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O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

CAPA

1
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

PITTACUS LORE

TÍTULO ORIGINAL:
FUGITIVE SIX
(LORIEN LEGACIES REBORN #2)

EQUIPE DE TRADUÇÃO:
JOHN DC
MARCOS ZIMMER
DAVID SOUZA
MATHEUS FERNANDES

REVISÃO E CRIAÇÃO DO E-BOOK:


RENATO SANCHES

2018
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

NUMA GALÁXIA DISTANTE,


O PACÍFICO PLANETA LORIEN
FOI DIZIMADO PELOS
BRUTAIS MOGADORIANOS.

Os últimos sobreviventes de Lorien – a Garde – foram enviados


à Terra ainda crianças. Espalhados através dos continentes, eles de-
senvolveram seus poderes extraordinários, conhecidos como Lega-
dos, e se prepararam para defender o planeta que os adotou.
A Garde frustrou a invasão Mogadoriana na Terra. Durante esse
processo, eles mudaram a natureza do planeta. Os Legados começa-
ram a se manifestar nos seres humanos.
Essa nova Garde assusta algumas pessoas, enquanto outras
procuram uma forma de manipular a forma como eles devem usar
seus dons.
E embora os Legados tenham o propósito de proteger a Terra,
não são todos os Gardes que vão usar seus poderes para o bem.

EU SOU PITTACUS LORE


ESCRITOR DOS DESTINOS,
CRONISTA DOS LEGADOS.

EU NARRO OS CONTOS DAQUELES


QUE MOLDARIAM MUNDOS.

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PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

CAPÍTULO UM .......................... 05
CAPÍTULO DOIS ........................ 22
CAPÍTULO TRÊS ........................ 30
CAPÍTULO QUATRO ...................... 39
CAPÍTULO CINCO ....................... 46
CAPÍTULO SEIS ........................ 50
CAPÍTULO SETE ........................ 55
CAPÍTULO OITO ........................ 63
CAPÍTULO NOVE ........................ 73
CAPÍTULO DEZ ......................... 84
CAPÍTULO ONZE ........................ 98
CAPÍTULO DOZE ........................ 112
CAPÍTULO TREZE ....................... 122
CAPÍTULO CATORZE ..................... 129
CAPÍTULO QUINZE ...................... 141
CAPÍTULO DEZESSEIS ................... 153
CAPÍTULO DEZESSETE ................... 167
CAPÍTULO DEZOITO ..................... 174
CAPÍTULO DEZENOVE .................... 188
CAPÍTULO VINTE ....................... 194
CAPÍTULO VINTE E UM .................. 213

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PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

CAPÍTULO VINTE E DOIS ................ 222


CAPÍTULO VINTE E TRÊS ................ 238
CAPÍTULO VINTE E QUATRO .............. 248
CAPÍTULO VINTE E CINCO ............... 254
CAPÍTULO VINTE E SEIS ................ 267
CAPÍTULO VINTE E SETE ................ 281
CAPÍTULO VINTE E OITO ................ 293
CAPÍTULO VINTE E NOVE ................ 306
CAPÍTULO TRINTA ...................... 317
CAPÍTULO TRINTA E UM ................. 336
CAPÍTULO TRINTA E DOIS ............... 352
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS ............... 372
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO ............. 382
CAPÍTULO TRINTA E CINCO .............. 394
CAPÍTULO TRINTA E SEIS ............... 405
CAPÍTULO TRINTA E SETE ............... 405
EPÍLOGO .............................. 405
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

DUANPHEN
BANGKOK, TAILÂNDIA

DUANPHEN OBSERVOU O GAROTO DE RUA ENQUANTO ELE SE


apressava através do tráfego com seu balde e algumas tralhas. Ele não
aparentava ter mais de doze anos, era pequeno e tinha o cabelo oleoso.
Ele era esperto na hora de escolher os carros que abordava – os mais
reluzentes, em que nas janelas havia insufilm e passageiros bêbados.
Ele jogava água suja nos para-brisas e se esticava nos capôs, limpando
de forma ineficaz, espalhando mais sujeira. Os motoristas abaixavam os
vidros para xingá-lo, mas geralmente cediam e acabavam dando algum
dinheiro para ele ir embora para que pudessem ligar seus limpa-vidros.
Já passava da meia noite e a Royal City Avenue ainda pulsava com vida.
Motoqueiros gesticulavam no tráfego. Sócios de clubes bêbados trope-
çam no meio das ruas. Luzes de neon brilhavam juntas pelas paredes.

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Duanphen esfregou as algemas ao redor dos pulsos que estavam


presas à maleta do executivo. O metal a irritava. Assim como esse lugar.
Três meses desde a última vez que ela esteve aqui. Ela não sen-
tiu falta.
O garoto de rua viu Duanphen e sua limusine. Bem, a limusine
não era exatamente dela – pertencia ao executivo; ela apenas estava
usufruindo. O carro escuro estava estacionado em mão dupla na frente
de uma discoteca onde era possível ver os go-go dancers pela janela. O
executivo ficou tão animado quando viu o lugar que ele praticamente
babou; eles teriam que parar. Os outros seguranças do executivo haviam
descido com ele, com exceção de Duanphen. Ela era muito jovem.
— Carro bacana – o garoto de rua disse em tailandês, ao parar
na frente dela. Ele esticou suas tralhas de forma ameaçadora. — Mas
está sujo. Por um pouco de grana eu dou uma geral nele para você.
Duanphen olhou fixamente para ele. — Vá embora.
O garoto olhou para ela, como se estivesse tentando decidir se
valeria a pena tentar a sorte com ela. Com dezessete anos, Duanphen
não era tão velha com relação a ele, embora seu olhar frio tivesse feito
ela parecer. Ela aparentava ter um metro e oitenta de altura, suas per-
nas e braços longos como uma espada. Ela mantinha seu cabelo raspado
e não usava maquiagem, com exceção de alguns delineadores escuros.
Ela tinha um nariz pequeno e parecia que ele havia sido apagado e re-
desenhado.
— Eu conheço você – ele disse.
— Não.
— Você é uma prostituta – ele disse com uma risada. — Não!
Não é isso. Onde será que eu vi você?
— Não interessa – Duanphen disse. — Sai fora.
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O garoto deu um pulo no ar quando ele percebeu. — Você é uma


lutadora! – ele disse, chacoalhando seu balde na direção dela. — Eu te
conheço! Você é uma daquelas trapaceiras! Aquela...
Como se por mágica, o balde que o garoto segurava se virou
contra ele, espirrando água suja em suas calças. Ele engoliu em seco e
parou de falar, encarando Duanphen.
Não foi mágica. Foi telecinese.
— Se você realmente me conhece – Duanphen disse, — então
você sabe o que vou fazer quando acabar minha paciência.
O garoto a encarava com os olhos arregalados, e então voltou
para a multidão com um suspiro. Duanphen franziu os lábios. Ele a cha-
mou de trapaceira. O que aquele idiotinha poderia saber?
Duanphen pratica Muay Thai desde os catorze anos, uma neces-
sidade para suplementar a mecharia que ela ganhava trabalhando ses-
senta horas na fábrica de roupas, tudo para pagar o aluguel em uma
pensão infestada de baratas. Antes de seus Legados se manifestarem,
Duanphen havia perdido mais brigas do que havia ganhado, muitas ve-
zes acabando com o rosto esmagado por garotas duas vezes mais ve-
lhas.
A telecinese, que ela descobriu após a invasão, facilitou as lutas.
Uma ajudinha aqui. Outra ali. Ela conseguiu uma série de vitórias. Então,
começou a apostar em si mesma. A competição ficou mais difícil, ao
mesmo passo que sua telecinese ficou mais forte.
Até que um adversário conseguiu prendê-la num mata leão, fa-
zendo com que sua pele eletrificada se manifestasse inesperadamente.
Assim, os promotores da luta ficaram mais espertos. Eles chamaram o
que ela estava fazendo de “trapaça” e deram a ela uma escolha: pagar
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a dívida ou morrer. Ela considerou lutar para se ver livre, mas eles esta-
vam bem armados, e desviar de golpes não era a mesma coisa que parar
projéteis.
Logo se espalhou a notícia de que a máfia local estava contra-
tando um Garde. Foi assim que o executivo a encontrou. Ele conhece
muitas pessoas. Ele era comunicativo. Um excelente negociador.
Foi isso que o tornou tão valioso para a Fundação.
A Fundação pagou a dívida dela e ofereceu uma nova chance
para Duanphen. Eles deram a ela mais dinheiro do que ela jamais pode-
ria ter sonhado em ganhar com as lutas, além de roupas e um aparta-
mento em Hong Kong. Tudo o que ela precisava fazer em troca era
proteger esse executivo e carregar consigo a maleta dele.
Não era um mau negócio, ela pensou. Pelo menos até ela conhe-
cer melhor o executivo. Os homens gostavam dele, é claro, porque ele
estava sempre fazendo piadas grosseiras e comprando bebidas. Mas,
para Duanphen, ele era um idiota de meia-idade, o tipo de turista que
ela encontrou um milhão de vezes em Bangkok. Ele estava sempre re-
clamando sobre sua esposa fria e seus filhos que não conversavam com
ele.
O executivo saiu do clube cercado por uma falange de guarda-
costas brutos. Ele tinha muitos destes – e mais haviam sido adicionados
nas últimas semanas, por razões desconhecidas para Duanphen. Os
músculos abriram caminho na calçada, empurrando para o lado os foli-
ões despreocupadamente vestidos enquanto escoltavam o executivo à
sua limusine blindada. As pessoas esticavam os pescoços para vislum-
brar que tipo de homem precisava de tudo aquilo. O executivo não era
tudo isso - uma mecha de cabelo curto loiro e ralo, uma barriguinha, o
terno de grife enrugado pela umidade, a camisa cor de salmão úmida
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de suor. Não é famoso, os espectadores provavelmente pensaram, de-


sapontados. Apenas algum rico idiota. Bangkok estava cheio deles.
Duanphen abriu a porta do carro para o rico idiota. Ele carinho-
samente beliscou a bochecha dela.
— Perdeu uma ótima diversão, Dawn – ele disse, suas palavras
soando indolentes por conta da champanha em demasia.
— Humm – Duanphen respondeu, de forma evasiva. Ela despre-
zava aquela versão estrangeira do seu nome.
O executivo interpretou o murmúrio de Duanphen como encora-
jador. — Num futuro próximo, você terá idade o suficiente para se tornar
uma companhia apropriada – ele falou.
Duanphen sorriu carinhosamente e cerrou os punhos. Ela se des-
lizou no banco de trás até ficar ao lado do executivo, enquanto um dos
outros guarda-costas conversava com o motorista.
— Esqueci de perguntar – o executivo disse. — Feliz por estar de
volta?
— Não – ela respondeu. — Eu odeio esse lugar.
— Sério? Eu amo Bangkok – ele acenou freneticamente com o
braço fora da janela. — Embora seja mais divertido quando não se está
cercado por guarda-costas.
Duanphen sabia que o executivo se irritava com a segurança ex-
tra. Seus guarda-costas não eram quaisquer pessoas medianas que al-
guém poderia contratar em Bangkok; eles eram mercenários altamente
treinados. O destacamento do Grupo Blackstone foi ideia de sua esposa
– ou melhor, um comando de sua esposa. Ela também estava na Fun-
dação e parecia exercer mais poder que seu marido. Isso, pelo menos,
animou Duanphen.
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O restante dos guarda-costas do executivo se amontoaram em


dois carros, um atrás e outro na frente. O executivo suspirou quando
sua desajeitada equipe de segurança começou a jornada de volta ao
hotel pelas ruas lotadas da cidade.
O executivo verificou seu relógio. — Ah, estamos um pouco atra-
sados – ele balançou os dedos para Duanphen. — Vamos aos negócios,
sim?
Ostensivamente, o executivo estava em Bangkok para assinar al-
guns documentos sobre um hotel que ele havia investido. Mas, embora
esse trabalho o tenha enriquecido, já não era mais sua verdadeira ocu-
pação.
Duanphen lhe entregou a maleta. O executivo a destrancou com
sua impressão digital e depois retirou seu conteúdo – um elegante ta-
blet. Usou a impressão digital novamente, seguida de um código de nove
dígitos que tomou cuidado para Duanphen não o descobrir. O tablet es-
tava conectado a um servidor seguro, via satélite. O executivo se aco-
modou, esperando para se conectar.
— Vai ser bem produtivo – o executivo disse, animado. Ele gos-
tava de se exibir, então não se importava se Duanphen espiasse a tela
do tablet.
Havia vinte pessoas esperando pelo executivo para a conferên-
cia. Eles eram representados por ícones – um símbolo do infinito, uma
raposa, uma estrela azul e cinza que Duanphen pensou ser o logo de
um time de futebol americano. Eram os avatares das pessoas muito ricas
que faziam parte do clube do executivo.
Um borrão apareceu no meio dos ícones. Isso representava o
executivo. Era sempre assim que o leiloeiro era representado durante
esse tipo de evento da Fundação.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

— Boa noite a todos – o executivo disse, depois de ligar o som


do tablet e ativar seu modificador de voz. — Para o dia de hoje, temos
os serviços de Salma G., para o final de semana de Janeiro, do terceiro
ao quinto dia.
O executivo anexou uma foto de Selma e enviou para os licitan-
tes. A garota tinha longos cabelos castanhos cacheados, além de uma
monocelha grossa que lhe fazia parecer pensativa. Na foto, Selma usava
um emaranhado de lenços que eram quase indistinguíveis de seu vestido
ondulado, com tecidos sobre tecidos. Ela estava sentada de pernas cru-
zadas, seus dedos na posição de alguém que está meditando, seus olhos
observando o nada.
Ele silenciou a conferência para que então pudesse comentar
com Duanphen. — Bela fantasia a dela, né não? As moças do marketing
pensaram que seria inteligente dar a ela essa vibe de cigana vidente.
— Entendi – Duanphen respondeu.
— Você não precisa nada disso quando é você ali, não é mesmo?
Seu rosto mostra exatamente o que você faz.
Duanphen tocou seu nariz torto, mas não disse nada. O executivo
já havia ativado o som da conferência novamente e já estava conver-
sando com seus licitantes internacionais.
— As especificações seguintes foram incluídas em seus dossiês,
mas eu vou resumir. Selma tem dezesseis anos. É marroquina. Fala flu-
entemente o árabe, e é nível intermediária no francês e no inglês. Saúde
perfeita. O comprador deverá providenciar uma dieta específica. O con-
trole telecinético de Selma está entre bom e o perfeito, então, se esti-
verem interessados nisso, temos melhores opções de produtos disponí-
veis. Seu Legado principal é a precognição. Ela é perfeita para uma visita
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ao casino ou similares, embora recomendamos não usarem o Legado


com investimentos a longo prazo. Selma tem restrição geográfica; vocês
já receberam uma lista com os lugares sem restrições. Ressaltando que
vocês, licitantes, estão comprando apenas o uso dos Legados de Selma
e que qualquer comportamento visto pela Fundação como inconveniente
ou que prejudique a mercadoria resultará na expulsão imediata da or-
ganização.
Duanphen sabia que expulsão, nesse caso, significava morte.
Não importava o quão valiosos ou poderosos eram os membros da Fun-
dação; se eles quebrassem as regras, seriam punidos.
— Certo – o executivo pigarreou. — Como há um grande inte-
resse na querida Selma, eu acredito que devemos começar o leilão com
um lance em torno de cinco milhões de euros. Estou ouvindo cinco mi-
lhões?
Imediatamente, a maioria dos ícones se desconectaram da con-
ferência. O preço era muito alto para alguns, mas não para todos. Os
licitantes iam e voltavam. Cada vez que um dos ícones pulsava, um pe-
queno beep soava e o lance aumentava em 250.000 euros.
Cinco minutos depois, o leilão havia terminado. Um final de se-
mana com Selma havia sido vendido por 10.6 milhões de euros. O exe-
cutivo verificou sua conta. O pagamento já havia sido feito.
— O bastardo vai conseguir recuperar o dinheiro numa única
noite – o executivo bufou. Ele entregou o tablet de volta para Duanphen
e ela o guardou na maleta. — Deveríamos ganhar uma porcentagem do
que a garota conseguir naquelas mesas, né não?
— É muito dinheiro – Duanphen disse, admirando o preço pelo
que pagaram pela Garde marroquina.
— Hum – o executivo deu de ombros. — Nem tanto.
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Eles chegaram ao hotel do executivo. Era um lugar luxuoso, onde


a equipe usava coletes de seda e gravatas-borboleta e estavam sempre
sob os pés de toalhas quentes e copos de água de rosas. O executivo
adorou. Ele tinha a suíte da cobertura só para ele. Bem, não exatamente.
Duanphen dormia em uma sala adjacente e um punhado dos outros
guarda-costas estavam sempre acampados no corredor.
Alguns dos guarda-costas ficaram no saguão para fazer a vigi-
lância, enquanto o restante entrou no elevador com eles. Quando che-
garam ao último andar, encontraram dois outros guarda-costas que es-
tavam parados do lado de fora da suíte do executivo.
— Vigiando um corredor vazio – o executivo reclamou. — Que
grande uso dos nossos recursos.
Mas, quando se aproximou da suíte, o executivo de repente co-
meçou a assoviar uma pequena melodia alegre. Duanphen levantou uma
sobrancelha. O rapaz estava praticamente dando pulinhos, balançando
os braços para a frente e para trás como se estivesse com um humor
maravilhoso. Talvez ele estivesse mais bêbado do que ela pensava.
— Ah, vocês estão apenas fazendo seus serviços – ele disse. —
Eu não quis ser um completo idiota. Eu só fiz um pouco de grana nessa
noite, sabe? Esbanjando a riqueza, como os pobres costumam dizer –
ele parou abruptamente no meio do corredor. — Melhor se agruparem,
né não?
Os guarda-costas fizeram o que lhes foi dito. Normalmente, eles
eram um grupo inexpressivo, mas agora eles pareciam tão otimistas
quanto o executivo. Alguns deles sorriam enquanto formavam um amon-
toado improvisado. Duanphen arqueou uma sobrancelha. Os mercená-
rios de Blackstone geralmente levavam o profissionalismo mais a sério.
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— Não é um trabalho fácil, o que vocês fazem. Eu quero mostrar


meu apreço – o executivo retirou um bolo de dinheiro e começou a di-
vidir nas mãos de seus guarda-costas, que estavam estendidas. —
Bangkok é um ótimo lugar para ganhar bastante dinheiro. Tirem a noite
de folga. Saiam e divirtam-se. Por minha conta, claro.
Como se o dinheiro não fosse suficiente, o executivo entregou
seu cartão de crédito para um dos guarda-costas, e então jogou a car-
teira inteira para outro. Ele piscou e gesticulou para eles saírem, obser-
vando como um se fosse pai generoso enquanto os mercenários mus-
culosos se empurravam de volta para o elevador, abraçados, rindo e
contando piadas.
Duanphen viu tudo acontecer com a boca entreaberta, incrédula.
— O que...? – ela parecia desnorteada. — Que diabos está fa-
zendo?
O executivo sorriu para ela. — Qual é o problema, Dawn? Tem
certeza de que você não quer se juntar a eles? Vá em frente. Divirta-se
– ele bateu nos bolsos. — Sinto muito não ter mais dinheiro, no en-
tanto...
Duanphen olhou nos olhos dele, que estavam arregalados. —
Você é— ela desistiu de argumentar com executivo estupidamente sor-
ridente. — Ei, esperem! – ela gritou para os mercenários, mas o elevador
já havia descido. Todos eles estavam loucos?
— Senhor - disse Duanphen, fechando os punhos. — Você está
agindo de forma estranha.
— Bobagem – respondeu o executivo. Ele passou o cartão e abriu
a porta de sua suíte.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

Imediatamente, Duanphen percebeu algo de errado. O ar estava


quente e úmido, não meticulosamente controlado pela temperatura,
como o executivo gostava. E de onde vinha essa brisa?
O executivo parou de repente e beliscou a ponte do nariz. Ele
sacudiu a cabeça como se estivesse saindo de um sonho.
— Dawn, o que... nossos guarda-costas acabaram de me roubar?
Ou... o que aconteceu comigo?
A resposta estava bem no meio da suíte.
O jovem era esbelto, o cabelo castanho estava penteado para o
lado em uma onda meticulosamente gelificada. Ele usava roupas caras
– calça cinza, colete preto, camisa branca. Duanphen achou que ele pa-
recia quase um mago; merecido, já que ele de alguma forma escapou
da segurança do executivo. O vidro quebrado da janela da sacada pro-
vavelmente explicava isso... mas como ele conseguiu escalar o prédio
até aqui em cima?
O executivo estava congelado. — Você.
— Não foi fácil, colocar você num humor generoso e fazer aque-
les idiotas de Blackstone irem todos festejar – disse Einar. Ele tinha
olheiras e estava sem fôlego, como se ele tivesse se exercitado muito.
Ele levantou um dedo. — Me dê um minuto, fazendo favor?
Duanphen não hesitou. Claramente, esse tal de Einar era uma
ameaça. Talvez até o motivo da segurança adicional do executivo. Ela
investiu contra ele, a maleta do executivo sobre a cabeça como uma
arma.
Wumpf! Ela foi pega de surpresa. Um segundo intruso se chocou
contra o corpo de Duanphen, lançando-a para longe, acabando por cair

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PITTACUS LORE
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sobre uma mesa de centro. Ele era corpulento e encurvado, com um


moletom cinza encardido e suado, e usava touca.
Einar se sentou numa poltrona de pelúcia e esticou as pernas.
Ele sorriu para o executivo. — Você não é o único com um guarda-cos-
tas. Vamos ver como isso se desenrola?
Duanphen voltou a ficar de pé, de frente para a figura imponente
no moletom cinza. Ele era grande, mas ela já havia lutado com caras
maiores. Ela ativou seu Legado. Um campo de eletricidade estalou ao
redor do corpo de Duanphen. Qualquer golpe terá voltagem suficiente
para derrubar um boi.
Ela tinha mais alcance do que cara musculoso e lançou uma série
de golpes rápidos contra o rosto dele – um soco seguido de um movi-
mento violento com a maleta. Ele se desequilibrou para trás, mantendo
a distância enquanto os socos de Duanphen estalavam bem na frente
de seu nariz. Duanphen estava apenas testando-o, porém, também ava-
liava seu próprio alcance.
— Ha! – ela disferiu um chute violento em forma de arco. O cara
no moletom mal conseguiu levantar o antebraço numa tentativa aleató-
ria de bloquear o golpe.
Duanphen gritou e caiu no chão, a canela dobrada em um ângulo
impossível. Ela havia quebrado a perna no antebraço do agressor. Foi
como bater numa parede de tijolos.
A dor fez com que ela perdesse o controle de seu Legado. O
sujeito de moletom passou a agir com rapidez. Ele agarrou Duanphen
pelo pescoço e a levantou do chão com facilidade, seu punho inclinado
para trás.
— Pare! – Einar gritou. — Não a mate! Você nem deveria ter
machucado ela! – como ordenado, o sujeito soltou Duanphen. Ela se
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contorcia no chão, choramingando, o corpo enrolado em torno de sua


perna quebrada.
Einar olhou para o executivo. — Ele, por outro lado...
Duanphen viu tudo acontecer. O executivo conseguiu, final-
mente, levantar e correr. Mas era tarde demais. O sujeito de moletom o
agarrou pela nuca, levantou-o e depois – crack – quebrou a coluna do
executivo como se fosse um galho de árvore.
Por um momento Duanphen reconheceu, por conta de suas mui-
tas lutas perdidas, aquela sensação logo antes de um nocaute, quando
toda a dor é apagada e substituída por boas-vindas da escuridão. A dor
em sua perna estava excruciante e intensa. Muito para suportar. Ela iria
tentar relaxar...
E então ela não estava sendo acordada, de forma nada gentil.
Quanto tempo havia passado? Segundos? Minutos? Ela ainda estava no
quarto do hotel, a brisa da janela quebrada de alguma forma a arrepiava
apesar da umidade. Com cada movimento rápido de seu corpo, novos
fragmentos de dor se manifestavam da sua perna quebrada. Duanphen
queria se livrar da agonia, mas ela cogitou que se desmaiasse de novo,
poderia nunca mais acordar.
Einar se agachou ao lado dela. Ele parou de dar tapinhas no rosto
dela assim que seus olhos focaram.
— Olá, mais uma vez – disse ele. Ele segurava o tablet do exe-
cutivo. — Como eu acesso isso?
Tremendo, ela apontou para o corpo do executivo. — Impressão
digital.
Duanphen sentiu um calor quente e pegajoso se espalhando
abaixo dela. Será que era...?
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PITTACUS LORE
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— Sim, eu sei que é por impressão digital. Já cuidamos disso –


Einar ergueu a mão decepada do executivo.
Duanphen estremeceu. Ela estava deitada numa poça de sangue
que rapidamente se espalhava a partir do corpo do executivo. Em um
momento de pânico, ela checou seus próprios pulsos, ficando aliviada
por encontrá-los intactos. Eles simplesmente abriram a maleta com te-
lecinese.
Atrás de Einar, o sujeito de moletom enxugava as mãos mancha-
das de sangue num lençol. Havia algo de errado com sua pele. Duan-
phen estreitou os olhos, mas Einar estalou os dedos na frente do rosto
dela.
— Você conhece o código? – ele perguntou.
Ela balançou a cabeça. — Só ele sabia.
Einar franziu a testa. — Bem. Não fomos muito zelosos, não é
mesmo? – ele se levantou. — Então está é a situação, Duanphen. Eu
pronunciei certo?
Ela assentiu. — Sim.
— Somos como você. Garde. Tenho certeza de que você perce-
beu que seus colegas de trabalho começaram a se comportar de maneira
estranha no corredor. Era eu. Eu posso controlar as emoções – Duan-
phen se encolheu quando Einar estendeu a mão, mas tudo o que ele fez
foi tocá-la gentilmente no nariz. — Mas eu não estou fazendo isso com
você, querida.
— Po-por que?
— Minha nova política é não usar meu Legado contra nossa pró-
pria espécie, a menos que seja absolutamente necessário. Eu não mato
também. Boas notícias para você, né? Mas você ainda tem uma escolha
a fazer. Primeira opção: você entrega uma mensagem para mim. Diga à
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

Fundação que eu sei quem eles são e que estou indo atrás deles. Dei-
xaremos você aqui, os guarda-costas provavelmente voltarão em breve,
te levarão a um hospital, cuidarão de sua perna e então você irá desco-
brir o que a Fundação faz com quem fracassa em suas funções.
Duanphen olhou para o corpo mutilado do executivo. Esse fra-
casso não era algo que a Fundação perdoaria. — Opção dois?
— Opção dois – continuou Einar, — você vem comigo. Me ajude
com o que estou fazendo.
Duanphen já sabia qual opção escolheria, mas ainda precisava
perguntar.
— O que... o que você está fazendo?
— Simples. Eu estou refazendo o mundo.

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PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

NIGEL BARNABY
SUBSOLO - ACADEMIA DA GARDE HUMANA
– POINT REYES, CALIFÓRNIA

— O QUE VOCÊ PRECISA FAZER É TER UMA POSTURA NÃO


muito apropriada – Nigel disse, gesticulando enquanto rela-
xava em sua cadeira de metal. — Como se suas bolas fossem
maiores que sua calça.
De frente para ele, Taylor Cook levantou uma sobrance-
lha. — Não foi seu conselho mais compreensível, Nigel.
— Ah, não se preocupe muito com os equipamentos, meu
amor – Nigel respondeu. — É mais um estado de espírito.
Taylor colocou algumas mechas de cabelo loiro atrás da
orelha e então tentou fazer sua melhor reprodução da postura
descontente de Nigel, uma dos braços pendurados nas costas da
cadeira, com as pernas arreganhadas.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

— Nada mal – Nigel disse. Ele tirou de um dos bolsos


uma goma de mascar de menta e jogou para Taylor. — Agora,
mastigue a goma de mascar com a boca aberta. Tente fingir que
você está odiando o chiclete.
Taylor fez como ele instruiu, olhando com desdém para
Nigel atrás de uma fina bolha verde feita com o chiclete. Ele
riu.
— Brilhante, isso é brilhante – ele disse. — Olhando para
você, eu não tenho certeza se quero dar um tapa no seu rosto ou
me tornar seu melhor amigo.
— Obrigada? – Taylor respondeu, se arrumando na ca-
deira.
— Quando estava na escola, eu tinha um professor que
odiava quando eu fazia isso com goma de mascar. Ele ficava
fora de si. Me chamava de estouvado.
Do outro lado da mesa, Isabela Silva olhou para seus car-
tões de inglês. — Estouvado – ela repetiu, dando ênfase. — O
que isso significa?
— Significa que você não tá nem aí para nada – Nigel
respondeu.
Isabela observou Nigel por um momento e então bocejou.
— Entendi. Uma ótima palavra para descrever você. Especial-
mente com relação a roupas e higiene.
Nigel sorriu e achatou algumas partes da sua camisa
Misfits amarrotada e comida por traças. Talvez ele não fosse o
garoto mais educado da Academia, mas ele não pensava em si
mesmo como estouvado, pelo menos não mais. Ele se importava.
Ele se importava sobre ser um Garde.

23
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

Durante a invasão Mogadoriana, Nigel foi o primeiro hu-


mano a responder ao pedido de ajuda dos Lorienos. Depois que
a guerra foi ganha, Nigel foi um dos primeiros alunos matricu-
lados na Academia. Nem tudo era diversão e brincadeiras. Ha-
via aulas chatas para suportar, treinamento exaustivo, muito
tempo gasto. Ah, e também novos amigos assassinados por ali-
enígenas do mal, fanáticos religiosos que queriam queimá-los
numa fogueira e um sujeito Garde psicótico que quase fez Nigel
se afogar.
Ele passou por poucas e boas, com certeza. E ele tinha
pesadelos para provar isso.
Mas ele não queria falar sobre isso. Especialmente agora
que ele e seus amigos receberam sua primeira missão de ver-
dade: planejar secretamente derrubar uma organização super
rica que se dedica ao sequestro e exploração dos Legados dos
Gardes humanos. Isso era algo que ele podia fazer.
Sem mencionar que, quando se falava de esconderijos, o
deles era muito foda.
Eles estavam embaixo do centro de treinamento, abaixo
da estrutura da pista de obstáculo sádica que o Professor Nove
havia construído. Eles acessaram o local através de uma esco-
tilha escondida na parte de trás de uma parede de pedra. Acima
deles, todo o teto era um enorme trabalho de engrenagens de
titânio brilhante, polias, cintos, cremalheiras e pinhões que im-
pulsionavam as várias armadilhas mortais que esperavam no
andar de cima. Havia uma série de painéis de controle brilhan-
tes e caixas de fusíveis, ninhos de fios e cabos, e alguns motores
ronronando.
Além disso, tinha as pernas do Kopano. Elas estavam
saindo do teto. Isso fez Nigel parar um pouco e ele teve que pis-
car os olhos.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

Kopano estava usando seu Legado lá em cima, distor-


cendo sua densidade física ou algo do tipo. Nigel ainda não con-
seguia entender como funcionava, mesmo depois de ver as ima-
gens de alta potência de um microscópio que Malcolm Goode –
seu professor de ciências e conselheiro – havia gravado. As ima-
gens mostravam como Kopano podia separar suas partículas
atômicas para deslizar através da matéria sólida ou, alternati-
vamente, tencionar essas mesmas partículas de modo que sua
pele fosse basicamente impenetrável. Kopano salvou a vida de
Nigel com esse Legado.
Ele também parou completamente de usar a porta da su-
íte, optando por passar através dela.
— Você encontrou? – perguntou Nove a Kopano. Ele es-
tava no teto também, usando seu Legado antigravidade para se
pendurar, segurando Kopano pelo tornozelo. Isso era algo que
Nigel sabia que Kopano esteve trabalhando – manter uma
parte de seu corpo sólida enquanto o resto estava intangível.
Um segundo depois, Kopano tirou a outra parte de seu
corpo da parte de cima do maquinário, respirando com dificul-
dade e suando. Ele ergueu uma peça de metal retorcida – uma
engrenagem quebrada.
— Encontrei o bloqueio – disse ele, deixando a peça cair
no chão. — Você tem uma para substituir?
— Lá embaixo – Nove disse, apontando para uma caixa
de ferramentas no chão.
Kopano suspirou e levitou a peça até eles. O Professor
Nove nunca perdia uma oportunidade de treiná-los.
Ninguém além do grupo deles sabia que esse lugar exis-
tia. Nas semanas seguintes após o encontro com a Fundação,

25
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

eles estiveram se encontrando aqui pelo menos uma vez por se-
mana, sempre quando o resto do campus já estava dormindo. O
que não significa que o professor Nove pegasse leve com eles.
Mesmo depois das reuniões secretas, ele ainda os acordava às
cinco da manhã para suas sessões de treinamento, parte da pu-
nição por terem se esgueirarem para longe da Academia.
A escotilha do teto se abriu e Ran Takeda se juntou a
eles. Ela havia salvo a vida de Nigel assim como Kopano. À
noite, frequentemente depois de um de seus pesadelos, Nigel se
encontrava esfregando o esterno, onde ainda sentia uma dor
fantasma quando lembrava Ran explodindo seu coração de
volta à vida. Ele queria abraçá-la praticamente toda vez que a
via.
Ran assentiu para Nigel e sentou-se ao lado dele. — Eu
perdi alguma coisa?
— Ainda não começou – disse Nigel. Ele gesticulou com
a mão na direção de Taylor. — Só dando a Taylor aqui lições
sobre como ser uma delinquente adequada.
Taylor estalou o chiclete em resposta.
Tudo fazia parte do plano deles.
— Estou vendo – disse Ran. Ela olhou para a mesa. —
Eu acho que um dos guardas em patrulha pode ter me visto
chegar.
— Ele não viu – respondeu uma voz de mulher atrás de
uma série de laptops. — Eu também o vi. Monitorei o rádio dele.
Ele não ligou.
Essa era Lexa.
Nigel tinha visto a mulher ao redor do campus algumas
vezes antes que o problema com a Fundação começasse. Claro
que ele a reconheceu. Ela estava pilotando a espaçonave lórica
que resgatou ele os outros Gardes Humanos nas Cataratas do
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

Niágara durante a invasão dos Mogadoriana. Ele sabia que ela


era de Lorien, mas não tinha Legados como a Garde – ela era
apenas um desses extraterrestres normais. No entanto, os ou-
tros alunos e professores não sabiam das origens de Lexa e, de-
pois de uma breve conversa com o professor Nove, Nigel não
teve nenhum problema em guardar essa informação para si
mesmo. Para o resto da Academia, Lexa era simplesmente a es-
pecialista em segurança cibernética da escola eu uma funcioná-
ria do departamento de TI.
Sempre que o grupo deles convocava uma reunião, Lexa
se certificava de que o esconderijo no campus não fosse gravado
por nenhuma das câmeras montadas ao redor da Academia. Ela
colocava os feeds de segurança em loop, um processo contínuo e
impossível de detectar.
O Dr. Malcolm Goode e Caleb Crane foram os dois últi-
mos a descer pela escada. Ao vê-los entrar, o professor Nove e
Kopano interromperam o trabalho de conserto e juntaram-se
aos outros em volta da mesa.
— Alguém quer chá? – Malcolm perguntou enquanto ele
caminhou até o pequeno fogão e micro-ondas que eles instala-
ram lá. Ran levantou a mão. Nigel bufou e revirou os olhos. Chá.
Uma coisa britânica tão complicada.
Taylor bufou e revirou os olhos, copiando Nigel.
Caleb sentou-se ao lado de Taylor. O colega de quarto de
Nigel parecia cansado, com olheiras sob os olhos.
— Você parece exausto, companheiro – disse Nigel.
— Parece que nossos olhos vão cair de nossos rostos –
respondeu Caleb. — Quero dizer—

27
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

— Entendi – disse Nigel. — Uso do pronome no plural


não pretendido. Então você achou descobriu alguma coisa?
Sob o disfarce de um curso independente, Caleb e o Dr.
Goode passaram muito tempo lendo os arquivos on-line de to-
das as principais fontes de notícias, painéis de mensagens obs-
curos e até blogs de teorias da conspiração em busca de qual-
quer menção à Fundação ou pelo seu nome completo e estúpido
– a Fundação para um Mundo Melhor. Caleb era exclusiva-
mente adequado para a tarefa; sua equipe de clones poderia dar
uma cobertura seis vezes maior na mesma quantidade de tempo
que qualquer outra pessoa.
— Nós focamos nos mercenários da Blackstone hoje à
noite – disse Caleb. — Criamos uma linha do tempo juntando
seus últimos anos de operações.
— E?
— Eu cresci no meio das forças armadas, mas aquilo? –
Caleb estremeceu. — Eles basicamente estão um passo à frente
das acusações de crimes de guerra internacional há anos.
— Eles pareceram caras tão legais quando tentavam ati-
rar em nós – disse Taylor.
Caleb sorriu na direção dela e começou a dizer algo, mas
Kopano se sentou no banco ao lado de Taylor. — Talvez eu seja
um gênio mecânico – declarou ele, limpando as mãos em um
pano.
Taylor olhou para Kopano e limpou uma mancha de gor-
dura da bochecha dele. — Você não é o mesmo cara que precisou
da minha ajuda para imprimir seu redação literária mais cedo?
— Eles nunca ensinaram sobre atolamentos de papel em
nosso treinamento – disse Kopano.
Nigel não pôde deixar de notar o modo como Kopano
olhava para Taylor. Era da mesma forma que Caleb olhava
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

para Taylor. Ambos olhando para ela com aqueles olhos esbu-
galhados. Hetéros. Tão óbvios.
— Tudo bem – disse o professor Nove. Ele bateu palmas,
que soaram vagamente como um címbalo por causa de seu braço
metálico. — Todos nós aqui? Vamos começar.
O Dr. Goode voltou com o chá, empurrando a pequena
lousa branca com a mão livre. Todas as informações que eles
conseguiram reunir sobre a Fundação foram gravadas nela. Ni-
gel já tinha visto tudo – praticamente a memorizara – e ainda
assim seus olhos devoravam o mistério, procurando algo que ele
poderia ter deixado passar em branco.
Havia uma imagem granulada de Einar – o Garde que
controlava a mente que quase assassinou Nigel – tirada por
uma câmera de luz infravermelho em Los Angeles dias antes
dele orquestrar o ataque feito pelos Ceifeiros que sequestraram
Taylor. Escrito em um post-it ao lado da cabeça de Einar: ma-
nipulação emocional. Foi desonesto? Babaca.
Einar não estava sozinho na foto. Ao lado dele, no carro,
estava Rabiya. Ela fora abandonada por Einar, sequestrada e
espancada por esses Ceifeiros idiotas e depois pega por Einar
novamente. Escrito ao lado dela: Teleporte. Localização desco-
nhecida. Irmão = Príncipe?
Anexada a essa última nota, havia uma foto de um belo
jovem príncipe árabe e uma notícia sobre sua milagrosa recu-
peração da leucemia. Taylor tinha certeza que era o cara que
ela ajudou a curar em Abu Dhabi.
Havia uma foto de Vincent Iabruzzi, o Recupero que a
Fundação havia raptado enquanto ele estava em uma missão
com a Garde Terrestre nas Filipinas.

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PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

Eles não tinha fotos de algumas pessoas, então os nomes


foram no quadro em cartões de índice. Taylor havia identificado
dois outros Recuperos que trabalhavam para a Fundação –
Jiao, uma garota chinesa que parecia ser um recurso ativo, e
um garoto aleijado e sem nome que a Fundação parecia ter tor-
turado em conformidade. E depois havia o misterioso “B” que
repreendeu Einar via chat por vídeo e, com toda a probabili-
dade, enviou a Taylor a nota de agradecimento que ela recebeu
depois de escapar da Islândia. A nota também estava pregada
no quadro. De acordo com Taylor, que ouviu a voz dela, soava
ser britânica.
Correto. A maioria dos britânicos que Nigel conhecia
eram totalmente idiotas.
— Na verdade, recebemos boas notícias pelo menos uma
vez – disse o professor Nove. — Bem, se você considera ter um
rato da Fundação vivendo entre nós ser uma boa notícia. Lexa?
Quer contar a eles?
Lexa levantou os olhos de seus laptops. — Na reunião
mais recente dos administradores da Academia, mencionei que,
devido a uma recente tentativa de invasão, estávamos transfe-
rindo todos os dados de nossos alunos para um novo servidor
seguro.
— Emocionante – disse Isabela, embaralhando seus car-
tões de memória.
— Esse invasão – eles conseguiram alguma coisa? – per-
guntou Kopano.
— Não houve realmente uma invasão – disse Lexa. —
Não é nova, de qualquer maneira. Eu só dei a informação sobre
o novo servidor para os outros administradores.
Nigel podia ver onde isso estava indo. Ele sorriu. —
Frasco de biscoito. Diga-me que funcionou.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

Lexa piscou para ele. — Oh, funcionou.


Malcolm pousou o chá e começou a exibir um novo con-
junto de fotos na lousa.
— Desculpe – disse Caleb, levantando a mão. — Estou
perdido.
— Foi um teste – disse Lexa. — Uma armadilha. Querí-
amos ver se alguém tentaria invadir esse novo servidor, que não
continha informações reais. Eles nem esperaram vinte e quatro
horas.
— O espião está na administração – disse Ran.
Taylor olhou para o Nove. — Eu pensei que você disse
que isso era uma boa notícia? Você acha bom que a Fundação
tenha corrompido alguém de alto cargo na Academia?
Nove deu de ombros. — É bom que agora podemos chutar
a bunda desse idiota.
Malcolm terminou de gravar quatro imagens no quadro.
Todas as fotos tiradas dos funcionários da Academia.
Dra. Susan Chen. Reitora dos acadêmicos.
Coronel Ray Archibald. Chefe de segurança.
Dra. Linda Matheson. Chefe de Saúde e Bem-Estar.
Greger Karlsson. Representante da Garde Terres-
tre.
— Uma dessas pessoas – disse Lexa — está trabalhando
para a Fundação.
— Só precisamos descobrir quem – disse Nove. Ele olhou
para Taylor. — E então nós soltamos nossa armadilha.
Nigel esfregou as mãos juntas. — Com certeza – ele disse.
— Vamos à caçada.

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PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

RAN TAKEDA
CENTRO DE TREINAMENTO –
AGH – POINT REYES, CALIFÓRNIA

SUOR ESCORRIA NA TESTA DE RAN ENQUANTO ELA DEIXAVA


a energia fluir das palmas das mãos, concentrando-a num pedaço de
concreto. Ela provavelmente já havia usado seu Legado mais de mil
vezes mas a sensação ainda a surpreendia. Sentia cócegas. Como é
possível que algo tão potencialmente destrutivo podia fazer cóce-
gas?
Carregada com a energia cinética, a pedra emitia um brilho
carmesim, suas moléculas vibrando. Algumas vezes Ran se pergun-
tava qual era sua fonte de energia. Era uma força desestabilizadora
e, aparentemente, ela possuía uma fonte infinita que brotava de
dentro dela.
O que isso dizia sobre ela?
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

Ela havia passado algum tempo com os outros Gardes cinéti-


cos – alunos cujo Legados permitiam que eles produzissem energias
e elementos do nada. Havia o Omar Azoulay, que podia soprar fogo.
Havia também a Lisbette Zabala, que podia criar e manipular o gelo.
Esses Legados faziam sentido para Ran. Eles não eram inerente-
mente violentos. O fogo podia manter alguém aquecido no inverno,
enquanto que o gelo podia mantê-los frescos no verão. A energia ca-
ótica que Ran produzia simplesmente explodia as coisas, não im-
porta em qual estação do ano.
Ela surgia do nada. E produzia nada.
Ran podia senti-la abaixo dos dedos. A carga no concreto es-
tava aumentando cada vez mais. Se ela afastar as mãos agora, Ran
teria mais ou menos cinco segundos para se proteger. Então, as mo-
léculas desestabilizadas da pedra seriam repelidas uma das outras
de forma permanente e violenta. A pedra explodiria, pedaços se es-
palhariam por todo lado, e qualquer pessoa por perto se machucaria.
— Isso é bom, Ran – a voz do Dr. Goode soou a partir de uma
caixa de som. — Já consegui fazer as leituras. Você já pode parar.
O cientista a assistia de uma sala adjacente, protegido por
uma janela de vidro à prova de explosões. Ele monitorou a atividade
dela através de um poderoso conjunto de lentes que gravaram dados
numa variedade de espectros. Lexa estava sentada ao lado de Mal-
colm. Como de costume, ela tinha um notebook aberto em sua
frente, embora seus olhos estavam fixados na pedra brilhante de
Ran. Normalmente, Lexa não participava destas sessões, mas ela se
manteve próxima desde a última reunião noturna de alguns dias
atrás.

33
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

Ran gemia, focando em seu trabalho. Ela rangia os dentes. —


Eu vou... puxar ela de volta... agora.
— Tenha cuidado.
Ran assentiu. Uma mecha de seu cabelo castanho estava gru-
dado pelo suor em uma das bochechas. Essa era a parte difícil.
Ela puxou a energia de volta para dentro de si. A energia não
queria voltar; queria ser liberada. Essa parte não fazia cócegas – mas
queimava. Era a mesma sensação de engolir de volta o vômito, mas
ela sentia isso no corpo todo.
Se ela liberar energia suficiente em um ovo e então puxá-la
de volta, ela terá um ovo cozido. Ela enjoou de comer isso semanas
atrás.
Se ela desesperadamente liberasse a energia dela sobre um
garoto britânico cujo coração havia parado de bater, Ran descobriu
que, ao puxar a energia de volta, ela teve seu melhor amigo com vida
novamente. Ela aprendeu esse truque na Islândia. Mas esse não era
um truque que todos queriam vê-la fazer regularmente, não após ve-
rem os hematomas no peito de Nigel. Ela não iria substituir um des-
fibrilador novamente tão cedo.
Então ao liberar sua energia num concreto, o que aconteceria
depois? Algo útil? Ela estava prestes a descobrir.
O único problema era que aquela energia – seu caos interior –
ainda precisava ser liberado. Toda aquela violência precisava ir para
algum lugar.
O brilho ofuscou. O concreto estava drenado. As mãos de Ran
tremiam e ela se abraçou.
Ela sentiu como se uma mão gigante feita de bolhas eferves-
centes havia lhe dado um tapa. Ran perdeu o equilíbrio, seu corpo
sacudido e contraído. Eles haviam feito esse experimento antes com
diferentes objetos inanimados, para descobrirem o que aconteceria
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

além de terem instalado uma rede atrás de Ran para amortecê-la.


Isso não significava que explodir não doía como inferno.
Como todas as vezes anteriores, Malcolm saiu correndo de
sua área segura e foi ao encontro dela. — Ran! Você está bem?
As roupas dela estavam arrepiadas com eletricidade estática,
e quando ela abriu sua boca para responder, um pouco de fumaça
saiu de sua língua. As mãos dela – meio pelo qual a energia havia sido
liberada e puxada de volta – estava seriamente machucadas, já
numa cor arroxeada, como se ela tivesse disferido socos contra uma
porta várias e várias vezes. Ela terá que fazer uma visita a Taylor.
Ran assentiu enquanto Malcolm a ajudava a se levantar. — Es-
tou bem.
— Aquilo foi demasiado – você expandiu mais energia do que
havíamos combinado.
— Eu queria ver o que aconteceria – Ran disse.
Malcolm ajustou seus óculos a partir da ponta do nariz. — Eu
sei que Nove gosta de ensinar que forçar seus limites é a melhor
forma de aprimorar seus Legados, mas no seu caso... temos que ser
cuidadosos, é tudo o que tenho a dizer.
Ran olhou para suas mãos – dedos longos e finos – ela teve
aulas de piano no Japão quando ela era mais nova. As veias estavam
saltadas agora, escuras e raivosas. Ela se perguntou, não pela pri-
meira vez, o que aconteceria se ela liberasse a energia por completo.
Ela nunca havia chegado perto de ultrapassar seu “limite” que Mal-
colm descreveu. Quanta energia havia dentro dela? Qual era a di-
mensão da destruição que ela era capaz de causar?
Ela se forçou a afastar esse pensamento. Ela não queria des-
cobrir.
35
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

A cabeça de Lexa apareceu na porta da área segura. — Tudo


bem, Ran?
— Sim – ela repetiu.
Mexendo suas mãos doloridas, Ran se aproximou do bloco de
concreto. Ela o cutucou com o dedão. Um pouco de poeira se mani-
festou, mas além disso, o bloco pareceu ainda estar sólido.
— Alguma mudança? – ela perguntou, se virando para Mal-
colm.
O cientista estava pegou um martelo e então se aproximou
do bloco. Com uma das mãos, ele efetuou algumas marteladas, sol-
tou alguns chips sobre a pedra e então olhou para o tablet que estava
em sua outra mão.
— Não muito – ele respondeu. — Você carregou os átomos,
como de costume, mas quando você retirou a energia, o concreto se
estabilizou novamente para seu estado de inação. Aparentemente,
seu Legado tem um efeito transformativo apenas em tecidos orgâ-
nicos e mesmo isso é... difícil de quantificar.
O canto da boca de Ran se torceu: — Inútil.
— Bom, sabemos que isso não é totalmente verdade – Mal-
colm tentou consolá-la.
— Eu posso cozinhar um ovo. Eu posso fazer um coração vol-
tar a bater, apenas como última opção. Essas coisas não são... elas
não são valiosas, Dr. Goode. Como eu posso ajudar as pessoas com
esse Legado? Eu sou uma bomba com um cérebro.
— Hm... – Malcolm passou a ler algumas anotações em seu
tablet, então ficou ao lado de Ran. — Temos isso.
A tela exibia uma imagem infravermelha do bloco de con-
creto, gravada por uma das várias lentes que Malcolm havia insta-
lado na área de teste. Não parecia nada além de uma bolha brilhante
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

para Ran, pelo menos até Malcolm traçar seu dedo através de um
risco escuro no meio do cubo.
— Vê isso? Onde sua energia não se acumulou?
— Sim?
— É uma rachadura – ele explicou. Malcolm deu uma volta
com ela ao redor do bloco, onde não havia rachaduras visíveis. — É
uma rachadura dentro do bloco de concreto. Isso acontece às vezes,
quando o ar entra junto com a energia. Se exercêssemos pressão su-
ficiente sobre ele – muita pressão, muita mesmo – essa é a falha a
partir da qual o concreto cederia.
Ran estudou a fina sombra na imagem com seus lábios torci-
dos. — Terremotos no Japão sempre foram uma preocupação. Meu
pai é – ela pigarreou. — Meu pai era um engenheiro, responsável por
checar os prédios para ter certeza de que eles suportariam. Talvez...
— Talvez isso seja algo em que você possa usar seu Legado –
Malcolm completou o pensamento dela, cheio de felicidade. — Sua
energia – ou a ausência dela – poderia potencialmente ser usada
para detectar falhas nas estruturas que não podem ser feitas pelos
meios tradicionais.
A expressão de Ran ficou séria enquanto Malcolm esperava
por uma resposta. — E se eu cometer um erro... e então? Eu vou des-
truir um prédio? Explodi-lo?
O sorriso de Malcolm desapareceu. — Bom, é claro que vamos
trabalhar nisso com cautela...
— A melhor maneira de evitar isso é simplesmente não usar
meu Legado para nada – Ran respondeu.
— Por segurança? Ou egoísmo?

37
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

Ran e Malcolm se viraram na direção da voz. Greger Karlsson


entrou no centro de treinamento, com um sorriso insuportável no
rosto. Como de costume, o representante da Garde Terrestre vestia
um terno casual, seu cabelo penteado meticulosamente, tudo sobre
ele exalando uma confiança que beirava a arrogância. Ran estava tão
focada em seu teste que ela não havia percebido que ele estava pa-
rado ali.
Frequentemente, Greger vinha assistir o treino de Ran. Pelo
canto do olho, ela percebeu que Lexa havia voltado para trás de seu
notebook.
— Como é? – Ran respondeu para Greger.
— Greger, talvez esse não seja o melhor momento... – Mal-
colm disse diplomaticamente.
Greger afastou a objeção dele enquanto ele adentrava no lo-
cal, se aproximando de Ran.
— Eu admito que há algo admirável sobre sua insistência em
ser pacifica, senhorita Takeda, mas também acho que você está
sendo estúpida.
Os lábios de Ran se contraíram – admirável e estúpida. Um
elogio seguido de um insulto.
— Você não precisa se rebaixar aqui ou negar quem você é.
Há muitas coisas boas que podem ser feitas a partir do uso do seu
Legado já que foram pretendidos.
— Hm. Eu dificilmente acredito que possamos saber o que a
Entidade Lórica pretendeu com esses Legados, Greger – Malcolm
respondeu.
Ran não sentiu que essa aproximação fazia parte de algum
tipo de debate intelectual. Antes que Greger pudesse chegar mais
perto, ela pegou o martelo da mão de Malcolm, o carregou, e esticou
seu braço na direção do representante.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

— Me mostre – ela disse, ríspida. — Demonstre para mim


como você usaria isso para fazer o bem.
Greger se afastou do objeto brilhante. Ele levou sua mão para
dentro do terno e retirou seu celular, os olhos fixados em Ran.
— Eu vou – ele disse. — Um momento, por favor.
Enquanto Greger navegava pela internet, Ran atirou o mar-
telo na direção de um dos obstáculos da pista. Ele o atingiu com uma
pequena explosão de detritos.
Greger ofereceu seu celular para Ran. Na tela havia uma man-
chete do Guardian. “SOLDADOS AUSTRALIANOS MASSACRA-
DOS NO IÉMEN”.
— Isso aconteceu semana passada – Greger explicou. — Um
helicóptero australiano num voo de reconhecimento rotineiro sobre
uma fortaleza terrorista. Engraçado, não é mesmo, que depois de
uma invasão alienígena e uma completa mudança nos limites da re-
alidade que tais diferenças humanas mesquinhas como a religião ou
fronteiras devam permanecer, hm?
— Hilário – Malcolm respondeu secamente.
Sem pedir permissão, Ran pegou o celular de Greger. Ela co-
meçou a ler o artigo, mesmo enquanto Greger explicava seu conte-
údo.
— Depois de um mal funcionamento no motor, o helicóptero
foi forçado a fazer um pouso de emergência – Greger continuou, fa-
lando mais para Ran do que para Malcolm. — Os inimigos haviam
cercado os australianos por todos os lados. A posição deles era pre-
cária. O reforço tradicional aéreo – misseis e coisas do tipo – eram
arriscados demais. Resgatá-los era impossível. E então, esses jovens
corajosos foram deixados para que seus destinos se cumprissem.
39
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

Ran olhou para cima e trocou olhares com Greger. — O que


eu poderia ter feito que os militares não puderam?
— Uma jovem com suas habilidades poderia ter detonado as
barricadas inimigas com mais precisão do que se fosse feito pelos
meios tradicionais – Greger explicou. — Suas explosões controladas
poderia ter salvo esses soldados, ao mesmo tempo que minimizaria
o dano para a infraestrutura local e prováveis vítimas civis.
Ran desviou seu olhar na direção de Lexa. O movimento foi
súbito, mas ela o viu – e Lexa assentiu. Ran atirou o celular de Greger
na direção de seu peito.
— Você ainda não entendeu – ela disse a ele. — Minhas explo-
sões – elas nem sempre são controladas ou previsíveis.
— Francamente, eu acho que você não acredita em si mesma
– Greger respondeu. — Eu vi seu treino. Melhor ainda, eu vi vídeos
seus no campo de batalha. Você é incrivelmente habilidosa.
— Uma expressão se encaixa bem aqui – Ran respondeu edu-
cadamente, ignorando o elogio. — “Quando sua única ferramenta é
um martelo, todo e qualquer problema parece um prego”. Eu já disse
antes e repito: eu não quero ser o martelo da Garde Terrestre.
Sorrindo, Greger olhou para os estilhaços causados pelo mar-
telo que Ran acabou de detonar. — Uma metáfora apta, eu acredito.
No entanto, minha recomendação para a Garde Terrestre perma-
nece intacta. Você está pronta, Ran. Você deveria ser graduada logo
e permitida a começar sua prestação de serviços para o mundo. Em-
bora seu poder pareça inerentemente destrutivo, em última análise,
ele pode salvar vidas.
De repente, Ran se sentiu cansada. Essa era a mesma discus-
são que ela tinha com Greger sempre que ele aparecia na Academia.
Ela estava cansada disso. Havia tantas maneiras de dizer para um
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

homem iludido que você não explodir as pessoas por um bem maior.
Ela se virou e tocou o braço de Malcolm.
— Obrigado por trabalhar comigo, Dr. Goode. Podemos reto-
mar os testes amanhã?
— Claro – ele respondeu com um sorriso simpático. — Vá ver
Taylor para aliviar as dores.
Ran assentiu. Sem qualquer outra palavra, ela desviou de Gre-
ger e seguiu na direção da porta de saída do centro de treinamento.
Ela pôde ouvi-los conversar sobre ela enquanto ela saía do local.
— Um dia – Greger disse a Malcolm – ela vai ter que se aceitar
do jeito que ela é.
— Eu acho – Malcolm respondeu friamente – que isso é exa-
tamente o que ela está fazendo.

— Foi mais fácil do que eu pensei que seria – Ran disse aos outros
naquela noite, quando, mais uma vez, eles estavam reunidos em-
baixo do centro de treinamento. — Ele ofereceu o celular para mim.
— Com Greger conectado na internet e não prestando aten-
ção em seu celular, eu fui capaz de acessá-lo – Lexa disse. — Eu fiz o
download dos contatos dele, dos e-mails e tudo mais.
— Encontrou algo suspeito? – Kopano perguntou.
— Infelizmente não – Lexa respondeu.
— O idiota pode ter outro celular além daquele – Nigel disse,
olhando para Ran. Ele sabia da pressão que Greger colocava sobre
ela e não gostava nada disso. Ran era agradecida pela proteção dele,
41
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

mas não disse nada. Ela não achava que Greger era o espião que eles
procuravam. Ele já era muito desprezível para estar escondendo
ainda mias sordidez.
— Oh, um cara como aquele definitivamente tem outro celu-
lar – Isabela complementou, mordendo suas unhas. — Um para o
serviço e família, e um para seus negócios.
— O cara nem é casado – o professor Nove disse.
Isabela deu de ombros. — Vamos ver.
— Havia algo estranho – Lexa disse, — embora eu não veja a
conexão necessária com a Fundação.
Ran se inclinou. — O que?
— Haviam ligações, tanto efetuadas como recebidas, de nú-
meros restritos. Me deu um pouco de trabalho, mas eu consegui ras-
treá-los até a CIA – Lexa percebeu o olhar de dúvida no rosto de Isa-
bela. — A agência espiã dos E.U.A.
— Ah – Isabela disse.
— Sabe, como Jason Bourne – Kopano completou.
— Quem é esse nerd? – Isabela perguntou.
Taylor falou antes que eles fugissem do assunto. — Greger é
sueco, certo?
— Suíço – Nove disse.
— Não, ele é de fato sueco – Malcolm corrigiu.
Nove levantou as mãos. — Esse planeta tem países demais.
— Por que um cara sueco estaria falando com a CIA? – Taylor
perguntou. — Isso é meio estranho, não é?
— Pode estar relacionado com seu trabalho na Garde Terres-
tre – Caleb disse. — Várias organizações diferentes provavelmente
estão interessadas em nós.
— Muitas, fora do normal – Taylor disse.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

Enquanto os outros falavam, Nigel se levantou e foi até o qua-


dro branco. Ele pegou uma caneta preta e desenhou um balãozinho
de diálogo acima da cabeça de Greger. Dentro, ele escreveu: eu sou
mal?
Isso fez Ran sorrir, provavelmente mais alto do que o desenho
de Nigel mereceu. Foi uma sensação boa – um alívio de pressão
quase como quando ela carrega um objeto.
Mal ou não, Greger estava errado sobre ela.
Ela mostraria isso a ele. Ela poderia fazer mais do que explodir
as coisas.

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PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

ISABELA SILVA
REFEITÓRIO DOS PACIFICADORES DAS N.U. –
AGH – POINT REYES, CALIFÓRNIA

— NOVA TECNOLOGIA, SENHORAS E SENHORES – O CORONEL


Ray Archibald anunciou. — Se aproximem.
O diretor de segurança da Academia, comandante que ordenou
o grande deslocamento de pacificadores das N.U. com a missão de man-
ter os estudantes seguros, andava para frente e para trás na frente do
refeitório. Com exceção daqueles que estavam em serviço, todos os de-
mais soldados estavam presentes, aglomerados nos bancos para ouvir a
instrução semanal. Archibald estava mais sério do que nunca, suas bo-
chechas avermelhadas, seu uniforme imaculado.
Lieutenant Halima Ouma, uma soldado queniana de vinte e
poucos anos que acabou de se juntar aos Pacificadores, ficou de pé nos
fundos do refeitório ao lado da porta. Na verdade, era o dia de folga de
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

Halima, mas ninguém achou estranho ela ter vindo para a instrução.
Esse tipo de dedicação sempre resultava em pontos com Archibald.
A verdadeira Halima, na verdade, tinha acordado bem cedo na-
quela manhã, e usou seu dia de folga para dirigir até a costa para explo-
rar a Califórnia. Isabela a viu saindo. Foi por isso que ela decidiu pegar
emprestado o rosto de Halima em primeiro lugar. Ela não iria sentir
falta.
— Esse é o Inibidor 3.0 – Archibald disse. Ele exibiu o que pa-
receu para Isabela ser um simples botão prateado, embora com um pino
em forma de agulha saindo de uma das extremidades. — Obviamente,
esse foi feito para ser usado de perto, diferente da versão colar-elétrico.
Uma vez implantado na têmpora de um Garde, o Inibidor emite um
sinal que bloqueia os Legados. A corporação Sydal está trabalhando
num sistema para tornar esses objetos em projéteis inteligentes, mas
aparentemente isso ainda não está pronto.
Os ouvidos de Isabela se aguçaram à menção da corporação
Sydal. Os amigos dela já haviam falado sobre eles, quando estavam lá
embaixo, no covil secreto. Eles eram fabricantes de armas que atendiam
tanto a Garde Terrestre como a Fundação com tecnologia anti-Garde.
O diretor executivo deles, Wade Sydal, que tinha rosto de bebê e cava-
nhaque mal feito, já havia até aparecido no quadro branco.
Será que eles tinham evidências criminais contra Sydal? Prova
de que ele trabalhava para os dois lados? Isabela não se lembrava. Ela
não prestava muita atenção naquelas reuniões. Elas pareciam lição de
casa extra. Ela preferia muito mais as partes excitantes.
Tipo se infiltrar no refeitório para obter informações de Archi-
bald.

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PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

— Verdade seja dita, eu prefiro que não seja necessário usarmos


essas coisas – o coronel disse enquanto depositava o novo Inibidor em
cima da mesa que estava em sua frente. — Nosso trabalho aqui é garan-
tir que ninguém machuque esses adolescentes. Algumas vezes, isso sig-
nifica garantir que eles não machuquem uns aos outros ou si mesmos.
Se não conseguirmos impedir esse tipo de situação sem precisar dar um
choque nos cérebros deles, então falhamos em nossa missão.
Isabela reconsiderou Archibald. Quando eles fizeram os Jogos
de Guerra contra os Pacificadores, ele pareceu orgulhoso pela forma
que seus soldados desarmaram os jovens Gardes – pelo menos até Isa-
bela e seus amigos terem planejado uma forma para obter a vitória. Isa-
bela ainda saboreava a memória de um Archibald surpreso quando ela
segurou a arma tranquilizante embaixo do queixo dele. Ouvindo Archi-
bald agora, ela se perguntava se ele realmente fez aquilo pelos Gardes
ou se toda aquela encenação de treinamento era apenas seu jeito de dar
aos alunos – e ao professor convencido deles – uma lição.
— Amanhã provavelmente iremos receber um novo estudante
para a Academia – Archibald continuou sua instrução. — Porém, os
italianos estão mantendo-a com eles, por conta do incidente ocorrido
nas Filipinas. Se a imprensa contatar vocês a respeito da participação da
Itália na Garde Terrestre, vocês estão proibidos de comentar sobre o
assunto.
Isabela parou de prestar atenção. Será que Archibald era apenas
mais um militar tonto e grosso ou ele compartilhava os pensamentos
anti-Garde, fazendo-o dele um espião perfeito? Isabela descobriria mais
rápido do que ela pensa.
— Os feriados estão próximos – Archibald disse, alheio da apu-
ração de Isabela. — Os psicólogos da Academia querem que nos cons-
cientizemos de que essa pode ser uma época do ano complicada para os
jovens, especialmente quando não será permitida a saída do campus da
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

maioria dos estudantes com fins de visitas familiares. Fiquem atentos


aos alunos, que provavelmente vão tentar sair escondidos do campus.
Não queremos que se repita o que aconteceu recentemente.
Isabela se permitiu sorrir. Como se eles pudessem mantê-la aqui
se ela quiser mesmo escapar.
Archibald abriu uma pasta na mesa que está na frente dele. —
Para os que vão visitar as famílias, se eu chamar o nome de vocês, esta-
rão responsáveis para a remoção do respectivo aluno.
A espionagem que Isabela fez já era o suficiente. Com uma onda
telecinética, Isabela empurrou a pasta de cima da mesa. Com um gru-
nhido irritante, o coronel se abaixou para pegar os papeis, e Isabela usou
a distração para sair do refeitório.
Por ter escapado várias vezes do campus, Isabela conhecia bem
a estrutura do local reservado aos Pacificadores. O refeitório, os barra-
cões, o depósito de armas, a cerca que rodeava a Academia, o portão
que levava para a rua e ao mundo exterior, além do trailer particular
onde Archibald se instalava.
Pff. Se Isabela fosse um fodão do exército, ela teria exigido um
aposento à altura.
Enquanto todos estavam na reunião de instrução, ninguém per-
cebeu Halima Ouma se aproximar do trailer de Archibald. Isabela des-
trancou a porta com sua telecinese e se esgueirou para dentro.
A morada do coronel era tão tediosa quanto Isabela pensou. A
cama dele estava arrumada com tanta precisão que Isabela imaginou
que ela podia ouvir o colchão gemendo em angústia. Havia quatro livros
no criado-mudo, todos sendo biografia de ex-presidentes dos Estados
Unidos. As vitaminas do coronel estavam organizadas por tamanho e
alinhadas perto da pequena pia do trailer. O lugar todo cheirava loção
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PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

pós-barba. O notebook de Archibald estava em cima da mesa de linóleo


ao lado de uma lata de amendoins sem sal.
Isabela ligou o computador – o plano de fundo era uma bandeira
americana em movimento, claro – e conectou o pen drive que Lexa ha-
via entregado a ela. Imediatamente, algumas coisas de computador co-
meçou a acontecer – números e barras de progresso, esse tipo de cha-
tice. Lexa disse a Isabela que tudo o que ela precisava fazer era manter
o pen drive conectado por alguns minutos e ele faria todo o trabalho
sozinho.
Enquanto isso, Isabela bagunçou a cama de Archibald. Por que
não faria isso?
O pen drive emitiu um beep quando havia terminado de clonar
o disco rígido de Archibald. Isabela o pegou de volta e colocou-o no
bolso, parou, entrou na internet, encontrou uma imagem de alguns ca-
ras gostosos jogando vôlei em sungas bem apertadas dos anos oitenta e
mudou o plano de fundo de Archibald.
— Missão concluída – ela disse a si mesma.
Isabela saiu do trailer de Archibald e imediatamente trombou
com um soldado que seguia na direção do refeitório. Isabela gemeu. De-
veria ter dado uma olhada no lado de fora antes de sair do trailer. Era
isso que o professor Nove chamava de ser fogoso?
— Caramba, Halima! – o soldado disse, massageando seu rosto
onde havia sido atingido pelo ombro de Isabela. Ele era jovem, ameri-
cano, seu uniforme bagunçado. O nome em seu peito dizia “Pvt. Rho-
des”. — Você também está atrasada para a instrução? O idiota do meu
parceiro de quarto desligou meu despertador.
Isabela abriu um sorrisinho com os lábios de Halima. — Sim –
ela disse. — Eu dormi demais também.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

— Bem, vamos indo... – Rhodes parou. Ele estreitou os olhos


para Isabela, percebendo de onde ela havia saído. — Pera aí. O que você
estava fazendo no trailer do chefe...?
Isabela agarrou o antebraço de Rhodes dele e apertou. — Por
favor, não diga nada – ela disse. — Estava apenas me divertindo e não
quero encrencar Ray.
Rhodes parecia incrivelmente desconfortável, como se fosse seu
maior arrependimento ter trombado com Halima. Isabela sorriu inte-
riormente. Bom saber que ela pegou emprestado a aparência de uma
mulher imponente. Não seria fácil explicar esse descuido se ela tivesse
com a aparência de um soldado homem que tinha acabado de se esguei-
rar para fora do trailer do coronel.
— Oi, pessoal!
O silêncio desconfortável que estava pairando entre Halima e
Rhodes foi quebrado pelo cumprimento feliz de Caleb. Não o verda-
deiro, pois Isabela notou imediatamente que se tratava de um de seus
clones. Ele ficou parado lá, sem piscar, sorrindo de forma estúpida para
os outros dois soldados.
— Eu sou o Caleb aventureiro e espontâneo – o clone declarou.
— Vocês querem dar alguns tiros ou algo do tipo?
Rhodes deu um passo cauteloso para longe do clone. Antes que
ele ou Isabela pudesse dizer algo, o verdadeiro Caleb apareceu no outro
lado da cerca, acenando.
— Ei, desculpem! – Caleb disse. — Eu perdi o controle desse
aí.
Isabela agarrou o clone pelo braço. — Eu vou escoltar essa...
coisa de volta para o campus – ela disse para Rhodes. — Você ainda
pode chegar a tempo para a reunião de instrução.
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PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

Rhodes assentiu, aliviado por poder sair de perto de Halima e


Caleb. O clone ficou em silêncio enquanto Isabela andava na direção do
verdadeiro Caleb. Isabela se acalmou, não querendo demonstrar sua ir-
ritação com a aparição de Caleb.
— Escoltando essa coisa de volta para o campus – Isabela disse
para o Pacificador do portão.
Eles a deixaram passar. Caleb absorveu seu clone e correu para
alcançar Halima e seguir ao lado dela até ficarem fora de vista do portão.
Só então Isabela voltou para sua forma original. Eles voltaram para o
campus juntos, lado a lado, como se tivessem acabado de praticar exer-
cícios.
— Eu tinha tudo sob controle – Isabela disse rispidamente.
— Oh – Caleb respondeu, esfregando suas mãos atrás do pes-
coço. — Eu pensei que aquele soldado iria te causar problemas. Pensei
que poderia arrumar uma distração.
— Eu tinha uma história prontinha na cabeça – Isabela disse,
com os olhos brilhando. — O charlatão do coronel estava tendo um
caso com Halima.
— Hm, isso seria bem inapropriado – Caleb rebateu. — Você
poderia envolver Archibald em sérios problemas se isso vazasse.
Isabela rolou os olhos. — Não seja tão certinho. Além disso, se
descobrirmos que ele é o espião, os rumores será o menor dos proble-
mas dele.
— Eu não acho que Archibald seja esse espião – Caleb disse.
— Claro que não acha. Você ama seu chefão.
Caleb ergueu as sobrancelhas em resposta. — Só porque eu
cresci numa base militar não significa que eu pense que todos num uni-
forme são santos. Mas meu tio me disse da primeira vez que vim para
cá que Archibald era um bom homem. Que eu podia confiar nele.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

— Esse é o mesmo tio que Nigel odeia até hoje por ter tirado
dele o guaxinim?
— Nossos Chimaerae, sim – Caleb respondeu, com o olhar dis-
tante. — Eles precisaram colocá-los em quarentena, eu acho. Não estou
dizendo que meu tio está sempre certo, mas...
— E esse é o mesmo tio que mexeu os pauzinhos para que você
pudesse ir para casa no natal esse ano enquanto o resto de nós perma-
necemos presos aqui – Isabela completou.
— Eu não pedi por isso – Caleb respondeu. — Eu nem quero ir
para casa.
— Claro.
Caleb olhou para ela como avaliando se valia a pena tentar se
defender mais um pouco. Em vez disso, ele suspirou e ficou em silêncio.
Ambos voltaram para os dormitórios sem falar uma palavra. Isabela não
tinha certeza do motivo pelo qual pegava tanto no pé de Caleb. Ele
apenas tem tentado ajudá-la e ela até concordava com ele – que prova-
velmente Archibald não era o espião. Ele era muito chato para isso.
— Bom, desculpa se eu atrapalhei você lá no trailer – Caleb
disse, sem graça, quando eles chegaram nos dormitórios.
— Desculpas aceitas – Isabela respondeu com desdém.
Caleb seguiu para seu quarto enquanto Isabela continuou pelo
corredor para entregar o pen drive para Lexa. Ela mordeu os lábios, se
sentindo mal pela maneira que respondeu Caleb. Ele vai superar. Ela
espera.
— Essa coisa de amizade é uma droga – Isabela murmurou. —
Não é minha praia.

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OS SEIS FUGITIVOS

NIGEL BARNABY
ESCRITÓRIO DE SAÚDE E BEM-ESTAR –
AGH – POINT REYES, CALIFÓRNIA

O PESADELO SEMPRE COMEÇA DO MESMO JEITO. NIGEL


estava descalço, com as confortáveis calças de pijama que cos-
tumava usar quando criança, os braços escondidos dentro das
mangas da camiseta, abraçando a barriga para se aquecer. Sua
respiração se enevoou na frente de seu rosto. Seus dedos esta-
vam dormentes, mas ele ainda podia sentir o gelo quebradiço
abaixo dele, rachando e afivelando com cada passo seu.
Ele estava de volta na Islândia. Naquele lago congelado.
Nigel olhou por cima do ombro. Deveria haver terra atrás
dele, uma cabana, mas não havia nada. Nada, exceto gelo em
todas as direções.
Então, ele cambaleou para a frente, incapaz de fazer
qualquer outra coisa. Seus dentes rangiam. O som do gelo ecoou
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

em seus ouvidos. Uma rajada de neve soprou em seu rosto e ele


pôde sentir seu lábio superior congelado.
Havia sombras na frente dele. Pessoas, quase invisíveis
na escuridão. Se ele ao menos conseguisse ir até elas...
Mas então ele ouviu as vozes deles, suas risadas cruéis.
Zombando dele por conta de suas calças estúpidas. Eram os ga-
rotos da Academia Preparatória dos Cavalheiros Jovens de
Pepperpont. Sua antiga escola, a que ele deixou para trás
quando aconteceu a invasão, quando ele aproveitou a oportuni-
dade para se tornar outra pessoa. O velho medo caiu sobre ele.
Ele queria se esconder, mas não havia para onde ir.
Eles estavam vindo na direção dele agora. Alguns bran-
diam bastões de lacrosse, e, outros, chicotes.
Nigel rangeu os dentes para impedi-los de tagarelar. Ele
não estava mais fraco. Ele tinha Legados. Mas de alguma
forma, ele sabia que não funcionariam aqui. Não no gelo. Ele
não conseguia decidir se fugiria ou se submeteria a quaisquer
humilhações que os alunos da escola tivessem em mente.
Foi nesse momento de dolorosa indecisão que Nigel caiu.
Sempre da mesma forma. O gelo se separou debaixo dele e a
água escura o engoliu, congelando-o enquanto corria através de
seus pulmões.

— E então eu acordo, ofegante – disse à Dra. Linda. — O que


você acha disso? Costumava sonhar com coisas legais, como
aquela vez em que eu estava correndo pelos subúrbios, que-
brando janelas com Siouxsie Sioux.
A Dra. Linda olhou para ele sem expressão, a caneta so-
bre o caderno.
53
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

— Siouxsie Sioux? – Nigel reiterou, horrorizado. —


Siouxsie e os Banshees? Maldito inferno, Linds, você não estava
viva nos anos setenta?
— Sim, Nigel, eu estava viva – disse ela.
— Não parece – respondeu Nigel. — De qualquer forma,
o que vamos fazer sobre esses pesadelos? – ele correu as costas
da mão sobre a bochecha manchada. — Caso contrário não vou
ter meu sono de beleza.
Nigel se afundou ainda mais no sofá confortável do con-
sultório da Dra. Linda, seu olhar percorrendo a sala. O escritó-
rio dela estava cheio de bugigangas do mundo todo; os pequenos
objetos que serviram como gatilho de conversa para a Dra.
Linda quebrar o gelo com alguns dos estudantes estrangeiros.
Nas paredes havia variações da mesma pintura multicolorida e
manchada, e que, considerando que Nigel ainda tinha que vir
aqui pelo menos uma vez por semana, estava totalmente can-
sado de olhar.
— Não é incomum que duas experiências traumáticas
sangrem umas nas outras, particularmente quando comparti-
lham um tema unificador... – disse ela.
— Hã? – Nigel disse, confuso.
— Sua experiência na Islândia e sua formação na escola
preparatória – Linda explicou pacientemente. — Existem seme-
lhanças.
— Sobre o que você está falando? – Nigel respondeu. —
Os idiotas que me atormentaram durante anos não têm nada a
ver com o afogamento.
— É o afogamento que assusta você? – perguntou ela.
— Afogamento é uma merda, não é? Eu estava jogando
o-que-você-prefere outra noite com os rapazes e nós concorda-
mos que todos preferiríamos morrer queimados. Você acha que
isso machucaria mais, certo?
— Nigel.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

— Mas a coisa é que você desmaia pela inalação da fu-


maça muito antes da pele começar a assar de verdade.
— Ok, Nigel. Isso é adorável – a Dra. Linda suspirou. —
O que estou querendo dizer é que, apesar da sua experiência
recente, você não tem medo de morrer afogado.
— Se você diz – respondeu Nigel. Ele colocou suas botas
na mesa de café.
Ele tinha se encontrado com a Dra. Linda com a frequên-
cia suficiente para que isso não causasse nem mesmo uma so-
brancelha levantada da mulher.
— A semelhança, Nigel, é o seu sentimento de impotência
– disse Linda.
— Como é? Não estamos ignorando a parte da terapia em
que você me pergunta qual é a conexão e gradualmente me leva
a uma conclusão?
A Dra. Linda sorriu secamente. — Aprendi que uma
abordagem direta funciona melhor com você.
Nigel olhou pela janela, o céu nítido e azul da Califórnia,
brilhante mesmo neste quase inverno. Ele cerrou os punhos e
beijou a primeira junta, pensando em tudo.
— Por que eu estou pensando em vingança o tempo todo?
Contra aqueles idiotas de Pepperpont de vez em quando, po-
rém, com mais frequência contra aquele controlador de mentes
que fez uma lavagem cerebral em mim?
— A vingança, eu acho, pode ser muito parecida com gelo
fino, Nigel – disse Linda. — Não vai te segurar por muito
tempo.
— Uau, Linda, esse é um alcance heroico para uma me-
táfora, não é? – Nigel se virou e sorriu friamente para ela. — O
que eu ainda não consigo entender, todas essas semanas depois,
é como aquele idiota islandês sabia muito sobre mim.

55
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

A Dra. Linda encontrou os olhos de Nigel por um mo-


mento, depois olhou para o caderno. Ela bateu a caneta pensa-
tivamente.
— Se você está realmente tendo problemas para dormir,
eu poderia prescrever-lhe algo.
— Agora estamos conversando, amor. Desde que seja
algo que me mantenha sóbrio, okay?
Ela olhou para ele niveladamente sobre a borda de seus
óculos. — Obviamente que não – respondeu ela.
— Então não importa. — Nigel disse com um aceno de
sua mão. — Eu estou certo, Linds. Como sempre.

Nigel suspeitava há semanas. Depois da primeira vez que ele


teve o pesadelo – Einar e os garotos Pepperpont, os grandes vi-
lões de sua vida se unindo para atormentá-lo no meio da noite
– ele ficou acordado se perguntando: Como Einar sabia?
A coisa era que Nigel realmente gostava da Dra. Linda.
Ele se sentiu idiota por derramar suas entranhas nela, mas era
bom ter um adulto interessado. Assim, ele enterrou aquela sus-
peita. Não queria acreditar.
Pelo menos não até que eles tivessem certeza de que o
espião era alguém da administração. Assim que isso aconteceu,
não havia como continuar negando. Ele não precisou fazer uma
cópia do disco rígido do computador dela ou invadir o seu e-mail
como os outros estavam fazendo com Greger e Archibald.
Nigel podia ver a culpa nos olhos da Dra. Linda.
No corredor vazio do lado de fora do escritório dela, Nigel
cerrou os punhos e soltou um grito. Com seu Legado, ele poderia
ter gritado alto o suficiente para quebrar todas as janelas da-
quele andar. Em vez disso, ele se calou. A corrente de ar deixou
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

seus pulmões silenciosos – toda a potência de gritos, mas nada


do barulho.
Ele sabia.

Naquela noite, embaixo do centro de treinamento, Nigel estava


na frente de seu quadro de pistas e suspeitos, olhando para a
foto da Dra. Linda.
— A senhora me olha bem nos olhos – Nigel rosnou. —
Bem nos olhos e finge que não sabe.
— Ela descobriu? — Ran perguntou. — Você está falando
como se ela tivesse descoberto.
— Não – Nigel disse bruscamente. — Pelo menos, eu não
acho. Não é tão fácil para mim ser tão trapaceiro com ela.
— Eu sei – disse Ran.
— Eu gostaria é de gritar no traseiro presunçoso dela até
ela sair voando pela janela.
— Talvez, – disse Ran uniformemente. — Isso seria ir
longe demais.
— Maldita bruxa – Nigel resmungou. Ele pegou um mar-
cador e rabiscou chifres de diabo na testa do Dr. Linda. — Te-
nho que sentar lá e deixar ela me tratar quando... – ele balançou
sua cabeça. — Acha que pelo menos ela se importa que por
conta da boca grande dela eu quase fui morto? Sem mencionar
a violação daquele maldito juramento sagrado!
Ran encostou carinhosamente seu ombro no de Nigel.
Sua voz soou tão friamente desapaixonada como sempre. — Eu
sei que não é fácil, mas devemos manter as aparências. Nós po-
demos atingir bem mais nossos inimigos quando eles pensam
que somos ignorantes.
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PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

— A droga do Sun Tzu está por aqui – respondeu Nigel.


— Não foi você que quase se afogou.
— Não. Eu só fui atingida na perna por um atirador de
elite e depois meu peito foi pressionado por telecinese – Ran o
olhou. — Além disso, Sun Tzu era chinês, mas li o livro dele. É
mediano.
— Sim, sim – Nigel respondeu, e sorriu do seu jeito sel-
vagem para Ran. — Eu só estou dizendo que eu não sou o tipo
de cara frio e vingativo. Eu gosto quando a coisa é quente e com
frequência.
— Hum, nós sabemos – respondeu Ran, acostumada com
a bravura de Nigel.
O grupo se reuniu mais uma vez ao redor da mesa de
conferência. Os dados que eles pegaram de Archibald e Greger
estavam limpos. Enquanto isso, Lexa simplesmente conseguiu
invadir o e-mail e o disco rígido do Dr. Chen sem a ajuda dos
alunos – Chen tinha uma proteção de dados fracos assim como
as de uma pessoa inocente. Após isso sobrou apenas a Dra.
Linda, a quem Nigel ficou responsável, e limitou seus xinga-
mentos o máximo possível.
Quando Nigel terminou, Nove olhou para Malcolm e para
Lexa.
— Eu estou convencido – disse ele. — Mas já me disseram
que nem sempre penso nas coisas até o fim. O que vocês dois
acham?
Malcolm fez uma careta. — Eu realmente gostaria que
não fosse ela, mas as evidências parecem se dizer o contrário.
Lexa concordou com a cabeça. — Acho que chegou a hora
da segunda fase – disse ela.
— Vamos ver como Linda lida com um estudante terrível
que quer fugir da Academia. — disse Nove.
Todos se viraram para olhar Taylor.
Ela se sentou em sua cadeira exatamente como Nigel lhe
mostrou, os olhos caídos como se estivesse prestes a adormecer,
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

mastigando chiclete. Com um lance de cabelo, ela sentou-se li-


geiramente, olhando para suas amigas.
— Seus vagabundos, estão falando de mim? — Taylor
perguntou.

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PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

TAYLOR COOK
ACADEMIA DA GARDE HUMANA –
POINT REYES, CALIFÓRNIA

Querida Taylor...
... espero que esta carta lhe encontre bem...
... nos dê uma segunda chance....
Salvando uma vida, você conseguiu salvar outras milhares.
Estamos ansiosos para trabalhar com você novamente...

Uma carta de desculpas. A Fundação havia enviado para ela


uma porcaria de carta de desculpas, além de conter uma proposta.
Taylor não conseguia acreditar na coragem desse pessoal. Eles a
haviam sequestrado e quase mataram seus amigos, e a resposta
deles chegou através de um papel escrito â moda antiga.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

Taylor ainda se lembrava da raiva que ela sentiu naquele dia,


semanas atrás. Ela invadiu o escritório de Nove e praticamente
jogou a carta nele. Ela queria fazer alguam coisa. Qualquer coisa.
— Eles têm espiões aqui – Taylor disse. — Talvez devêsse-
mos fazer o mesmo lá.
— Como você sugere fazermos isso?
— Me deixe voltar – Taylor repetiu. — Deixem eles me re-
crutarem. Eu serei uma espiã secreta.
Nove inclinou sua cadeira para trás, brincando com uma das
juntas de seu braço mecânico. — Você é uma estudante. Não se
formou ainda perante a Garde Terrestre. Eu não posso atribuir uma
missão tão perigosa a você.
Taylor encarou ele. — Sério? Mas você disse—
Nove ergue suas mãos. — Tudo bem, você me convenceu.
Se Malcolm perguntar, nós discutimos sobre isso por muito tempo
antes de você me convencer. Entretanto, precisamos de um plano.
Dois planos. Um para manter você a salvo e outro para fazer a Fun-
dação acreditar que você realmente quer estar lá. Porque se você
fugir novamente e eles conseguirem te pegar, talvez não acreditem
que você esteja realmente do lado deles. Você pode acabar como
aquele garoto do qual você falou. O vegetal.
Taylor engoliu em seco ao se lembrar do Garde em cadeiras
de roda que ela conheceu em Abu Dhabi. — Eu expressei minha
opinião sobre eles de forma bem clara – disse. — Como vamos
convencê-los de que eu mudei de ideia?

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PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

Nove pegou seu tablet e acessou o registro acadêmico de Tay-


lor. — Vamos ver. Diz aqui que suas notas são boas e que seus
professores a descrevem como sendo maravilhoso tê-la nas aulas.
Você é gentil com seus amigos e se apresenta naturalmente predis-
posta em poder curar.
— E?
— E, para começo de conversa, você terá que mudar total-
mente essa descrição – Nove disse. Ele se inclinou para frente. —
Taylor, chegou a hora de você descobrir onde está seu lado negro.

Não tem sido fácil.


Na associação estudantil, dois dias depois de terem decidido
que a Dra. Linda deve ser a espiã, Taylor fez uma careta para seu
livro de economia. Ela estava sem entender alguma coisa. Ela en-
tendia os conceitos – ciclos empresariais, projetos e negócios, res-
cisões e crises. O que ela não conseguia compreender era quando
ela sequer iria ter a chance de usar esse tipo de informação.
Ela encarou a primeira pergunta do seu dever de casa. Ima-
gine que você tem um supermercado...
Taylor bufou. Quais eram as chances disso acontecer? Tudo
bem – imagine que ela de fato tinha um supermercado. Então, se
ele não acabasse queimado por um bando de religiosos loucos e
fundamentalistas que simplesmente acreditavam que Taylor era al-
gum tipo de descendente do diabo – um grande se ali – ela poderia
abrir um quiosque no corredor da farmácia para curar os clientes
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

doentes... oh, e que tal cobrá-los com tudo o que possuíam? Esse
seria o tipo de negócios da Fundação, de qualquer jeito. Talvez ela
devesse escrever sobre isso. Capitalismo num mundo pós-Garde.
Como explorar Legados para obter dinheiro.
Um rasgo apareceu na folha de papel onde Taylor esteve ra-
biscando com força. Taylor respirou fundo e soltou a caneta. Ela
sempre foi uma boa aluna, era do tipo que corria fazer o dever de
casa assim que chegava da aula, que pedia para os professores au-
mentarem a dificuldade dos exercícios quando eles pareciam fáceis
demais. Taylor gostava da escola, e as aulas na Academia da Garde
Humana eram mais interessantes e desafiadoras do que qualquer
coisa que ela já havia tido lá na Dakota do Sul.
Mas agora, depois de semanas indo mal nos teses e sendo
rude nas aulas, até os pensamentos de Taylor estavam se tornando
cínicos. Ela não conseguia olhar para seu dever de casa de economia
sem achar que a coisa toda era desnecessária.
Com um suspiro cansado, Taylor desviou o olhar dos livros
para o seu redor. Era hora do almoço, então a associação estudantil
estava movimentado. Adolescentes de dúzias de condados distintos
carregavam bandejas de comida para as mesas ou bancadas, onde
havia conversas engraçadas, ou batalhas telecinéticas para mudar o
canal da televisão de alta definição do prédio.
Cordas com luzes vermelhas e verdes caiam do teto e se es-
tendiam pelos arredores até a varanda do segundo andar. Havia re-
cortes de papel e bonecos de neve enfeitando as paredes,

63
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

Taylor mordeu sua bochecha por dentro da boca. Esse seria


seu primeiro Natal que ela passaria longe de casa. Ela tentou não
imaginar seu pai passando o dia sozinho, mas não conseguiu evitar
imaginá-lo sentado na sala de estar da casa deles ao lado de uma
árvore de natal caída. Nessa fantasia depressiva, o lugar estava uma
bagunça, seu pai sentado abaixo do teto quebrado enquanto a neve
derretida pingava através do buraco no telhado e arruinava o sofá
velho que eles possuíam.
Ela não devia tê-lo deixado sozinho por lá. E por consequên-
cia, ela não teria o envolvido nos planos deles...
Taylor mexeu a cabeça, forçando ela mesma a não chorar
pelo leite derramado.
Não era como se fosse apenas Taylor que iria ficar presa na
Academia durante os feriados. A maioria dos alunos não recebeu
permissão para visitar os familiares. Aparentemente, isso se deu por
razões de segurança, a Academia só se sentiu confortável em per-
mitir que apenas alguns fossem, e mesmo esses poucos Gardes sor-
tudos iriam levar pequenos grupos de Pacificadores com eles. Os
alunos que receberam permissão foram escolhidos com base no
controle de seus Legados, pelo lapso de tempo desde a última visita,
pelas notas, além do comportamento. Então se alguém por um
acaso saísse escondido do campus e acabasse no meio de um caos
internacional, eles provavelmente não iriam ganhar uma viagem
para casa. A menos que esse alguém fosse o Caleb.
Ela ouvia alunos chorando em seus dormitórios. As recaídas
emocionais que inevitavelmente ocorriam nesse cenário onde o ní-
vel de estresse é alto dobraram nos últimos dias. Assim como o uso
dos telefones e dos computadores coletivos. Taylor não era a única
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

que estava passando por dias difíceis, embora ela fosse a única que
estava passando por esses dias e fingindo ser uma cretina que odi-
ava todo mundo.
— Você está sempre encarando ela.
— Você deveria simplesmente ir falar com ela. Eu li que as
garotas americanas admiram os caras diretos.
— Quando você estiver lá, pergunte a ela como foi matar
pessoas.
Taylor fingiu que ela não podia ouvir a conversa quase sus-
surrada ocorrendo na mesa ao lado dela, mas suas bochechas cora-
das a entregaram. Ela abaixou a cabeça, deixou um pouco de cabelo
cair em seu rosto e deu uma olhada. Era um quarteto de garotos,
nenhum com mais de quinze anos. Eles eram todos tweebs, o que
significa que eles só desenvolveram sua telecinese até agora, mas
nenhum Legado primário. Eles eram o último degrau na escada so-
cial da Academia e tendiam a ficar juntos. Taylor tinha certeza de
que alguns deles haviam chegado à Academia depois dela; mas ela
nem sabia seus nomes. Louco. Pensar que ela não era mais uma
novata por aqui, mesmo que ela só estivesse aqui há quatro meses.
— Ela não matou ninguém – disse o tweeb cujo outros esta-
vam tentando persuadir a ir até Taylor. — Ela pode curar as pes-
soas.
Taylor percebeu que ela conhecia aquele garoto. O nome
dele era Miki. Em seu primeiro dia na Academia, ela o viu atirar o
velho namorado de Isabela, Lofton, através do centro de treina-
mento. Mesmo naquela época, a telecinese dele era supostamente a

65
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

mais poderosa do que a de qualquer outra pessoa no campus. Ele


tinha apenas quatorze anos e era pequeno para sua idade, pouco
mais de um metro e meio de altura, com cabelos escuros e olhos
amendoados. Mas suas características amadureceram um pouco nos
últimos meses. Ele era como o rei dos tweebs agora, Taylor supôs.
— Eu a deixaria curar meus ferimentos, se você sabe o que
quero dizer – disse um dos outros garotos.
— É claro e que ela matou pessoas, cara – disse outro. —
Todos eles mataram. Eles lutaram contra centenas daqueles Ceifa-
dores.
— Não foi isso que eu ouvi.
— O que você ouviu?
— Que eles ficaram bêbados em San Francisco e inventaram
toda a história dos Ceifadores para evitarem problemas.
— Vocês fofocam demais – Miki disse, acabando com a con-
versa. Ele expressou para Taylor um sorriso de desculpas – ele sabia
que ela estava ouvindo a conversa deles. Ela bufou em resposta e
desviou o olhar.
Conversas sussurradas como essa tendiam a acontecer ao re-
dor de Taylor ultimamente. Ela tinha uma reputação. Os outros
alunos chamavam Taylor e seus amigos de os Seis Fugitivos. O ape-
lido fazia Taylor revirar os olhos. De repente, os tweebs pararam de
falar sobre ela e se mostraram mais interessados no programa de
auditório que passava na TV. Um segundo depois, Isabela colocou
uma bandeja de comida ao lado do dever de casa de Taylor. Um
cubinho de pão torrado foi parar no meio do livro de economia
dela.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

— O almoço está servido – Isabela disse enquanto ela colo-


cava sua própria bandeja na mesa e puxava uma cadeira. — A fila
estava tão grande que eu quase morri de fome. De nada, a propó-
sito.
Taylor retirou o cubinho de pão torrado de cima do livro e
olhou para a mesa dos tweebs. Se eles não tiveram coragem de falar
com Taylor, eles definitivamente não teriam a mínima chance com
Isabela, e pela expressão em seus rostos todos eles sabiam disso. A
brasileira de cabelos escuros tinha uma reputação mais estranha no
campus do que Taylor. Ela também era conhecida por dizer o que
desse na telha, não importando o quão mal educado fosse.
— Aqueles garotos estavam comendo você com os olhos –
Isabela declarou em voz alta. — “Comendo com os olhos”. Eu
aprendi essa palavra hoje. Significa que alguém está te encarando
com olhares perversos.
— Quase isso – Taylor respondeu. Ela cutucou o prato de
comida que Isabela havia trazido para ela. — Ei. O que é isso?
Isabela sorriu, sempre animada em praticar seu desenvolvi-
mento rápido no inglês.
— Muito fácil – Isabela disse. — Isso é uma salada.
— Não, eu quero dizer — eu sei que é uma salada. Por que
você me trouxe isso?
Isabela deu de ombros. — Para você comer?
— Eu disse para você quando chegamos aqui que eu queria
uma pizza.
— As pizzas já haviam acabado.

67
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

Taylor olhou para o prato de Isabela, onde dois pedaços gor-


durosos de pizza brilhavam. O estômago dela roncou.
— Você pegou pizza – Taylor disse de forma fria. — Bastante
pizza.
— Sim, mas... como eu vou explicar? – Isabela retirou uma
parte de queijo de uma das pizzas com um guardanapo. — Eu sou
um metamorfo, certo? Então, existem algumas coisas das quais eu
não preciso me preocupar. Tipo, por exemplo, eu sempre serei ma-
gra, não importa a ocasião.
— O que você está tentando dizer? – Taylor perguntou, ran-
gendo os dentes.
— A salada sou eu tomando conta de você – Isabela respon-
deu. — Você está... eu não sei. Um pouco inchada.
— Você está dizendo que estou gorda – o tom de voz de
Taylor aumentou. Agora os tweebs estavam olhando para ela de
novo. Assim como alguns outros alunos nas outras mesas.
Isabela suspirou. — “Fat” e “puffy” são a mesma coisa? Tal-
vez seja meu inglês. Vou confirmar com o dicionário, um mo-
mento.
— Estou farta disso o tempo todo – Taylor gritou para sua
amiga, seu tom de voz aumentando cada vez mais. — Nunca acaba.
— Ótimo – Isabela disse, revirando os olhos. — Pode ficar
com a pizza.
— Não é. Sobre. A pizza – Taylor rugiu, e, com um movi-
mento telecinético, atirou tudo o que estava em cima da mesa no
chão. A pizza voou até os tweebs, e Miki teve que reagir rapidamente
com sua telecinese para evitar que a bandeja o atingisse na testa. Os
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

pratos quebraram ao cair no chão, provocando um coro de “oooh”


dos outros alunos. Agora, todo mundo estava observando.
Ótimo.
— Puta, você está louca? – Isabela gemeu, suas mãos levantadas
para limpar o molho que se espalhou em sua camisa.
— Eu duvido você dizer isso em inglês – Taylor repetiu.
E então, antes de esperar por uma resposta, Taylor usou sua
telecinese para tirar a mesa que estava entre elas. Os outros alunos
correram para evitar que o móvel flutuante os atingisse. Taylor
avançou e agarrou Isabela antes mesmo que ela pudesse levantar.
Havia gritos por todo lado agora, mas Taylor não conseguia
entender nenhuma palavra. Provavelmente estavam dizendo para
ela parar. Ela estava em luta corporal com Isabela – arranhando e
puxando o cabelo uma da outra. Isabela tentou empurrá-la com te-
lecinese, mas Taylor revidou. A pressão no ar quebrou um piso
abaixo dos pés delas.
No meio da confusão, Taylor conseguiu livrar uma das
mãos, cerrou os punhos e disferiu um soco no meio do nariz de
Isabela. Isabela caiu sentada com um gemido agudo, sangue já es-
correndo por cima de seus lábios. Ela olhou para Taylor com os
olhos lacrimejando, em choque e machucada para revidar. Então,
ela começou a chorar.
— Meu nariz! – ela choramingou, com o som da voz difícil
de ser entendida. Você quebrou meu nariz!
Taylor pairou sobre Isabela, seus punhos ainda cerrados,
sem ter muita certeza do que fazer. Todos estavam encarando ela.

69
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

De repente, Taylor foi levantada, seus braços imobilizados


telecineticamente na lateral de seu corpo. Alguém com um poder
telecinético superior ao de Taylor havia a levantado e levitado ela
até a porta da associação estudantil.
— Que merda, Taylor. O que diabos está acontecendo com
você?
Era o Professor Nove. Seu rosto estava sombrio quando ele
colocou Taylor na frente dele. Os braços de Nove – o real e a pró-
tese metálica – se cruzaram no peito dele. Este era o olhar severo
de Nove. Ela olhou para Nove desafiadoramente. A associação es-
tudantil ainda estava em silêncio, exceto pelos sons dos soluços de
Isabela, todos tentando ouvir o que aconteceria com a chegada de
Nove.
— Eu te fiz uma pergunta – Nove disse.
— E por acaso os alienígenas entendem alguma coisa sobre
emoções humanas? – Taylor perguntou com um bufo. Ela jogou os
cabelos para trás dos ombros. — Pare de fingir que você se preo-
cupa e apenas me mande para a Dra. Linda como você sempre faz.
— Seu desejo é uma ordem – Nove disse. — Suma de vista.
Taylor estava tremendo quando ela passou por Nove, os sus-
surros dos outros alunos a acompanharam enquanto ela saia. Ela
queria chorar.
Tudo pareceu tão real. Especialmente a raiva.

— O que está acontecendo, Taylor?


O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

— Nada.
— Você tem noção de que essa é a terceira atitude violenta
que você teve dentro de um mês?
— Eu não sei – Taylor respondeu, fazendo um movimento
com o canto da boca que ela tinha aprendido com Nigel. — Eu não
contei.
Dra. Linda tamborilava a ponta da caneta em seu queixo en-
quanto estudava Taylor.
— Bom, eu contei – ela disse com calma, depois de alguns
segundos agonizantes encarando Taylor. — Seus professores, seus
colegas de classe – todos nós percebemos, Taylor. Mesmo que nin-
guém possa dizer com certeza o que esteja acontecendo com você,
nos simpatizamos. Você sabe que estamos aqui para apoiá-la, certo?
Taylor bufou. — Eu sei. Eu não poderia me livrar de vocês
nem se eu quisesse.
— Uma escolha interessante das palavras – Dra. Linda repe-
tiu. — Você quer ir embora, Taylor?
Taylor encarou a mulher de meia idade com um silêncio res-
sentido. Com seus cabelos cacheados grisalhos e óculos de grande
armação, a Dra. Linda parecia mais com a tia dócil de alguém do
que com uma espiã.
— Sim – Taylor disse finalmente. — Eu já posso ir?
— É meu trabalho ser honesta com você – Dra. Linda res-
pondeu.
— Então isso é um não.

71
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

— E eu preciso dizer, sua personalidade mudou muito desde


que você chegou aqui.
— Ah, sim – Taylor repetiu. — Talvez seja porque alguma
entidade alienígena que nós humanos mal conseguimos compreen-
der me deu superpoderes. Acha que isso tem alguma coisa a ver?
Como sempre, era impossível arrancar uma reação inespe-
rada da Dra. Linda. — Todos os alunos aqui têm Legados – ela
respondeu. — A grande maioria deles não estão reagindo a isso
com tantas explosões violentas, particularmente os que são iguais a
você, que não possuem históricos agressivos.
— Aham, bom, talvez seja porque uma organização esquisita
me sequestrou e basicamente me vendeu para um príncipe saudita.
Os gênios da Garde Terrestre te atualizaram dos acontecimentos
recentes, certo? Eles basicamente deixam as coisas acontecer. A se-
gurança por aqui é uma porcaria. Sem mencionar que eu devo fazer
o que o governo me disser, sem direito a perguntas – mas se minha
família precisar de ajuda? Não, eles não se importam com isso. Isso
está fora do alcance do programa.
— Isso é muita coisa para absorver – Dra. Linda disse diplo-
maticamente. — Muito ressentimento.
— Bosta nenhuma.
Dra. Lina continuou como se ela não tivesse ouvido. — Eu
gostaria que tentássemos entrar em contato com a velha Taylor. Eu
quero saber qual é a opinião dela sobre seu recente comportamento.
Com certeza, na sua escola antiga, havia brigas com os seus colegas.
Taylor colocou as mãos no colo. Para ser honesta, a sua es-
tadia na escola antiga parecia ter ocorrido milhões de anos atrás.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

Seus amigos normais sem Legados... ela mal conseguia se lembrar


dos rostos deles agora.
— Sim – Taylor disse. — Tudo bem. E daí?
— Você teria resolvido algum daqueles conflitos dando um
soco na cara de alguém?
Taylor olhou para sua mão, onde os nós dos dedos estavam
arranhados e avermelhados. Ela tocou a pele e se curou – um breve
pulso de energia quente em seus dedos, uma sensação fria de dre-
nagem na boca do estômago. Os prós e contras de usar seu Legado.
— Eu nem bati nela com tanta força – Taylor disse, carran-
cuda.
— Antes da nossa próxima sessão, eu quero você realmente
reflita sobre quem você era antes de vir para a Academia – Dra.
Linda concluiu, fechando seu bloco de anotações em seu colo. —
Eu quero você pense sobre a velha Taylor e me diga o que você
sente falta dela e o que ela pensaria sobre quem você se tornou.
Taylor revirou os olhos. — Eu não preciso pensar nisso –
ela disse. — Eu já sei.
— Ah, é?
— Eu nunca quis ter desenvolvido Legados e nem vir para
cá – Taylor disse devagar. — A velha Taylor era covarde demais
para dizer alguma coisa. Eu apenas me deixei levar e fiz o que vocês
me disseram para fazer. E veja o que aconteceu comigo. Estou ba-
sicamente presa aqui. A vida toda do meu pai está arruinada—

73
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

— Eu ouvi sobre as dificuldades com seu pai – Dra. Linda


disse. — Algumas coisas estão além do controle até dos Gardes,
Taylor. Podemos conversar sobre isso—
— Tudo que vocês fazem é conversar. Conversar e me trei-
nar para ser um dos seus soldados de chumbo – Taylor sacudiu a
cabeça. — É uma loucura, mas sabe o que eu percebi pouco tempo
atrás? Que eu provavelmente estava melhor com aquelas pessoas
da Fundação. Eu poderia ter conseguido uma boa casa e dinheiro
suficiente para cuidar do meu pai e eu não teria que limpar a cafe-
teria como uma lição de vida ou passar outro minuto sentada aqui
fazendo companhia para sua bunda.
A Dra. Linda recostou-se. — Entendo – ela disse uniforme-
mente.
Ela havia comprado o papo? Taylor não tinha certeza. Mas
a armadilha foi colocada.

Naquela noite, embaixo do centro de treinamento, Taylor timida-


mente recebeu os aplausos de pé de seus amigos.
— Claro, claro, todo mundo aplaudindo o bullying com a
pizza – Isabela disse com desdém. Seus olhos estavam com hema-
tomas roxos, um curativo na ponta de seu nariz. — Ignorem a po-
bre Isabela e seu ferimento horrível.
— Bravo! – Nigel gritou. — A porcaria da Academia toda
está falando só de vocês duas! Isabela, você nunca esteve tão ado-
rável.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

Isabela sorriu sarcasticamente para o britânico magricela. —


Tudo para a encenação, bobão – disse ela, enquanto as contusões
se dissiparam, seu rosto bonito tendo sido restaurado após ela ter
mudado de forma. Mesmo mudando sua aparência, a voz de Isabela
ainda estava com um resquício nasal, sua respiração sibilava no na-
riz.
Com afeto, Taylor envolveu Isabela num abraço. — Você
está bem? – ela perguntou. — Deixe-me curá-la.
Isabela negou com um movimento. — Eu já estive pior – ela
respondeu. — Guarde para amanhã. Você pode me curar na medi-
ação e teremos uma boa cena.
— Me desculpe, Isabela.
— Psh... por favor. Você realmente deveria pedir desculpas
para o Professor Nove. A cara dele quando você chamou ele de
ET!
— Um ET sem emoções – corrigiu Nove de onde ele estava
sentado na mesa de conferência.
Taylor inclinou a cabeça para trás em descrença. — Foi tudo
parte da—
— Palavras machucam, Cook – Nove respondeu com uma
piscadela. — É tudo o que eu vou dizer sobre isso. Palavras ma-
chucam.
— Que bebezinho – Isabela disse em gozação, gesticulando
para Nove. — Não posso acreditar que a Garde Terrestre colocou
um chorão como responsável.

75
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

Lexa e Malcolm trocaram um olhar ao ouvirem aquilo e co-


meçaram a rir. Nove simplesmente olhou para Isabela e ela olhou
de volta. Kopano finalmente os interrompeu, puxando a cadeira ao
lado dele para que Taylor pudesse se sentar.
— Então, nos conte, nos conte – a disse ele, sorrindo para
Taylor. — A Dra. Linda mordeu a isca?
— Talvez eu tenha exagerado um pouco – disse Taylor para
Kopano e os outros. — Mas acho que definitivamente deixei claro
o quanto odeio isso aqui. Dei a entender que gostei mais quando
estive na Fundação.
Lexa bateu na tela do computador. — Linda já apresentou
seu relatório de incidente. Ela menciona que você está se sentindo
isolada e com raiva. Convenientemente deixa de fora qualquer men-
ção da Fundação.
— Tudo o que podemos fazer agora é esperar que eles se
aproximem de você novamente – disse Nove.
— Espero que isso aconteça logo – Taylor respondeu, pas-
sando a mão pelos cabelos. — Não é fácil ser perturbadora e mal-
humorada o tempo todo – ela olhou para Nigel. — Eu não sei como
consegue.
— Ei! Intrometido, talvez... mas eu não sou mal-humorado.
— E se eles não vierem até Taylor? – Ran perguntou. — E
se estivermos errados sobre a Dra. Linda?
— Não estamos errados sobre Linda – afirmou Nigel.
Nove suspirou e olhou por cima do ombro para o quadro de
líderes e suspeitos. — Então continuaremos caçando e cavando até
encontrarmos outro caminho.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

— E se a Fundação de fato vier? – Caleb perguntou, com


um olhar de soslaio para Taylor. — Temos certeza de que será se-
guro?
— A jornada do herói nunca é totalmente segura – Kopano
interveio, colocando uma das mãos no ombro de Taylor. — Mas
ela pode lidar com isso.
Taylor olhou para ele e revirou os olhos. — Deus, você é
brega.
Malcolm se inclinou para frente para responder Caleb. —
Nós tomaremos precauções. Vamos estar preparados desta vez.
— E quanto aos outros Lorienos? – Caleb perguntou. —
Eles não podem ajudar com isso?
— Seis está fazendo o que pode – disse Nove. — Quanto a
John, Marina e Ella... eu não sei o que diabos eles têm feito. Algum
projeto secreto. Estamos sozinhos.
— Eu pensei que ainda haviam outros – disse Kopano.
— Não – respondeu Nove bruscamente. — Todos os outros
estão mortos.
A reunião terminou logo depois disso, e eles saíram em si-
lêncio para voltar aos dormitórios. Mesmo que Taylor tivesse que
acordar cedo para as tarefas diárias – ela tinha perdido a noção de
quanta limpeza extra ela estava sendo obrigada a fazer pelo castigo
– ela ficou no porão até restar apenas ela e o Professor Nove.
— Algo em sua mente? – ele perguntou.

77
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

Taylor olhou para suas mãos. — É difícil, sabe? Fingindo


que não gosto daqui. Agindo como se eu odiasse meus amigos. Eu
não quero dizer nada disso.
— Nós sabemos disso, Cook.
— Mas às vezes, eu me sinto brava, realmente com raiva –
continuou Taylor. — E eu estou preocupada em estar estragando
minha vida toda por nada.
— Estamos fazendo a coisa certa – respondeu Nove. Ele
colocou a mão no ombro dela, e ela percebeu que era o braço me-
cânico dele ao senti-lo gelado. — O mundo será um lugar melhor
quando terminarmos, Taylor. Eu prometo. Tudo vai dar certo.
Ela olhou para ele, incerteza em seus olhos. — É melhor que
seja.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

TAYLOR COOK
ACADEMIA DA GARDE HUMANA –
POINT REYES, CALIFÓRNIA

UMA PARTE IMPORTANTE DO PLANO DOS SEIS FUGITIVOS


não tinha nada a ver com a Academia. Era a parte do plano que
fazia o estômago de Taylor embrulhar sempre que ela pensava
nisso, especialmente porque foi ela que sugeriu a ideia. Ela havia
feito isso acontecer. Se o plano deles não derrubasse a Fundação,
ela terá sacrificado muito em troca de nada.
E os sacrifícios não eram todos dela.
Há cerca de um mês, o pai dela veio visitá-la.

79
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

— Tem certeza de que quer fazer isso? – perguntou o professor


Nove.
Taylor respirou fundo, fortalecendo-se. — Tenho certeza de
que acabar com a Fundação. Mas essa parte do plano? – ela balan-
çou a cabeça. — Não. Eu não tenho certeza disso.
Foi na terça-feira depois do Dia de Ação de Graças. Taylor
mordeu os lábios, pensando em como ela quase se esqueceu de ligar
para o pai na semana passada. Quando ela chegou à Academia, li-
gava para sempre que tivesse uma chance. Depois que ela se insta-
lou e se acostumou com a situação, Taylor reduziu o número de
ligações para uma vez por semana. E depois — bem, ela obvia-
mente não podia ligar para o pai dela da Islândia, enquanto ela es-
tava sequestrada, mas, mesmo depois de voltar, ela diminuía ainda
mais o número de ligações.
— Quanto você disse a ele? — Nove perguntou. — Sobre o
que aconteceu com você?
— Você provavelmente já sabe. Vocês não gravam todas es-
sas conversas?
— Puff, você acha que eu quero ouvir essas drogas de con-
versas? — Nove zombou. — Os dias não possuem horas suficien-
tes para isso.
Os dois sentaram-se em uma mesa de piquenique na área de
visita fora da Academia. Havia algumas casinhas pitorescas espalha-
das por ali, todas abastecidas com comida e jogos de tabuleiro e
atividades ao ar livre como luvas de beisebol e frisbees. O lugar dava
a sensação de acampamento. Isso fazia o local parecer normal – isto
é, desde que não olhassem para o sul, onde os soldados da ONU
mantinham seus alojamentos, uma variedade de caminhões milita-
res e até mesmo um tanque estacionado lá. É aqui que os pais vi-
nham nas visitas. Excursões pela Academia eram possíveis, mas por
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

motivos de segurança, raramente eram aprovadas. Às vezes Taylor


se perguntava se a administração estava tentando proteger os segre-
dos da Academia dos pais ou proteger os frágeis pais humanos da
volátil Garde que morava lá. Provavelmente um pouco de ambos.
— Eu não disse nada a ele – disse Taylor para Nove. — O
que eu diria? Que eu fui sequestrada por algumas pessoas psicóticas,
depois resgatada e que alguns de meus amigos quase morreram du-
rante a ação de resgate? Que esses mesmos sequestradores entraram
em contato comigo escondendo uma carta no meio das que foram
enviadas da minha antiga escola? Que eles me querem de volta
como se eu tivesse acabado de terminar um estágio de verão ou algo
assim e eu sou uma das primeiras da lista? Que eu realmente quero
aceitar a oferta para que eu possa ser uma agente disfarçada? Que
esses monstros da Fundação provavelmente estão observando ele
e podem tentar usá-lo como alavanca? Não – Taylor respirou
fundo. — Claro que eu não disse nada.
— Melhor assim – Nove grunhiu.
Taylor franziu a testa. — Eu costumava contar tudo a ele. A
primeira coisa que eu escondi do meu pai foram os meus Legados,
e isso durou apenas uma semana – ela balançou a cabeça. — É es-
tranho. Ele pode perceber que estou escondendo alguma coisa.
Nove mexeu nas articulações da mão cibernética dele. Taylor
o observou pelo canto do olho. Ela não conhecia Nove há muito
tempo, mas já reconhecia que ele poderia ficar estranho e confuso
sempre que tentassem falar de sentimentos com ele.
— Pode ser difícil quando os pais estão envolvidos – disse
Nove. — Quero dizer, eu não saberia, mas posso imaginar. Nós
não temos que fazer essa parte do plano se você não quiser.
81
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

Taylor passou a mão pelo cabelo. — Vai ser temporário –


disse ela. — É isso que fico repetindo para mim mesma.
— Certo – disse Nove. — Seu pai parece ser um cara legal.
Ele provavelmente ficaria orgulhoso se soubesse o que você estava
fazendo.
— Orgulhoso e assustado. Ou miserável e solitário. Talvez
tudo isso acima.
Taylor coçou o antebraço, sentindo a pele onde deveria estar
uma cicatriz. Ela foi submetida a uma pequena cirurgia na semana
passada, realizada pela Lexa e pelo Dr. Goode, no centro de treina-
mento. Ela mesma havia curado a ferida, mas ainda assim sentia um
incomodo.
— Está tudo bem? – Nove perguntou.
— Sim. É apenas... estranho, eu acho.
Nove flexionou o braço de metal. — Você vai se acostumar.
Alguma coisa se movimentando na estrada que levava ao
quartel chamou a atenção de Taylor. Era muito estranho ver a pick-
up marrom amassada de seu pai passando por um posto de segu-
rança. O contexto estava todo errado.
Taylor se levantou, sentindo-se um pouco atordoada.
— Eu estarei aqui se você precisar que eu... hum... apareça e
seja bem profissional ou coisa do tipo – disse Nove.
— Eu estou bem, obrigada. — Taylor respondeu por cima
do ombro, atravessando o jardim até onde seu pai havia estacio-
nado.
Lá estava ele. Seu pai parecia um pouco cansado, a barba
crescida, o cabelo bagunçado, mas ele sorriu quando viu Taylor. Ela
correu os últimos passos para ele e então se envolveram num
abraço, e ele passou a mão pelo cabelo dela e a beijou na testa. Por
um minuto, Taylor se sentiu como uma menininha novamente.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

Seu pai a segurou na altura do braço. — Olhe para você.


Uau.
— Qual é, pai – disse ela. — Não faz tanto tempo assim.
— Eu sei eu sei. Mas você mudou – ele respondeu, estu-
dando-a. — Não posso dizer como, exatamente. É bom, no en-
tanto. Você parece... bem, como uma jovem que eu escolheria para
proteger o planeta, suponho.
— Ah, pare – disse Taylor. Ela deu uma cotovelada de leve
no pai. — Você está com fome? Todas essas cabines têm comida.
Eu poderia te fazer alguma coisa.
Seu pai respirou fundo e estufou o peito. — É bom esticar
minhas pernas, na verdade. O ar é bom aqui fora. Eu nunca estive
na Califórnia.
Então eles resolveram andaram pelo terreno. A Academia, o
quartel e o centro de visitantes nas redondezas foram construídos
em uma antiga reserva natural, então havia muitas trilhas de bos-
ques para eles caminharem juntos.
Ela contou a ele sobre suas aulas, o treinamento de seus po-
deres no hospital e sobre seus amigos. Todas as coisas que eles ha-
viam conversado antes nas ligações telefônicas, quando eram mais
frequentes. Por sua vez, ele a atualizou sobre a terrível vida mun-
dana de seus primos, os programas de TV que costumavam assistir
juntos e as condições da fazenda.
— Aqueles Ceifeiros realmente rasgaram os campos – disse
ele. — Meio irônico. Eles seriam fazendeiros terríveis – ele balan-
çou a cabeça. — O governo foi gentil o suficiente e limpou todos
os entulhos que eles deixaram para trás, mas ainda assim eles me

83
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

atrasaram um pouco. Se eu racionar o bastante e viver de jantares


feitos no micro-ondas durante o inverno, eu vou superar essa fase.
— Você já está sofrendo por dinheiro – resmungou Taylor,
meio pensativa.
— Bem, eu não diria que estou sofrendo. Apenas vai ser uma
época de escassez...
— Não, papai, tudo bem. Na verdade, é ótimo.
Seu pai levantou uma sobrancelha. — Não entendi.
Naquele momento, os dois já haviam percorrido toda a trilha
e retornado à área principal de visitantes. Nove ainda estava sentado
na mesa de piquenique. Ele deu a Taylor um aceno discreto quando
ela olhou em sua direção – tudo estava pronto.
Taylor pegou o pai pelo cotovelo e levou-o para uma das
cabines.
— Vamos lá, vou explicar aqui. — disse ela. — Em particu-
lar.
— Aqui parece tão particular quanto lá fora – o pai dela ob-
servou assim que adentraram. A cabine era simples e aconchegante
– um sofá e algumas cadeiras, uma mesa de jantar, uma seleção de
filmes (nenhum deles com classificação superior a 13 anos ou algo
relacionado a alienígenas). E, claro, havia uma câmera de segurança
em num canto. Era para ela que seu pai estava olhando quando fez
o comentário, as mãos nos quadris. A configuração lembrou Taylor
da cabine de Einar na Islândia; perfeitamente confortável e aparen-
temente normal, mas nunca sem observações.
— Sim, essas coisas estão em toda parte – disse Taylor,
olhando para a câmera também. Ela cobriu a boca como se esti-
vesse bocejando e sussurrando. — Apenas aja normalmente por
um segundo.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

— Normal? — Seu pai respondeu. — Eu pensei que estava


agindo normal.
Taylor fez uma careta quando seu pai não seguiu sua lide-
rança no sussurro secreto, mas naquele momento a luz vermelha de
gravação da câmera de segurança piscou duas vezes. Esse era o si-
nal. Ela suspirou e se virou para o pai. — Ok, não estamos mais
sendo observados.
O pai de Taylor olhou para ela, para a câmera e de volta para
ela. Taylor esperava total perplexidade, mas em vez disso ela rece-
beu um olhar estrábico do pai, o mesmo que ele usou com um la-
vrador que tentou cortar as esquinas.
— Então... – ele disse. — Agora você vai me dizer o que está
acontecendo com você, certo?
— Você já deveria ter percebido, hein?
— Claro que sim. Eu sou seu pai. Você pode ser uma Garde
agora, com problemas que eu não consigo nem começar a entender,
mas isso não significa que eu não saiba quando há algo de errado
com você.
Taylor mordeu o interior de sua bochecha. — A coisa é que...
há muito o que posso te dizer. Para o seu próprio bem.
— Para meu próprio bem – ele repetiu, então se sentou em
uma das cadeiras da cozinha. — Poxa, é melhor eu me sentar para
ouvir. Minha filha se foi e se tornou uma agente secreta.
Taylor não pôde deixar de sorrir com isso. Se ele soubesse. A
verdade era que havia tanta coisa que Taylor queria dizer ao pai dela.
Provavelmente era melhor que ele não soubesse que ela havia sido
sequestrada, ou que ela estava tentando voltar para os sequestrado-
res.
85
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

— Existem algumas pessoas más fora da Academia, piores


que os Ceifeiros... – Taylor começou devagar. Ela havia ensaiado
esse discurso mais cedo, mas ainda estava escolhendo cuidadosa-
mente suas palavras. — Eles veem pessoas como eu – um Garde –
como mercadorias. É como se eles quisessem obter um monopólio
sobre nós e cobrar preços altos por nossos serviços. E eles não se
importam com quem se machuca no processo.
Uma carranca profunda apareceu no rosto do pai. — Tudo
sempre se resume a dinheiro neste mundo, não é mesmo? Eu ima-
gino que você estaria em alta demanda, por ter o Legado que cura
e tudo mais. Algumas pessoas veem o milagre acontecer e – ca-
ramba, como eu posso tirar uma grana disso?
— Sim. Exatamente – Taylor respondeu. — Meu professor,
o que você viu lá fora—
— Número Nove. Claro que eu o vi – Taylor levantou uma
sobrancelha, e então seu pai explicou. — Eu tenho feito minhas
pesquisas sobre as pessoas que cuidam da minha filha. Nove, ele é
o garoto selvagem.
— Ele melhorou bastante – disse Taylor. — De qualquer
forma, ele acha que essas pessoas vão tentar me recrutar para a or-
ganização macabra deles. Ele também acha que eles podem até ter
espiões na Academia. Queremos que um dos funcionários deles se
aproxime de mim para que possamos expô-los.
Seu pai esfregou o queixo. — Essas pessoas parecem peri-
gosas, Taylor.
— Eu sei, mas...
— Desculpe, você não precisa explicar – ele disse, interrom-
pendo-a. — Eu acabei de quebrar uma promessa que fiz a mim
mesmo.
— Você o que?
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

— Eu prometi a mim mesmo que – não importaria o que


você me dissesse, porque eu sabia que você iria me dizer algo – que
não iria falar sobre o quão perigoso poderia ser. Sua vida é perigosa
agora. Eu vi isso em primeira mão, quando aqueles porcos apare-
ceram na nossa porta. Você sempre será minha filhinha, e obvia-
mente há uma parte de mim que não gostaria de fazer nada além de
arrastá-la de volta para o condado de Turner, rasgar e queimar os
contratos governamentais e então prendê-la na fazenda e mantê-la
segura para sempre.
Taylor sorriu tristemente. — Há uma parte de mim que gos-
taria de ir.
Seu pai balançou o dedo para ela. — Talvez, mas eu já não
acho que seja uma grande coisa. E está tudo bem. Eu ouço isso em
seu tom de voz. Você quer pegar essas pessoas.
— O que eles estão fazendo é errado, pai – disse Taylor, seu
tom de voz duro. — É nojento.
— Bem, eu odiaria estar na pele deles, do lado oposto ao da
minha filha com sua mente brilhante. Apenas me prometa que você
e os outros heróis estão cuidando uns dos outros.
— Nós não somos heróis, pai, mas... sim. Eu prometo.
— Bom – seu pai disse, — então, o que você precisa de
mim? Como posso ajudar?
Taylor olhou para os pés, arrastando-os no chão de madeira.
— Eu não tenho certeza se você vai gostar. Você pode negar.
— Deixa comigo.
— Então a coisa é que... nós precisamos dar a essas pessoas
um motivo para se aproximarem de mim. Algo que eles possam
usar para me subornar...
87
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

Seu pai inclinou a cabeça. — Aha. Entendo. Seu pobre pai


subsistindo em Hot Pockets é algo que essas pessoas podem usar
como alavanca.
— Sim – respondeu Taylor. — Bem, é um começo, de qual-
quer forma...

Uma semana depois, no condado de Turner, na Dakota do Sul, dois


vigilantes esperaram Brian Cook dirigir sua caminhonete pela es-
trada rural. Estavam estacionados no acostamento, em uma cami-
nhonete indefinida com painéis de madeira. Nada que se destacasse.
Esses dois estavam bem acostumados a se esconder à vista de to-
dos.
— Lá está ele – disse o cara no banco do passageiro, apon-
tando para a Brian que passava com sua caminhonete.
— Bem na hora – respondeu seu parceiro. Ela se sentou
atrás do volante, o cabelo loiro enrolado abaixo de um chapéu de
lã grossa. Se o Sr. Cook os notou lá, esperando que ele deixasse a
fazenda, ele não percebeu. Ela esperou até que a caminhonete do
Sr. Cook estivesse fora de vista, para então abriu a porta. — Vamos.
Vamos a pé, apenas para o caso de alguém estar nos observando.
Do lado de fora do carro, o cara esfregou as mãos, exalando
vapor em sua frente. — Caramba, da próxima vez podemos aceitar
uma missão num lugar tropical?
Ela sorriu para ele. — Aqui. — disse ela, estendendo a mão.
— Você sabe o que fazer.
— Nunca me canso disso também.
Assim que ele pegou a mão dela, ela tornou os dois invisíveis.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

Seis e Sam se arrastaram através da lama congelada enquanto


se afastavam da estrada, acabando por adentrar nas terras do Sr.
Cook. Cinco minutos depois, a pequena casa em que Taylor cresceu
apareceu, junto com o celeiro. Eles tinham certeza de que não ha-
viam animais no celeiro. O Sr. Cook havia vendido seus cavalos e
porcos para sobreviver naquele inverno.
— Eu tenho que dizer– declarou Sam. — Isso está muito
longe de salvar o mundo.
Seis bufou. — Merda nenhuma. Mas Nove diz que isso o
ajudará com o problema da Fundação. O cara já concordou com
isso. Ele sabe que uma hora isso vai acontecer. Qualquer coisa que
fosse insubstituível ele já deveria ter tirado da casa.
Sam sacudiu sua cabeça invisível. — Apenas dias ruins, Seis.
Num dia você está derrotando uma raça alienígena hostil empe-
nhada em dominar o mundo e no próximo você está destruindo a
casa de algum pobre coitado. Merda. Será que eles pelo menos têm
tornados no inverno?
Seis levantou a mão livre e o céu sobre o celeiro do Sr. Cook
começou a escurecer.
— Agora eles têm.

89
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

KOPANO OKEKE
SUÍTE 440 –
AGH – POINT REYES, CALIFÓRNIA

— O QUE ACHAM DESSE? – KOPANO PERGUNTOU.


Kopano saiu de seu quarto vestindo um dos uniformes que
seu pai havia arrumado para ele em Lagos, quando eles ganha-
ram bastante dinheiro logo após Kopano ter desenvolvido sua
telecinese. Naqueles dias, quando ele estava trabalhando como
segurança para o serviço de entrega clandestino de seu pai, ele
disse que Kopano deveria ser mais estiloso. Então da coleção de
moda delinquente de Udo Okeke veio uma camisa de seda preta
que estava por dentro de uma calça social cinza, os botões da
camisa desabotoados apenas o suficiente para valorizar os mús-
culos de Kopano.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

Kopano deu uma voltinha de 360 graus e abriu os braços.


— É bem bonito, não é? – ele perguntou, esperançoso. —
Bem maneiro.
Nigel, que estava esparramado no sofá da área comum
do dormitório deles, suspirou.
— Odeio ser um estraga prazer, mas cara, você parece o
segurança da boate mais badalada do mundo com essa roupa.
Ou, melhor dizendo, parece uma droga de gangster.
Kopano enrijeceu o queixo. — Isso não foi um elogio.
— Não foi!
Kopano franziu a testa. Ele tirou a roupa – com exceção
da cueca – e a deixou cair no chão e, depois, a chutou para uma
pilha junto com as demais rejeições.
— Você está levando isso muito a sério, maninho – Nigel
disse.
— Tenho que achar a roupa perfeita! – Kopano respon-
deu. — Meu pai me disse uma vez... bom, não faz muito sentido
em inglês. E é meio vulgar. Mas, basicamente, o pavão macho—
— Seu pai lhe deu essas roupas? – Nigel interrompeu.
Quando Kopano assentiu melancolicamente, ele continuou. — En-
tão eu acho que podemos jogar essas coisas no lixo junto com
qualquer outra camisa de seda que você tiver por aí.
Kopano já tinha recebido esse conselho antes. Em seu úl-
timo dia na Nigéria antes de decolar para a Academia, sua mãe
lhe disse que deixasse a "sabedoria" de seu pai na África. Seu
pai era, na verdade, um traficante impenitente, cujas frequentes

91
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

oscilações de fortuna sempre mantinham Kopano e seus dois ir-


mãos à beira da pobreza. Sua mãe fez as coisas funcionarem.
Ou, como ela diria, Deus as providenciou. Essa era o defeito da
mãe de Kopano – ela era muito religiosa. Kopano suspeitava que
ela compartilhasse crenças semelhantes às dos Ceifadores – que
seu próprio filho e seus novos amigos eram maculados pelo di-
abo. Ele sabia que ela rezava para que seus Legados fossem
“curados”. Ela disse isso a ele em suas cartas pouco frequentes.
— De qualquer forma, não sei porque você quer minha
opinião – Nigel disse enquanto passava um dedo por um dos
muitos buracos comidos por traças em sua camiseta sem mangas
dos Black Flag. — Eu não sou exatamente a melhor pessoa para
dar conselhos sobre como se vestir para impressionar alguém, en-
tende?
Ainda pensando em seus pais, Kopano respondeu: — A
sabedoria pode vir de vários lugares, meu amigo – ele bateu
palmas e sorriu. — Você é estiloso. Eu sempre pensei isso, desde
que te vi pela primeira vez naquela visão. Foi tipo – aquele cara
lá, ele saiu de um filme. Ninguém pode ser mais descolado que
ele.
Nigel sorriu. — Que tipo de filme?
— Sabe, um daqueles filmes britânicos onde todo mundo
são ladrões, falam rápido e atiram uns nos outros.
— Sei – Nigel respondeu, assentindo. — Sei, legal. Eu vou
tentar ajudá-lo. Mas talvez você deva parar de se inspirar em
filmes e apresentações e coisas do tipo e apenas tentar parecer
normal. Me parece que a Taylor aprecia o que é normal.
Kopano estalou o dedo. — Viu? O que eu disse? Ótimo
conselho!
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

Kopano voltou para seu quarto, mais uma vez remexendo


em seu guarda-roupas. Ele pegou um par desgastado de calça
jeans e um suéter de malha fina na cor verde. Seria esse tipo de
roupa que ele usaria caso fosse mais um dia normal e não a vés-
pera de natal quando ele tinha planos especiais. Parecia pouco
esforço, mas...
— Nada mal – Nigel disse quando Kopano voltou para o
salão comum. — Pelo menos você tem seu próprio estilo. E não
parece que você está tentando impressionar alguém.
— Mas eu estou tentando impressioná-la – Kopano res-
pondeu.
Nigel fechou os olhos e massageou suas pálpebras. — Ób-
vio, mas você não quer que ela saiba que você está tentando
impressioná-la.
Kopano se jogou numa poltrona na frente de Nigel. —
Sabe, se você apenas pedisse para Ran—
— Eu disse para você que eu não sou bom sendo cupido –
Nigel respondeu. — Eu peço a Ran para perguntar a Taylor se
ela estaria interessada em sair com Kopano, e aí isso iria parecer
que estamos dentro de um daqueles romances chatos da Jane
Austen, não acha? Não. Não sei fazer isso. Não vou me envolver
desse jeito.
Kopano olhou para o amigo. Em Lagos, qualquer um dos
amigos de Kopano teria ficado feliz em ajudá-lo com uma garota
que ele gostava. Era o que se esperava. Claro, Nigel era muito,
muito diferente de seus amigos lá de Lagos. Esta não foi a pri-

93
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

meira vez que Nigel mencionou que iria "permanecer neutro". Ko-
pano ainda não entendia o que exatamente ele queria dizer. Por
quem Nigel iria ficar neutro? Não é como se Kopano estivesse em
algum tipo de briga.
Antes que Kopano pudesse dizer mais alguma coisa, a
porta do quarto de Caleb se abriu e ele saiu com uma mochila
jogada sobre um dos ombros. Ele acenou para ambos e pousou
a mochila com um suspiro. Caleb tinha se tornado muito mais so-
cial desde que todos fugiram juntos e quase foram mortos. Ko-
pano também notou um declínio acentuado na quantidade de
conversas que Caleb tinha com seus clones a quatro paredes.
Apesar da simpatia recém descoberta, Caleb sempre parecia fi-
car quieto quando Kopano mostrava sua paixão por Taylor. Ko-
pano ouvira dizer que alguns americanos podiam ser um pouco
hipócritas. Ele pensou que podia ser isso.
De qualquer forma, Kopano percebeu que Caleb tinha
muita coisa em mente nas últimas semanas. Afinal de contas, ele
era um dos poucos estudantes que tinha permissão para visitar os
familiares em casa, mesmo que apenas por alguns dias. Todos os
Seis Fugitivos ainda estavam em liberdade condicional por terem
fugido do campus, então deve ter sido verdade o que todos dis-
seram sobre Caleb – que seu tio, o general aposentado que aju-
dou a salvar o mundo, providenciou um tratamento diferenciado
para ele.
— Acho que está na minha hora – Caleb disse com um
olhar perdido para a mochila.
— Você está animado? – Kopano perguntou levantando
uma das sobrancelhas, embora fosse óbvio que Caleb estava
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

longe disso. — Quando foi a última vez que você visitou sua fa-
mília?
Caleb pensou nisso. — Depois da invasão, eu acho, mas
antes da inauguração da Academia – ele olhou para Nigel. —
Quando eles nos colocaram em quarentena.
— Bons tempos – Nigel disse secamente.
— Faz muito tempo! – Kopano respondeu. — Você deve
sentir falta deles.
Caleb pensou antes de responder. — Na verdade, eu
meio que me acostumei a estar longe deles. É mais fácil de... eu
não sei. Não pensar neles?
— Meus pais nem se deram ao trabalho de me mandar
um cartão postal – Nigel disse. — E eu prefiro assim.
— Eles não são boas pessoas? – Kopano perguntou para
Caleb. Ele sabia bastante sobre os pais de Nigel pelas histórias
que ele havia contado sobre o terem enviado para um internato
e se esquecido dele, mas Caleb mal tocava no assunto família. A
única coisa que Kopano realmente sabia era que todos eles eram
militares e muito rígidos.
— Não – Caleb respondeu rapidamente. — Não, eles são
legais. É que... – ele pausou. — É difícil explicar.
— Estou com inveja – disse Kopano. — Você tem permis-
são para ir para casa e mostrar para a sua família o Garde
fodão que você se tornou. Se eu fosse você, eu andaria por Ne-
braska como se eu fosse o dono de tudo.
Caleb mexeu a cabeça. — Eu não sou... fodão.

95
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

— Você vai ficar bem, cara – Nigel disse, soando mais


sincero do que ele jamais soou. Ele levantou e estranhamente
abraçou Caleb, o que pareceu surpreender a ambos. — Não os
deixe pegarem no seu pé. E não guarde nada para si. É assim
que os problemas começam, não é mesmo?
— Tudo bem, são só por alguns dias – Caleb lembrou a
ele mesmo. — Enfim, o que vocês estão planejando fazer no fe-
riado?
— Quatro dias inteiros sem aula... Professor Nove foi tão
generoso – Nigel respondeu. — Provavelmente vou dormir um
monte. Talvez melhorar minha performance na guitarra.
Ele disse a última frase com uma piscadela para Caleb, e
o garoto sorriu de volta para ele. Kopano sabia que eles esta-
vam trabalhando em algum projeto musical no sótão, mas não
haviam o convidado, então ele ficou na dele.
— Eu vou cozinhar arroz para o Natal – Kopano declarou.
— E, se eu tiver sorte, algum romance.
Nigel deu um tapa no rosto de Kopano. — Nunca diga isso
novamente.
Caleb engoliu em seco, olhando para eles. — Oh, você
está saindo... hum... com a Taylor...?
Kopano assentiu. — Se tudo for como o plan— Uh, Caleb?
O rosto de Caleb literalmente ficou borrado, como se uma
cópia transparente estivesse sobre ele, mas de forma desali-
nhada. Era um clone tentando sair do corpo dele. Caleb piscou e,
antes do clone escapar, ele desapareceu como um fantasma. Ko-
pano e Nigel o olharam enquanto ele coçava timidamente sua
nuca.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

— Nervos, eu acho – Caleb explicou. Ele olhou para o re-


lógio na parede e pegou sua mochila. — Melhor eu ir. Você sabe
como eles ficam quando você deixa o helicóptero esperando.
— Feliz Natal! – Kopano disse, envolvendo Caleb num
abraço e dando tapinhas nas costas dele.
— Sim – Caleb respondeu. — Para você também.

Na semana anterior, Kopano ficou aterrorizado quando ele viu


pela primeira vez o cardápio do feriado. Um jantar chato com
peru? Basicamente o mesmo jantar com peru que eles serviram
um mês atrás no feriado americano de ação de graças? Isso não
era nada legal.
— Cadê o arroz? – Kopano perguntou para qualquer um
que pudesse ouvi-lo. — Como pode não servirem arroz no Natal?
A maioria dos outros alunos pareceram perplexos quando
ele começou a reclamar sobre a ausência de arroz, mas a Dra.
Chen mostrou algum interesse. Kopano estava no seminário cultu-
ral dela naquele semestre – a aula tinha o propósito de ajudá-
los a entender a grande variedade de comunidades signatárias
das Nações Unidas que eles ajudariam assim que se formassem
e integrassem a Garde Terrestre. Todos precisavam ter essa aula
até a formatura.

97
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

— Talvez essa seja uma boa oportunidade para apren-


dermos sobre outras culturas – ela disse. — Eu provavelmente
posso conseguir alguma coisa com o pessoal da cozinha...
E ela tinha. Na última semana antes do Natal, os alunos
puderam fazer pedidos de ingredientes e se inscrever para par-
ticipar da equipe da cozinha, onde poderiam preparar um prato
tradicional de sua terra natal que seria compartilhado com outros
alunos no feriado. Fazer isso foi bom para crédito extra na aula
do Dr. Chen, supondo que eles também dessem uma breve apre-
sentação sobre o significado da comida.
— Psh, pontos extras – Isabela rolou os olhos quando Ko-
pano contou a ela sobre a novidade. — Por que isso é impor-
tante? Como se essas notas bobas fossem significar alguma coisa
depois.
Mas nem todos eram cínicos como Isabela. Muitos outros
alunos fizeram a inscrição para a aula extra na cozinha, incluindo
alguns que nem faziam parte da turma da Dr. Chen.
A vez de Kopano na cozinha ocorreu na véspera de Natal.
Ele ficou feliz em pegar um dos últimos espaços livres, onde as
coisas seriam mais calmas e pacíficas. Convenientemente, depois
te der discutido com Isabela, Kopano sabia que Taylor estaria
acabando seu turno de limpeza no salão de jantar um pouco an-
tes dele começar.
Por isso, Kopano trabalhou devagar. Em uma panela ele
cozinhou um frango interior com curry, tomilho e cebolas. Depois
disso, ele fritou dois pedaços de fígado de boi, que seria picado
em cubos e adicionado ao arroz. Os pequenos pedaços de carne
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

sempre foram a parte favorita do prato para Kopano, mas al-


guns dos outros alunos da classe fizeram caretas de desgosto
quando ele mencionou o fígado.
— Esse tipo de reação – Dr. Chen explicou, — é exata-
mente o motivo por estarmos tendo esta aula.
Ainda assim, Kopano queria que a parte do fígado fosse
feita antes de Taylor aparecer. Ele não queria fazê-la sentir nojo
da comida.
Kopano olhou por cima do ombro para o presente que ele
havia comprado para Taylor que estava em cima de um balcão
limpo, longe o suficiente para evitar qualquer respingo de ali-
mentos. Ele tentou afastar seu nervosismo, preocupado de novo
que ela poderia pensar que ele era um idiota – seu conselheiro
de romance, Nigel, provavelmente o chamaria de idiota, e foi
por isso que Kopano fez questão de não mostrar a ele.
Enquanto o fígado cozinhava, Kopano observou os pratos
que seus colegas haviam feito. A maioria deles tinha feito sobre-
mesas. Simon, o cara francês que podia transferir seu conheci-
mento através de objetos, aparentemente tinha algumas habili-
dades secretas de chef de confeitaria. Ele fez uma coisa cha-
mada la bûche de Noël – Kopano pensou que parecia um gigante
Ho Ho cercado por pequenos cogumelos feitos de glacê. Ele co-
meçou a pegar um pedaço de glacê solto do topo, mas retraiu a
mão no último segundo, resistindo ao impulso. O que iria parecer
se Taylor chegasse e o encontrasse devorando todas essas sobre-
mesas?

99
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

Bem, talvez eles poderiam fazer com que isso se tornasse


o último ato de rebeldia dela.
Desde que o plano de infiltração na Fundação começou,
Kopano estava vendo Taylor cada vez menos. Ele sabia que ela
precisava parecer isolada para os outros, até mesmo dos amigos,
se eles quisessem convencer a Fundação a se aproximar dela no-
vamente. A estranha organização tinha que pensar que era ideia
deles, como se eles estivessem resgatando Taylor de uma vida
que ela odiava. Mas isso não facilitou para Kopano. Ele e Taylor
tinham chegado à Academia juntos, sempre confiaram um no ou-
tro – era fácil esquecer que Taylor estava apenas fingindo e co-
meçar a sentir que eles realmente estavam se afastando.
E o que aconteceria se esse plano realmente funcionasse?
A Fundação levaria Taylor e depois... o que? Kopano ficaria
preso na Academia, sem nada para fazer além de esperar que
as coisas acabassem bem. O professor Nove insistiu que eles ti-
nham agentes lá fora que poderiam cuidar de Taylor, pessoas
em quem ele confiava, mas isso não fazia Kopano se sentir me-
lhor. Era uma ideia perigosa, uma que ele provavelmente não
teria aceitado se no plano não fosse ideia da própria Taylor,
para começo de conversa.
Kopano estava imerso em pensamentos, cortando cebolas
e, ocasionalmente, enxugando as lágrimas dos olhos na manga
da camisa, quando uma voz o assustou.
— Eu sempre soube que você era carinhoso, mas são mui-
tas lágrimas...
Taylor ficou na porta, observando-o com um sorriso can-
sado. Ela usava uma camisa xadrez com as mangas arregaçadas
e uma regata junto com um par de jeans justos. Seu cabelo loiro
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

estava preso por uma bandana. Embora ela estivesse empur-


rando um balde de água suja com um esfregão, a visão de Taylor
fez a boca de Kopano secar. Ela continuava linda mesmo depois
de ter passado as últimas horas limpando os restos de comida.
— São as cebolas – ele insistiu com uma fungada desafi-
adora. — As cebolas. Eu juro.
— Aham – respondeu Taylor. Ela usou sua telecinese para
guardar o esfregão e o balde no armário de suprimentos adja-
cente, e em seguida, caminhou até Kopano. — Que tipo de bis-
coitos estranhos você está fazendo que têm cebolas na receita?
— Eu não estou fazendo biscoitos – Kopano respondeu en-
quanto continuava a cortar as cebolas. — Estou fazendo arroz
de Natal.
— Ah. Todos os outros fizeram sobremesas – Taylor pro-
curou uma das prateleiras próximas, enfiou a mão dentro de uma
bandeja com papel-manteiga e tirou um pedaço de baklava.
— Você acha que só porque você agora é a garota má
da Academia, você pode invadir a cozinha sempre que quiser e
devorar o trabalho duro de seus colegas, é?
Taylor mastigou pensativamente. — Sim. Você quer um?
— Obviamente.
Taylor alcançou a bandeja e pegou outro biscoito de
baklava, depois o deixou flutuando na frente do rosto de Kopano.
— Sabe – Taylor começou com um sorriso astuto, — Isa-
bela diz que você é um dos meus stalkers.

101
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

Quando estava quase dando uma mordida, Kopano tossiu


e teve que virar seu rosto. Ele esperou um momento para se re-
compor enquanto Taylor tentava esconder um risinho. Sempre que
ele ficava envergonhado, Kopano usava o humor como estratégia
para disfarçar – ele puxou isso do pai.
— Por que ela diria algo assim? – Kopano perguntou imi-
tando uma entonação como se fosse uma ofensa. Ele pegou o
biscoito flutuante do ar e decidiu comê-lo.
Taylor deu de ombros. — Eu não faço ideia. Talvez por-
que você tenha o hábito de aparecer do nada? Tipo, depois de
eu ter feito aquela cena na aula de química e tive que ajudar o
professor Burroughs a classificar os materiais, do nada você de-
senvolveu um interesse obscuro e repentino a respeito dos ele-
mentos químicos.
— Aquilo foi prática! – Kopano exclamou. Ele balançou as
mãos para frente e para trás para demonstrar. — Eu queria des-
cobrir se havia qualquer substância química que eu não fosse ca-
paz de atravessar. Assunto científico sério.
— Uh-uhu – Taylor respondeu. — Um ótimo álibi.
Kopano fingiu estar mal-humorado e voltou a cortar as ce-
bolas. Isabela sempre arrumava um jeito de dizer o que ela bem
entendesse... que geralmente era fofoca, ou então era sobre suas
muitas teorias a respeito do que os outros estudantes estavam
secretamente sentindo ou pensando. Na maior parte do tempo,
porém, ela estava certa. Ela certamente havia desmascarado Ko-
pano. Ele estava procurando oportunidades de se encontrar com
Taylor no campus.
O DESPERTAR DOS LEGADOS DE LORIEN

Ele não se importava que Isabela o tivesse desmascarado.


Pelo contrário. Era uma boa notícia – significava que ela e Taylor
estavam falando sobre ele. Taylor também percebeu.
— Nós costumávamos sair mais – disse Kopano. Ele esfre-
gou as cebolas picadas em uma frigideira, onde começaram a
chiar. — Eu entendo porque não podemos sair nesses últimos dias.
Porque você deve se passar por uma jovem cínica e irritada. An-
dar comigo seria ruim para sua reputação. Tudo o que você faria
seria sorrir o tempo todo e dizer coisas como “oh, Kopano, você
é tão engraçado e bonito". E isso iria com certeza derrubar seu
disfarce.
Taylor sorriu, exatamente como Kopano havia previsto. —
Claro – ela respondeu, mas sua expressão logo ficou diferente.
Ela olhou para a câmera de segurança na parede da cozinha.
— Temos que ter cuidado falando assim.
— Eu avisei a Lexa que estaríamos aqui – disse Kopano.
Por motivos de segurança cibernética preparados pelo
Professor Nove, todas as filmagens de vigilância da Academia –
e quem tinha acesso – passavam por Lexa. Dessa forma, se Tay-
lor escorregasse ou precisasse de uma pausa na interpretação
da garota má, ela não seria pega na câmera. Kopano fez ques-
tão de pedir para Lexa não gravá-los na cozinha naquela noite.
— Mas você não é um stalker – disse Taylor secamente,
com os olhos quentes.
— Mas talvez eu tenha me programado para esbarrar
com você aqui e ali – Kopano continuou a cortar os legumes. —

103
PITTACUS LORE
OS SEIS FUGITIVOS

Isso é stalkear? Eu nem sei o que essa palavra significa, mas acho
que não.
— Ah, com certeza. Se fingir de idiota – disse Taylor. Ela
foi até um dos balcões limpos e se sentou lá, balançando suas
pernas. — Eu não estou reclamando. Nos encontramos às escon-
didas abaixo do centro de treinamento não é o mesmo que sair.
Eu sinto falta disso.
Kopano deu um sorriso. — Eu ainda levo minha promessa
muito a sério. Eu me dedico a tornar sua experiência aqui o mais
chata possível.
Taylor bufou. — Acho que a chatice foi embora pela ja-
nela. Obrigado por tentar, no entanto – ela estendeu a mão e
apertou a manga de Kopano. — Este suéter fica bem em você.
Apesar de todas as suas tentativas de ficar neutro, ele não
conseguia deixar de por um sorriso idiota em seu rosto.
— Hã? Este? É só um trapo velho que eu vesti.

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