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“No Brasil, muitos

preferem vingança à
aplicação de justiça”

“Há um lado cordial, certamente, que não podemos ignorar. Em momentos de


crise as pessoas são solidárias, sofrem com a dor do outro. Mas, no cotidiano,
as pessoas também são muito pouco solidárias com a dor do outro quando
essa dor envolve, por exemplo, o mundo do crime”, analisou. “As pessoas
dizem assim: ‘Se ele cometeu um crime não merece a minha consideração’.”
Ao analisar crimes recentes cometidos no Brasil, os massacres em presídios e
as reações da sociedade no País, o sociólogo observa que “uma onda
conservadora” se espalha pelo mundo, sendo que na América Latina, em
especial, há uma cultura favorável à ideia de que criminosos “apodreçam na
prisão“.
O professor estabelece uma conexão entre essa ideia e a falência dos modelos
democráticos contemporâneos de representação política. A atual conjuntura
brasileira, de perturbação política e econômica, segundo ele, leva a uma
“profunda descrença no futuro e em valores fundamentais”, além de estimular
“opiniões muito reacionárias”.
“No Brasil ainda temos esse sentimento primário, que está lá na raiz da nossa
consciência, de que a punição deve ser de tal maneira exemplar que você tem
que retirar esse indivíduo do convívio dos humanos”, explicou. O discurso do
combate ao terrorismo na Europa, acrescentou, segue essa mesma matriz de
pensamento.
DW Brasil: Crimes que ocorreram recentemente no Brasil chocaram sobretudo
pelo aspecto da intolerância. Há uma onda de intolerância no país, no que se
refere a direitos individuais? Seria possível estabelecer uma relação entre a
intolerância e a ascensão do conservadorismo?
Sergio Adorno: Em primeiro lugar, essas questões de intolerância não são
recentes. Há uma longa história no Brasil de intolerância com os mais
pobres, com os negros, com as mulheres, com as crianças dentro de
casa etc. Então a intolerância para com a diferença, sobretudo com a diferença
que não se sujeita às relações hierárquicas, é um dado histórico e constitutivo
da estrutura da sociedade brasileira.
Não é um fenômeno novo. O que é novo é que, primeiro, ele está sendo cada
mais problematizado, seja pela dinâmica da sociedade, seja pela organização
dos movimentos sociais. As denúncias são mais constantes, e há mais
pressões pela apuração da responsabilidade de atos de intolerância que
comprometem a integridade física e moral e a identidade social de grupos
sociais determinados. Isso tudo tornou, ao que parece, esse fenômeno mais
visível e, portanto, mais suscetível a discussões públicas e à inquietação
pública.
Agora, de fato nós estamos assistindo a uma onda conservadora no mundo
inteiro, e ela tem impactos no Brasil. E como o Brasil também tem suas raízes
muito conservadoras, isso mobiliza disputas em torno de comportamentos,
sobre o que é considerado justo e injusto, certo e errado, o que seria o
comportamento ideal de homens e mulheres, comportamento ideal de
alunos e estudantes, e coisa parecida. Dada a crise institucional e política
que o Brasil está atravessando, o tecido social fica muito mais sensível. Tudo é
objeto de censura, de acusação do outro. É isso que estamos vivendo no
momento.
Entendo que o mundo inteiro está atravessando uma era de crise de valores
em relação à justiça, aos direitos, à qualidade de vida. Tudo isso, no fundo, é
um processo de perturbação que afeta a capacidade de compreensão e a
simbolização da experiência de vida, o que significa que as pessoas estão
permanentemente sob tensão, como se estivessem permanentemente em
situação de serem atacadas e de atacar. Basta ver o comportamento das
pessoas no trânsito, por exemplo.

REVISTA CARTA CAPITAL.

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