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Salvador
2019
A PROMESSA DO NACIONALISMO:
REPRODUÇÃO/RESISTÊNCIA NO SISTEMA
INTERNACIONAL
Salvador
2019
RESUMO
O texto que segue nas próximas páginas trata-se de uma pesquisa científica elaborada no
âmbito das Relações Internacionais, e tem por intuito a análise da evolução histórica do
conceito de nacionalismo, pressupondo a possibilidade que este conceito tenha sido utilizado
para produzir, reforçar ou reproduzir os pilares estruturais de um sistema que permite a
construção de assimetrias relacionais que levariam à opressão (formal e informal) de uma
parte dos atores partícipes deste mesmo arcabouço. Durante a pesquisa desenvolveu-se um
marco teórico do nacionalismo, reforçado por dois pressupostos principais. O primeiro diz
respeito à natureza do nacionalismo, que seria caracterizado como uma doutrina política. O
segundo trata do momento fundador desta doutrina, tomada aqui como produto da
modernidade, e das possíveis consequências de seu surgimento neste período específico.
Verificou-se, a partir de revisão bibliográfica e análise comparativa de textos centrais da
literatura que trabalha conceitos de nação e nacionalidade, que os movimentos nacionalistas
não possuem caráter único, flutuando entre ações revolucionárias ou reacionárias a depender
do momento histórico e dos interesses das classes envolvidas. No entanto, o nacionalismo
atua, independentemente do lado definido, no sentido de reproduzir uma lógica que permite e
legitima relações assimétricas, refinando e sofisticando as estruturas de opressão e violência
no sistema internacional.
ABSTRACT
The text that follows in the next pages is a scientific research elaborated in the scope of the
International Relations discipline, and aims to analyze the historical evolution of nationalism,
mainly as a concept, assuming the possibility that it has been used to create, reinforce or
reproduce the structural pillars of a system that allows the construction of relational
asymmetries that would lead to the oppression (formal and informal) of a part of the
participating actors of this same framework. During the research, a theoretical framework of
nationalism was developed, reinforced by two main assumptions: nationalism would be a
political doctrine, product of modernity. It was verified, from bibliographical review and
comparative analysis of central texts of the literature that works concepts of nation and
nationality, that the nationalist movements do not have a unique character, fluctuating
between revolutionary or reactionary actions depending on the historical moment and the
interests of the classes involved. However, nationalism acts, no matter what side, to reproduce
a logic that allows and legitimizes asymmetrical relations, refining the structures of
oppression and violence in the international system.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................6
2. DEBATES E CONCEITOS ............................................................................................12
2.1 O NACIONALISMO E SUA PROBLEMATIZAÇÃO ................................................12
2.1.1 PRIMEIRAS TENTATIVAS: O SURGIMENTO DA DICOTOMIA
NACIONALISTA ...................................................................................................................13
2.1.2 NACIONALISMO: IDEOLOGIA E POLÍTICA .......................................................21
3. PRAGMATISMO SENTIMENTAL: PRESSUPOSTOS PARA A CONSTRUÇÃO
DE UMA VISÃO SOBRE NAÇÃO O NACIONALISMO .................................................34
3.1 QUESTÕES FUNDADORAS: O PRIMORDIALISMO ..............................................35
3.2 MODERNIDADE E POLÍTICA ...................................................................................43
4. A PROMESSA DO NACIONALISMO.......................... Erro! Indicador não definido.
4.1 O(S) NACIONALISMO(S) E O(S) MUNDO(S) ..........................................................69
4.1.1 O MUNDO DO SISTEMA INTERNACIONAL ...................................................69
4.1.1.1 NAÇÃO NO MUNDO DO SISTEMA INTERNACIONAL ....................................72
4.1.1.2 O PODER NACIONAL .............................................................................................75
4.1.2 EMANCIPAÇÃO .....................................................................................................81
4.1.3 MANUTENÇÃO ......................................................................................................91
5. CONCLUSÃO................................................................................................................101
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................108
6
1. INTRODUÇÃO
O debate acerca dos nacionalismos, apesar de adormecido nos últimos anos, não é novo,
mesmo nas Relações Internacionais. O que o traz de volta para o centro dos debates
contemporâneos é uma união de dois movimentos: o primeiro, relacionado ao próprio campo
das Relações Internacionais; o segundo, a uma conjuntura política específica, de agitação de
ânimos e discursos de segregação, muitas vezes pautado nas questões étnica e nacional.
O segundo ponto traz à tona a discussão acerca do fortalecimento, nos últimos anos, de uma
extrema direita nacionalista, de base xenófoba. A defesa da nação se impõe como dever e a
auto-percepção identitária aparece como elemento primordial para a garantia do bem-estar
social. O cosmopolitismo das tentativas de criação de uma sociedade internacional, defendido
como essencial para o correto tratamento a problemas globais (e não apenas internacionais)
vêm sendo substituído rapidamente por um movimento de retorno às fronteiras. A primazia do
local em detrimento do global. Endossando este discurso, o nacionalismo é vocalizado de
maneira agressiva, como escudo contra a invasão bárbara da imigração, miscigenação étnica,
multiculturalidade. O discurso nacional é encarado como boia de salvação à maldição da
globalização, fechando seus precursores em bolas de bilhar, tal qual desenhadas pelas teorias
realistas dos anos 1950 a 1970. Paradoxalmente, a voz desse debate defende que o nacional é
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suficiente (ou ao menos o ponto mais importante) para se compreender "identidade", fechando
as portas para perguntas que aprofundem o debate e as fronteiras para tudo aquilo que é
diferente.
Não são raras as vezes em que grandes esforços tomam lugar a partir de pequenos passos. No
caso deste trabalho, assim como de tantos outros, a pergunta norteadora era curta e simples,
mas escondia por detrás de si imensa complexidade: o que é nacionalismo?
O processo para responder à pergunta foi doloroso e metamórfico, com tantas idas e vindas
quanto se pode imaginar. No final, a situação se resume numa decisão quase contraditória de
não apenas abandonar a empreitada de responder, definitivamente, o que seria nacionalismo,
mas também de desistir de problematizar o termo, caminhos mais conhecidos da pesquisa
social.
E o que de fato se buscava não era explicar o nacionalismo, mas entender sua função no
sistema internacional, no mundo ontológico da pesquisa em RI. Os temas referentes à
formação do sistema internacional ganham papel de destaque na hierarquia de interesses deste
pesquisador, pois parecem ser capazes de formar a maneira pela qual as relações
internacionais se tornam possíveis. Em última instância, o jogo da política internacional deve
obedecer a determinadas regras, e é o seu entendimento que inicia um processo de
aprofundamento na compreensão das ações dos jogadores envolvidos. Questionar não o
nacionalismo, mas a estrutura do sistema internacional foi o ponto de partida real desta
pesquisa, que finalmente se afastou do campo do senso comum e da dúvida genuína e
gradativamente se aproximou da epistemologia das Relações Internacionais.
Como já foi dito, a intenção não é a realização de uma análise meta-teórica do nacionalismo,
produzindo uma síntese paradigmática capaz de responder à pergunta posta nas primeiras
linhas deste texto. Pelo contrário, aqui se buscará avaliar o nacionalismo como conceito em
seu estado atual e real, in natura. Sem necessariamente questioná-lo, a pergunta se direcionará
para a compreensão de como este conceito foi capaz de moldar o sistema internacional, a
partir do pressuposto de que, mesmo nos casos de luta de emancipação, há reprodução de um
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sistema intrinsecamente excludente. É importante frisar que aqui não se busca afirmar que o
nacionalismo é o único, ou mesmo o mais relevante conceito formador do sistema
internacional, mas, sim, um dos mais relevantes.
Essa iniciativa foi facilitada após a decisão de incluir alguns pressupostos na pesquisa, que foi
diminuindo seu caráter crítico ao longo das leituras e ganhando um ar mais voltado para a
compreensão do conceito de nacionalismo. O primeiro pressuposto é de que o nacionalismo
trata-se, acima de tudo, de uma expressão política, que toma a forma de ideologia, doutrina ou
movimento. Foi necessário, para se chegar a esse pressuposto, adicionar um marco histórico
para o surgimento da nação, já que o nacionalismo seria, em tese, um movimento político
pautado neste conceito. Tomando como base a literatura monumental selecionada para o
trabalho, chegou-se à conclusão que nação e sentimento nacional só surgem a partir do Estado
moderno, ou seja, do século XVII, mas se consolidam como forma de organização social após
a Revolução Francesa. Nesse sentido, a lógica construiu o segundo pressuposto, qual seja, o
nacionalismo seria um produto da modernidade.
Tomando como base os pressupostos definidos bem como o problema supracitado, partiu-se
para a elaboração de algumas hipóteses, visando abarcar grande parte das possibilidades de
resposta. As próprias terminologias utilizadas para definir o nacionalismo e a posição
temporal das respostas hipotéticas é um indicador do enraizamento dos pressupostos.
Nesse sentido, o esforço não partiu do interesse de construir hipóteses auto-excludentes, mas
complementares, já que o problema é amplo e cheio de nuances. A primeira delas trabalha a
possibilidade de as lutas nacionalistas alcançarem algum nível de emancipação, mas, apesar
do relativo sucesso da maioria delas, a lógica de opressão no sistema internacional se
manteria, havendo apenas uma substituição da fonte desta opressão, que passaria das antigas
metrópoles para o sistema (leia-se o capitalismo e hegemonia neoliberal).
A segunda hipótese entra num campo mais construtivista, defendendo que a normatização do
mundo obrigaria novos atores recentemente emancipados a se conformarem à lógica do
sistema internacional. Essas normas seriam criadas no seio de instituições de base ocidental,
quando não colonial e, dessa forma, posicionariam novos atores em locais de fala menos
privilegiados e perpetuariam relações desiguais. Em outras palavras, a emancipação
nacionalista apenas reafirmaria a posição subalterna destes novos atores, contribuindo para
que esta posição seja reforçada do ponto de vista da legitimidade normativa do sistema
internacional contemporâneo, que não mais comporta relações coloniais formais. O
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A sexta e última hipótese é ainda mais otimista que as últimas, e visualiza que qualquer
movimento que transforme em ilegítimas relações fundamentalmente desiguais é benéfico
para a diminuição da opressão no sistema internacional. As lutas nacionalistas seriam, nesse
sentido, centrais para diminuir o peso da opressão entre os povos, e o nacionalismo não
possuiria relação direta com as bases hierárquicas do sistema internacional.
Como já deve ter ficado claro, as hipóteses acima não são reducionistas, mas abrem amplas
possibilidades de compreensão e resposta à pergunta-problema, criando avenidas conceituais
que poderiam ser seguidas. Visando recortar estas possibilidades, os objetivos do trabalho
precisavam ser muito bem definidos.
O primeiro problema que surge destas leituras e conjecturas gira em torno da conceituação do
que seria nacionalismo. Esse é o objetivo específico mais relevante do trabalho, e que traz
consigo a necessidade de também compreender o que seria e como surge a nação. Por mais
que estas sejam questões centrais do trabalho, não haveria espaço para um debate abrangente
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sem perder o foco, voltado para a explicação de como o nacionalismo molda o sistema
internacional. Ou seja, outro objetivo do trabalho é questionar a possibilidade de mudança ou
reforma do sistema internacional a partir do nacionalismo e suas expressões políticas,
verificando se o nacionalismo possui capacidade emancipatória, se na verdade trabalha no
sentido da manutenção das estruturas de dominação, ou se é uma ferramenta de reprodução do
sistema internacional, independente do caminho a ser tomado.
Responder a essa questão sem entrar em estudos de caso foi o maior desafio deste estudo, pois
seria quase impossível pontuar o poder emancipatório do nacionalismo sem acessar
indicadores de emancipação e testá-los em movimentos reais. O caminho escolhido para
resolver essa questão e manter a natureza teórica do trabalho foi incluir a bibliografia da
Teoria Crítica, e expor o nacionalismo aos seus teoremas. Nesse sentido, compreender
emancipação é outro objetivo central desta pesquisa.
Esse esforço seguirá uma estrutura metodológica baseada em dois eixos principais que por sua
natureza acabam por se tocar em diversos momentos. O primeiro diz respeito à revisão
bibliográfica, onde será construído o alicerce teórico necessário para análises posteriores.
Neste ponto será importante identificar textos centrais relacionados à base teórica do trabalho,
especialmente aqueles que discutam nação, nacionalismo e criação do Estado. O segundo eixo
do trabalho se baseará em metodologias de análise de discurso, conforme trazido no trabalho
de Ivan Neumann (2008). Segundo o autor, chama-se de discurso todo um conjunto de ações
realizadas por agentes sociais com base em interpretações de realidades únicas. Para tanto, o
autor recomenda três passos, que devem ser seguidos nesta pesquisa: 1) delimitar os textos a
serem analisados, identificando os monumentos, ou textos centrais daquele tópico; 2) mapear
quaisquer assimetrias entre representações nestes mesmos textos; e 3) hierarquizar estas
representações, sempre levando em consideração a historicidade na qual cada representação
se inclui (NEUMANN, 2008).
É neste momento que o cerne metodológico do trabalho vem à tona. A partir da identificação
dos textos monumentais, seria possível realizar inferências e comparações acerca das
interpretações de nacionalismo na visão destes teóricos centrais ao mesmo tempo em que os
faz dialogar com a lógica do nacional no sistema. Ao interpretar e comparar a visão de
nacionalismo em cada autor central será possível consolidar uma visão acerca do conceito,
baseada principalmente nos pressupostos definidos acima.
11
Assim surge o último dos pressupostos do tripé formador desta pesquisa, que dá título ao
trabalho: apesar de conter diversas faces, o nacionalismo serviria, em última instância, como
ferramenta de reprodução deste sistema internacional, levando consigo todas as suas
vantagens e desvantagens.
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2. Debates e Conceitos
A primeira parte deste trabalho servirá como poço fundamental de onde serão retirados os
gatilhos conceituais desenvolvidos em seções posteriores. Para isso, inicia-se a discussão
trazendo à tona uma reconstrução histórica do conceito de nacionalismo, elencando de
maneira enciclopédica seus principais paradigmas. É certo que neste primeiro momento não
será imprescindível cravar o motivo que leva determinados grupos organizados a levantar a
bandeira nacional como principal hino de sua luta, muito menos se estas lutas são de
emancipação ou reacionárias: para além disso, esse capítulo tentará realizar um apanhado
histórico e, na medida do possível, generalista, do nacionalismo.
Existe grande debate na literatura das ciências sociais acerca do período de surgimento do
nacionalismo, seja como conceito, ideologia, movimento político. Não cabe a este trabalho
responder qual o mais acertado, mas, por questões de parcimônia metodológica, se faz
necessária a escolha de um caminho.
Essa escolha se dá em função de uma assunção conceitual, defendida principalmente (mas não
exclusivamente) por Benedict Anderson, Ernest Gellner e Eric Hobsbawm, que posiciona o
nacionalismo como um elemento bastante específico, que só pode ser percebido em sua
essência mais completa após a Revolução Francesa (BURKE, 2013, p. 109). Antes disso, é
possível perceber elementos da nacionalidade, com o compartilhamento de expressões
culturais, identitárias, ou mesmo étnicas, que contribuíam para a coesão social. No entanto,
este conjunto de sentimentos não é suficientemente organizado para que possa ser
considerado nação em sua acepção moderna, que é o foco deste trabalho.
Ozkirimli (2000) assevera que ainda nesse período não era possível divisar correntes teóricas
que promovessem um debate sobre o surgimento do nacionalismo: todas tomavam a
nacionalidade como algo dado e inquestionável. A preocupação dos teóricos do período dizia
respeito à aplicação destes conceitos e não ao seu questionamento. Estas primeiras tentativas
são normalmente vinculadas ao Romantismo Alemão do século XVIII que, por sua vez, é
bastante influenciado por teóricos ainda mais antigos, como Immanuel Kant (Ibid.). Ou seja,
se faltam textos monumentais no estudo do nacionalismo, também não se pode negar a
existência da problemática dentro dos trabalhos de grandes autores clássicos.
Tomando este pressuposto como base, seria possível secionar as primeiras produções
epistemológicas aderentes ao estudo do nacionalismo nos séculos XVIII e XIX em duas
esferas distintas: os nacionalismos partidários e os críticos (Ibid.).
A primeira turma, formada pelos teóricos voltados para o nacionalismo partidário (Ibid.), é
permeada, em sua maioria, por historiadores. Basicamente, o historiador enquanto cientista, é
capaz, se assim entender, de criar mitos no passado. Por mais paradoxal que a afirmação
possa parecer, existe certa lógica em sua concepção: uma vez identificado certo fato histórico,
o mesmo pode ser ressignificado dentro de uma teia de ações e reações que reverbere nos
tempos atuais. O historiador estaria, dessa forma, trabalhando no sentido de dobrar a verdade,
aproximando-a de um ideal não necessariamente factual (HOBSBAWN; RANGER, 2008).
Além da capacidade de literalmente reescrever a História, os historiadores teriam, segundo
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Para além dos historiadores, boa parte da primeira leva de teóricos do nacionalismo partidário
possuíam uma visão essencialmente ambígua, se aproximando da crítica em vários momentos.
Para este grupo de autores, formando por filósofos como Rousseau, Herder, Kant, Fichte,
Hegel, Mill (alguns desses serão analisados com maior profundidade nas seções
subsequentes), a formação nacional e seu casamento com as estruturas políticas era um
movimento necessário, mas nunca totalmente livre de problemas (BENNER, 2013, p. 168).
As contribuições de Kant, por sua vez, podem ter sido influenciadas pelo trabalho de
Rousseau, responsável por dar mais espaço ao debate nacional dentro da filosofia política. O
argumento moral em torno da autodeterminação e soberania só ganham centralidade nos
debates sobre nacionalidade e legitimidade após as intervenções rousseunianas. O próprio
conceito de nação passa, em Rousseau, pelo voluntarismo e capacidade de autogerência: a
única ligação necessária dentro de uma comunidade é o acordo em torno da forma de governo
e respeito à autoridade; laços históricos e culturais podem ser relevantes, mas não são
superiores aos primeiros, e serviriam apenas para dar maior sustentação à legitimidade gerada
pelo respeito às instituições (BENNER, 2013, p. 170).
A visão de Rousseau traz consigo uma carga de originalidade, propondo uma diferenciação
dos nacionalismos focados nas semelhanças biológicas, mas não se afasta totalmente deste
15
O último clássico escalado para esta sessão é Johann Gottfried von Herder, teórico de
importância capital para o desenvolvimento da filosofia alemã, seja em função da qualidade
de seu produto intelectual, seja pela sua larga influência em outros autores de peso atemporal,
como Hegel, Schleiermacher, Nietzsche, Dilthey ou mesmo Mill, que bebeu na fonte de
Herder em busca da consolidação de sua filosofia política (FORSTER, 2018). Sua
importância fica clara quando se entra em contato com o extrato abaixo:
Herder’s fame rests on the fact that he is the father of the related
notions of nationalism, historicism and the Volkgeist, one of the
leaders of the Romantic revolt against classicism, rationalism and
faith in the omnipotence of scientific method – in short, the most
formidable of the adversaries of the French philosophes and their
German disciples (BERLIN, 2013, p. 208).
Assim como Kant, Herder também acessou os trabalhos de Rousseau para construir seu
pensamento, mas aparentemente os encarou de um ponto de vista mais crítico, se afastando de
seus mestres em quase todo o percurso. Destarte algumas afinidades, como a aceitação dos
nacionalismos partidários e sua importância para a sobrevivência dos Estados mais fracos
perante às pelejas entre as potências europeias, o nacionalismo em Herder (e a construção da
nação de uma forma geral) não se parece em nada com os trabalhos de Kant ou Rousseau. Seu
trabalho tem raízes numa aversão visceral contra o racionalismo, muito provavelmente em
função da natureza teorizadora e generalista desta corrente. Essa posição abre espaço para que
Herder questione diversos tipos de generalização, não apenas no sentido acadêmico e teórico,
mas também social, permitindo que sua atenção fosse cooptada pelos particularismos do
mundo que o cercava.
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Herder foi capaz de analisar, de uma forma bastante sofisticada, as relações internacionais de
seu período, e a organicidade de seu pensamento, focado na defesa do nacionalismo, era
totalmente justificável frente à sua visão de mundo. Suas asserções sobre o nacionalismo se
afastam um pouco da esfera política e entram mais na cultural, inaugurando um novo
momento no estudo deste conceito. Principalmente, Herder elabora uma nova fronteira para a
legitimidade nacional: nenhum outro filósofo tinha, até aquele momento, identificado a
linguagem como fonte primordial da legitimidade de comunidades políticas.
Essa afirmação gera uma inspiração ambígua nos movimentos nacionalistas do século XVIII,
mas que mantém seus ecos em situações mais atuais. Seja visando um multiculturalismo
pacífico, seja defendendo o nacionalismo étnico, questões culturais serão trazidas à tona com
certa frequência. Herder evidentemente não será introduzido na íntegra em todos os
movimentos nacionalistas, mas algumas partes do seu trabalho certamente corroboram a tese
de separação e exclusividade de determinados povos. Por mais que o filosofo compreendesse
a importância da multiculturalidade e até rechaçasse as tentativas de criação de estados
monoglotas, muitas interpretações de seu trabalho darão voz a movimentos racistas e
violentos. De modo geral, o que Herder buscava chamar a atenção é de como o idioma e a
linguagem podem servir como elemento de união nacional, assim como o podem ser
instrumentalizados para facilitar a dominação de povos mais fracos (HERDER, 1913, p. 65-8
apud BENNER, 2013, p. 174). Outrossim, sua tese não fora criada com intenções a servir
como panfleto justificante para a violência nacionalista, mas sim como elemento de reflexão
acerca da necessidade de se respeitar a multiculturalidade e promover a coexistência nacional.
17
Numa época em que impérios multiétnicos eram regra na Europa, os escritos de Herder
podem ter adquirido carácter explosivo, pois evidenciavam a violência da dominação
linguística.
Para von Treitschke, o Estado era o fim último da organização social, e este deveria se
organizar com base na nacionalidade da sua população (OZKIRIMLI, 2000, p. 23). No
entanto, sua contribuição é carregada de certa originalidade, pois confere ao Estado a
capacidade de unificar uma população a partir de determinados elementos culturais, como o
idioma, por exemplo. É justamente por atribuir uma carga mais dinâmica ao nacionalismo,
que von Treitschke prefere atribuir valor às questões biológicas, como laços de sangue, por
exemplo. Sua visão o leva a defender a unificação da Alemanha sob liderança prussiana,
justamente em função do argumento étnico-cultural que envolvia este pleito à época.
É evidente que cada visão carrega suas verdades, que por sua vez podem ser criticadas e
desconstruídas ao limite. No entanto, para facilitar o salto conceitual que se segue, seria
interessante elaborar um pouco mais a crítica à visão de Herder, de acordo com o que Benner
(2013, p. 177-8) chama a atenção. Em suma, por mais que a identificação cultural seja um
fator relevante para coesão social e, por conseguinte, para geração de legitimidade, há uma
dificuldade fundamental em posicioná-la acima das vontades políticas. Num primeiro
momento, já seria complicado pré-definir estes grupos, pois dificilmente existiu
(principalmente na Europa) uma divisão territorial coesa baseada apenas em princípios
linguísticos. Avançando um pouco mais, mesmo se outras características culturais ou mesmo
fenotípicas fossem adicionadas ao julgamento, ainda assim seria quase impossível trabalhar
no sentido de separar estas populações apenas com base nestas escolhas. Enfim, a
legitimidade e coesão social dependem de escolhas, e estas quase sempre estarão vinculadas a
interesses e lutas políticas extremamente complexas, que podem perpassar questões étnico-
culturais, mas que não necessariamente serão direcionadas por elas. É com base nesta visão
que o segundo grupo de teóricos mais proeminentes no século XIX trouxe à tona
características mais críticas ao estudo do nacionalismo, seja em função de um posicionamento
cosmopolita (e por isso crítico ao nacionalismo do ponto de vista idealista) ou marxista (que
já trabalha uma crítica mais pragmática, percebendo nas estruturas nacionais a possibilidade
de aprofundamento das distâncias entre classes).
Inicialmente, pode-se recorrer aos trabalhos de Lord Acton, mais especificamente o artigo
trazido no tomo Mapping the Nation, organizado por Gopal Balakrishnam. Nesse texto, Acton
defende a multiculturalidade, pregando a necessidade e as vantagens das organizações sociais
multiétnicas. A nacionalidade e o nacionalismo seriam, nesse sentido, um passo retrógrado na
19
História (ACTON, 1996), pois forçam o estacionamento das relações sociais à medida em que
freiam a possibilidade de construção de uma nova lógica relacional, que vá além da
nacionalidade. É importante ressaltar que, apesar de ser posicionado aqui no campo crítico,
Acton é um pensador de viés liberal, e por esse motivo defende que a união nacional, em
função da sua natureza constritora, levaria, invariavelmente, à revolução.
Para além do falseamento racional, a visão crítica de base marxista entende o nacionalismo
como um entrave à aplicação prática da sua ideologia. Diante da visão de que seria necessário
derrubar as barreiras nacionais e unir o proletariado de todo o mundo, o nacionalismo seria
um elemento refreador do internacionalismo marxista, seja em função da instrumentalização
encampada pelas camadas mais abastadas da sociedade, seja pela simples sugestão de que o
mundo precisaria ser organizado com base na nacionalidade e não em quaisquer outros
elementos de exclusividade.
2
Uma visão marxista bastante influente pode ser extraída dos trabalhos de Otto Bauer, que se debruçou sobre os
conflitos entre tchecos e alemães pelo domínio da região da Boêmia. Bauer admite que tanto as diferenças de
classes quanto as nacionais são realidades objetivas. Nesse ponto estaria se distanciando um pouco dos marxistas
de uma forma geral, mas só num primeiro momento: sua hipótese principal mantém o foco na luta de classes e
sustenta a sugestão que, uma vez apagadas as distâncias entre as classes sociais, as diferenças nacionais seriam
motivo de cooperação e não de conflito. Olhando esta imagem com mais atenção, é possível até mesmo fazer
uma ligação com Herder, que também via nas sociedades multinacionais uma forma de progresso cooperativo e
não de atraso conflitivo.
A principal crítica ao trabalho de Bauer aponta que o mesmo cai no clássico erro marxista: reducionismo
referente à luta de classes. Aceitar a visão de Bauer seria como retornar ao terreno da cegueira onde tudo diz
respeito à batalha entre classes dominantes e oprimidas (BREUILLY, 1985).
21
inferioridade quando comparado à luta de classes, o nacionalismo passa a ser encarado como
um conceito pouco caro aos marxistas, que são criticados por esse reducionismo excessivo,
como já trazido há pouco.
Por mais que a cisão entre nacionalismos partidários e críticos seja positiva do ponto de vista
didático, é importante frisar que, de maneira alguma, ela é abrangente o suficiente para
elucubrar todos os debates produzidos entre os séculos XVIII e XIX. Certamente, ela não
daria conta de produzir um ponto sólido o suficiente para que o salto temporal até o século
XX se faça de maneira satisfatória. É por esse motivo que alguns dos autores abaixo
precisaram ser retirados desta primeira seção, e trazidos para uma problematização mais
intensa neste momento.
O material encontrado para cimentar a ponte entre o século XIX e o século XX é fornecido
pelos produtos dos estudos do filósofo e historiador francês Ernst Renan. Influenciado por
Kant e Hegel, Renan vive o final de uma era, e já experiencia os primeiros sinais da queda dos
impérios do mundo do século XIX. Num esforço de consolidação do entendimento do
nacionalismo como expressão política, característica que começa a se consolidar neste
período, Renan (2000) se volta à questão básica de “o que de fato dá forma uma nação”.
that Switzerland, which has three languages, two religions, and three
or four races, is a nation, when Tuscany, which is so homogeneous, is
not one? Why is Austria a state and not a nation? In what ways does
the principle of nationality differ from that of races? (Ibid. p. 12)
Para Renan, uma característica muito relevante para a construção de uma nação é a sua
capacidade de esquecer. Não o esquecimento ativo como trazido na clássica obra de George
Orwell (2009), ou a história anacrônica construída pelos historiadores partidários: Renan
(2000) menciona a passiva capacidade de permitir que certas verdades se tornem tácitas,
depois fantasmagóricas e, por fim, inexistentes. Esta seria uma habilidade passiva e inerente
ao ser humano, um elemento constitutivo da nação e a constante na fórmula social do
nacionalismo. Por esse motivo, Renan é visto como o mais eminente promulgador da ideia do
nacionalismo voluntarista, ou subjetivo, sendo inclusive posicionado no espectro dos
nacionalistas partidários (OZKIRIMLI, 2000). Seria possível resumir essa afirmação em torno
da ideia de produção voluntária (mas não necessariamente autônoma ou racional) de um
sentimento agregado, constantemente validado pelo indivíduo (BREUILLY, 1985, p. 8;
BLOOM, 1993, p. 23; SMITH, 2001, p. 36-8, 49).
Essa afirmação abre largo espaço para o debate acerca da atemporalidade da nação,
promovido por alguns dos autores já citados até o momento e revisitada com maior força nas
visões paradigmáticas subsequentes. Um dos mais famosos teoremas criados por Renan
23
posicionam características biológicas acima das nuances políticas da sociedade, hora tomam a
forma inversa.
Neste século bastante movimentado para todas as ciências sociais, as principais contribuições
da sua primeira metade dizem respeito à tipificação dos nacionalismos, mais encarados como
movimentos políticos do que como conceitos problematizáveis. Nesse sentido, é possível
perceber grande influência da História além das Ciências Políticas na tentativa de diminuição
do buraco conceitual que já vinha sendo sentido há anos (JAMES, 1996, p. 182).
Ozkirimli (2000) pontua o início desta progressão do estudo do nacionalismo nos anos 1920,
a partir dos estudos de Hayes e Hans Kohn: eles definiram o nacionalismo como objeto de
investigação; entendem o nacionalismo mais como fato positivo, do que como norma;
entendem que o nacionalismo é, em certa medida, um desenvolvimento histórico; utilizam
análises comparativas; e normalmente evitam análises biológicas do nacionalismo. Seria
como dizer que, a partir de 1920, inicia-se um movimento de abandono dos nacionalismos
apaixonados dos séculos XIX (exclusive os trabalhos de Renan) ao mesmo tempo que se
ensaia uma aproximação mais sociológica do conceito. É também em função disso que o
presente estudo deverá se debruçar com mais atenção nesse recorte histórico, e trabalhará com
foco especial, em dois momentos distintos, com diversos autores que escreveram nesse
período, visando relacionar estas teorias com aquelas das Relações Internacionais advindas da
mesma motivação fundamental sociológica.
Hayes pode ter sido o primeiro a tomar uma postura mais asséptica quanto ao nacionalismo. O
autor pregava a existência de uma forte empatia quanto à cidade, comunidade, líder, império,
mas não necessariamente vinculada à nação. Essa ligação nacional não é tão antiga quanto
algumas correntes pregam, e só se tornaria amplamente sensível no século XVIII (HAYES,
1955, p.10).
Hayes trabalha no sentido de produzir uma tipificação do nacionalismo, visando facilitar uma
compreensão mais generalista acerca do tema. A verdade é que, a partir deste tipo de esforço,
os autores buscavam construir uma espécie de mapa, que abrisse os caminhos para a
compreensão dos nacionalismos a partir da identificação de padrões do passado. A
enumeração de Hayes prevê seis tipos principais de nacionalismo, que serão explicitados de
maneira genérica. Seriam eles: nacionalismo humanitário, que encara a nação como evolução
natural da sociedade (1); nacionalismo jacobino, visão mais extrema do nacionalismo
humanitário, que traz consigo um forte zelo missionário e intolerância às dissidências (2);
25
A visão de Hayes gerou críticas por se tratar de uma tipologia essencialmente europeia
(SNYDER, 1968) ou mesmo anglo-francesa (SMITH, 1983), o que seria difícil de negar já
que a própria acepção de nação detém forte base europeia. Tipificar nações e nacionalismos
significaria, quase sempre, analisar o que acontece na política europeia. Saindo desta ceara,
avaliar o nacionalismo para fora da Europa dependeria, no máximo, da aplicação de signos
identificados inicialmente em nações europeias. Em seguida à primeira crítica, Smith (1983)
pontua que seria muito complicado tipificar o nacionalismo em função da sua base
essencialmente ideológica e multifacetada: o mesmo nacionalismo pode ser visto em
movimentos totalmente separados entre si. A tipologia de Hans Kohn poderia, então, ser
considerada mais completa e foi amplamente utilizada por diversos autores da História e
Sociologia: o teórico estava muito mais preocupado em compreender as diferenças morais dos
nacionalismos do que simplesmente estabelecer uma tipologia fria, movimento que mitiga o
risco de cair no mesmo eurocentrismo presente no esforço de Hayes (OZKIRIMLI, 2000, p.
41-2).
Em A Era do Nacionalismo, Hans Kohn escreve que o nacionalismo sofreu uma evolução
histórica iniciada no século XVIII pelos países do norte da Europa e suas colônias, e se
consolida como movimento essencialmente europeu já no século seguinte. A “era do
nacionalismo” evidenciou as diferenças entre os seres humanos e sociedades, basicamente
separados entre ocidente e oriente. Não obstante, sua tipologia segue essa lógica: os
nacionalismos ocidentais estavam muito conectados com questões de classe, divisão do
trabalho e expansão das liberdades individuais; os nacionalismos orientais surgem somente
após a formação dos Estados, têm forte conexão com mitos e conexão histórica e são
utilizados como ferramenta de emancipação da dominação externa (KOHN, 1963).
26
A tipologia de Hans Kohn (1963) acaba abarcando a de Hayes (1955), pois trata de maneira
mais geral as questões referentes à aplicação do nacionalismo como ferramenta política. Ao
invés de separar os movimentos em pequenas peças, Kohn parece fazer um trabalho mais
complexo e desafiador: unir as peças complexas que formam os movimentos nacionais,
buscando encontrar padrões mínimos em sua aplicação no terreno político real.
Essa visão pode ser agrupada à visão de Snyder (1954) que tipifica o nacionalismo de maneira
um pouco mais simplória, mas ainda assim muito útil a esse estudo. Seu trabalho divide os
nacionalismos em integrativo, disruptivo, agressivo e contemporâneo (Ibid.). Suas principais
características seriam autoexplicativas. No entanto, por mais importante que seja, o esforço de
Snyder acaba perdendo força quando comparado ao de Hans Kohn, principalmente porque o
primeiro autor cai num vício de tentar posicionar as manifestações nacionalistas de sua
tipologia em momentos históricos precisos. Ou seja, enquanto os nacionalismos integrativos
ficam presos entre as décadas de 1810 e 1870, os agressivos representam os momentos que
precedem e antecedem a Primeira e Segunda Guerras Mundiais (SNYDER, 1954). Não que
não exista certa verdade nesta concepção, mas o reducionismo desta tipologia a aprisiona e
impede que a mesma análise seja realizada fora da Europa, por exemplo. Em outras palavras,
não é porque os nacionalismos verificados na Europa durante as primeiras décadas do século
XVII são de natureza integrativa que os identificados no mesmo período em outros lugares do
mundo poderão ser interpretados como possuidores da mesma natureza. Indo além, não seria
possível afirmar que exista uma progressão lógica e imutável para o desenvolvimento dos
nacionalismos.
27
Tentando se afastar desse problema, Snyder (1968) tenta, em outra obra, trabalhar uma nova
tipificação, dessa vez com enfoque regional, analisando os movimentos nacionalistas nascidos
na Europa, África, Oriente Médio, Ásia, América Latina e Estados Unidos, além da União
Soviética. Cada região recebeu um selo, capaz de compreender as principais características
dos movimentos empregados. Smith (1996) defende que o esforço de Snyder é válido para
afastar o fantasma do eurocentrismo, mas não se pode abrir mão de criticar o reducionismo
novamente trabalhado pelo autor: se em sua primeira tipificação Snyder (1954) exagera na
prisão temporal, na segunda (SNYDER, 1968) estabelece fronteiras regionais quase
intransponíveis. Uma vez mais, há problematização acerca das especificidades dos
nacionalismos temporais e regionais, mas não necessariamente um questionamento sobre o
nacionalismo ou a nação em si. Dizer que os nacionalismos europeus são diferentes dos
africanos é quase um truísmo, mas ao mesmo tempo é o reforço de uma doutrina que
posiciona a nação como forma universal de organização social.
Por fim, se faz mostrar a tipificação elaborada pelo historiador e clássico teórico das Relações
Internacionais, Edward Carr (1968). Seu princípio é que o nacionalismo é totalmente
questionável: não é imutável, não é atemporal, não é natural. É histórico. Questionar o
nacionalismo não é apenas possível, mas recomendável. Pode-se, segundo Carr, dividir a
moderna história das relações internacionais em três períodos principais, cada qual
entendendo a nação de maneira muito específica e distinta.
O segundo momento (Ibid. p. 6 – 17) compreende o fim das Guerras Napoleônicas até 1914.
Nesse período foi possível perceber uma relação mais íntima entre nacionalismo e
internacionalismo, já que os ideais da Revolução Francesa falavam de liberdade, inclusive
nacional, de maneira universal. Na introdução de Nationalism and the State, Breuilly (1983)
trabalha essas divergências de maneira muito precisa.
28
O cataclismo que significou a Primeira Guerra Mundial põe fim ao desenvolvimento desta
agenda liberal (CERVO, 2007) e abre espaço para o terceiro momento (CARR, 1968, p. 17 –
26), que tem fim no ano de 1939. Aqui percebe-se um retorno do nacionalismo em detrimento
do internacionalismo, com o fortalecimento de discursos agressivos. O interesse nacional
volta a se posicionar como principal fator de atuação internacional dos Estados e por isso há
uma tendência ao conflito em detrimento da cooperação na política europeia.
A tipologia de Carr (1968) pode até finalizar no ano de 1939, mas o que interessa de verdade
é a sua natureza histórica conferida ao conceito. A partir desta tipificação, percebe-se o
nacionalismo como um movimento pendular e metamórfico, que adquire características
específicas de acordo com a roupagem histórica que lhe é imposta, visão muito similar a
desenhada por Adam Watson (2002) em The Evolution of International Society.
É este o gancho que abre espaço para o último período histórico trabalhado nesta seção: a
segunda metade do século XX. Esse período pode ser considerado como o ponto de ebulição
do estudo do nacionalismo, muito em função dos movimentos emancipatórios na África e na
Ásia (OZKIRIMLI, 2000). Ainda seguindo o vácuo produtivo das décadas passadas, a
maioria dos autores se ateve em tentar precisar, através do recurso da tipificação, os
nacionalismos existentes, mas não ficaram presos a esses modelos. O ponto de partida foi a
diferenciação entre sociedades tradicionais e modernas, que abre espaço para toda uma veia
paradigmática que será analisada mais à frente.
Dentre outras contribuições, esta primeira separação colabora no sentido de diminuir o peso
dado às experiências nacionais europeias, abrindo o espectro de discussão para outros locais
do planeta. Esse movimento, no entanto, ainda está vinculado a um divisor de águas
essencialmente europeu, qual seja, a industrialização e surgimento da sociedade moderna
como um todo.
das sociedades, quando se quebra totalmente com a ordem tradicional e novas regras são
instituídas no seio da sociedade (SMITH, 1983, p. 49-50; OZKIRIMLI, 2000, p. 48). O
nacionalismo teria uma função nessa modernização, motivando o povo na direção de
mudanças, criando identidade em momentos de crise ou motivando a união em momentos de
glória. Esse papel modernizador do nacionalismo permitiria que o mesmo fosse
instrumentalizado e utilizado para direcionar massas de indivíduos na direção de um
movimento específico. A relação entre essas características será revisitada com maior
precisão no segundo capítulo deste trabalho e por isso não se relegará tanto tempo à sua
explanação neste momento.
Avançando nesta linha do tempo, esbarra-se nos trabalhos de Karl Deutsch, autor que retoma
a tese central do romantismo alemão e reinsere a comunicação como elemento principal da
identificação coletiva. Mas está um passo à frente de Herder e Fichte: em Deutsch, a nação
seria formada essencialmente por indivíduos capazes de compartilhar e cooperar através da
comunicação social, que iria além do idioma comum. Basicamente, essa visão abre um espaço
para uma interpretação mais funcionalista do nacionalismo, já que o mesmo dependeria de
ações voluntárias e involuntárias produzidas no seio das relações sociais para que se
considerasse vivo. Os processos de construção nacional partiriam muito mais de processos
sociodemográficos (como a urbanização) do que por quaisquer outros elementos naturais. O
fato de a comunicação social ganhar a abrangência que ganhou nos anos pós-industrialização
apenas servem para fortalecer o argumento de Deutsch.
Outros autores vieram na esteira destes teoremas, consolidando as visões modernistas como
mainstream no que tange ao estudo do nacionalismo até os anos 1980. Elie Kedourie inicia
Nationalism (1961) conceituando nacionalismo como uma doutrina política criada na Europa
ao final do século XIX com o intuito de facilitar a organização populacional em torno de um
território legitimamente governado. Sua visão modernizadora, porém crítica, aponta que o
nacionalismo é o responsável por resignificar a nação: “(...) the very word nation has been
endowed by nationalism with a meaning and a resonance which until the end of the
eighteenth century it was far from having” (KEDOURIE, 1961, p. 9). Em última instância,
Kedourie traça o surgimento do nacionalismo e o entrelaça ao desenvolvimento do
pensamento romântico alemão, assim como foi feito há pouco, mas elabora o pensamento no
sentido de pontuar os aspectos científicos, mas também sociais do surgimento desta doutrina.
De um lado, o nacionalismo deve ser visto como uma doutrina elaborada por Fichte e Herder
30
Por outro lado, o nacionalismo seria uma doutrina subversiva, essencialmente revolucionária e
perigosa, criada por intelectuais que se sentiam cada vez mais afastados da tradição e pouco
reconhecidos em função da sua superioridade educacional (SMITH, 2000, p. 63). É como se o
nacionalismo fosse um espasmo raivoso dos intelectuais alemães, que viam na tradição um
impedimento à sua merecida ascensão social. A micronização nacional poderia enfraquecer os
poderes imperiais tradicionais e reorganizar as camadas sociais de maneira mais proveitosa.
Smtih (2000, p. 23;31) reforça as características críticas da visão de Kedourie, que vê no
nacionalismo uma ideologia perigosa, capaz de gerar a paixão irracional responsável pelos
maiores atos de terror presenciados pela humanidade.
O outro trabalho seminal do período partiu dos esforços de Ernest Gellner que, juntamente
com Kedourie, cimentaram o paradigma modernista do estudo do nacionalismo. Seu texto
duro e direto expões uma visão crítica bastante agressiva, que ataca os estudos nacionalistas
sem exceção, sejam eles críticos ou partidários. Para Gellner, a psicologia rasa e utilitarista do
século XIX, seja em sua variação cínica ou na sua forma hedonística, não conseguiram
explicar a potência do nacionalismo (1978, p. 148). “Man is, istead, the prey of his Dark
Gods” (Ibid. p. 149), sendo estes deuses obscuros uma representação metafórica da lealdade
étnica e territorial que, segundo Gellner, retomam uma posição de centralidade no século XX.
Anthony Smith (2000), elabora um debate entre Gellner e Kedourie (debate este promovido
pelo próprio Gellner no sétimo capítulo de Thought and Change) que será retomado neste
momento em função da sua capacidade sintetizadora.
A primeira desvaneça entre os dois autores aparece na posição do pensamento kantiano dentro
de suas visões sobre o nacionalismo. Gellner rechaça o argumento de que Kant seria o “pai do
nacionalismo” ao afirmar que a boa vontade kantiana teria forças, no máximo, para atuar no
nível individual (GELNNER, 1978, p. 151; SMITH, 2000, p. 63; OZKIRIMLI, 2000, p. 54).
Gellner também não entendia o nacionalismo como um elemento tão pernicioso da vida
social, mas como um instrumento poderoso que poderia ser utilizado no sentido do
desenvolvimento humano. Essa visão não é, no entanto, totalmente positiva, como já trazido
acima. Isso se faz perceber quando Gellner (1978) posiciona a classe intelectual como líder do
nacionalismo, mas que não poderia levar à cabo suas ideias não fosse a força social do
proletariado (ou das classes sociais menos favorecidas, extrapolando o argumento para níveis
mais generalistas).
Nesse ponto, o pensamento de Gellner é endossado por Tom Nairn em The Break up of
Britain (1977), que aponta o desenvolvimento desigual (promovido mais pelas ondas
assimétricas de expansão do capitalismo do que pela modernização industrial, no entanto)
como maior responsável pelo recrudescimento dos nacionalismos no mundo colonial.
Seguindo essa realidade, tudo que as populações coloniais tinham era a si mesmas, em
comparação às armas e tecnologias das metrópoles. Nesse sentido, a mobilização popular
passava a ser encarada como elemento de sobrevivência: linguagem e cultura eram
32
A última fronteira deste debate recai sobre a própria natureza ideológica do nacionalismo.
“For Gellner, in particular, ideology – nationalist ideology – is largely irrelevant, and
erroneous” (SMITH, 2000, p. 66). Volta-se ao argumento da naturalidade, onde Gellner
defende que o nacionalismo cria nações, e é a modernidade que impõe a necessidade de dar ao
nacionalismo tendências de naturalidade. O nacionalismo serviria como mediador da
modernidade, facilitado pelo processo de canalização dos ideais através da cultura.
O debate destes dois textos monumentais marca o fim da produção intelectual dos anos 1980,
marcada pela visão do nacionalismo como um produto da modernidade. Este paradigma se
mantém forte até os dias atuais, com leves alterações em suas asserções mais gerais. Para
Ozkirimli (2000, p. 56) as teorias nacionalistas que surgem a partir dos anos 1980 bebem
nessa fonte, mas tentam se afastar desta questão (modernização) para se concentrar em uma
problematização de base mais meta-teórica. Nesse sentido, estas novas visões buscam
identificar os fatores que levam à contínua produção e reprodução do nacionalismo como
elemento discursivo essencial das comunidades modernas e contemporâneas (CALHOUN,
1997, p. 123; BILLIG, 1995 apud OZKIRIMLI, 2000, p. 56).
O presente estudo se apoia na abertura destas novas possibilidades e busca justamente acessar
este questionamento mais central acerca da natureza binária do nacionalismo no mundo atual.
A preocupação não estaria voltada à análise do surgimento do nacionalismo como elemento
emocional dos seres humanos, ou mesmo de sua tipificação, trabalho realizado por diversos
autores conforme trazidos nesta seção. O esforço empreendido aqui diz respeito a uma espécie
de desconstrução e questionamento do nacionalismo com base em alguns pressupostos.
Nesse sentido, o próximo capítulo se voltará para a consolidação destes pressupostos, visando
garantir a musculatura conceitual necessária para sua aplicação e crítica no capítulo final deste
texto. O primeiro destes pressupostos segue na esteira do paradigma modernista (que será
33
Uma vez realizada a exposição da evolução histórica do nacionalismo como objeto de estudo,
abre-se espaço para uma discussão mais localizada. A análise do desenvolvimento do conceito
de nacionalismo ao longo dos anos será utilizada neste momento para evitar anacronismos
epistemológicos, mas também para extrair padrões e exemplos que contribuam para possíveis
conclusões.
Este capítulo tem por função realizar uma apresentação crítica dos pressupostos do trabalho.
Em outras palavras, os conceitos básicos para o início dessa pesquisa serão expostos a teste
quando colocados em perspectiva em relação aos principais textos de estudiosos do
nacionalismo. É importante frisar, no entanto, que a construção de um conceito único ou uma
teoria geral do nacionalismo não é o objetivo deste trabalho. Com isso se quer dizer que, de
maneira alguma, os pressupostos confirmados ou questionados nessa seção, bem como o
resultado desse exercício, devem ser encarados como uma resposta última aos problemas
relacionados à compreensão do nacionalismo.
Nesse sentido, vale lembrar os principais pressupostos do trabalho sendo o primeiro deles a
natureza moderna do nacionalismo. A primeira verificação a ser realizada é se, de fato, o
nacionalismo pode ser considerado como uma expressão da modernidade a partir do ponto de
vista dos autores trabalhados na seção ou se o mesmo já se fazia presente no mundo pré-
moderno. Evidentemente essa seção se preocupará em conceituar modernidade e diferenciar
nacionalidade, identidade e nacionalismo. O segundo pressuposto diz respeito à natureza do
nacionalismo, que deve ser encarado por esse trabalho incialmente como uma ideologia
política. Neste ponto será necessário reacender o debate acerca da naturalidade do
nacionalismo e da nação versus sua instrumentalidade.
Em suma, as próximas sessões devem trabalhar uma evolução menos linear do pensamento
nacionalista, focada no surgimento de paradigmas para o estudo do conceito. Esse movimento
35
Sem nenhuma intenção de fugir à regra, é exatamente assim que se organizará esta seção. É
nesse sentido que se faz necessário estabelecer, antes de mais nada, o quando, o momento
fundador da nação e do nacionalismo. Se no capítulo anterior se buscou comprovar que o
surgimento do nacionalismo como objeto de estudos se dá por volta do século XVII, neste
momento a preocupação gira em torno da comprovação de que houve uma confluência
temporal no que tange ao surgimento do nacionalismo também como fato social.
The Nation exists before all things and is the origin of all. Its will is
always legal, it is the law itself (...). The exercise of their will is free
and independent of all civil forms. Existing only in the natural order,
their will, to have its full effect, only needs to possess the natural
characteristics of a will (apud. Smith, 2001, p. 43).
36
sentido da naturalidade, ou sobre o que pode ser considerado intrínseco e o que pode ser
agregado ao indivíduo em momentos posteriores da sua vida. Um conjunto de teóricos tenta
chegar ao limite desta questão, se aproximando da biologia para definir a nacionalidade como
algo tão natural quanto uma parte do corpo humano. É a partir desta percepção que se corta o
primeiro veio neste paradigma, encapsulando a corrente naturalista (SMITH, 1983; 2001).
Estes teóricos possuem uma visão extrema da nacionalidade, e são os principais responsáveis
pela hierarquização deste sentido de essência que se dá à nação. Por mais que um órgão vital
seja imprescindível para a sobrevivência do indivíduo, o mesmo poderia ser retirado; a
consequência seria a morte, ou no mínimo uma sequela gravíssima para o funcionamento do
corpo, mas a possibilidade existe. Porém, quando se trata de nacionalidade essa opção não
existe: por estar instalada na essência do indivíduo, seria impossível separá-la do mesmo.
Grosso modo, para os defensores desta visão, a nacionalidade é tão independente da vontade
humana quanto qualquer outra característica comportamental que nos acompanha desde o
nascimento.
Há uma visão crítica que posiciona os primordialistas como míopes às alterações da nação,
bem como às suas aplicações políticas, pois relegam relevância exagerada às questões
identitárias que envolvem a nacionalidade. Tentar compreender o que é a nação poderia
impedir os teóricos deste grupo de fazer perguntas mais voltadas para a compreensão do como
o nacionalismo é utilizado. Smith (2000, p. 46) tenta diminuir o peso desta crítica abrindo
espaço para alguns caminhos alternativos dentro do próprio paradigma, chamando atenção
para as visões mais atuais do primordialismo. De maneira geral, essa escola de pensamento
chama a atenção para a relevância dos laços étnicos para a definição da nação, mas não perde
de vista que nacionais carregam um modo de vida distinto, possuem apego à sua terra natal
além de um desejo de autonomia política (HUNTCHINSON, 1994, p. 3). A chave para
compreender o sentimento nacional está no correto alinhamento destes interesses, e é por isso
que estas afirmações precisam ser avaliadas em separado.
aproximada. Além deste ponto, esse “modo de vida distinto” é responsável por criar uma ideia
geral do que seria parte e do que seria alheio a essa comunidade.
É justamente esse desenho geográfico da comunidade baseada nos preceitos únicos do seu
estilo de vida que criam as separações territoriais. Normalmente, essa comunidade possui um
“apego à sua terra natal” o que a imbui de uma série de mitos únicos. A construção desta ideia
serve de reforço para a tese de que a nacionalidade é natural e depende de características
fenotípicas, local de nascimento, exposição cultural. Essa visão é reforçada por Steven Grosby
(1991), que realiza uma análise comparativa de civilizações da antiguidade evidenciando a
importância do sentimento de pertencimento àquela terra, muitas vezes tida como prometida
e/ou exclusivamente separada para aquele povo pelo seu panteão particular. Grosby defende
que esse comportamento se repete entre egípcios e judeus, edomitas e gregos. Seguindo nesse
sentido, a sociedade primordial egípcia é um excelente exemplo deste apego à terra natal,
conforme explicitado por Siliotti:
Caso tivesse oportunidade de entrar em contato com o trecho acima, Anthony Smith
provavelmente concordaria. Para o autor, o povo egípcio demonstra uma ligação fortíssima
com sua terra (em especial com as ricas várzeas das margens do Nilo), acreditando piamente
no mito de que o Egito pertence, de maneira inquestionável e exclusiva, aos egípcios
(SMITH, 2001, p. 105). Esse processo se desenvolve num nível muito mais intrincado quando
se pensa que ao se auto-intitular “povo da terra negra”, ao mesmo tempo em que define o que
é “terra negra” os egípcios criam uma barreira geográfica para seu grupo
étnico/cultural/religioso. O terceiro ponto deriva justamente da sofisticação deste processo de
separação, quando a comunidade inicia o desenvolvimento de regras e consolidação de
instituições capazes de organizar as relações entre seus indivíduos.
A evolução do pensamento primordialista vai, aos poucos, o afastando das visões de essência
naturalista, incluindo aos poucos os trabalhos de autores que entendiam que um conjunto de
fatores sociais primordiais é o que de fato formava as nações. Peter Burke, por exemplo,
realizou um esforço intelectual formidável quando engloba a evolução do nacionalismo como
objeto de estudo entre os anos de 1500 e 1800, elaborando uma clara relação entre o mesmo e
as línguas vernaculares. É nesse sentido que Smith desenha a linha do nacionalismo socio-
biológico (2001, p. 52).
Pierre van den Berghe (apud SMITH, 2001), principal teórico desta corrente, desenvolve o
conceito de kin selection (uma visão claramente inspirada no darwinismo social), perfeito para
compreensão da maneira de pensar quase paradoxal desta teoria do nacionalismo. Em suma,
seria necessário separar elementos naturais dos sociais, mas a sua união é que daria força
suficiente para que um determinado grupo social pudesse se manter unido. O conceito se
baseia na ideia de que haveria uma espécie de seleção natural entre entes similares, e esta
mesma relação seria responsável por fortalecer todo tipo de laço étnico, biológico e cultural.
De maneira resumida, na visão do autor, o comportamento de preservação do material
genético é comum no reino animal, mesmo entre seres humanos. Evidentemente, essa seleção
é mais sofisticada em humanos do que em outras espécies, mas essa percepção só é possível
caso se extrapole o conceito de entes familiares para uma esfera menos pautada em
similaridades morfológicas. Mais uma vez é possível perceber a natureza passiva que a
corrente primordialista dá ao nacionalismo, postulando que essa essência poderia apenas ser
sentida, e que seleção nacional estaria além da capacidade de escolha dos indivíduos.
Ao analisar o trabalho supracitado, Smith (2001) aponta que as estratégias usadas para a
formação da rede social mencionada em Van den Berghe possuem caráter cultural, e é
justamente isso que permite ao indivíduo se perceber inserido numa rede familiar mais ampla
(wider kin network). O mesmo raciocínio é elaborado por Pierre Renouvin (2000) em
Introducción a la historia de las relaciones internacionales. Neste trabalho, o autor francês
desenvolve a íntima relação entre família e nação, defendendo que o início da última se dá na
primeira, argumento que se parece muito com a teoria de wider kin network e que ainda se
mantém dentro do escopo mais abrangente do paradigma primordialista. Tanto Van den
Berghe (apud SMITH, 2001) quanto Renouvin (2000) entendem que a família vai além das
características fenotípicas, corroborando o pensamento de Shils (1957, p. 130) que, dentre
outras questões, postula a relevância da família e da nação como elementos formadores da
ação individual muito em função da proximidade que estas instituições detêm do indivíduo.
40
Como já deve ter ficado claro, Van den Berghe significa um avanço nas teorias
primordialistas, no sentido do afastamento da esfera estritamente biológica. O autor relega
mais importância a fatores culturais, diminuindo a potência da natureza na definição da
nacionalidade, mas sem abandoná-la totalmente. As estratégias de seleção possuem um certo
grau de racionalidade e justamente por isso não poderiam ser simplesmente encaradas como
naturais. As características supracitadas seriam utilizadas como marcadores culturais estando
o sucesso da nação (em termos de sobrevivência) atrelado à sua capacidade diferenciadora.
Esses simbolismos e aderências é que expõem a comunidade entre os entes de um povo, e
comumente se traduz em nação. “That is why people who are not directly related are
prepared to treat unknown co-ethnics as ‘kin’” (SMITH, 2001, p. 52, aspas no original). Ou
seja, não são os laços per se, sejam eles biológicos ou culturais, que promovem a coesão
necessária para a criação da nação, mas a interpretação e significação ativamente promovidas
pelo indivíduo a estes mesmos estímulos e signos. Indo além “(...) we, as individuals and
members of collectivities, feel and believe in the primordiality of our ethnies and nations”
(SMITH, 2001, p. 54, itálico no original).
A visão de Van den Berghe promove uma união analítica que permite a progressão do estudo,
justamente por sugerir que a natureza não seria, por si só, a principal fonte da nação.
Tomando esse ponto como base, infere-se que os significados dados aos símbolos são mais
importantes do que os próprios símbolos. Essa asserção deriva-se dos trabalhos de Edward
Shils (1957) e Clifford Geertz (1973) que, segundo Smith (2000) e Ozkirimli (2000), são
expoentes do chamado primordialismo cultural, uma visão que se apoia nas teias de
significado (no sentido weberiano) tecidas pelos próprios indivíduos que as compõem (Ibid. p.
73).
Seguindo nessa linha, os trabalhos do filósofo prussiano Johann Gottfried von Herder, muito
anterior à maioria dos autores citados até o momento, merecem uma releitura. No que tange
ao estudo do nacionalismo, Herder defende a comunicação como ferramenta primordial para a
41
definição dos laços identitários necessários para a consolidação da nacionalidade. Seria como
afirmar que o ser humano só pode ser assim entendido após o advento da capacidade de
comunicação, mais especificamente, da linguagem. O que Herder entende é que a capacidade
cognitiva estaria ligada à linguagem; isso define o ser humano mais do que o contrato social
ou o convívio social organizado (segundo a visão rousseauniana). Essa visão é compartilhada
com outros teóricos contemporâneos a Herder, ou mesmo policy makers que entendiam a
importância de um idioma comum para gerar o sentimento de comunidade necessário à sua
regência (BURKE, 2013).
Herder concordava com a visão mais ou menos aceita em seu tempo de que poetas e artistas
literários no geral se conformavam como uma importante fonte para compreensão de um
povo, pois suas palavras significavam a emanação da essência deste conjunto social
(BERLIN, 2013, p. 211), o que é mais ou menos o argumento que Burke (2013) constrói em
Nationalism and the Vernaculars. A literatura teria, inclusive, um papel destacado para a
compreensão de uma determinada sociedade em função da sua capacidade de expressar o
pensamento e sentimento, enquanto a História e as Ciências Políticas iriam tão longe quanto
fosse possível no relato técnico dos governos e governantes (SMITH, 2000, p. 50). A
contribuição fina de teoria de Herder para o desenvolvimento do conceito de nacionalismo
está pautada justamente na capacidade que a linguagem/comunicação possuem na criação de
significados e, por este motivo, se alinha à visão do primordialismo cultural recortado por
Smith (2000) e Ozkirimli (2000). O conjunto de características culturais que tornam um
determinando grupamento como único estaria pautado, nesse sentido, em sua capacidade
linguística e comunicativa, pois apenas assim seria possível desenvolver mitos fundadores
próprios, crenças e regras únicas e comuns apenas àqueles pertencentes ao grupo em questão,
42
à nação. Tomando esse argumento como base, entende-se que Herder de fato hierarquiza os
pressupostos de alinhamento social, mas não exclui a importância de outras fontes
fundamentais, inclusive as biológicas.
Todavia, o que se busca provar aqui é que o nacionalismo não se trata de uma expressão
atemporal, mas produto de um período específico. Não que estes signos não sejam
verdadeiramente sentidos pelas populações nacionais, ou que expressões muito similares à
nação tenham existido num período pré-moderno. Na verdade, o que se busca caracterizar é
que estas expressões identitárias emanam de outras fontes, que mais tarde servirão no sentido
de contribuir para a geração da nação. A própria etnicidade, talvez o mais natural dos signos
nacionais, não pode ser assim visto, como defende Joshua Fishman (apud SMITH, 2000, p.
50-4): a própria etnicidade estaria vinculada a questões imateriais, em determinados
momentos até mesmo alheia à materialidade fenotípica. Etnicidade iria além do
compartilhamento sanguíneo: “(...) demands from members authentic activities and behavior
that seek to preserve and augment the heritage of ancestors, and it requires genuine ethnic
responses and wisdom, preferably in an authentic linguistic medium” (SMITH, 2000, p. 51).
Com isso se defende que a etnicidade não é estanque, mas que possui um dinamismo
hereditário que depende da atividade do grupamento social.
43
Nesse sentido, parte-se para uma das questões centrais deste estudo, que busca desconstruir
essa visão atemporal do nacionalismo, posicionando-o como expressão da modernidade e um
conceito instrumentalizável, normalmente utilizado como ferramenta política.
Seguindo o fio lógico desvelado ao início deste texto, abre-se a via de análise do nacionalismo
como ferramenta de pressão social, posta em prática através de movimentos políticos.
Buscando dar mais corpo ao que se chamará, a partir desse momento, de movimento
nacionalista, se faz emergir, como ponto de partida, a visão de Wallerstein (2004), que
conceitua esse verbete como sendo:
Essa visão traz alguns problemas, que devem ser mencionados e ajustados para que, quando
utilizado, o verbete possa refletir com fidelidade o que se propõe neste trabalho. Em primeiro
lugar, Wallerstein (2004) aparenta tratar todos os movimentos nacionalistas como
posicionados no sentido da resistência à opressão de outros grupos. Viotti e Kauppi (1998, p.
487) parecem concordar com essa visão, principalmente no que tange à sensação de
automatismo causal criada em torno da resistência política. Nesse sentido, parece que ambos
os textos definem o nacionalismo como uma expressão revolucionária, consonante com
interesses fortemente baseados na percepção de identidade. Por mais que tenha certa relação
com a realidade, essa velocidade em vincular o nacionalismo a apenas um tipo de pressão
política acaba por reduzir o espectro destes movimentos.
da língua francesa é assegurada por lei (KALANT, 2005)? Em suma, não há como negar que
o idioma seja uma característica identitária importante, como já foi mostrado a partir dos
trabalhos de Herder (2002). Porém, não se pode, de forma similar, reduzir os interesses de
movimentos nacionalistas à segurança de direitos linguísticos.
Por fim, a última crítica a Wallerstein se dirige a quando este afirma que, normalmente,
movimentos nacionalistas buscam o separatismo. Essa afirmação tem uma série de problemas,
o primeiro deles conceptivo: assumindo que existem movimentos nacionais com
características opressoras, sua intenção certamente não seria a separação para um novo
Estado, mas o afastamento do grupo étnico visto como estranho. De maneira estrita, haveria
separação, mas não separatismo, já que o núcleo nacional permaneceria estanque, apenas
excluindo aqueles elementos indesejados. Como exemplo, pode-se citar o caso dos
movimentos nacionalistas poloneses no século XIX, que tinham interesses distintos, porém
baseados no mesmo princípio de nacionalidade (SMITH, 1998).
A partir das críticas acima, tentou-se mostrar que 1) movimentos nacionalistas não possuem
características gerais no que tange aos seus objetivos; 2) nem sempre estão vinculados à luta
contra a opressão e/ou separatismo; 3) são quase sempre baseados em similaridades étnicas,
mas não necessariamente linguísticas. É nesse sentido que o estudo faz uma curva
epistemológica buscando aproximar-se do que Ozkirimli (2000) chama de corrente
instrumentalista. É a partir desta visão que se buscará fortalecer o pressuposto de que o
nacionalismo é mais uma ferramenta político-ideológica instrumentalizável do que um
sentimento identitário genuíno e natural, como defendiam os primordialistas. A partir deste
movimento será possível verificar tanto a natureza temporal quanto conceitual do
nacionalismo.
entende que estes elementos identitários não podem ser desvinculados do indivíduo ou grupo
analisado, enquanto os primeiros adotam uma postura mais cética, compreendendo a sua
importância, mas adicionando mais racionalidade ao processo analítico.
Essa interpretação abre precedente para debates sobre como esses grupos étnicos deveriam ser
vistos e que tipo de fenômeno social seriam capazes de gerar. É certo que seus interesses e
capacidades de pressão deveriam ser levados em consideração; a questão é até que ponto. A
instrumentalidade ficaria evidenciada justamente quando etnia/similaridade identitária fossem
aplicadas ao discurso político como ferramenta retórica. Líderes utilizariam estes argumentos
para facilitar o controle de massas e aumentar suas chances de acesso a poder e recursos.
Smith (2001, p. 55) chega a dizer que esse tipo de grupo via em sua argumentação questões
mais fortes até mesmo do que as relacionadas às lutas de classe, o que deixaria claro o poder
destes argumentos, já que esta temática e o discurso em seu entorno marcam boa parte dos
anos de industrialização e consolidação do capitalismo.
Seguindo neste ponto e tomando a liberdade de tangenciar o debate antes de encarar a questão
da instrumentalidade de frente, a relação nem sempre amigável entre nacionalismo e
marxismo pode ser um indicativo de como o primeiro se posiciona do ponto de vista
ideológico. Wallerstein (2007, p. 71-3), por exemplo, elabora uma rica comparação acerca da
tratativa de movimentos sociais frente ao nacionalismo, primordialmente encarado pelo autor
como uma emanação de grupos étnicos. Nessa análise, fica evidente que existe um mínimo de
ceticismo quando se trata da questão étnica. Quando se compara essa afirmativa à visão do
que seria nacionalismo para o mesmo autor, rapidamente se percebe que há uma
hierarquização de fatores sociais, onde a identidade e sentimento de pertencimento perdem
quando em conflito com questões mais práticas como emprego e renda. Na maioria das vezes,
ao expor essas demandas sociais a uma estrutura de classes, as análises marxistas categorizam
os interesses nacionais como menos importantes, distantes ou mesmo contrários aos
interesses de classe. Certamente Wallerstein (2007) bate o martelo acerca dessa questão
baseado no que disseram Marx e Engels (apud SMITH, 1998), quando defendem que, se
deixados livres para escolher, os trabalhadores sempre preferirão a solidariedade de classe
frente à nacional.
Questionar a historicidade da afirmação de Marx e Engels (apud SMITH, 1998) abre espaço
para uma discussão mais profunda sobre a expressividade e mudança dos movimentos
nacionalistas ao longo dos anos, assim como já faz surgir questionamentos sobre a relevância
de determinados assuntos em tempos específicos. Uma vez mais, confirmar que interesses de
46
classe estarão sempre acima de quaisquer outros, é tomar como exemplo um período histórico
muito específico, em que o proletariado se entendia como classe, a mobilidade social era
ainda menor do que nos dias de hoje e as próprias barreiras nacionais eram mais rígidas no
sentido territorial. Quando se transporta esse questionamento para a contemporaneidade se
percebe o surgimento do que Marx e Engels poderiam entender como um paradoxo: o
interesse de classe está vinculado ao interesse nacional. O internacionalismo marxista
adormece. Alemães e britânicos levantam suas bandeiras e pedem o fim da aceitação de
imigrantes justamente porque entendem que seus postos de trabalho estão sendo solapados
por trabalhadores mais baratos e, não raro, mais competentes. Mas a afirmação de Wallerstein
(2007) é mais madura e sofisticada do que isso. O interesse de determinados movimentos
nacionalistas poderia mudar no sentido de facilitar a entrada dessa mão-de-obra mais barata,
precarizando relações de trabalho dentro do seu próprio território. O mesmo não acontece
quando a competição internacional chega a níveis incontroláveis, e as elites industriais se
veem sem saída. Seria nesse momento de crise que o nacionalismo voltaria à caixa de
ferramentas dos mais influentes.
bourgeois (...). In any case, socialist parties tended to insist that all
bourgeois states were alike and that the only important question was
whether the working class would be able to come to power in one state
or the other. Hence, nationalism was a delusion and a diversion
(WALLERSTEIN, 2007, p. 70-3, grifo nosso).
Esse ceticismo, presente no trecho evidenciado dentro do recorte acima, de fato faz emergir a
maneira pela qual o nacionalismo pode ser utilizado por elites para garantir vantagens em
relação a grupos “não nacionais”, seja através da separação ou anexação; seja para acumular
benefícios, abrir possibilidades para novos, ou mesmo assegurar aqueles que já estão
presentes. A promiscuidade dessa ideologia a tornaria, portanto, instrumentalizável: o
nacionalismo pode ser utilizado para atingir determinados fins. É tomando essa afirmação
como gancho, que novamente o texto se vira para o debate central deste tópico.
Como já mencionado em outros locais, a questão-problema deste trabalho diz respeito à dupla
função do nacionalismo, partindo do pressuposto que, mesmo quando utilizado no sentido
revolucionário, o mesmo contribui para a manutenção de uma lógica de dominação desigual.
É evidente que há influência da visão marxista para a construção deste pressuposto, porém sua
precisão e foco em questões econômicas (além de uma tendência à hierarquização de
interesses sociais) é visto como excessivamente reducionista. Por mais que o nacionalismo
responda a uma lógica de dominação específica, ela não estaria necessariamente vinculada a
um interesse de classe. Portanto, mantendo o trilho analítico que vinha sendo montado pelos
marxistas, mas adotando uma postura menos reducionista, recorre-se aos trabalhos de Paul
Brass, “(...) the ‘quintessential’ illustration of the instrumentalist position” (OZKIRIMLI,
2000, p. 110), um texto de proporções arrebatadoras para o estudo do nacionalismo.
O grande movimento que Brass (1991) toma para distanciar sua visão do nacionalismo das
teorias primordialistas é assumir que a mudança étnica é possível, algo próximo ao que Joshua
Fishman (apud SMITH, 2000, p. 50-4), defendia. O foco que os primordialistas impõem na
história é na verdade voltado para a história daquela nação ou grupo étnico, e não nas
diferenças geradas com o passar dos anos. A história dessa nação remontaria a tempos áureos,
onde existiam heróis, grandeza e riqueza (BREUILLY, 1996), e não ao presente caótico que
se busca superar. Não é o que acontece com o instrumentalismo de Brass (1991), que levanta
o ponto de que o foco na história precisa mudar para evidenciar que a mesma nação ou grupo
étnico sofreu alterações, sem necessariamente perder sua essência. Ou seja, a construção da
identidade nacional faria parte de um processo histórico, dependente de variáveis quase
48
sempre únicas, mas que, ao invés de simplesmente estancarem um grupo étnico num
determinado ponto, o moldariam, sem necessariamente destituí-los de características
identitárias únicas. Talvez a grande discussão presente em seu trabalho seja a relevância dada
a questões mais ideacionais, principalmente relacionadas à cultura e similaridade identitária
frente às de natureza mais pragmática, como a influência de elementos políticos e vantagens
econômicas na construção da identidade. A competição por estes recursos limitados, quase
sempre traduzidos em termos de poder, geraria rusgas entre grupos de elite. A natureza dessa
competição poderia, segundo Brass (1979; 1991), contribuir para o posicionamento destes
grupos na hierarquia social, evidenciando sua relevância em detrimento de outros grupos e
possibilitando a construção de discursos étnicos.
Com isso se busca dizer que estes símbolos poderiam facilitar a criação de uma identidade
política e gerar o suporte necessário para o atingimento das metas da elite em questão. Logo,
os significados destes símbolos estariam intimamente ligados às circunstâncias políticas,
inclusive abrindo precedentes para questionar a possibilidade de retração do discurso
nacionalista. A adoção desse posicionamento leva em consideração a possibilidade de ação da
elite analisada, qual seja, a partir do momento em que o cálculo demonstrar que a
aproximação deste grupo com questões nacionalistas não trará benefícios, as mesmas serão
abandonadas (BRASS, 1991, p. 13-6). Essa afirmação estabelece uma clara rota de colisão
com o conceito de Wallerstein (2004), que define movimentos nacionalistas como sempre
vinculados à resistência.
É importante ressaltar que, mesmo ao adotar essa postura em relação à identidade nacional,
Brass não constrói sua teoria totalmente afastada da importância destes elementos. É como
fica evidente nas concessões feitas à Robinson no (já considerado) clássico debate acerca da
criação dos Estados da Índia e Paquistão. Brass (1979; 1991) entende a relevância das
tradições, principalmente se leva-se em consideração a maneira pela qual a sociedade indiana
é organizada, através de uma rica herança cultural entranhada em sua estrutura institucional
(SMITH, 2001, p. 55). No entanto, sua posição primordial é mantida quando se percebe que
seu texto não abre mão da hierarquização das influências, sempre posicionando os signos
culturais como secundários ou mesmo subordinados a questões de natureza mais pragmática.
A cultura e identidade seriam relevantes, mas não suficientes para iniciar um processo de
transformação. Em outras palavras, se Brass aumenta o escopo analítico marxista ao definir
que nem sempre o nacionalismo está vinculado às elites econômicas, o faz sem abrir mão da
necessidade de hierarquizar interesses sociais, sugerindo que questões ideacionais estariam,
49
em sua maioria, subordinadas àquelas de natureza mais prática. Logo, Brass não abre mão da
importância dos signos e símbolos que formam uma identidade coletiva, apenas aceita que os
mesmos são mutáveis e podem ser trabalhados para se adequar aos interesses de certas elites.
Indo um pouco além na interpretação, Brass (1991) defende que, posta a oportunidade, esses
signos serão manipulados4. No fim, nem tudo irá se resumir apenas à competição entre etnias
por vantagens econômicas ou poder burocrático. Mesmo se fosse esse o caso, o sucesso de um
grupo ou outro estaria sempre ligado a fatores políticos, segmentados em três grupos
principais.
O primeiro deles diz respeito à existência e natureza de grupos políticos organizados. Para
Brass o nacionalismo é, por natureza, um movimento político e, por isso, necessita de
recursos, um discurso bem formado, boas lideranças. Só assim seria capaz de atingir sucesso
em quaisquer que sejam suas empreitadas. Para comprovar essa questão elenca cinco
pressupostos que corroborariam diretamente para o sucesso dos pleitos de um determinado
movimento nacionalista (1991, 48-9).
Em primeiro lugar, organizações que controlam recursos comunitários tendem a ser mais
efetivas. A relação destas organizações com a comunidade também precisa ser levada em
consideração, no sentido de que, quanto maior a conexão entre a organização e o meio onde
atua maiores serão suas chances de sucesso. É necessário que a organização seja capaz de se
identificar com a comunidade como um todo e não somente com algumas partes dela (Ibid.).
O quarto ponto também se relaciona com os anteriores, já que Brass infere que quanto maior a
resistência à mudança de lideranças, maiores as chances de sucesso de um dado movimento. É
possível interpretar essa informação como uma maneira de defender que o ideal do grupo
precisa estar acima dos indivíduos que o controlam. Ou seja, os dois últimos pontos trabalham
no sentido de consolidar a visão de que, se o objetivo tiver aderência às necessidades da
4
Esse debate também deve ser reacendido no próximo capitulo, a partir e em função de provocações e
contribuições da corrente construtivista das Relações Internacionais.
50
O último ponto trabalhado por Brass no que diz respeito às organizações políticas se refere à
capacidade combativa dos movimentos. Ou seja, a preparação realizada nos quatro pontos
anteriores de nada adiantaria se os interesses da comunidade não puderem ser atendidos
satisfatoriamente, ou se outra organização consiga atingir aqueles mesmos objetivos com
maior velocidade ou qualidade (Ibid.).
Essa questão evidencia, uma vez mais, o caráter instrumental do nacionalismo, ou mesmo a
possibilidade de hierarquização de interesses de indivíduos em uma comunidade. A disputa
pelo acesso a melhores condições de vida pode ou não estar ligado ao discurso nacionalista.
Existem situações onde o crescimento econômico se relaciona com o neoliberalismo,
enquanto em outros momentos históricos as elites econômicas preferirão aderir a uma lógica
protecionista (normalmente em períodos de crise econômica). Essa comparação deixa claro
que as mesmas elites que buscam gozar de um posicionamento estratégico privilegiado podem
levar em consideração fatores diferentes quando da construção de seus discursos, e posicionar
o nacionalismo como benéfico ou pernicioso.
Seguindo nesse sentido o próximo fator político relevante para o sucesso destes interesses é a
natureza do governo em situação e sua aderência ao discurso de um determinado grupo
nacionalista. Ou seja, a diferenciação situacional exposta acima pode muito bem significar
uma mudança no discurso de um determinado governo, o que significa maior ou menor fôlego
a uma questão social específica. No caso do nacionalismo, a defesa dos interesses de
determinados grupos étnicos poderia ou não fazer parte do foco de atuação daquele
determinado governo, mudando totalmente a possibilidade de sucesso e mesmo de
sobrevivência de alguns movimentos. Essa questão é atacada por governos das formas mais
diversas, seja através de assassinatos em massa visando ao extermínio de uma determinada
etnia ou mesmo, de maneira oposta, assimilando o grupo através da educação, transformando-
o aos poucos através dos processos de aculturação. Zizek (2014, p. 23-7) não seria tão veloz
em sugerir esse contraste, evidenciando claramente que ambas as formas se tratam de
violência.
Para ilustrar as práticas citadas acima, se faz necessário, novamente, um pequeno corte na
progressão do trabalho. No que diz respeito ao processo de extermínio sistemático de uma
51
estratégias representam formas de lidar com a pressão que determinados grupos étnicos
exercem sobre a máquina pública, em especial quando essa pressão não se relaciona com os
interesses da elite que detém o poder naquele momento (Ibid., p. 50).
Por fim, o terceiro grupo de fatores determinantes para o sucesso dos movimentos
nacionalistas é formado pela conjuntura política. Ao analisar esse ponto na teoria de Brass
(1991) é possível adotar uma postura mais crítica, e vincular essa conjuntura a já mencionada
propensão do governo e elites dominantes em aceitar o discurso nacionalista. Brass (1991)
tenta defender a necessidade de abrir um espaço específico para discussão da conjuntura
dividindo-o em mais três subitens, sendo eles
(...) the possibilities for realignment of political and social forces and
organizations the willingness of elites from dominant ethnic groups to share
power with aspirant ethnic group leaders, and the potential availability of
alternative political arenas (p. 55).
A sofisticação da teoria de Brass vai muito além do que foi exposto até o momento, mas seria
suficiente apontar para a importância dada pelo autor a questões relacionadas à competição
entre elites por recursos econômicos e posições de poder na burocracia estatal, questões essas
que seriam fortes o suficiente para que a autopercepção identitária pudesse ser relativizada e,
em última instância, instrumentalizada. Essa interpretação está na natureza do
instrumentalismo, mas também desta seção: é a partir deste ponto que se assumirá que o
nacionalismo possui uma característica político-ideológica, produzida a partir do advento da
modernidade. É tomando essa máxima como verdadeira que o estudo segue, agora visando
relacionar ainda mais os elementos identitários à burocracia política nascida do modernismo.
Para isso, deve-se retomar os trabalhos do professor John Breuilly, marco conceitual desta
interpretação.
A contribuição desse autor inicia uma nova etapa analítica, agora mais madura em função de
suas recomendações. Diversas perspectivas teóricas (e históricas) trabalharam o conceito de
nacionalismo tentando identificar características formadoras, fazendo referência ao
compartilhamento de ideias, classe e seus interesses, modernização econômica, cultura. O
incômodo de Breuilly, no entanto, diz respeito à incapacidade destes aspectos de contribuir de
maneira generalista para a compreensão do nacionalismo. Este incômodo significa apenas que
diversas questões podem influenciar certos movimentos, mas de fato não seriam onipresentes,
dificultando o processo de criação de uma teoria geral do nacionalismo. Ozkirimli faz uma
leitura muito similar do mesmo problema, asseverando que todos estes pontos deixariam a
53
desejar no sentido de não tomarem como referência a natureza política do nacionalismo, e que
toda política seria primordialmente subordinada ao poder (2000, p. 105). Como exemplo,
pode-se retornar ao texto de Bloom (1993, p. 132), que menciona a força da identificação,
mas parece sugerir que essa potência só é relevante quando se desenvolve no sentido da
aplicação política.
Em seu clássico, Breuilly estabelece uma tipologia do nacionalismo muito próxima aos
pontos elencados nessa seção como relevantes. Partindo diretamente para as palavras do
autor:
nacionalismo como política. (...) Os movimentos políticos que fazem essas afirmações são
modernos, essencialmente movimentos dos dois últimos séculos” (BREUILLY, 1996, XXX).
No entanto, quando se fala de nação, outros elementos precisam ser unidos para dar
sustentação ao argumento, e a autodeterminação política talvez seja o mais forte deles. A
organização do mundo a partir do signo da nacionalidade é fruto do esforço destes
movimentos; e os mesmos só acontecem após o advento do Estado, se consolidando após a
Revolução Francesa (BREUILLY, 1996).
O peso dado à relação entre movimento político e Estado gera uma classificação intrincada e
original, trabalhada de forma a separar os movimentos nacionalistas em três tipos específicos
de acordo com sua motivação: separação, reforma ou unificação. Todos os verbos
mencionados requerem auxílio de um objeto direto sobre o qual incidirá a ação mencionada,
ou seja, cada tipo de nacionalismo deve agir sobre uma estrutura política, seja essa uma
55
“nação sem Estado”5 ou Estado-nação (BREUILLY, 1985, p. 12). Sua empreitada ousada
segue no sentido da criação de uma tipologia generalista, mas ao mesmo tempo precisa, que o
municiaria com a tranquilidade necessária para trabalhar sua análise histórica dentro de uma
metodologia pré-determinada, já que o autor estabelece muito cedo em seu trabalho sua
aversão às tentativas de se criar uma teoria geral do nacionalismo (Ibid.). Tudo que foi
trabalhado até agora pode ser trazido à tona através das palavras do próprio autor, conforme
fragmento abaixo retirado do seu texto:
Como já deve ter ficado evidente, Breuilly se preocupa em analisar dois aspectos do
movimento nacional, sendo o primeiro a sua relação com o Estado ao qual se opõe ou
controla. Essa relação evidenciaria a necessidade principal da elite nacional a ser estudada,
uma vez que os interesses mudariam estruturalmente caso a mesma elite se encontre num
Estado-nação considerado “próprio”. É esclarecedor quando se percebe que essa sensação só
seria possível uma vez que esta instituição política (ou ao menos boa parte de sua capacidade
operativa) fosse objetivamente controlada por essa elite nacional, evidenciando as pontas que
serão responsáveis por atar o nó teórico que posiciona o nacionalismo como primordial para
azeitar a relação entre Estado e sociedade. A contribuição desta afirmação para o presente
trabalho é magistral, uma vez que facilita em grande medida o esforço necessário para
demonstrar de que maneira o nacionalismo foi utilizado ao longo dos anos para atingir este
objetivo único, capaz de unir em apenas uma luta, todos os interesses esparsos trabalhados ao
longo de séculos de estudo histórico6.
Em outras palavras, o método que Breuilly desenvolve em Nationalism and the State não
admite variações, partindo sempre da construção de uma tipologia básica que só pode ser
aplicada após um levantamento catalográfico de movimentos nacionalistas (ou de
5
Non-nation states no original (BREUILLY, 1985, p. 12). O próprio autor abre uma nota para mostrar sua
insatisfação com o termo ao mesmo tempo em que admite não ter encontrado uma conceituação mais apropriada.
6
Concordando com a citação trazida há pouco, isso não significa uma teoria geral do nacionalismo, apenas o
entendimento de um padrão recorrente ao longo dos séculos que compreendem sua existência.
56
nacionalismos). Por fim, estes movimentos seriam postos em perspectiva para serem
analisados de maneira comparativa, através da sobreposição de seu desenvolvimento
histórico. É uma tipologia focada essencialmente na face política do nacionalismo e sua
floração moderna.
O outro ponto capital no desenvolvimento da teoria de John Breuilly está associado com a
transformação histórica das relações sociais, primordialmente na divisão do trabalho, e isso
reabre a questão entre modernidade e nacionalismo. Esse assunto é tratado por Breuilly a
partir de três vertentes diferentes. A primeira trata a questão a partir do ponto de vista das
transformações da consciência e aceitação das ideias nacionais. Breuilly sugere uma análise
mais próxima da obra Comunidades Imaginadas.
primeiro momento, seria importante pontuar a ligação entre a formação das sociedades
industriais e a educação de massa, aspecto que também será trabalhado por Eric Hobsbawm.
A educação e escolarização das sociedades modernas foi moldada a partir de uma estrutura de
cima para baixo, onde os indivíduos são burocraticamente moldados de maneira a atender às
necessidades da sociedade no que tange, principalmente, à oferta de mão-de-obra. As
transições sociais ocorreriam a partir de zonas culturais definidas primordialmente pela oferta
de escolarização. Para Breuilly (1996), essa visão pode ser falseada simplesmente porque não
existe nexo causal completo entre o industrialismo, a educação de massa e o nacionalismo.
Em suma, é possível verificar movimentos nacionalistas em sociedades que ainda não
atingiram o estágio da educação em massa, ou mesmo que não possuem características
industriais claras, apesar de estarem certamente incluídas na lógica da modernidade. Existem
meios de difundir uma cultura nacional em sociedades não industrializadas, assim como
exemplos de movimentos politicamente relevantes e sociedades do mesmo tipo, e nenhuma
destas expressões estaria totalmente ligada ao advento da educação de massa. Portanto, a
relação entre nacionalismo e industrialização não é tão estanque quanto faz parecer a teoria de
Ernst Gellner (Ibid.).
A preferência pessoal de John Breuilly assenta-se na terceira vertente dos estudos modernistas
do nacionalismo, aquela que o trata diretamente como doutrina política moderna. Como este
assunto já foi abordado anteriormente, buscar-se-á desenvolver a visão do autor em aspectos
pontuais e originais ao texto.
O primeiro movimento neste sentido vem na esteira da Paz de Vestfália, que garante todos os
poderes coercitivos à instituição moderna da soberania que, apesar de ainda não estar
totalmente desenhada a partir do ponto de vista nacional, já estava totalmente vinculada ao
Estado. Pode-se retomar o texto de Anderson (2006) para pontuar o reducionismo subjetivo
da criação de comunidades imaginadas pura e simplesmente, e comparar à teoria mais robusta
e pragmática que Breuilly (1985; 1996) tenta desenhar. Enquanto o primeiro preocupa-se em
compreender o processo de criação do sentimento nacional e sua extrapolação para o mundo
real, o segundo trata de identificar os pressupostos lastradores desta extrapolação, sendo a
delimitação territorial precisa e segura o primeiro deles. As ideias claras e distintas do Estado
como única fonte de soberania são marcos da modernidade (BREUILLY, 1985; 1996).
A separação das esferas pública e privada de maneira mais clara e até mesmo o transplante de
certas questões de um conjunto para o outro, é desencadeada fundamentalmente junto à
modernidade, que permitiu o recrudescimento das estruturas políticas, segregadas a esse
campo, e a delimitação do que diz respeito à sociedade civil. Os processos de separação entre
os dois âmbitos supracitados acabam por dificultar o estabelecimento de uma conexão entre o
Estado e a sociedade. Aqui percebe-se a abertura de um vale, que teve seu terreno perpassado
com correntes ideológicas tentativas que, ao fim, tiveram pouco ou nenhum sucesso em unir
extremos. Esse elo perdido poderia, segundo Breuilly (1985), ser resolvido através do
nacionalismo, num processo batizado por Smith (2003) como “bridging the gulf”:
Essa afirmação se desdobra em três outros caminhos. Em primeiro lugar, vale a pena adentrar
um pouco mais na complexidade do significado por trás da afirmação de que o nacionalismo
não existe fora da modernidade. Adotando um misto das visões apresentadas até então, mas
focando um pouco mais em Breuilly e Herder, já se tem conteúdo suficiente para se afirmar
59
que, em seu estado “natural”, cada povo teria idiossincrasias suficientes para transformá-los
em conjuntos civilizacionais totalmente diferenciados. Tomando a linguagem como uma
expressão cultural multifacetada é possível avançar para a crítica etnosimbolista e defender o
ponto de que, em sua essência, qualquer luta nacional buscará reacender o espírito primordial
de um povo, solapado pela modernidade. A virada neste ponto se dá quando se admite o que
foi dito há pouco sem perder de vista a necessidade da organização política para atingir este
fim. Ou seja, para que a modernidade seja afastada e a nação original seja restaurada, se faz
necessário que o movimento nacionalista adote uma postura pragmática, aceitando que sua
identidade cultural é também nacional, e que essa nacionalidade precisa ser politizada,
movimento similar ao que já foi dito acerca do trabalho de Bloom (1993). Apenas com a
reconexão entre nação, território e Estado, é possível garantir a diferenciação básica que
constitui o desejo de todo movimento nacionalista ao longo da História, seja essa
diferenciação necessária para unificar povos separados; separar povos com características
nacionais distintas; ou reformar, com vias a garantir mais representatividade a certas elites
étnicas, uma estrutura institucional.
Essa diferenciação abre um ponto para um possível debate acerca da existência de “nações
pré-modernas”, já que este sentimento de pertencimento, muitas vezes traduzido como sendo
nacional, já deveria existir antes do século XVI. Traduzido ou entendido, simplesmente
porque o desenho conceitual da nação depende de outras questões que não apenas a auto-
identificação coletiva. Bloom (1993) discorre acerca da relevância das teorias de
identificação, fortemente lastreadas na ontologia da psicologia, para compreender a relação
entre o indivíduo e sua identidade, sugerindo uma certa naturalidade por essa busca de
identificação coletiva. Para Breuilly, antes de tomar essa necessidade como um fato, é
mandatório realizar um movimento no sentido de historicizar o fato analisado, pois a
necessidade de auto-identificação não é automática e os movimentos e interesses nacionalistas
são historicamente intermitentes. Essa visão o leva a crer que o indivíduo não convive com
essa necessidade com tanta frequência quanto sugerem as perspectivas psicológicas, ou
mesmo primordialistas, representadas aqui pelo plebiscito tácito e contínuo de Ernst Renan
(2000). Uma vez analisado este debate, fica claro que, para as visões modernistas, a
necessidade de afirmação cultural é uma constante apenas após o marco da modernidade, pois
revela a cultura como degrau necessário no caminho para o atingimento de outros objetivos.
Em suma, por mais que essa visão acerca do nacionalismo abra espaço para que a identidade e
cultura sejam levadas à sério (BREUILLY, 1985, p. 35), não seria o mesmo que dizer que
questões identitárias seriam características primordiais do nacionalismo.
Breuilly (1996) critica determinados teóricos que, de maneira proposital ou não, acabam por
tratar o nacionalismo como uma ferramenta promotora da modernidade, e não como seu
produto. Ou seja, esses teóricos concordariam acerca da instrumentalidade do nacionalismo,
até mesmo da sua faceta política, mas não necessariamente sobre o marco temporal de seu
surgimento. Breuilly (1985, 1996) trata essa afirmação com cautela, admitindo que isso
aconteceu em determinados momentos, mas também o contrário é perceptível. Para fechar a
questão o autor diz que o nacionalismo surge como aspecto de uma modernidade intencional,
e que apenas após sua consolidação é que é possível adotar uma postura funcionalista e
reposicionar a interdependência dos dois fenômenos. Quando se volta para as leituras
marxistas, por exemplo, Breuilly sugere que a burguesia poderia ter se apropriado de outras
expressões ideológicas, ou mesmo da religião, para manter o controle das populações
oprimidas, mas escolheu, em determinados momentos, se valer do nacionalismo para
combater o internacionalismo proletário. Para Breuilly, as características exclusivas do tempo
em que se passa essa luta explicam essa escolha, seja a ela diferença entre os poderes
61
econômico e político, seja a relevância das instituições nacionais, como o Estado-nação, por
exemplo.
É possível perceber que o cuidado de Breuilly não está relacionado ao que chama de
funcionalidade do nacionalismo, e sim a um aparente descuido de certos teóricos que,
simplesmente consideram seu funcionalismo sem prestar atenção nos elementos estruturais
que o cercam e/ou permitem sua existência. Em maior ou menor grau, nenhuma das funções
do nacionalismo seria percebida da maneira que é atualmente não houvesse uma clara ligação
entre o fato social e seu momento histórico. Em outras palavras, a modernidade seria condição
sine qua non do nacionalismo.
Finalmente, há uma relação muito mais íntima entre cidadania e nacionalismo do que entre
etnia/identidade e este mesmo nacionalismo. O objetivo máximo do nacionalismo seria a
instituição de um organismo político representativo, que levasse em consideração os
interesses de determinados grupos, étnicos ou não, já que as características identitárias, por
mais objetivas que sejam, podem ser manipuladas pelo discurso e instrumentalizadas para
facilitar a mobilização da massa social numa determinada direção. Por fim, os movimentos
nacionalistas são constituídos de fatores objetivos e tangíveis, e não fazem referência (apenas)
ao caráter ideacional e metafísico do mito nacional. A autoimagem do cidadão é reificada
através do advento do Estado e, consigo, da cidadania, garantindo a tangibilidade que, quando
em falta, enfraquece a aderência das ideologias.
Muito mais interessado nos nacionalismos com relevância política do que no estudo
metacrítico das ideologias per se (SMITH, 2003, p. 85), Breuilly (1985) estabelece um elo
entre o instrumentalismo livre de Brass e o ceticismo dos marxistas, ao dar relevância central
ao papel das elites intelectuais no nacionalismo, que deverá ser um pouco aprofundado nesse
momento. O nacionalismo não seria, automaticamente, a política dos intelectuais não podendo
ser entendido como um produto de suas divagações. Não seria paradoxal, seguindo o mesmo
raciocínio, cravar a impossibilidade dessa afirmação. É se aproveitando desta abertura que o
papel da intelligentsia será debatido, crucial para compreender o nacionalismo como doutrina
política moderna.
A elite intelectual seria muito mais plural do que as elites econômicas ou políticas, porque não
se limitariam apenas a interesses econômicos ou a representatividade política dentro de uma
esfera social, pelo menos não de maneira automática. Seriam, em tese, naturalmente mais
influentes no nível das ideias, pois sua capacidade de produção de conhecimento de fato
62
É possível ilustrar essa questão quando se retoma o trabalho de Heather Rae (2003) acerca da
separação da Iugoslávia. Em uma passagem, a autora se refere ao preciso texto de Sells (1996)
acerca do mesmo período histórico, onde são trazidas evidências históricas sobre o processo
de destruição de templos muçulmanos. O autor relata que, por vezes seguidas, o processo
iniciado com a desintegração física seguia através da solvência de suas evidências históricas,
fazendo avançar o discurso de que “nunca existiram mesquitas nessa localidade” em troca do
“mesquitas não existem mais nessa localidade”. O mito construtor da pureza étnica e nacional
recai num esforço de natureza posterior ao fato, mudando uma verdade material através da
palavra escrita e do poder institucional da burocracia. Outra questão determinante diz respeito
à mudança de atitude dos intelectuais que contribuíram de maneira direta para a consolidação
dessa ideia através da publicação de estudos e pareceres que comprovavam abusos e
desmandos operados pelas minorias étnicas, que precisavam ser suprimidas para permitir o
respiro da unificação (RAE, 2003). Essa mesma mudança na natureza dos intelectuais
envolvidos pode ser sentida em diversos momentos históricos não tão distantes,
principalmente quando se diz respeito à complementaridade entre o discurso nacionalista e o
desenvolvimento econômico.
Essa mudança de ritmo é brilhantemente trabalhada por Bresser-Pereira (2018) num recente
artigo intitulado Nacionalismo Econômico e Desenvolvimento. Dentre outras questões trazidas
em seu texto, Bresser-Pereira evidencia o papel das elites econômicas e intelectuais na
construção da política econômica de um Estado, e como o nacionalismo seria uma ideologia
7
Seria possível abrir um debate acerca da construção destas ideologias anti-ideológicas, para utilizar um termo
de István Mészáros (2004), ou mesmo do papel dos esforços civilizatórios de algumas iniciativas metodológicas,
mas essa divagação custaria muito caro do ponto de vista estrutural, relegando esta pesquisa um papel de
confrontadora e questionadora de todas as coisas. Aqui busca-se apenas a contestação, no sentido da crítica
acadêmica, do nacionalismo e sua utilização como ferramenta política nas relações internacionais.
63
8
É importante problematizar esse ponto. Quando se fala de “proteger o capital nacional”, a ideia de patriotismo
pode vir à tona, e não é esse o caso apresentado por Bresser-Pereira (2018). O “capital nacional” aqui seria algo
como o “meu capital”. A diferença importante de ser salientada é que, ao invés de defender o interesse da
coletividade, essa elite visa defender seus interesses próprios, usando para isso um discurso mobilizador.
64
Smith (2003, p. 1) escreve nas linhas iniciais de Nationalism and Modernism, que o
nacionalismo é a linha vermelha que separa o mundo moderno dos outros períodos históricos.
Nesse belíssimo parágrafo, sua conceituação deixa muito claro que o nacionalismo se trata de
uma ideologia e movimento político essencialmente moderno, surgido na Europa ocidental e
América por volta do século XVIII. A visão de Hobsbawm seria, nesse sentido, um passo
adiante no pragmatismo dos instrumentalistas e diversas visões modernistas do nacionalismo,
à medida em que o autor abre mão quase que totalmente das características subjetivas, dando
ao nacionalismo um tom essencialmente prático e objetivo.
255). Nesta bela passagem, não é recomendável se perder na superioridade estilística do autor,
e assumir que a metáfora aparece apenas como forma de enriquecer seu texto. Em verdade, os
verbos empregados por Hobsbawm tem tanta precisão quanto beleza. Assumir que a nação é
algo passível de ser criado é um claro indicativo desta visão prática. Definir o historiador
como alguém capaz de produzir aquilo que analisa, ou seja, o passado, é ácido, ousado,
crítico. No entanto, ao mesmo tempo em que chega a estas conclusões, Hobsbawm mantêm-se
sereno e sóbrio, garantindo a inseparabilidade da costura entre História e nação, uma trama
que fica muito mais evidente quando se analisa sua obra.
A relação vem às claras na obra The Invention of Traditions, um esforço crítico conjunto com
Terence Ranger, que visa questionar o naturalismo dos costumes, culturas e tradições sociais
em várias partes do globo. O primeiro passo desse trabalho diz respeito à conceituação de
tradição e seu papel na consolidação do nacionalismo. Basicamente:
A História é usada como ferramenta legitimadora da ação do grupo, muitas vezes como
cimento da coesão social necessária para fazer avançar sua agenda. A capacidade de se
utilizar da tradição a torna um instrumento nas mãos das elites políticas, que podem se apegar
a tradições antigas ou simplesmente desenhar novas. Tudo dependerá de suas intenções
presentes. O nacionalismo pode ser encaixado no discurso da tradição, e já se provou capaz de
garantir a “unidade nacional” nos mais diversos momentos. Seja para unir um povo na direção
da libertação, seja para impedir a mudança ou “invasão cultural estrangeira”, o nacionalismo
66
se interliga com as tradições e mitos do passado e se metamorfoseia num elo poderoso, que
mostra sua força real entre 1870 e 1914 (OZKIRIMLI, 2000; HOBSBAWM; RANGER,
2013). Num momento de massificação política, que coincide justamente com o advento da
modernidade, o controle da população e garantia da coesão social ficam mais difíceis de
alcançar. Novas tradições são criadas com base em costumes ou eventos passados. Esse
conjunto de tradições inventadas formaria a nação, sendo impossível estudar o último sem ter
total atenção ao fenômeno que envolve o primeiro (HOBSBAWM; RANGER, 2013, p. 14).
Like most serious students, I do not regard the 'nation' as a primary nor as an
unchanging social entity. It belongs exclusively to a particular, and
historically recent, period. It is a social entity only insofar as it relates to a
certain kind of modern territorial state, the 'nation-state', and it is pointless to
discuss nation and nationality except insofar as both relate to it. Moreover,
with Gellner I would stress the element of artifact, invention and social
engineering which enters into the making of nations. 'Nations as a natural,
God-given way of classifying men, as an inherent ... political destiny, are a
myth; nationalism, which sometimes takes preexisting cultures and turns them
into nations, sometimes invents them, and often obliterates preexisting
cultures: that is a reality.' In short, for the purposes of analysis nationalism
comes before nations. Nations do not make states and nationalisms but the
other way round (HOBSBAWM; RANGER, 2013, p. 9-10).
Em suma, o motivo mais pujante para o surgimento do nacionalismo, seu objetivo máximo,
seria a construção de um organismo político capaz de definir a maneira pela qual as relações
sociais se organizam, proteger os indivíduos (idealmente nacionais) etc. Apenas após a
criação e consolidação deste organismo, poder-se-ia falar de nacionalismo; nunca o inverso.
Ou seja, o nacionalismo cria a modernidade, pois, assim como disse Smith (2003), ele se
torna a linha vermelha que separa os períodos históricos onde a organização social primordial
é a nação daqueles que não o eram. Para manter o equilíbrio social, o nacionalismo apropria-
se de um discurso metamórfico, e faz emergir questões do passado, quando não criando-as
67
Para dar substância à essa afirmação, Hobsbawm trabalha com uma série de estudos de caso,
como a relativamente recente criação da cultura das highlands escocesas, a redescoberta da
cultura galesa, a cerimônia de coroação britânica, as invenções das tradições da África
colonial, além da efervescência de tradições de massa criadas no seio da Europa do século
XIX (apud SMITH, 2003, p. 120). No entanto, todas essas tradições, assim como inúmeras
outras, estão ligadas ao Estado, pois são necessárias para garantir o controle populacional
pelas elites políticas dominantes, ou para incitar a revolta nas classes sociais oprimidas.
Essa dualidade finaliza esta seção e abre espaço para o último capítulo deste trabalho. Nesse
sentido, visando reforçar os pressupostos que foram trazidos até o momento, bem como para
servir como uma espécie de resultado de toda a problematização conceitual empreendida até
agora, é válido pontuar, de maneira mais precisa, o que seria nação e, por conseguinte,
nacionalismo para efeitos desta pesquisa.
A conceituação de nação se aproximará muito daquela trazida por Anthony Smith em The
Nation in History: nação é o termo utilizado para definir um conjunto populacional composto
por seres humanos, normalmente (mas não necessariamente) ocupantes de um território
comum, compartilhantes de mitos, cultura de massa, economia e um sistema normativo de
direitos e deveres.
Já o conceito de nacionalismo trará um pouco mais dos pressupostos citados até aqui, visando,
principalmente, o afastamento da visão de sentimento nacional e aproximação de uma
interpretação mais pragmática. Nacionalismo seria, portanto, o termo utilizado para designar
uma doutrina política de autoafirmação nacional, pautada na assunção da existência de
unidade de interesses entre um determinado conjunto populacional, normalmente baseada em
similaridades fenotípicas, étnicas, históricas e/ou culturais. Seu objetivo seria traduzido na
afirmação do interesse nacional e desejo de autodeterminação, que seria alcançado através da
criação de uma estrutura político organizacional formal, o Estado-nação.
68
4. A Promessa do Nacionalismo
Até o presente momento, a maior preocupação deste trabalho foi expor, analisar e criticar
teóricos e conceitos que contribuam para a apreensão do nacionalismo e sua atuação nas
relações internacionais. Grande tempo e esforço foram empreendidos para tentar elucidar
certos pontos, bem como testar os pressupostos hipoteticamente levantados no início do
estudo. Com os dados e referências deste esforço em mãos, é possível adentrar num terreno
menos pavimentado, mas exatamente por esse motivo, muito mais rico.
Os mistérios deste capítulo são os mistérios deste estudo. Este é o momento para que dúvidas
sejam trazidas à tona. Se estas não forem respondidas imediatamente a partir do retorno a
momentos anteriores do texto, é porque devem ser deixadas em aberto, como reflexão crítica
inerente à natureza teórico-conceitual desta pesquisa.
O nacionalismo se mostrou de diversas maneiras ao longo dos anos: vezes como discurso,
vezes como ferramenta política, vezes como ideologia. Seu objetivo mudou e moldou as
realidades que o envolviam ao mesmo tempo em que foi mudado e moldado por essa mesma
realidade. Esse duplo movimento invariavelmente impele o estudo aos escritos construtivistas,
principalmente ao trabalho de Onuf (2013), que será acessado neste primeiro momento e
revisitado sempre que necessário.
Mas também ao futuro. Se nos capítulos anteriores todo o esforço foi empreendido no sentido
de conceituar e escavar as bases históricas do nacionalismo, a energia que resta deve ser
empregada na análise da capacidade deste mesmo conceito em construir realidades no futuro,
69
seja através da ruptura, seja através da manutenção de um estado de coisas interessante para
determinadas camadas sociais9.
O que mantém o mundo funcionando, se pergunta John Ruggie em seu artigo de 1998.
Mundo, mundos... todos vivem em mundos próprios, mas também compartilhados; essa
relação culmina na criação de apenas um mundo, único apesar de heterodoxo (ONUF, 2002,
p. 21). As palavras de Onuf, admitidamente inspiradas em suas leituras da teoria kantiana,
soam paradoxais até para o próprio autor, mas a verdade é que não são: viver no mundo
significa agir no mundo, e não apenas atuar, em sua constituição e construção.
Mesmo que ainda muito embrionário, este será o argumento base para uma discussão acerca
do sistema internacional. Importante para posicionar o teste conceitual da atuação do
nacionalismo como ferramenta dupla, esse debate servirá para trazer à tona algumas nuances
deste sistema, principalmente no que diz respeito ao seu material constitutivo: o mundo das
relações internacionais é mundo em si (Ibid.), e sua capacidade de adequação de conceitos
bem como transformação dos mesmos em realidade objetiva, confere um distinto grau de
elasticidade, muito importante para a compreensão do argumento proposto até aqui.
9
A escolha do verbo “construir” realidades foi pensada especialmente visando dar ao leitor a ideia de que o
nacionalismo se ampara na capacidade de gerar mudança, mesmo quando esta mudança significa a morte do
elemento novo. O que se busca dizer com isso é: mesmo quando se fala em manutenção do estado de coisas,
fala-se de uma construção de realidade, que depende de um embate de forças sociais. A vitória ou derrota do
nacionalismo não estaria, portanto, automaticamente ligada à emancipação ou manutenção, mas sim ao seu
objetivo.
70
Como desenhar, mesmo que virtualmente, os mundos das relações internacionais e do sistema
internacional? Como não cair numa falha interpretativa, e utilizar a teoria de Onuf contra suas
próprias bases, ao sugerir que existe um mundo e que a nação é seu fundamento principal?
Para inaugurar essa nova etapa, recorre-se novamente à Nicholas Onuf e às palavras iniciais
de um dos seus mais famosos trabalhos:
Em primeiro lugar é importante ressaltar que Onuf (1998; 2002) não abre mão da
materialidade do mundo físico, e admite a sua existência. Em alguns momentos, chega mesmo
a sugerir a possibilidade de distanciamento entre analista e objeto, virando as costas para o
radicalismo pós-moderno. No entanto, é central em sua teoria a afirmação de que este
movimento é apenas momentâneo, e muito menos perfeito do que defendem os positivistas.
Não seria plausível defender que há uma realidade material existindo para além do alcance do
analista, e, por isso, passível de ser compreendida a partir da observação, mas que existe um
mundo real, composto por vários mundos. O mundo da pesquisa aceita este distanciamento,
mas o objeto pesquisado invariavelmente sofrerá deformidades interpretativas, quando não
alterações diretas a partir da interferência do cientista.
Tomando esse raciocínio como base, é possível apontar certos conceitos e instituições
buscando verificar seu papel na construção de uma determinada realidade. Essa construção
pode tomar as bases de outra pré-existente, destruí-la completamente ou mesmo se defender
contra invasões conceituais alienígenas. Dentro dos mundos do sistema internacional, vários
destes conceitos se chocam, misturam e sobrepõem, dentre eles a nação. Nesse sentido, o que
interessa filtrar desta correlação é que a nação ajuda a compreender bem como formar este
mundo e esta realidade, mesmo que não seja totalmente responsável pela sua constituição.
combinam o poder estatal, duro, firme, positivo, com a leveza e paixão da ideologia
nacionalista, criando uma combinação irresistível. Essa fórmula é pesada pelas balanças das
escolhas pessoais e quase sempre enfrenta pouca ou nenhuma resistência, pois conversa com
as necessidades humanas nos mais diversos níveis. Se o ser o humano é de fato um zoon
politikón (FRATESCHI, 2008), a diferença entre realidade física e realidade ideacional é
muito tênue: os extremos do mundo ordinário e real, onde as coisas realmente acontecem, e
do mundo dos acadêmicos, preocupados em analisar a ordem das coisas, estão mais próximos
do que pensa Onuf (2002), pelo menos no que diz respeito a um conceito altamente
instrumentalizável, como é o caso do nacionalismo. Por mais que conceitos não alterem a
lógica física das relações internacionais, o mesmo se faz em nível ideacional. Mas o mundo
onde atuam estes conceitos interfere na maneira pela qual se dão as relações sociais no mundo
material. Dessa forma, abre-se espaço para a metaforização do mundo real, que toma forma a
partir de uma dégradée de materialidade e ideia.
Onuf (1998; 2002) colabora para o exercício de sopesar a relevância do componente estatal
para o mundo das relações internacionais, defendendo que o último é bastante exclusivo: o
protagonista neste cenário é o Estado. Isso não quer dizer que outros agentes não tenham
relevância ou que suas interações não precisem ser levadas em consideração, apenas que, no
século XXI, o Estado é a organização política que se constitui como maior depositária do
poder (ARCHIBUGI, 2000, p. 137). Grande parte desse poder diz respeito à sua capacidade
de definir os requisitos da cidadania, ação que contribui para a mitigação da heterogeneidade
que lhe é intrínseca e pode ser percebida como impeditiva à sua ação ou, no mínimo,
problemática. A visão do Estado unitário, indivisível e racional já foi superada nos debates
epistemológicos das RI, e hoje se aceita que um conjunto de fatores sociais internos possui
73
grande influência na definição das políticas externas estatais. Agrupar indivíduos de etnias,
idiomas, culturas e, principalmente, interesses diferentes, sempre foi seu maior desafio do
ponto de vista doméstico. A homogeneização, ou controle da diversidade é a chave para
garantir coesão e organização e até o presente momento nenhum outro fator obteve tanto
sucesso quanto a nacionalidade.
Como debatido na seção anterior, um mundo será sempre o produto de uma série de
imposições conceituais (DEVITT, 1997, p. 235). Levando em consideração que uma dessas
imposições se desenha com nuances de nacionalidade, e esta é basilar para os organismos
políticos que atuam neste mundo, é plausível afirmar que a nação ajuda a desenhar o mundo
das relações internacionais. Ou seja, se nacionalidade é elemento formador do Estado, e estes
organismos povoam o sistema internacional, a lógica leva a crer que nação e nacionalidade
são alguns dos elementos que constituem o mundo das relações internacionais. Este mundo
seria, portanto, constituído por muitos mundos nacionais, e não de maneira indireta, mas com
sua influência total e inequívoca. É por assunções como essa que autores como John Breuilly,
Hobsbawn e Terence Ranger não conseguem (nem tentam) dissociar Estado e nação: o
objetivo máximo do nacionalismo seria, inclusive, subverter a realidade a partir do momento
que conquista o aparato estatal, permitindo que o signo da nação continue marcando as
relações internacionais, seja através de mecanismos políticos (BREUILLY, 1985), seja
através da invenção de tradições (HOBSBAWN; RANGER, 2008).
74
Nesse sentido, surge uma pergunta muito importante para nortear o restante da análise: quem
ou o que teria capacidade para definir quais regras serão levadas em consideração? A resposta
para esta pergunta encontra-se na centralidade do poder como elemento das relações
internacionais. Indo além, compreender de que forma as relações internacionais se organizam
com base nas assimetrias de poder e capacidades de seus agentes principais. O esforço
primordial deste momento é tentar identificar como a nação permite que esta lógica seja
mantida. Responder a esta questão ajudará na compreensão do nacionalismo como expressão
de um desejo de emancipação e/ou manutenção da realidade.
75
O conceito de poder passou por diversas modificações ao longo dos anos e toda sorte de
discussões dão fôlego a questionamentos acerca da origem do poder, como o mesmo é
exercido, se pode ser quantificado. Isso não significa, no entanto, que não houve resistência
aos chamados novos temas: historicamente, a teoria política encara o poder como animal
quase perfeito, que se mostra inalterado frente a anos de evolução social. A Guerra do
Peloponeso e as disputas comerciais entre Estados Unidos e China poderiam ser explicadas
tomando como base os mesmos teoremas.
Já que a análise conceitual do poder não se encaixa nos interesses deste estudo, evitar-se-á
problematização excessiva, tomando-se este argumento como base suficiente para o
lançamento de mais uma pergunta, que permitirá iniciar uma análise acerca das maneiras
pelas quais a nação conformaria um elemento auxiliador para a manutenção deste tipo de
relação, baseada em assimetrias de poder. Em primeiro lugar, retoma-se a já mencionada
complementaridade entre o Estado, organização máxima da política internacional, e a nação,
conceito que se refere ao compartilhamento identitário e cultural de uma determinada
população. O Estado detém um aparato material que permite a execução de suas capacidades
em relações internacionais (forças armadas, por exemplo), mas também um referencial de
legitimidade, sendo a força um recurso acessível e normativamente garantido a estes
organismos. Stephen Walt postula que "(...) security considerations take precedence over
ideological preferences, and ideologically based alliances are unlikely to survive when more
pragmatic interests intrude" (1995, p. 24). Apesar de não estar totalmente errado, Walt
76
Se se toma o trabalho de Hans Morgenthau (2003, p. 4-28) como exemplo, percebe-se que a
análise do poder leva em consideração elementos materiais em sua maioria, mas também
questões imateriais altamente problematizáveis. Ao comparar a importância dada pelo autor a
questões como índole nacional, é possível perceber a importância que determinados
elementos identitários teriam na construção do poder de um Estado, mesmo a partir do ponto
de vista de um autor essencialmente realista. Obviamente, o que Morgenthau define como boa
índole, bom governo, ou mesmo nacional, partem de um conjunto opinativo que diz respeito à
sua própria realidade. No entanto, não se quer desprezar essa relação: basear o poder estatal
nesta capacidade nacional serve como elemento discursivo muito relevante para se criar uma
narrativa em torno de um objetivo. Não é necessário procurar muito para encontrar momentos
na história em que a índole nacional foi acionada através do nacionalismo visando aplacar
invasões externas ou iniciar movimentos para conquista de novos territórios. Estes
movimentos, assim como tantas outras mudanças nas relações de poder, não poderiam ser
explicáveis se a esfera imaterial não fosse trazida à tona (ROSE, 2004). As teorias tradicionais
não são capazes de ler e questionar estas nuances em profundidade, tomando determinados
conjuntos normativos como dados ou perenes e isso acontece também nos primeiros
paradigmas nacionalistas (OZKIRIMLI, 2000, SMITH, 2000)10. Ao tomar a nação como
elemento basilar e incontestável do mundo das relações internacionais, se faz impossível
pensar num mundo onde não exista uma alternativa para este arranjo. Como já foi dito
anteriormente, a estrutura na qual os Estados se relacionam é primordialmente composta por
ideias e conceitos; questioná-los significa abrir espaço para modifica-los; toma-los como
realidade objetiva e imutável, significa trabalhar no sentido de sua manutenção.
10
A noção de fim da ideologia (MÉSZAROS, 2005; CHOWDHRY; NAIR, 2014), obscurece e disfarça as
relações de poder e questões ideacionais no mundo moderno.
77
Aqui se chega à última linha de raciocínio desta seção, que permitirá amarrar alguns pontos já
trabalhados com alguns fatos novos. Em primeiro lugar, é necessário compreender que não
existe apenas um mundo material, mas que materialidade e ideia se confundem e constroem
mundos diferentes, que não são perenes (1); e a nação faz parte da base constitutiva do
sistema internacional (ou do mundo das relações internacionais), tratado em certos momentos
como este mundo (2); que este mundo é povoado por Estados, que se utilizam deste conceito
para unificar suas populações e garantir legitimidade de ação (3); as relações entre estas
organizações se baseiam em poder (ideacional e material) (4); e, finalmente, que esta estrutura
culmina na institucionalização de um modelo relacional desigual, baseado nas assimetrias de
capacidades e garantido pela heterogeneidade nacional (5).
Salientar esta heterogeneidade é condição inicial para a manutenção desta lógica relacional: a
similaridade entre a segunda e última proposições não é intencional, e por isso mesmo serve
para demonstrar como um ponto de partida comum fabrica esta ideia de múltiplas faces de
uma mesma realidade. O mundo das RI seria baseado na compreensão destes conceitos, no
posicionamento do poder, racionalidade etc. como elementos primordiais. Esse movimento,
por si só, já seria suficiente para construir uma narrativa que colaborasse para a reificação de
determinadas estruturas hierárquicas e relações assimétricas. Quando se pensa que a maioria
das teorias que formam o mundo das relações internacionais são essencialmente eurocêntricas
(ou ao menos originadas no eixo Estados Unidos – Europa), se percebe a criação da mística
por trás do encadeamento entre Estado, nação e relações sociais (CHOWDHRY & NAIR,
2014, p. 3). Porém, outros fatores (materiais e ideacionais) se agregam a esta questão,
formando um conjunto normativo que não apenas permite, mas garante a existência de
relações desiguais. Poder-se-ia falar do colonialismo, do imperialismo, do capitalismo e das
lutas de classe. Exclusive o último caso, todos têm no componente nacional uma característica
imperativa para sua existência. A temática da nacionalidade se confunde com tantas outras,
mas parece se sobressair a todas elas nos momentos mais críticos, e mesmo o capitalismo
parece se dobrar aos desígnios da nação em momentos-chave da história.
Ajustando o leme para um posicionamento mais direto à pergunta que dá origem a este
debate, qual seja, de que maneira estas relações desiguais se legitimam e por que a nação é um
elemento importante para a sua solidificação, recorre-se novamente ao arcabouço
construtivista, que tende a permitir o transbordamento de características ideacionais em sua
leitura de poder, adotando uma perspectiva intersubjetiva. A verdade é que estas visões são
78
muito mais abertas a questionar os processos de legitimação que levaram certas instituições,
as vezes encaradas como dadas ou imutáveis, a se consolidarem como tal (GUZZINI, 2005, p.
507-8). Esse argumento é carregado de grande significado: as ideias e identidades seriam, na
visão construtivista, mais importantes para determinar a natureza de relações internacionais
do que a balança de poder ou distribuição de capacidades. Para melhor exemplificar estas
questões, duas variáveis específicas serão trazidas à tona: a visão de imperialismo e
colonialismo; e a problemática em torno de raça (CHOWDHRY; NAIR, 2014), ambos os
pontos muito próximos do tema da nação e nacionalismo e de forma alguma auto-excludentes.
Essas características estão interligadas entre si: os conceitos de raça estão intimamente
conectados ao imperialismo, que por sua vez raramente aparecerá separado do colonialismo
(CHATTERJEE, 1993).
O argumento levantado na citação acima deixa clara a posição da questão étnica dentro das
estruturas de poder, e as visões primordialistas e naturalistas do nacionalismo dão nuances de
protagonismo à etnicidade, característica identitária fundamental. Porém, como já foi dito
anteriormente e aproveitando o movimento iniciado pelos construtivistas, é possível
extrapolar a visão essencialmente racial e adicionar componentes mais abrangentes do ponto
de vista nacional, sem necessariamente perder de vista a estrutura engessada das relações
assimétricas. A hierarquia que se inicia baseada em argumentos da natureza evolui e se
sofistica, mas não abandona seu apreço pela lógica de exclusão. Historicamente, as posições
de privilégio conquistadas pelas aristocracias europeias permitiram o controle de bens e
recursos que garantiram um desenvolvimento desigual. O trabalho forçado de indígenas e
estrangeiros lastreou o enriquecimento das elites a nível global, destarte sua nacionalidade.
Entretanto, a primeira fronteira é sempre essa, formada entre a metrópole e a colônia; a
79
Isso posto, já há material suficiente para se trabalhar a análise secionada citada acima, ou seja,
a atuação do nacionalismo como ferramenta de emancipação e/ou manutenção dentro de um
sistema internacional moldado pela influência conceitual.
extrapolem. Para os objetivos deste estudo as linhas mais visíveis são as nacionais. Ou seja:
“(...) states are the product of long histories of arduous social construction. On the other hand,
they exist only in formal relation to each other, and the ways in which they conduct their
relations are also formally limited” (ONUF, 2002, p. 24). Por estar na base institucional da
sociedade internacional, a nacionalidade perpassa e é atravessada por diversas outras normas e
regras, o que só aumenta o nível de complexidade das relações internacionais.
O nacionalismo possui pouco ou nenhum compromisso com essa barreira e seu emprego se
aproveita de sua capacidade de transitar e criar “mundos”, através de um quebra-cabeças de
mitos e fatos que dão forma a realidades inventadas. Estas realidades contribuem de maneira
sensível para a formação de uma normatividade específica, que permite, através de
construções sociais mutuamente exclusivas, desenhar barreiras às relações universais, naturais
nas visões de Locke e Grotius. Essa diferenciação social permite que estruturas hierárquicas
se formem, relegando às assimetrias de capacidades e poder o dever de administrar as relações
internacionais. O mundo das RI é um mundo de poder, e suas diversas nuances desenham um
círculo virtuoso da produção e reprodução das instituições que controlam estas relações. Indo
além da matéria, percebe-se que o poder é uma narrativa socialmente construída e fortalecida
a partir das relações sociais, que, incluídas na estrutura da nacionalidade, garantem sua
existência.
É importante ressaltar que, quando se parte do princípio que a nação é uma das bases do
mundo, há um flerte com o perigo de cair em determinismo, mas não do tipo forte o suficiente
para que se perca o norte metodológico. Não há assunção de irreversibilidade, não há certezas
sobre o fato. Há sim um questionamento que busca, antes de qualquer coisa, responder se, ao
se manter a lógica de organização mundial com base na nação, existe espaço para mudança
real11. Todos os discursos são contestáveis (CHOWDHRY & NAIR, 2014, p. 8) e a própria
teoria se colocaria como ferramenta de resistência a discursos dominantes, justamente por ser
11
Esta afirmação se baseia no extrato a seguir: “(...) teórico não busca separar-se do objeto que estuda, não
atribui a seus próprios procedimentos investigativos uma postura desinteressada e neutra, limitada à mera
quantificação, classificação e comparação de fenômenos observáveis. De saída, o olhar do observador está
inserido no próprio objeto estudado, a sociedade, e, com consciência do lugar que nela ocupa, a teoria lida de
forma reflexiva com os próprios contextos em que é formulada e aplicada. A teoria também é um “sujeito” do
momento histórico dentro de uma totalidade social que o comportamento crítico pretende transformar” (MELO,
2011, p. 252).
81
capaz de construir uma espécie de contra-narrativa. É com essa ideia em mente que se inicia a
construção do próximo tópico.
4.1.2 Emancipação
Para entender a função do nacionalismo como ferramenta de libertação optou-se por recorrer
às teorias críticas, justamente por seu apego ao tema da emancipação. Afinal de contas, a
orientação para a emancipação é o primeiro princípio fundamental das teorias críticas
(NOBRE, 2004), que se dedicam “(...) à forma como a ordem existente surgiu e às suas
possibilidades de transformação” (SILVA, 2005, p. 263). Para isso, serão necessários dois
esforços. O primeiro diz respeito à conceituação do que poderia ser configurado como
emancipação com base neste referencial teórico. Uma vez definido este ponto, seria possível
partir para o próximo, e analisar se o nacionalismo teria ou não capacidade de gerar o tipo de
ruptura social necessária para se caracterizar como elemento emancipatório. As teorias
críticas se adequam a esta empreitada não apenas porque geram rico material conceitual
acerca da emancipação, mas também por tratar, através da práxis emancipatória (MELO,
2011, p. 249-250), das correlações e processos externos que contribuem e atrapalham sua
concretização. Essa relação entre teoria e prática, característica das visões de mundo advindas
do marxismo, é o ponto de partida ideal para conceituar o que seria emancipação e analisar se
o nacionalismo possui a força necessária para atingir este objetivo. No entanto, vale a pena
chamar a atenção, já neste momento inicial, para a proximidade desta visão com a trazida
acima: a relação entre teoria e prática presente nas teorias críticas de Horkheimer, Habermas,
Cox e Linklater, não está tão distante do construtivismo de Onuf quanto uma leitura mais
superficial poderia sugerir12.
Não seria errado afirmar que a visão de mundo marxista carrega verdade. As relações sociais
de fato se baseiam no modo de produção capitalista, e não há motivo para buscar fugir disso.
Mas o automatismo da relação entre infraestrutura e superestrutura (característica dos
primeiros trabalhos marxistas e de toda a teoria de Marx), bem como foco excessivo no papel
da luta de classes e mais especificamente do potencial revolucionário do proletariado, acaba
por causar certo nível de miopia a essa corrente, além de um bom grau de discordâncias
internas. Wallerstein (2007, p. 70), por exemplo, avalia que as sucessivas derrotas dos
projetos da Segunda e Terceira Internacionais estão mais ligadas à burocracia do que às
relações de trabalho. É claro que uma coisa acaba gerando a outra, mas ao fim das contas,
como defende Lenin, em muitos países a burguesia está tão aparelhada, que seria impossível
atravessar para o lado da emancipação sem recorrer à revolução. Enfim, capitalismo não
significaria automaticamente dominação, bem como um governo proletário não significaria
emancipação. A crítica marxista levanta o ponto principal para a compreensão de
emancipação: a necessidade de romper as amarras da dominação, afinal de contas, esse é o
significado etimológico do verbo. Mas seria verdadeiro afirmar que o cadeado só poder
atender pelo nome de capitalismo?
13
Isso se justificaria pela natureza da teoria marxiana. Esta doutrina enxerga os embates de classe como
elementos capazes de dar mais fôlego ao ser social do que qualquer outro. Por este mesmo motivo, os marxistas
não usaram muito do seu tempo em leituras nacionalistas. À medida que o capitalismo se globalizava, também a
burguesia ganhava nuances internacionalistas. Se a exploração é global, a luta por emancipação também deveria
ser: a nação estaria subordinada à classe seja ela opressora ou oprimida. O proletariado do mundo iria se unir sob
a égide da revolução, independente de nacionalidade.
83
Horkheimer (2002), figura mais influente da Escola de Frankfurt (SILVA, 2005, p. 252) e o
primeiro a se utilizar do termo “Teoria Crítica”1415, se propõe a tratar essa miopia quando
sugere uma revisão da teoria como um todo. Seu trabalho é um monumento importante para
este texto, pois inaugura a possibilidade de recorrer a outras questões que iriam além do
capitalismo quando se trata de dominação e, por conseguinte, emancipação. Num primeiro
momento, Horkheimer se preocupa em desmistificar ou simplesmente separar a metodologia
das ciências sociais da racionalidade instrumental das ciências naturais modernas,
simplesmente porque estes dois mundos estão dissociados em sua raiz. É nesse momento que
se propõe uma ruptura epistemológica, visando empregar a práxis emancipatória em seu nível
mais absoluto: a partir do momento em que se percebe que o afastamento entre o cientista e o
objeto é nocivo ao desenvolvimento das ciências sociais, Horkheimer também percebe como
esse movimento se coloca de maneira contrária à emancipação. Emancipação estaria,
portanto, vinculada à capacidade de perceber o mundo a partir de uma lente crítica, levando
em consideração a historicidade dos fatos analisados, nunca próxima da tentativa ascética do
positivismo. A teoria crítica de Horkheimer seria radical na recusa da doutrina positivista
axiologicamente neutra, afirmando que a proximidade com esta corrente significaria um
movimento apologético aos objetivos institucionais da sociedade industrial, reduzindo “(...) a
reflexão teórica a um humilde criado (...)” (HORKHEIMER, 1977 apud LÖWY, 2009, p.
168). “A percepção de que teorias estão fixadas nessas estruturas permite que os teóricos
críticos reflitam sobre os interesses atendidos por uma teoria particular” (SILVA, 2005, p.
253). A teoria teria um papel tanto na identificação quanto na afirmação e atuação das
políticas e ações necessárias para a emancipação.
determinado povo. Ou seja, aqui se fala de um tipo específico de luta por liberdade: indo
além, de um tipo específico de emancipação16. Há uma clara vinculação com o capitalismo e
o mundo moderno, mesmo na teoria de Horkheimer, que menciona a “sociedade industrial”,
mas já é possível perceber um movimento de flexibilização no sentido de incluir outras
nuances a estas formas de dominação mais evidenciadas pelas relações de classe.
16
Este último ponto, por exemplo, poderia abrir espaço para discussões sobre separatismos, que por mais que
possuam uma natureza disruptiva, não se pode dizer que carregam, automaticamente, motivações essencialmente
emancipatórias per se. Nestes casos, há um desejo de se libertar/separar, mas não necessariamente porque a outra
parte oprime os portadores do discurso nacional, sendo o contrário até mesmo mais comum (SNYDER, 1954;
SMITH, 1983, 2001; BREUILLY, 1985; HOBSBAWM; RANGER, 2008).
85
também na sua cruzada interna pelo poder e contra a intransigência (FERRO, 1984, p. 56).
Em ambos os casos, as estruturas sociais foram drasticamente alteradas, e um sulco ideológico
foi aberto pelos gritos dos revolucionários que tomaram Paris e São Petersburgo. Se suas
origens não remontam ao mesmo berço, seu final foi idêntico: redesenho do ordenamento
social com base em pressupostos frescos, nunca antes testados. De um lado a democracia; do
outro, o socialismo. É a oficialização da obsolescência da velha política em detrimento da
nova, um discurso muito utilizado, mas raramente alcançado em sua essência original,
entretanto.
A Teoria Crítica permite avançar mais nas análises destes elementos de dominação,
contribuindo para a percepção do papel do conhecimento científico nesta balança. Mais uma
vez, fala-se da mistura entre os mundos que Onuf (2002) se esforçou tanto para separar: os
interesses impõem grande influência sobre a produção de conhecimento e este, por sua vez,
possui papel fundamental na construção do(s) mundo(s). Jürgen Habermas (1993) assim como
Andrew Linklater (1996) trabalharam no sentido de diminuir estas distâncias quando
demonstram preocupação em compreender as relações entre ideias, valores, ideologias e
poder material, fortalecendo o ponto que busca defender aqui. Em outras palavras, este novo
momento da Teoria Crítica inaugura a assunção de que conceitos e ideias podem moldar
realidades materiais e se transmudar em estruturas de poder, gerando, por conseguinte,
relações assimétricas e potencialmente exploratórias. Este movimento de aproximação com
um debate mais ao nível ideacional significa um abandono do paradigma produtivista advindo
das primeiras correntes críticas, como bem defendem Melo (2011) e Devetak (1995), e
colaboram para uma compreensão mais abrangente pois não abrem mão do componente
material da dominação imperialista, apenas adicionam o nível ideológico tão caro à
compreensão das relações coloniais. Dessa forma é possível perceber que se abre espaço para
uma nova teoria, que prevê a necessidade de abandonar a rigidez e assumir a existência de
outras maneiras de dominação, não necessariamente amparadas nas relações de exploração
por meio do trabalho, mas também em outros princípios de estratificação social, dentre eles, a
nacionalidade17 (COHEN, 1982, p. 193).
17
Mas também gênero, etnia, status, idade etc.
86
próprias teorias de base marxista, que ganham novas características. Essa defesa permite
sugerir que o proletariado já não seria mais a única força detentora das ferramentas
necessárias para iniciar a revolução. É uma clara aproximação com o problema evidenciado
por Wallerstein e Lenin, mas sem configurar um abandono total do materialismo: mesmo
mantendo uma posição iminentemente materialista, a interdisciplinaridade de Horkheimer
abre um pressuposto para que se encaixem outras peças nesta dialética social, peças estas que
poderiam facilmente trazer a nacionalidade consigo. Mesmo que não necessariamente da
mesma forma que os autores pós-coloniais trazidos neste trabalho, não há como negar certa
aproximação entre a ideia de imperialismo em Lenin (que percebe o imperialismo como uma
fase dentro do processo de desenvolvimento do capitalismo) e a pressão e hierarquização
formada pelas relações coloniais. A questão é que uma tem características bastante duras e
visíveis, enquanto a outra está mais vinculada a questões de discurso, sem necessariamente
abandonar a matéria.
Trazendo de volta outro pressuposto deste trabalho, afirma-se que a modernidade inaugura um
período novo nesta luta por emancipação que, se se parece com os exemplos trazidos da
antiguidade, se difere dos mesmos quanto à intensidade da atuação ideológica e conceitual. A
práxis revolucionária se faz presente no dia-a-dia das lutas emancipatórias, travadas em três
campos: ideológico, antissistêmico e acadêmico, todos relacionados e interligados18
(WALLERSTEIN, 2007, p. 60). Como defende Robert Cox (1995), a teoria é o conjunto de
sinapses necessárias para traduzir a realidade nas nossas mentes, mas não se presta apenas a
esse papel: a teoria também orienta a mente no sentido de construir um ideal. Logo, Cox entra
no vácuo do trabalho de Horkheimer e se afasta das teorias tradicionais (HORKHEIMER,
2002) ou problem-solving (COX, 1995), assumindo o papel do conhecimento teórico na
reprodução e transformação social. A teoria serve para compreender a realidade, mas também
serve como molde e produto para a construção de novos mundos.
Dessa forma, os limites da ação individual e/ou coletiva são produtos da teoria
(e ditados pelos eventos históricos). (...) A experiência histórica produz a
ontologia das pessoas e incorpora-se ao mundo que estas constroem. É assim,
portanto, que o entendimento que temos do Estado, desprovido de existência
18
“The political history of the modern world-system in the nineteenth and twentieth centuries became the history
of a debate about the line that divides the included from the excluded, but this debate was occuring whithin the
framework of a geoculture that proclaimed the inclusion of all as the definition of the good society. This political
dilemma was fought out in three different arenas – the ideologies, the antisystemic movements, and the social
sciences. These arenas seemed to be separate. They claimed they were separate. But in fact, they were intimately
linked the one with the others” (WALLERSTEIN, 2007, p. 60).
87
A interligação entre conceito e prática é o que separa a luta emancipatória moderna das
anteriores, pois é justamente o caráter ideológico que permite precisar o nacionalismo como
ferramenta polivalente de convencimento. Levando em consideração os numerosos grupos
sociais e seus pensamentos e estratégias de longo prazo, a ideologia se transforma no
elemento propulsor da mudança. Quanto a isso ainda há mais duas coisas a se pontuar.
A primeira é que a menção de numerosos grupos sociais, não foi feita por acaso. A hipérbole
traz consigo a necessidade de abandonar a luta de classes como fator primordial da contenda
entre manutenção e emancipação e aceitar a existência de grupos competidores em diversas
esferas, inclusive a nacional. Mas para além disso, também se faz necessário aceitar que o
nacionalismo se configura como ideologia instrumentalizável, e por isso pode ser encaixado
numa retórica materialista ou identitária com a mesma facilidade (SMITH, 2001; 2003). A
Primavera dos Povos, um período de revoluções nacionalistas e guerras de ajuste (WATSON,
2002; HOBSBAWM, 1996c, 132-145), representa essa junção, já que a classe média
insatisfeita com o sistema de Metternich se insurge, se apropriando do discurso nacionalista
para ativar as massas no sentido da revolução. Assim como em outros momentos da história
88
O “novo”, como pontua Hobsbawm (1995) em diversos momentos de seu A Era dos
Extremos, também é representado por esta mudança. O nacionalismo critica e participa das
convulsões catabólicas que transfiguraram os mundos absolutistas e anda na esteira da
construção do mundo liberal do século XIX, mas ao mesmo tempo dá forma a um sistema
internacional único e vinculado à nacionalidade.
Quando se revisita a literatura da Teoria Crítica trazida poucas linhas acima, se percebe a
aplicação do nacionalismo como ferramenta emancipatória pois exibe condições de questionar
bases sociais injustas e trabalhar no sentido de alterá-las no mais basilar dos níveis. O Estado
dinástico organizado em torno de um príncipe, do território, do idioma, da religião, passa
agora a ser organizado pela nacionalidade e cidadania. O nacionalismo é seu paladino e lutou
por mudança e emancipação, visando garantir a autodeterminação de povos nacionalmente
organizados. Esta bandeira foi hasteada em diversos lugares do mundo, construindo uma
realidade que possui espaço privilegiado para a nação. Logo, é possível adicionar também este
argumento à afirmação de que a nacionalidade é um dos princípios basilares deste sistema
internacional. Segundo a o próprio enfoque da Teoria Crítica, seria necessário quebrar essa
base para que a emancipação acontecesse, o que impele o raciocínio a um impasse.
A teoria crítica prevê a possibilidade de mudança de qualquer realidade e traz essa mesma
possibilidade no centro de sua epistemologia (LINKLATER, 2007): uma vez mais, não existe
perenidade na vida social. No entanto, o atual estágio do sistema internacional não vê no
nacionalismo seu rival, pois os mesmos advogam o fortalecimento do mesmo conceito, qual
seja, a nação. Outrossim, o nacionalismo estaria andando ao lado do conceito de nação, e não
de maneira contrária a ele, impossibilitando que qualquer movimento emancipatório se
consolidasse. Robert Cox defende esse pressuposto quando afirma que “O mundo é visto de
uma posição definida em termos de nação ou classe social” (1995, p. 87), e certamente não é
o único cientista a verbalizar este pensamento. O nacionalismo, como expressão política da
nacionalidade e identidade, possui grande relevância para a libertação do domínio
colonial/imperial; talvez mesmo para o reposicionamento dentro do sistema-mundo
(WALLERSTEIN, 2007), mas nunca mais terá a mesma capacidade que teve quando das
revoluções dos séculos XVII e XVIII. O período do nacionalismo como ferramenta
emancipatória acabou.
4.1.3 Manutenção
cidadania (KOHN, 1962, p.16; SMITH, 2000). Na esteira destas convulsões sociais, surge um
contra-movimento, que defendia que os ideias da Revolução seriam algo como um desastre
social completo (WALLERSTEIN, 2007, p. 61). Essencialmente, os conservadores seriam,
pelos anos seguintes, reacionários, contrarrevolucionários, que defenderiam o retorno às
tradições e instituições anteriores a uma ruptura abrupta da ordem de coisas (Ibid.). Se faz
perceber o nascimento de uma ideologia conservadora, diretamente oposta à ascensão do
nacionalismo e, na visão de Löwy (2009), já irmanada com o positivismo.
O que Wallerstein (2007) parece deixar passar é a natureza epistemológica dos conflitos
ideológicos que se cristalizam nos séculos XVIII e XIX, coisa que Löwy (2009) não faz. O
último consegue perceber o papel do positivismo como ferramenta de libertação contra os
dogmas da Igreja Católica, para logo mais se desenhar como a expressão da ciência pura e
inquestionável, movimento que o autor chama de doutrina da neutralidade axiológica (Ibid. p.
19). Essa visão de mundo passaria de utopia para ideologia a partir dos trabalhos de Augusto
Comte, que sistematizam a ideia no positivismo propriamente dito, que influenciará toda uma
corrente de pensamento dentro das ciências sociais por diversos anos à fio. Comte tenta se
distanciar dos preconceitos revolucionários de seus mestres e precursores e, visando ao
fortalecimento das ideias de homogeneidade epistemológica, inaugura uma nova fase, onde
“(...) o otimismo generoso do Iluminismo congelara-se numa inquietude ansiosa para com a
estabilidade social” (LICHTHEIM, 1965, p. 169 apud LÖWY, 2009, p. 25-6). Inicialmente
ligada à revolução social, a ideologia positivista passa a tentar manter o mundo estacionado,
fazendo valer suas regras.
Seria possível inferir que a ideologia positivista demonstra uma nuance mutável, que poderia
estar presente em outras visões de mundo e, levando em consideração que o nacionalismo se
configura como um movimento político-ideológico (SMITH, 2000, p. 9), seria possível
compreender, a partir do debate promovido por Löwy (2009), como o mesmo poderia ser
usado num movimento de emancipação e redesenho da realidade para imediatamente se
transformar num bastião do conservadorismo. As lutas emancipatórias que posicionaram a
nação como elemento formador do sistema internacional deram corpo a uma ideologia
contrária ao estado de coisas, mas o mesmo não poderia ocorrer uma vez que a nova realidade
estivesse consolidada. É importante frisar que este movimento não necessariamente
descaracteriza a base epistemológica da ideologia, pois muda apenas seu motivo de ser. A
93
questão não diz respeito à “qualidade” dos axiomas, mas à sua instrumentalização por
determinadas elites políticas visando à consolidação de uma realidade.
A junção entre a ideia de Löwy (2009) e a realidade objetiva e material do mundo das
relações internacionais, se dá quando se pensa que, mesmo que normalmente posicionadas de
maneira avessa a movimentos emancipatórios, as classes ou grupos dominantes tradicionais
também podem ser reinventadas (HOBSBAWM; RANGER, 2008), gerando possibilidade
para que, em situações específicas, desempenhem papel crucial em movimentos nacionalistas
(BREUILLY, 1985, p. 307). A lógica e a leitura da Teoria Crítica levam a crer que estes
movimentos visariam apenas garantir ou aumentar os espólios das relações sociais perpetradas
por aquela elite, muito raramente significando emancipação per se. Em outras palavras, fala-
se de uma tentativa de manutenção de privilégios a partir da instrumentalização do discurso
nacional, que permite gerar a exclusão necessária com mínimo esforço. Exemplos disso
podem ser retirados do Japão feudal, onde a nobreza tradicional foi crucial durante a
restauração Meiji, mas também em Estados tradicionais (como a Prússia do século XVIII),
grupos de elite colonial (como os Fulani, do norte da Nigéria) ou mesmo quando a autoridade
religiosa desempenha papel central na política local e se alia ao discurso nacional para
expulsar uma visão de mundo adversária (como ocorreu nos movimentos nacionalistas da
Irlanda) (Ibid. P. 307-312).
Isso não se dá sem conflitos, é verdade, como escreve Étienne Balibar (1990), que
compreende a nação como um palco de disputas sociais contínuas, e demonstra um certo
fascínio pela sua capacidade de se manter e reproduzir apesar dos embates em seu interior
(Ibid., p. 334). Um dos motivos para essa capacidade é o que já foi defendido por Renan
(2000): os cotidianos testes de pertencimento, impostos ao indivíduo diariamente por uma
série de estímulos externos. Michael Billig (1995) define que estes testes são mais
sistemáticos do que parecem, e é por isso que seu texto Banal Nationalism é tão relevante
para compreender o nacionalismo como ferramenta de manutenção da ordem.
Como não poderia deixar de ser abordado, o trabalho de Billig também trata do papel dos
cientistas sociais para a manutenção da nação como elemento formador do mundo do sistema
internacional. Conforme definido por Craig Calhoun (1993, p. 214), muito do discurso do
nacionalismo está profundamente entranhado no cotidiano de qualquer cidadão; fugir disso
seria praticamente impossível. Sugerindo que a academia teria tanto a capacidade de projetar
quanto naturalizar o nacionalismo, o autor estabelece uma crítica àqueles que, em primeiro
lugar, afastam a nacionalidade e nacionalismo do debate interno à sua realidade; bem como
àqueles que reservam ao nacionalismo uma posição de naturalidade, inerente às necessidades
humanas. Essa segunda assertiva traz consigo uma possibilidade de problematização muito
relevante para Billig (1995), que a enxerga como última fronteira da falta de escrúpulos do
nacionalismo banal: por se tratar de uma expressão tão endêmica, este “nacionalismo de
manutenção” não apenas deixaria de ser considerado nacionalismo, como simplesmente não
mereceria espaço de estudo e questionamento, sendo considerado necessário e válido, uma
espécie de patriotismo. O nacionalismo propriamente dito estaria fadado ao selo da
irracionalidade (Ibid. p. 17)19.
The 1980s were unsettled times in the social sciences. The positivist
quest for reliable, cumulative knowledge about the world came under
assault, along with the positivist assumption that, deep down, nature
and society have the same “nature.” Critics held positivist science,
whether applied to nature or society, to be a central feature of what
they called “the Enlightenment project” or, indeed, “modernity.”
Looking back, we can see that this assault did not come out of the
blue. (ONUF, 2002, p. 27)
19
Tanto Billig (1995) quanto Calhoun (1993) defendem a necessidade de honestidade por parte do analista.
Enquanto o primeiro admite que torce para o time local, e lê as notícias de seu país com mais afinco, o segundo
procura defender que é necessário levar as paixões nacionais em conta quando se busca fazer ciência
(CALHOUN, 1993, p. 214).
96
A capacidade de criação de mundos a partir de conceitos positivistas pode ter sido relevante
para que o nacionalismo adquirisse nuances de naturalidade em seus primeiros paradigmas,
praticamente justificando as diferenças entre grupos sociais em função de características
vistas como inquestionáveis, justamente por serem advindas da natureza. A nação foi, então,
posicionada numa redoma impenetrável, protegida por uma espessa camada de fumaça
epistemológica, incapacitando ou ao menos dificultando muito o trabalho daqueles que
buscam sua problematização. Conforme explicitado no início do capítulo, a construção do
mundo com base em ideias passa pela necessidade de reificar este discurso imaterial num
construto normativo. As instituições desempenhariam papel crucial no fortalecimento dos
processos e bases necessárias para a manutenção de uma determinada ordem estabelecida.
Abrindo o espectro da discussão para um campo mais crítico, seria possível dizer que
instituições também podem colaborar para iniciar um processo de ruptura interna capaz de
modificar uma determinada ordem. Ao transcender as relações normativas do cenário atual,
uma instituição pautada na construção de um novo mundo pode sugerir a necessidade de
rompimento de bases antigas. Há uma visão que defende o avanço de uma série de novas
ideias, pautadas numa espécie de universalismo, que seria capaz de corroer as barreiras
nacionais. A globalização econômica, a integração regional, o cosmopolitismo seriam
97
expressões desta visão, pois este conjunto conceitual teria a capacidade de questionar as
barreiras nacionais e fazer avançar um discurso mais liberal em diversas instâncias.
Empurrando o argumento ao limite, seria possível afirmar que a globalização, por exemplo,
veria na nação uma barreira tanto conceitual quanto material. Nesse sentido, se se faz avançar
este discurso, se afirma que a soberania nacional do Estado não seria ameaçada por tanques
ou mísseis, mas por elementos que escapam à sua jurisdição de maneira espontânea
(ARCHIBUGI, 2000); a primazia da nação se esvairia não por ter sido superada ou suprimida
por outra, mais forte ou avançada, mas pelo cosmopolitismo das questões universais.
No entanto, mesmo algo tão etéreo quanto isso pode se prender no emaranhado institucional
do mundo das relações internacionais, e se fazer menor e menos importante do que o
componente nacional. Smith (2001), por exemplo, não concorda que a nação esteja perdendo
seu espaço em função da globalização. Para isso, se apoia em Giddens (1991) para defender
que a interdependência econômica (levada à cabo pelas corporações transnacionais) e a
comunicação de massa (permitida pelo advento da internet e grandes conglomerados
midiáticos) são responsáveis por um movimento aparentemente paradoxal: a
“internacionalização do nacionalismo” (SMITH, 2001, p. 137-9). O pluralismo político-
cultural da era da globalização traz como desafio a necessidade de salientar as exclusividades
de cada nação: seu idioma, seus costumes, sua história. Longe de diminuir a influência do
nacionalismo, de dissolver a matéria nacional, os processos de globalização acabam por
disseminar a influência destas instituições na constituição do mundo das relações
internacionais. Em verdade, a globalização encoraja a nação a manter e se mostrar cada vez
mais distinta (SMITH, 1995).
Essa visão não poderia estar mais próxima da realidade atual, onde se vê um questionamento
da integração regional via União Europeia e MERCOSUL, bem como um reposicionamento
protecionista de grandes economias. Assim como o capitalismo parece recorrer ao Estado em
momentos de crise, aparentemente o sistema internacional recorre à nação para se manter
vivo, destarte o nível de globalização e interdependência. A globalização não se constituiria
necessariamente na força capaz de questionar o conceito de nação em nível estrutural, estando
a alternativa mais próxima de movimentos que questionem a construção da identidade e
posicionamento da nação como fator primordial neste elemento. Os movimentos ecológicos e
de gênero, para citar alguns exemplos, possuem mais proximidade com o que Smith (2001)
entende ser necessário para questionar a nação, justamente porque os mesmos não a enxergam
98
O círculo virtuoso se fecha neste ponto. O nacionalismo pode ter tido influência direta nos
movimentos de libertação de diversos povos, e está ligado à auto-determinação e libertação da
dominação colonial. Mas este mesmo nacionalismo também é utilizado por elites locais como
discurso para manutenção de suas estruturas opressoras, baseados do signo da nação,
nacionalidade, identidade. Mais ainda, o nacionalismo faz avançar um ideal de nacionalidade
como base da sociedade, algo que raramente é questionado.
The world of states has a remarkable capacity, through its agents and through
its effect on observers, to reproduce itself in a form that has changed very
little over the last two centuries. (...) world that would encompass most such
relations would have to relegate states to the background. A variety of other
institutions would come to the fore, and the number of agents whose world it
is would increase dramatically (ONUF, 2002, p. 25).
Mas agora se abre espaço para o debate final deste texto, vinculado justamente à percepção
produzida a partir do cruzamento entre as duas seções precedentes. Fica claro que o
nacionalismo é uma ferramenta de manutenção de realidades; é historicamente comprovado
que o mesmo foi empregado em lutas de libertação colonial, no entanto, como se discutiu
acima, a emancipação produzida pelo nacionalismo é parcial, e forma novos agentes fadados à
inclusão no mundo levando em consideração uma estrutura basilar nacional. O nacionalismo
seria, portanto, uma ferramenta de reprodução da nação e nacionalidade, seja quando
posicionado no discurso da manutenção, seja como combustível para a emancipação.
A discussão acima evidenciou alguns pontos acerca da relevância da nação para a construção
do sistema internacional bem como do nacionalismo como forma de movimento político-
99
De maneira geral, seria exagero afirmar que o nacionalismo perde sua utilidade quando
comparado a outras iniciativas emancipatórias que, de fato, geraram libertação dos aparatos
opressores que os constrangiam. A verdade é que o produto das lutas de emancipação colonial
foi relativamente positivo do ponto de vista normativo, ao menos incluindo determinados
atores, antes totalmente invisíveis, no mundo das relações internacionais. Mesmo que
subordinados a determinados interesses, estes novos atores possuem voz e agência, sendo
responsáveis pelos direcionamentos de suas políticas. Em outras palavras, uma vez
emancipados do ponto de vista colonial, os novos Estados precisam se adequar à lógica do
sistema internacional, baseado na nacionalidade e em tantos outros quesitos da modernidade,
mas também ganham a possibilidade de questionar todos estes pressupostos de uma posição
mais privilegiada do que a anterior.
Por outro lado, os nacionalismos reacionários não precisam ser vistos de maneira negativa,
porque podem significar uma saída para a opressão sistêmica encampada pelo avanço da
ocidentalização. Ora, mesmo que pautado em conceitos de nacionalidade importados do
ocidente, seria possível questionar a homogeneização forçada liderada pelas potências
ocidentais e sugerir a construção de uma realidade diferente da que está sendo imposta. Ou
seja, esta luta nacional estaria vinculada à tentativa de manter vivo um conjunto de signos
compartilhados, formadores de uma identidade exclusiva a um povo, ameaçada pelo modelo
de desenvolvimento que embasa o sistema internacional.
A modernidade solapa o espírito da nação pura, anterior muitas vezes à nação nos moldes
ocidentais politizando e instrumentalizando questões identitárias, construindo mitos
fundadores, imaginando comunidades. Esse movimento estaria sempre ligado a um interesse
político, normalmente vinculado à necessidade de controle do aparato estatal. Portanto uma
luta nacionalista deveria ser, em seu âmago, também uma luta contra a modernidade, pois
apenas ao se questionar seus pressupostos seria possível sugerir a criação de uma nova
realidade.
101
5. CONCLUSÃO
As últimas palavras deste texto serão curtas e objetivas. Ao longo de muitas páginas
defendeu-se a importância dos debates menos lineares frente à exposição dos temas de acordo
com sua importância para a construção do conceito de nacionalismo, mas esse não será o caso
agora. Aqui deve-se retornar ao início, fazendo menção àquilo que se buscava alcançar e
descobrir com esta pesquisa, e comparar essas intenções com aquilo que de fato foi
descoberto e alcançado. Se procurava entender de que maneira o nacionalismo agiu no sentido
de moldar a estrutura do sistema internacional, e qual seria a sua contribuição para possíveis
reformas no mesmo, no sentido de diminuir as assimetrias entre Estados, ao menos no sentido
normativo.
Logo nos primeiros momentos da pesquisa foi possível verificar que o nacionalismo não
possui quase nada de único, seja em sua aplicação em forma de movimento político, seja em
sua definição conceitual. Em uma palavra, não há consenso entre os principais autores sobre
de que maneira este fenômeno social se manifesta. Isso deve ter ficado claro nas explicações
trazidas ao longo do trabalho, pois mesmo buscando atingir um cerne conceitual, quase nunca
era possível trazer à tona visões totalmente complementares. O debate sobre o nacionalismo é
rico e contraditório, pouco conciliatório, tangencial para a maioria dos autores, e altamente
problematizado para aqueles que o tomam como centro da sua pesquisa.
Nesse sentido, o que inicialmente era uma hipótese do trabalho acabou se transformando em
premissa, que por sua vez abriu espaço para novas hipóteses ou para o enriquecimento (do
ponto de vista do questionamento científico) de tantas outras. Estabeleceu-se assim que o
nacionalismo possuiria, grosso modo, duas funções, que foram metaforicamente definidas
como faces, e que conseguiriam, em função do caráter generalista atribuído a elas, resumir a
atuação prática deste conceito ao longo dos séculos: mesmo quando
revolucionário/anticolonial, o nacionalismo garantiria continuidade de uma estrutura
opressora, pois mantém a lógica basilar do sistema inalterada: sua organização nacional.
Essa premissa foi construída tomando o material conceitual trazido nos textos centrais
utilizados neste trabalho, que não se preocupavam em questionar se o nacionalismo é
intrinsecamente reacionário ou revolucionário, pois já tomavam como certa a maleabilidade
deste conceito. Foi a busca pela sofisticação da pergunta-problema que gerou a necessidade
da transformação da hipótese em premissa, e da sugestão de novas hipóteses que tratavam
102
agora de tentar perceber os efeitos dessa maleabilidade e função dupla dos movimentos
nacionalistas. O interesse central passaria a ser não o de provar se o nacionalismo responde a
um tipo específico de interesse, mas como a flexibilidade de sua resposta pode ter resultados
(aparentemente) diferentes no curto prazo, mas essencialmente similares no longo prazo. A
exposição desta premissa às bases do sistema internacional cria uma pergunta-problema um
pouco mais elaborada, preocupada em verificar o potencial de geração de continuidade
através da reprodução de um elemento estrutural, qual seja, a fortaleza das instituições
nacionais.
Naturalmente, essa busca por problematização no nível teórico fez surgir uma série de
possiblidades e caminhos, dentre eles a via do debate sobre o nacionalismo metodológico.
Basicamente, existia a possibilidade de trabalhar uma esfera mais crítica, abrindo espaço para
questionamentos acerca da continuidade e reprodução de um tipo específico de nacionalismo
através da pesquisa científica. Seria algo como buscar compreender de que maneira seria
possível estudar nacionalismo sem necessariamente reproduzi-lo. Infelizmente, muitas
escolhas e recortes precisaram ser realizados, e esse foi um tema pouco explorado no trabalho,
por dois motivos principais. O primeiro, e talvez mais focado na parcimônia do que numa
escolha essencialmente metodológica, diz respeito às restrições de tempo e espaço para
realizar desconstruções e problematizações acerca de todos os temas identificados como
relevantes para o nacionalismo. A avenida discursiva que se abriria é gigantesca, pois não
seria possível desconstruir e questionar o nacionalismo sem levar em conta o Estado, a nação,
o indivíduo, diversos elementos estruturais objetivos (instituições e regimes internacionais,
organizações internacionais, o modo de produção capitalista etc.), mas também uma série de
questões mais voltadas para o subconsciente humano, campo que também possui munição
conceitual para contribuir na compreensão do poder do nacionalismo e, mais especificamente,
do sentimento nacional, ao longo dos anos.
O segundo ponto, este sim mais pautado numa decisão teórico-metodológica, é formado pela
visão clara do objetivo da pesquisa: aqui se buscava desenhar o nacionalismo “como é”, em
sua atual fase evolutiva, sem se preocupar em desconstruí-lo, questioná-lo ou valorá-lo. É
verdade que esse assunto foi levantando em alguns momentos, principalmente no primeiro
capítulo, mas essas menções estariam muito distantes de uma problematização séria e
abrangente. Essa escolha se deu principalmente porque só seria possível compreender de que
maneira o nacionalismo influencia na reprodução das estruturas de opressão do sistema
internacional se o mesmo fosse tratado a partir de sua expressão mais objetiva. Por isso se deu
103
Seguindo neste ponto, também foi por este motivo que muitos autores do mundo colonial
foram deixados de lado, e os selecionados não foram trabalhados de maneira aprofundada.
Pensadores brasileiros e indianos, por exemplo, até foram mencionados, mas a ênfase foi dada
aos pensadores europeus, notadamente os britânicos, centrais no estudo do nacionalismo na
contemporaneidade. Mesmo as visões anticoloniais trazidas no trabalho eram fortemente
inspiradas na mesma série de pressupostos trabalhados desde o início do texto, justificando
sua seleção por esse motivo, e não por representar uma visão dispare do nacionalismo
trabalhado no restante da pesquisa. Este caminho significa um grande risco de incorrer em
reducionismos, mas entendeu-se ser este um risco controlável e, em certa medida, necessário.
Como ficou claro no parágrafo acima, a escolha de autores passou pela identificação dos
textos monumentais que formaram o centro do pensamento nacionalista ao longo dos anos,
pois o interesse era construir o marco conceitual do nacionalismo responsável por formar este
sistema internacional. Questioná-lo não é o interesse central deste trabalho, e talvez este
debate fique separado para outro momento.
Outro ponto que gerou alguma confusão quando da escrita do trabalho foi referente à primeira
hipótese, que versava sobre a possibilidade de alteração da fonte da opressão e sua conexão a
nacionalidade e nacionalismo. Ainda quando o estudo se pautava mais na análise dos
nacionalismos anticoloniais, foi elaborada uma hipótese que deveria versar sobre a
possibilidade de alteração da origem da opressão no sistema internacional, que passaria da
metrópole para o sistema, uma vez que a emancipação nacionalista se consolidasse através da
independência nacional. Todo um debate poderia ser realizado a partir desta hipótese (ou
premissa) visando compreender esse processo de transferência através do foco na
desconstrução da violência colonial como elemento essencialmente material.
Porém, o que se percebeu ao longo das leituras foi que o nacionalismo nem mesmo consegue
atingir o nível de emancipação, o que significa que o sistema de opressão colonial não se
rompe totalmente. Obviamente a premissa citada acima não perde potencial de
104
problematização, mas sua realização neste momento não seria totalmente adequada ao escopo
do trabalho. Tendo sido falseada antes mesmo do início da escrita do texto, ainda na fase de
delimitação bibliográfica, esta hipótese não perpassou a construção do texto de maneira
contínua. Em outras palavras, o que se verifica é que não há uma transferência tão clara entre
sistemas de opressão, uma vez que a fonte do poder continua se concentrando, em sua
maioria, nas antigas metrópoles. Essa concentração é mais diversificada do ponto de vista
territorial e não se assenta mais em relações formais, pois o sistema internacional atual não as
comporta. Há sim, uma mudança na lógica relacional entre estes atores, não mais subjugados
normativamente a outro Estado. A independência e reconhecimento internacionais permitem
que estes novos atores atinjam novos níveis de mobilidade, às vezes garantindo acesso a
privilégios que não gozavam antes. Todavia, como ficou claro na seção em que se analisava o
potencial emancipador do nacionalismo, não há emancipação per se.
Continuando nesse mesmo caminho, outro esforço central para o sucesso da pesquisa girou
em torno da precisa conceituação de emancipação, e de que maneira seria possível julgar o
sucesso de determinados movimentos sem entrar em estudos de caso mais profundos. Mais do
que isso, como este estudo não intendia entrar em estudos de caso de nenhuma maneira,
elaborar um panorama deste conceito parecia o caminho mais próximo do ideal. Nesse
sentido, a Teoria Crítica foi definida como marco epistemológico nesta fase do trabalho, e sua
visão sobre a emancipação seria o referencial básico para a análise da face revolucionária do
nacionalismo. Uma vez comparado ao que os autores desta corrente entendem como
emancipação, foi possível verificar até que ponto o nacionalismo contribui para a consecução
deste objetivo. Em uma palavra, o ferramental advindo da Teoria Crítica foi torcido no
sentido de adicionar a nação como elemento estrutural do sistema internacional, justificando
que a emancipação dos povos dependia, dentre outras coisas, do questionamento deste modelo
de organização social. Dessa forma foi possível analisar que, mesmo independentes, os novos
Estados não se encontravam emancipados, pois continuavam incluídos num sistema
internacional específico, formado com regras, normas e procedimentos que, muitas vezes, não
advinham de seus sistemas culturais, e altamente pautados no reconhecimento mútuo. Para
que estes novos Estados pudessem se conformar a este sistema, a aceitação do “velho” era
mais importante que a sugestão do “novo”.
centrais do trabalho. Um dos primeiros cortes bibliográficos (um que acompanhou o trabalho
quase em toda a sua extensão) girou em torno da relação entre nação, política e modernidade,
dividindo os paradigmas que entendiam o nacionalismo como produto da modernidade,
daqueles que já identificavam este conceito em outros períodos históricos. Resumidamente, os
autores do primeiro grupo trabalham versões mais pragmáticas do nacionalismo,
visualizando-o como ferramenta, doutrina ou ideologia política, promíscua e
instrumentalizável. Por sua vez, o primeiro grupo adota uma visão mais focada na biologia,
mas também compreende autores que trabalham com interpretações mais subjetivas, que
posicionam o nacionalismo como uma espécie de sentimento, ou mesmo essência intrínseca
ao ser humano. A união destas duas bibliografias possibilitou a inclusão do marco teórico do
construtivismo das Relações Internacionais, principalmente quando se sugere a possibilidade
da existência de um sentimento (ou essência) nacional, mais pautada nas intersubjetividades
do ser humano, ao mesmo tempo em que existiria uma face objetiva do nacionalismo, que
poderia, por exemplo, ser entendido como ideologia reificada através de movimentos
políticos.
As duas hipóteses que defendem que a opressão seria suavizada a partir da ascensão das
instituições internacionais foram avaliadas frente à literatura construtivista, e alguns pontos
precisam ser relembrados. Em primeiro lugar, a nação pode ser considerada como uma destas
instituições e, assim como tantas outras, faz parte de um arcabouço específico, geográfica e
temporalmente falando. Nesse sentido, defender que a diminuição da opressão parte do
fortalecimento das instituições internacionais não somente é uma afirmação incompleta, pois
não define exatamente de quais instituições se fala, mas também conceitualmente incoerente,
já que as leituras apontam para o nacionalismo como um dos mais importantes pilares
institucionais para a construção deste sistema internacional. Por fim, esta hipótese poderia ser
reescrita no sentido de posicionar as instituições liberais e ocidentais não como um elemento
refreador da opressão internacional, mas como catalisadoras desta mesma lógica, que surge
invariavelmente dos celeiros da modernidade. Apesar deste esforço não ter sido formalmente
registrado, fica claro que as seções do trabalho seguiram neste caminho.
Por esse motivo, seria verdadeiro afirmar que não há vínculo direto entre o nacionalismo e
opressão, o que confirmaria a sexta hipótese desta pesquisa. No entanto, algumas ressalvas
precisariam ser feitas. Mesmo que não existisse uma causalidade tão automática, de certa
forma a construção do sistema internacional passa pelo conceito de nação, fortalecido, por sua
vez, pelo nacionalismo. Este mesmo nacionalismo seria, portanto, um dos principais
elementos para a construção das regras relacionais dos sistemas internacionais moderno e
contemporâneo, justificando seu papel ao menos na construção de estruturas que permitissem
(quando não legitimassem) relações de opressão. Nesse sentido, se não há ligação direta entre
nacionalismo e opressão, é necessário pontuar que há sim uma conexão automática entre
nacionalismo e exclusão ou diferenciação. Uma vez que o poder é adicionado à essa equação,
há quase certeza de que estas relações se tornarão, invariavelmente, assimétricas.
Logo, por mais que todas as hipóteses do trabalho tenham sido debatidas e até mesmo partes
tenham sido verificadas como verdadeiras, parece mais acertado cravar que a visão que trazia
a normatividade mais para o centro do debate seja a que melhor representa os espólios desta
pilhagem teórica. A independência e inclusão de novos atores no sistema internacional passa
pela aceitação dos mesmos a regras pré-estabelecidas, que independem de questões internas e
se apoiam totalmente num modelo de relações internacionais próprio destes tempos. A
tendência à globalização das relações internacionais é fator primordial para a legitimação
deste modelo, lastreado em preceitos e instituições próprias, que são pouco ou nada afetadas
pelos atores recém-chegados. Estas normas seriam criadas no seio de instituições de base
107
ocidental, quando não colonial e, dessa forma, posicionariam novos atores em locais de fala
menos privilegiados, contribuindo para a perpetuação de relações desiguais. De maneira geral,
este modelo se assenta em relações assimétricas de poder, seja ele material (normalmente
ilustrado pelas disparidades militares e econômicas) ou ideacional. Essa diferença foi debatida
durante o texto, visando aproximar estes dois polos, principalmente no que tange à violência
contida na dominação ideacional.
Enfim, o que se verificou em última instância foi que a emancipação nacionalista apenas
reafirmaria a posição subalterna destes novos atores, contribuindo para que esta posição seja
reforçada do ponto de vista da legitimidade normativa do sistema internacional
contemporâneo, que não mais comportaria relações coloniais formais. O nacionalismo seria,
nesse sentido, uma ferramenta de reprodução e sofisticação do sistema colonial, uma falsa
promessa de emancipação, capaz de redesenhar a face das divisões políticas do globo, mas
nunca a sua essência.
108
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