento do
modo de produção capitalista e, igualmente problemático, na ausência dele como
indutor e produtor de práticas de consumo ou na ausência de políticas de bem-estar
social. As experiências entre o rural e o urbano tornam-se o fundamento e a forma da
escritura da peça, na medida em que a experiência de viver na cidade, torna-se o
princípio da produção da ficção, e o método da ficção, torna-se o modo de narrar a
experiência de se viver na cidade.
A velocidade das transformações urbanas, ou de como os fatos se sucedem aqui,
apresenta uma ideia de tempo associada a Kairós, ou seja, aquele não medido pelo
relógio (Cronos) e que se delineia pelas relações sociais. Por exemplo, a prática da sesta
(dormir depois do almoço) segue a dinâmica de uma Cuiabá, cujo progresso se apropria

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dos espaços e dos desejos dos que vivem na cidade. Entretanto, aos poucos o tempo
moderno e cronológico passa a ditar o ritmo do cotidiano, e, altera, forçadamente, os
costumes, diante do mundo do trabalho que se instala.
Na peça, o sentimento das personagens reproduz o imaginário criado por
telenovelas e filmes de ficção. Tendo como parâmetro rituais fúnebres de famílias de
classe média, representados midiaticamente com muito choro, escândalo, gritaria, além
do desejo de ir-se junto com o morto, ou, o drama de como a ausência física impõe
sofrimento aos que permanecem vivos. Porém, ao mesmo tempo, no funeral da peça,
conhecidos e familiares conversam e contam piadas, de acordo com a vida real. Bem
como "bebem o morto" – prática comum que podia, e, ainda pode ser observada nestas
ocasiões – com bebidas alcoólicas, como forma de homenagem.
Nos modos locais de socialidade, o velório e o processo de enterramento tornam-
se, simbolicamente, um acontecimento. Pessoas que não se viam há tempos se
reencontram, incluindo as personagens. Amizades e inimizades são feitas. Durante o
ritual fúnebre, em certos lugares, como nas hinterlândias das zonas rurais, deixam-se o
protocolo e a formalidade de um velório para se entrar num acontecimento social com
características de entretenimento, lazer e saudosismo pelos entes queridos.
Na peça, os personagens desejavam realizar um funeral cristão e moderno: urna
de madeira, castiçais, crucifixo, velas, terços, transporte funerário com cortejo e,
principalmente, uma sepultura digna de morto na década de 1990, numa cidade como
Cuiabá, que tinha seus cemitérios antigos (como o Cemitério da Piedade, no Centro de
Cuiabá) e novos conceitos de cemitérios-jardins (como o Cemitério Parque Bom Jesus,
no bairro Parque Atalaia). Mas o fato de as personagens não terem recursos financeiros
para pagar as despesas de um funeral, não impediu os personagens de realizarem, de
modo criativo, o ritual de morte da matriarca, na sala da residência, sob doses de licor
de pequi.
Apelidos, codinomes e nomes de personalidades como Zaramela, Caititu, Maria
Taquara, Zé Boloflô, Jejé, Seu Emilianinho, Libória, Dona Maria do Pão Doce, Seu
Dutra do Fumo Bom, Dona Fia, Dona Belinha e outros, destacam a importância ou o
desejo de, através do nome que arbitrariamente se atribui aos pares, dotar-se de
reconhecimento social. Atribuir um apelido a um amigo ou conhecido, por exemplo,
torna-se um modo de vincular-se socialmente, tornar o conhecido mais próximo
(CAMPOS, 2014), na medida em que o apelido, ao gerar riso, promove um modo de

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estar junto. Ideias de vida, morte e sobrevivência formam constelações de imagens


diferentes que emergem nos costumes, nas representações simbólicas, que identificam a
estrutura do imaginário em que se inserem indivíduos e/ou grupos sociais para leituras
contemporâneas do que é viver na cidade.
A realidade da falta de recursos financeiros vivida pelos personagens, tal como
apresentado no texto, é semelhante em muitos lares e realidade para milhares de pessoas
no país. Assim, se problematiza a situação da população urbana na cidade de Cuiabá em
seu processo de modernização.
Os contrastes econômicos e sociais invariavelmente distanciam as pessoas,
através da segregação familiar que se realiza, na medida em que bairros distantes são
construídos, empurrando o perímetro urbano para os limites oficiais do município. Mas
é na fricção deste movimento, que principalmente a população marginalizada se
apropria destes espaços, com sentimento de pertença e ressignifica o tempo, inventando
modos criativos de subjetivação da experiência urbana.
Uma casa, uma família, um contexto com turbulência dos afetos, enfrentamento
da ordem social vigente, resistência na vida cotidiana e reserva da sociabilidade de base,
numa determinada zona de contato e de estratégias capazes de produzir, mapear e
impor, ao utilizar, manipular e alterar as táticas na peça As fias de mamãe, como forma
de garantir a sobrevivência dos personagens.
A resistência apareceu como uma invenção local mostrando-se para a produção
real de um desejo. E os personagens foram criados aos modos da ficção, como memória.
A peça As fias de mamãe sugere imaginar a cidade de Cuiabá como Macondo, na obra
"Ninguém escreve ao coronel", de Gabriel Garcia Marques 7, onde a modernidade insiste
em não se instalar. Giorgio Agamben (2009), no texto "O que é o contemporâneo?",
possibilita entender que a peça As fias de mamãe traz memórias de um passado, ao
mesmo tempo que nos remete ao futuro do que podem ser as experiências dos
personagens, nos fluxos do processo de globalização pelo qual passa uma capital como
Cuiabá, no Oeste brasileiro.
A produção cultural, dos segmentos populares, seja ela enquadrada na rubrica
das artes cênicas ou das culturas populares urbanas, tende a demandar o reconhecimento
7
Na obra "Cem Anos de Solidão" (1967), Gabriel Garcia Marques apresenta Macondo, uma aldeia
fictícia e a saga da família Buendía em um ínterim de cem anos. O escritor situa os ocorridos no pequeno
povoado ante os principais acontecimentos históricos do período, estabelecendo uma perfeita conexão
entre micro e macro, mesclando, simultaneamente, elementos reais e fantásticos. Percebemos também na
trama uma intrínseca relação entre percepção individual e memória coletiva, visto que os eventos vêm
sendo contados conforme a percepção dos personagens.

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da sociedade. Neste sentido, o texto da peça As fias de mamãe nos apresenta indícios da
preocupação com a tradição, considerada aqui como princípio de resistência social, com
o interesse das manifestações culturais frente ao progresso transformador, que também
permite pensar um pouco mais sobre a mobilidade, o fluxo constante das pessoas que
estão mais abertas e interconectadas pelas novas tecnologias, desenraizando-se.
Configura-se novas relações de pertencimento com a ampliação do espaço urbano.

REFERÊNCIAS
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Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.

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