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Presidente
Paulo Ernani Gadelha Vieira
Diretor
Mauro de Lima Gomes
2012
Rio de Janeiro • São Paulo
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
Expressão Popular
Copyright © 2012 dos organizadores
Catalogação na fonte
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
Biblioteca Emília Bustamante
788 p.
ISBN: 978-85-98768-64-9 (EPSJV)
ISBN: 978-85-7743-193-9 (Expressão Popular)
CDD 370.91734
A Acampamento 21
Agricultura camponesa 26
Agricultura familiar 32
Agriculturas alternativas 40
Agrobiodiversidade 46
Agrocombustíveis 51
Agroecologia 57
Agroecossistemas 65
Agroindústria72
Agronegócio 79
Agrotóxicos 86
Ambiente (meio ambiente) 94
Articulações em defesa da Reforma Agrária 103
Assentamento rural 108
C Campesinato 113
Capital 121
Ciranda Infantil 125
Comissão Pastoral da Terra (CPT) 128
Commodities agrícolas 133
Conflitos no campo 141
Conhecimento 149
Cooperação agrícola 157
Crédito fundiário 164
Crédito rural 170
Cultura camponesa 178
H Hegemonia 389
Hidronegócio 395
I Idosos do campo 403
Indústria cultural e educação 410
Infância do campo 417
Intelectuais coletivos de classe 424
J Judicialização 431
Juventude do campo 437
L Latifúndio 445
Legislação educacional do campo 451
Legitimidade da luta pela terra 458
Licenciatura em Educação do Campo 466
M Mística 473
Modernização da agricultura 477
Movimento de Mulheres Camponesas (MMC Brasil) 481
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) 487
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) 492
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) 496
MST e educação 500
O Ocupações de terra 509
Orçamento da educação e superávit 513
Organizações da classe dominante no campo 519
Q Questão agrária639
Quilombolas 645
Quilombos 650
R Reforma Agrária 657
Renda da terra 667
Repressão aos movimentos sociais 673
Residência Agrária 679
Revolução Verde 685
Autores 777
Apresentação
O Dicionário da Educação do Campo é uma obra de produção coletiva. Sua
elaboração foi coordenada pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
(EPSJV), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro, e pelo Mo-
vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Sua elaboração envolveu
um número significativo de militantes de movimentos sociais e profissionais da
EPSJV e de diferentes universidades brasileiras, dispostos a sistematizar experi-
ências e reflexões sobre a Educação do Campo em suas interfaces com análises
já produzidas acerca das relações sociais, do trabalho, da cultura, das práticas de
educação politécnica e das lutas pelos direitos humanos no Brasil.
Nosso objetivo foi o de construir e socializar uma síntese de compreensão
teórica da Educação do Campo com base na concepção produzida e defendida
pelos movimentos sociais camponeses. Os verbetes selecionados referem-se prio-
ritariamente a conceitos ou categorias que constituem ou permitem entender o
fenômeno da Educação do Campo ou que estão no entorno da discussão de seus
fundamentos filosóficos e pedagógicos. Também incluímos alguns verbetes que
representam palavras-chave, ou que podem servir como ferramentas, do vocabu-
lário de quem atualmente trabalha com a Educação do Campo ou com práticas
sociais correlatas. Alguns verbetes têm referência direta com experiências, sujei-
tos e lutas concretas que constituem a dinâmica educativa do campo hoje. Outros
representam mediações de interpretação dessa dinâmica.
O Dicionário da Educação do Campo visa atingir a um público bem diversificado:
militantes dos movimentos sociais, estudantes do ensino médio à pós-graduação,
educadores das escolas do campo, pesquisadores da área da educação, profissio-
nais da assistência técnica, lideranças sindicais e políticas comprometidas com as
lutas da classe trabalhadora.
Esta primeira edição do Dicionário inclui 113 verbetes e envolveu 107 autores
em sua produção.
A Educação do Campo está sendo entendida nesta obra como um fenômeno
da realidade brasileira atual que somente pode ser compreendido no âmbito con-
traditório da práxis e considerando seu tempo e contexto histórico de origem. A
essência da Educação do Campo não pode ser apreendida senão no seu movimento
real, que implica um conjunto articulado de relações (fundamentalmente con-
tradições) que a constituem como prática/projeto/política de educação e cujo
sujeito é a classe trabalhadora do campo. É esse movimento que pretendemos
mostrar na lógica de constituição do Dicionário e na produção de cada texto
(considerados os limites próprios a uma obra dessa natureza).
A compreensão da Educação do Campo se efetiva no exercício analítico de
identificar os polos do confronto que a institui como prática social e a tomada
Dicionário da Educação do Campo
de posição (política, teórica) que constrói sua especificidade e que exige a relação
dialética entre particular e universal, específico e geral. Há contradições específi-
cas que precisam ser enfrentadas, trabalhadas, compreendidas na relação com as
contradições mais gerais da sociedade brasileira e mundial. O projeto educativo
da Educação do Campo toma posição nos confrontos: não se constrói ignoran-
do a polarização ou tentando contorná-la. No confronto entre concepções de
agricultura ou de educação, a Educação do Campo toma posição, e essa posição
a identifica. Porém é a existência do confronto que essencialmente define a Edu-
cação do Campo e torna mais nítida sua configuração como um fenômeno da
realidade atual.
Esse posicionamento distingue/demarca uma posição no debate: a especifi-
cidade se justifica, mas ficar no específico não basta, nem como explicação nem
como atuação, seja na luta política seja no trabalho educativo ou pedagógico. A
Educação do Campo se confronta com a “Educação Rural”, mas não se configura
como uma “Educação Rural Alternativa”: não visa a uma ação em paralelo, mas
sim à disputa de projetos, no terreno vivo das contradições em que essa disputa
ocorre. Uma disputa que é de projeto societário e de projeto educativo.
Para a composição do Dicionário tomamos como eixos organizadores da sele-
ção dos verbetes a tríade de alguma maneira já consolidada por determinada tra-
dição de debate sobre a Educação do Campo: temos afirmado que esse conceito
não pode ser compreendido fora das relações entre campo, educação e política pública.
Porém, decidimos incluir no Dicionário um quarto eixo, o de direitos humanos, pe-
las interfaces importantes de discussão que vislumbramos para seus objetivos.
O desafio é duplo e articulado: apreender o confronto ou a polarização prin-
cipal que constitui cada eixo e apreender as relações entre eles. Cada eixo ou cada
parte podem ser entendidos/discutidos especificamente, mas em si mesmos não
são a Educação do Campo, que, como totalidade, somente se compreende na
interação dialética entre essas dimensões de sua constituição/atuação.
A própria questão da especificidade depende da relação: temos afirmado que a
especificidade da Educação do Campo está no campo (nos processos de trabalho,
na cultura, nas lutas sociais e seus sujeitos concretos) antes que na educação, mas
essa compreensão já supõe uma determinada concepção de educação: a que con-
sidera a materialidade da vida dos sujeitos e as contradições da realidade como
base da construção de um projeto educativo, visando a uma formação que nelas
incida. A realidade do campo constitui-se, pois, na particularidade dada pela vida
real dos sujeitos, ponto de partida e de chegada dos processos educativos. Toda-
via, seu horizonte não se fixa na particularidade, mas busca uma universalidade
histórica socialmente possível.
A compreensão do movimento interno aos eixos e entre eles nos ajuda a res-
ponder, afinal, qual é o problema ou a questão específica da Educação do Campo.
No eixo identificado como campo entendemos que o confronto específico
fundamental é o que se expressa na lógica incluída nos termos “agronegócio” e
“agricultura camponesa”, que manifesta, mas também constitui, em nosso tempo,
a contradição fundamental entre capital e trabalho. E que coloca em tela (essa é
uma novidade de nosso tempo) uma contradição nem sempre percebida nesse
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Apresentação
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Dicionário da Educação do Campo
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Apresentação
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Dicionário da Educação do Campo
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Apresentação
Os organizadores
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A
A
Acampamento
Bernardo Mançano Fernandes
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Dicionário da Educação do Campo
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Acampamento
A
to, como a resistência e o objetivo de e organizando também novas famílias,
especializar a luta. Nos acampamentos que se integram ao acampamento.
do Nordeste ou do Sudeste, é possí- Ao organizarem a ocupação da
vel observar diferenças e semelhan- terra, os Sem Terra promovem uma
ças nos seus cotidianos (Justo, 2009; ação concreta de repercussão imedia-
Loera, 2009; Sigaud, 2009). Além das ta. A ocupação coloca em questão a
diferenças em relação à localização dos propriedade capitalista da terra, quan-
acampamentos, há também diferenças do do processo de criação da proprie-
na sua duração, por causa das ações e dade familiar, pois ao conquistam
reações dos movimentos, governos, la- a terra, os Sem Terra transformam a
tifundiários e capitalistas. grande propriedade capitalista em
Na década de 1980, os acampamen- unidades familiares.
tos recebiam alimentos, roupas e remé- O acampamento é lugar de mobi-
dios, principalmente das comunidades lização constante. Além de espaço de
e de instituições de apoio à luta. Desde luta e resistência, é também espaço
o final dos anos 1980 e o início da dé- interativo e comunicativo. Essas três
cada de 1990, com o crescimento do dimensões do espaço de socialização
número de assentamentos, os assen- política desenvolvem-se no acampa-
tados também passaram a contribuir mento em diferentes situações. No iní-
de diversas formas para a luta. Muitos cio do processo de formação do MST,
cedem caminhões para a realização na década de 1980, em diferentes expe-
das ocupações, tratores para preparar riências de acampamentos, as famílias
a terra e alimentos para a população partiam para a ocupação somente de-
acampada. Esse apoio é mais significa- pois de meses de preparação nos tra-
tivo quando os assentados estão vincu- balhos de base. Desse modo, os Sem
lados a uma cooperativa. Essa é uma Terra visitavam as comunidades, rela-
marca da organicidade do Movimento tavam suas experiências, provocavam o
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra debate e desenvolviam intensamente o
(MST), por exemplo. espaço de socialização política em suas
Na segunda metade da década de dimensões comunicativa e interativa.
1990, em alguns estados, o MST come- Esse procedimento possibilita o esta-
çou uma experiência que denominou belecimento do espaço de luta e resis-
de acampamento permanente ou acam- tência de forma mais organizada, pois
pamento aberto. Esse acampamento é as famílias das comunidades passam a
estabelecido em regiões onde existem conhecer os diferentes tipos de enfren-
muitos latifúndios. É um espaço de luta tamentos da luta. Em seu processo de
e resistência para o qual as famílias de formação, como resultado da própria
diversos municípios se dirigem, a fim demanda da luta, o MST construiu ou-
de participarem da luta organizada pela tras experiências. Assim, nos trabalhos
terra. Desse acampamento permanente, de base, deixou-se de se desenvolver a
os Sem Terra partem para várias ocupa- dimensão interativa, que passou a ter
ções, e podem transferir-se para elas ou, lugar no espaço de luta e resistência.
em caso de despejo, retornar ao acam- E ainda, quando há um acampamento
pamento permanente. Conforme vão permanente ou aberto, as famílias po-
conquistando a terra, vão mobilizando dem iniciar-se na luta, inaugurando o
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Dicionário da Educação do Campo
espaço comunicativo por meio da ex- menos três dos acampamentos históri-
posição de suas realidades nas reuniões cos no processo de formação e territo-
para organizar as ocupações. É o que rialização do MST: o acampamento da
acontece quando os Sem Terra estão Encruzilhada Natalino, em Ronda Alta
lutando pela conquista de várias fazen- (RS), de 1980 a 1982; o acampamento
das, e novas famílias vão se somando no Seminário dos Padres Capuchinhos,
ao acampamento, enquanto outras vão em Itamaraju (BA), de 1988 a 1989; e
sendo assentadas (Fernandes, 2000). o acampamento União da Vitória, em
No acampamento, os Sem Terra Mirante do Paranapanema, na região
fazem periodicamente análises da con- do Pontal do Paranapanema (SP), de
juntura da luta. Essa leitura política 1992 a 1994 (Fernandes, 1996 e 2000).
pelos movimentos socioterritoriais Garantir a existência do acampamento,
não implica maiores dificuldades, pois por meio da resistência, impedindo a
eles estão em contato permanente com dispersão causada por diferentes for-
suas secretarias, de modo que podem mas de violência, é fundamental para o
fazer análises conjunturais com base sucesso da luta na conquista da terra.
em referenciais políticos amplos, como Os Sem Terra ocupam a terra, pré-
os das negociações em andamento nas dios públicos e espaços políticos diver-
capitais dos estados e em Brasília. As- sos para denunciar os significados da
sim, associam formas de luta local com exploração e da expropriação, lutando
as lutas nas capitais. Ocupam a terra para mudar suas realidades. O acampa-
diversas vezes como forma de pressão mento como espaço de luta e resistên-
para abrir a negociação, fazem marchas cia no processo de espacialização e ter-
até as cidades, ocupam prédios públi- ritorialização da luta pela terra também
cos, fazem manifestações de protesto, promove a espacialidade da luta por
reuniões etc. Pela correspondência en- meio de romarias, caminhadas e mar-
tre esses espaços de luta no campo e na chas. A caminhada é uma necessidade
cidade, sempre há determinação de um para expandir as possibilidades de ne-
sobre o outro. As realidades locais são gociação e gerar novos fatos. Em seus
muito diversas, de modo que tendem a ensinamentos, por meio de suas expe-
predominar nas decisões finais as rea- riências, os Sem Terra tiveram diversas
lidades das famílias que estão fazendo referências históricas. Alguns exem-
a luta. Dessa forma, as linhas políticas plos utilizados na mística do movimen-
de atuação são construídas com base to são a caminhada do povo hebreu
nesses parâmetros. E as instâncias re- rumo à Terra Prometida, na luta contra
presentativas do MST carregam essa a escravidão no Egito; a caminhada de
espacialidade e essa lógica, pois um Gandhi e dos indianos rumo ao mar,
membro da coordenação ou da direção na luta contra o imperialismo inglês; as
nacional participa do processo desde marchas das revoluções mexicana e chi-
o acampamento até as escalas mais nesa e da Coluna Prestes, entre outras.
amplas: regional, estadual e nacional De 2001 a 2010, os acampamentos ga-
(Stedile e Fernandes, 1999). nharam novas características. A medida
Todos os acampamentos têm im- provisória nº 2.109-50, promulgada em
portância histórica nas lutas das famílias 2001, diminuiu o número de ocupa-
Sem Terra. Porém, vale destacar pelo ções, e os Sem Terra, estrategicamente,
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Acampamento
A
passaram a acampar próximo das áreas da família permanecem no acampa-
reivindicadas. Embora, em alguns ca- mento – e, em alguns casos, passou a
sos, recebessem apoio de famílias ser esporádica. Com essas novas ca-
assentadas, a sustentação do acam- racterísticas, os acampamentos, ainda
pamento passou a ser feita principal- que continuem a ser espaços de luta
mente pelas próprias famílias acam- e resistência e que neles se organizem
padas. Outras novas características manifestações e reuniões de negocia-
derivam de fatores como mudanças na ção, já não são mais espaços de perma-
política econômica, com o aumento do nência das famílias acampadas. Porém,
emprego e políticas compensatórias – o acampamento continua sendo essa
do tipo Bolsa Família etc. –, de modo “espécie de geografia perdida” onde
que a participação nos acampamentos os Sem Terra se reúnem para pensar,
deixou de ser de todos os membros da compreender, resistir e lutar por seus
família – apenas um ou dois membros territórios e seu país.
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Dicionário da Educação do Campo
AGRICULTURA CAMPONESA
Horacio Martins de Carvalho
Francisco de Assis Costa
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Agricultura Camponesa
A
viver da família, pois é preciso consi- ou parentes, em coletivos mais
derar que os amplos ou com partes do lote ar-
rendados a terceiros;
[...] trabalhadores familiares não • há diversificação de cultivos e
podem ser peremptoriamente criações, alternatividade de uti-
dispensados, porque, em geral, lização dos produtos obtidos,
também são filhos. Eles devem seja para uso direto da família, seja
ser alocados segundo ritmos, para usufr uir de oportunida-
intensidade e fases do processo des nos mercados, e presença de
produtivo. São então sustenta- diversas combinações entre pro-
dos nas situações de não traba- dução, coleta e extrativismo;
lho e integrados segundo proje- • a unidade de produção camponesa
tos possíveis para constituição pode produzir artesanatos e fazer o
e expansão do patrimônio fa- beneficiamento primário de produ-
miliar, para inclusão de novas tos e subprodutos;
gerações, conforme as alternati- • existe garantia de fontes diversas
vas de sucessão ou de negação de rendimentos monetários para a
da posição. Essas alternativas família, desde a venda da produção
são assim interdependentes da até a de remuneração por dias de
avaliação da posição e das viabi- serviços de membros da família;
lidades da reprodução da cate- • a solidariedade comunitária (troca
goria socioeconômica. (Neves, de dias de serviços, festividades, ce-
2005, p. 26) lebrações), as crenças e os valores
religiosos por vezes impregnam as
Essa complexa interação, variável práticas da produção;
nos tempos e nas circunstâncias, apre- • estão presentes elementos da cul-
senta diversas características: tura patriarcal;
• e, enfim, mas não finalmente, exis-
• os saberes e as experiências de tem relações afetivas e simbóli-
produção vivenciados pelas famí- cas com as plantas, os animais, as
lias camponesas são referenciais águas, os sítios da infância, com a
importantes para a reprodução de paisagem... e com os tempos.
novos ciclos produtivos;
• as práticas tradicionais, o intercâm- Na racionalidade das empresas ca-
bio de informações entre vizinhos, pitalistas, a única referência é o lucro
parentes e compadres, o senso co- a ser obtido. E, de maneira geral, o lu-
mum, assim como a incorporação cro é encarado independentemente dos
gradativa e crítica de informações impactos sociais, políticos, ambientais
sobre as inovações tecnológicas e alimentares que ele possa provocar.
que se apresentam nos mercados, No modo capitalista de fazer agricultu-
constituem um amálgama que con- ra, é crescente a concentração das ter-
tribui para as decisões familiares ras como resultado do privilegiamen-
sobre o que fazer; to da produção em escala, que requer
• o uso da terra pode ocorrer de ma- grande extensão contínua de área para
neira direta pela família, em par- a prática do monocultivo e tecnologias
ceria com outras famílias vizinhas com uso intensivo de insumos quími-
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Dicionário da Educação do Campo
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Agricultura Camponesa
A
ponesa é expressão de um modo de A expressão agricultura familiar
se fazer agricultura distinto do modo traz como corolário da sua concepção
de produção capitalista dominante, e, a ideia de que a possibilidade de cresci-
nesse sentido, o campesinato se apre- mento da renda familiar camponesa só
senta na formação social brasileira com poderá ocorrer se houver a integração
uma especificidade, uma lógica que lhe direta ou indireta da agricultura fami-
é própria na maneira de produzir e de liar com as empresas capitalistas, em
viver, uma lógica distinta e contrária particular as agroindústrias.
à dominante. Em 24 de julho de 2006, foi sancio-
Por outra parte, o campesinato se nada pelo presidente da República a lei
confronta ideologicamente, e com as con- nº 11.326, que estabeleceu as Diretrizes
sequências daí resultantes, com duas para a Formulação da Política Nacional
expressões já usuais, que se fizeram da Agricultura Familiar e Empreendi-
hegemônicas no campo, e que são de- mentos Familiares Rurais, oficializando
corrência dos interesses das concepções a expressão agricultura familiar com
das empresas capitalistas: agricultura de concepção distinta daquela da empresa
subsistência e agricultura familiar. capitalista no campo.
A expressão agricultura de subsis- A oficialização da expressão agri-
tência, presente nos discursos dominan- cultura familiar teve como objetivo
tes desde o Brasil colonial, discrimina estabelecer critérios para o enquadra-
os camponeses por serem produtores mento legal dos produtores rurais com
de alimentos – uma tarefa considerada certas características que os classifi-
subalterna, ainda que necessária para a cavam como agricultores familiares.
reprodução social da formação social Isso para obtenção, por parte desses
brasileira –, contrapondo-os ao modo agricultores familiares, de benefícios
dominante de se fazer a agricultura, o governamentais, sendo indiferente o
qual se reproduz desde as sesmarias até fato de esses agricultores estarem em
a empresa capitalista contemporânea, situação de subordinação perante as
mantendo a tendência geral de se espe- empresas capitalistas ou se eram repro-
cializar no monocultivo e na oferta de dutores da matriz de produção e tecno-
produtos para a exportação. lógica dominante.
A partir da denominada Revolução Já a expressão agricultura campo-
Verde na agricultura, iniciada em meados nesa comporta, na sua concepção, a es-
da década de 1950 e revivificada a partir pecificidade camponesa e a construção
dos anos 1980, com a expansão mun- da sua autonomia relativa em relação
dial da concepção de artificialização da aos capitais. Incorpora, portanto, um
agricultura e a ampliação dos contratos diferencial: a perspectiva maior de for-
de produção entre as empresas capitalis- talecimento dos camponeses pela afir-
tas e as famílias camponesas, introduziu- mação de seu modo de produzir e de
se a expressão agricultura familiar, outrora viver, sem com isso negar uma moder-
de uso consuetudinário aqui e acolá, mas nidade que se quer camponesa.
acentuado desde a década de 1990, e con- Nos diversos contextos históricos e
sagrada em lei (Brasil, 2006) como expres- fisiogeográficos em que ela se tem se
são formal, porque utilizada por progra- afirmado e nas ecobiodiversidades nas
mas e políticas públicas governamentais. quais têm praticado os mais distintos
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Dicionário da Educação do Campo
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Agricultura Camponesa
A
Não são raras as situações em cial brasileira contribuiu para o forta-
que unidades familiares camponesas lecimento dos movimentos e organiza-
e empresas capitalistas cooperam ções sociais populares no campo, que
umas com as outras. Não são raras, facilitam, ainda que com contradições,
também, as situações em que os cam- a passagem de uma identidade de re-
poneses tentam imitar a lógica capi- sistência para uma identidade social de
talista, que lhes é antagônica, e na projeto (Castells, 1999, p. 22-23). Essa
maior parte das vezes inviabilizam-se afirmação da identidade social campo-
economicamente por isso. Portanto, nesa concorre para a construção da sua
como sempre, os camponeses estão autonomia como sujeito social e para a
cercados de armadilhas. sua prática social como classe, seja no
Com a expansão crescente das ino- âmbito das lutas de resistência social
vações tecnológicas a partir dos avan- contra a sua exploração pelas distintas
ços na manipulação genética, foram frações dos capitais, seja no âmbito da-
ampliadas as formas de subalternização quelas em que defende e afirma a sua
da agricultura camponesa ao capital, cultura e o seu modo de fazer agricul-
que agora se dão predominantemente tura e de viver.
pelo intenso e impositivo processo de A tendência da agricultura campo-
artificialização da produção agropecuá- nesa contemporânea de afirmar a sua
ria e florestal, em particular pela oligo- autonomia relativa perante as diversas
polização por empresas transnacionais frações do capital, de se apoiar no prin-
com a oferta de sementes transgênicas cípio da coevolução social e ecológica
e de insumos de origem industrial, e e de enveredar pela agroecologia man-
pelo estímulo das agroindústrias à es- tém a possibilidade da sua reprodução
pecialização da produção camponesa. social, dado que constrói socialmente
Desde então, o modelo tecnológico as bases de outro paradigma para se fa-
concebido pelos grandes conglomerados zer agricultura.
empresariais transnacionais relacionados A tensão econômica, social, política
com as empresas capitalistas no campo, e ideológica gerada no confronto entre
e que conta com o apoio de diversas a lógica camponesa e a capitalista de se
políticas públicas estratégicas, tornou-se fazer agricultura permite sugerir que
o referencial para o que se denominou se está, desde o Brasil colonial, peran-
“modernização da agricultura”. E se rei- te uma altercação mais ampla do que
ficou a produção de mercadorias agríco- somente entre modos de se fazer agri-
las (commodities) para a exportação em de- cultura: são concepções e práticas de
trimento da produção de alimentos para vida familiar, produtiva, social, cultural
a maioria da população. e de relação com a natureza que, não
O crescente processo de identidade obstante coexistirem numa mesma for-
camponesa e, portanto, de consciência mação social, negam-se mutuamente,
da sua especificidade na formação so- são antagônicas entre si.
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Dicionário da Educação do Campo
Castells, M. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. (A era da infor-
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Agricultura familiar
Delma Pessanha Neves
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Agricultura Familiar
A
Por essa definição, advogam os autores corresponde a formas de organização
que investem na respectiva construção da produção em que a família é ao
conceitual, é forma de organização da mesmo tempo proprietária dos meios
produção que se perde no tempo e es- de produção e executora das atividades
paço, e/ou forma moderna de inser- produtivas. Essa condição imprime es-
ção mercantil (ver Abramovay, 1992; pecificidades à forma de gestão do
Bergamasco, 1995; Francis, 1994; estabelecimento, porque referencia ra-
Lamarche, 1993, p. 13-33; Wanderley, cionalidades sociais compatíveis com
1999). Engloba a pressuposta agricul- o atendimento de múltiplos objetivos
tura de subsistência – isto é, de orien- socioeconômicos; interfere na criação
tação do uso de fatores de produção de padrões de sociabilidade entre famí-
por referências fundantes da vida fa- lias de produtores; e constrange certos
miliar e marginais aos princípios de modos de inserção no mercado pro-
mercado (ver Chayanov, 1981; Silva e dutor e consumidor (ver Veiga, 1995;
Stolcke, 1981, p. 133-146); a economia Wanderley, 1995).
camponesa – modo de produzir orien-
Como a capacidade e as condições
tado por objetivos e valores construí-
de trabalho são articuladas com base
dos pela vida familiar e grupos de lo-
em relações familiares, a análise concei-
calidade, nesses termos historicamente
tual da agricultura familiar leva em con-
datado porque articulado à presença do
sideração a diferenciação de gênero, os
Estado, da cidade (suas feiras e merca-
ciclos de vida e o sistema de autorida-
dos, sua correspondente divisão social
de familiar em diferentes contextos:
do trabalho) e da sociabilidade comu-
quando a concepção de família integra
nitária (ver Franklin, 1969; Galeski,
a prática de seus membros como partes
1977; Mendras, 1978; Ortiz, 1974;
da unidade de produção, rendimentos
Powell, 1974; Sjoberg, 1967; Wolf, 1970), e consumo, e, em certos domínios da
mas também produtores mercantis vida social, irmana os afiliados enquan-
constituídos em consonância com or- to coletivo; ou, por contraposição ana-
denações da especialização da produ- lítica, quando os familiares se orientam
ção – nesses termos, referenciada aos por valores individualizantes, exigindo
fluxos de oferta e demanda do mer- negociações que abarquem projetos
cado, de padronização da mercadoria individuais e coletivos. Em quaisquer
e de inclusão de tecnologia orientada das situações, os trabalhadores familia-
pela interdependência entre agricultura res não podem (ou não devem) ser pe-
e indústria, fatores que operam na re- remptoriamente dispensados (tal como
ordenação das condições de incorpo- ocorre com o assalariamento da força
ração do trabalho familiar (ver Amin de trabalho), porque geralmente são
e Vergopoulos, 1978; Faure, 1978; também filhos ou agregados, herdei-
Lenin, 1982; Lovisolo, 1989; Neves, ros do patrimônio por direitos formais
1981; Paulilo, 1990; Schneider, 1999; e morais. Em termos gerais, eles são
Wilkinson, 1986). alocados segundo ritmos, intensidades
Para efeitos de construção de uma e fases do processo produtivo compa-
definição geral – isto é, capaz de abs- tíveis com os padrões de definição dos
tratamente referenciar a extensa di- ciclos de vida (meninos, jovens e adul-
versidade de situações históricas e so- tos distintos segundo relações de gêne-
cioeconômicas –, a agricultura familiar ro, sempre situacionais). São eles então
35
Dicionário da Educação do Campo
36
Agricultura Familiar
A
de imediato foi possível, no campo Na modalidade das atividades do meio
do debate político, distinguir vários ti- rural e dos modos de apropriação dos
pos de público, aí integrando os assen- recursos naturais, reconhecem-se di-
tados rurais, antes objeto de programas versas posições sociais e situacionais:
especiais de composição financeira do agricultores, silvicultores, aquicultores,
patrimônio produtivo, além de produ- extrativistas e pescadores. A cada uma
tores antes condenados ao pressuposto dessas posições, correspondem restri-
ou ao desejado desaparecimento – ribei- ções distintivas nos termos da referida
rinhos, extrativistas, pescadores artesanais –, legislação. Portanto, a definição geral é
por generalizações homogeneizan- nesse mesmo ato relativizada, abrindo
tes, por vezes significativamente reco- assim alternativas para novas inclusões,
nhecidos como populações tradicionais. reconhecidas mediante reivindicações
Como termo jurídico, a agricultura fa- políticas de representações delegadas de
miliar exprime percalços e conquistas grupos que se veem como agricultores
alcançadas por investimentos de re- familiares e que lutam por se adequar ou
presentantes do campo acadêmico, dos redimensionar os critérios básicos da re-
espaços de delegação de porta-vozes ferida categorização socioeconômica.
que reafirmam a legitimada constru- A conquista de tais definições e res-
ção de interesses específicos desses pectivos direitos é importante para a
agricultores e de alguns órgãos do Es- diminuição de certo insulamento polí-
tado. Pela convergência de intenções e tico e cultural. E para o enfrentamen-
negociações de sentidos transversais, to da atribuída e imposta precariedade
esses representantes vieram a colocar material dos camponeses, dos pequenos
em prática a constituição do projeto produtores, dos arrendatários, dos parcei-
de designação distintiva de agricultores ros, dos colonos, dos meeiros, dos assenta-
açambarcados pelo termo agricultor fa- dos rurais, dos trabalhadores sem-terra –
miliar. Nessa perspectiva, o termo deve designações mais aproximativas da di-
ser entendido pelos critérios que distin- versidade de situações socioeconômi-
guem o produtor por seus respectivos cas assim abarcadas.
direitos, nas condições asseguradas pela Portanto, os sentidos que no con-
legislação específica (decreto nº 1.946, texto estão implicados no termo agri-
de 28 de junho de 1996, lei nº 11.326, cultura familiar acenam para um padrão
de 24 de julho de 2006, especialmente ideal de integração diferenciada de
artigo 3º, e demais instrumentos que uma heterogênea massa de produtores
vão adequando os desdobramentos e trabalhadores rurais. Tal integração
alcançados e incorporados): agricultor se legitima por um sistema de atitudes
familiar é o que pratica atividades no que lhe está associado, denotativo da
meio rural, mas se torna sujeito de di- inserção num projeto de mudança
reitos se detiver, a qualquer título, área da posição política. Por esse engaja-
inferior a quatro módulos fiscais; deve mento, os agricultores que aderem ao
apoiar-se predominantemente em mão processo de mobilização tornam-se
de obra da própria família e na gestão concorrentes na disputa por créditos
imediata das atividades econômicas e serviços sociais e previdenciários; na
do estabelecimento, atividades essas demanda de construção de mercados e
que devem assegurar o maior volume de cadeias de comercialização menos
de rendimentos do grupo doméstico. expropriadoras; na reivindicação de
37
Dicionário da Educação do Campo
38
Agricultura Familiar
A
Assim sendo, o termo agricultura fa- mitantes dos objetivos preconizados
miliar vem se consagrando nos quadros para o trabalho acadêmico. A categoria
institucionais de aplicação do Pronaf, analítica agricultura familiar passa então
política de intervenção que constituiu a incorporar o mesmo efeito desejan-
o respectivo setor produtivo e o conso- te da dupla naturalização do familiar.
lidou em estatuto formal-legal. Respei- E de tal modo que, em termos analíticos,
tando tal campo semântico, os signifi- pode-se perguntar: o que se ganha ao
cados que o termo designa devem ser identificar agricultores como familia-
compreendidos (mesmo que de forma res ou uma forma de produzir como
não consensual e, como toda definição familiar, para além da contraposição
política, provisória ou contextual) pela política ao caráter capitalista de certas
definição jurídica que até aqui o termo al- formas de produzir? Que consequên-
cançou, isto é, conforme os conteúdos cias pode ter a simplificação do plano
atribuídos por definições politicamente dos valores familiares aos valores ine-
construídas, conquistadas por negocia- rentes à objetivação dos princípios da
ções de interesses e conquistas relati- reprodução do capital? O que se deixa
vas, cristalizadas nos textos que vão de considerar no domínio das relações
instituindo o Programa Nacional de familiares quando elas aparecem inte-
Fortalecimento da Agricultura Fami- gradas apenas a processos produtivos?
liar. Na conquista desse reconhecimen- E o que se deixa de considerar na pro-
to acadêmico, político e jurídico, a agri- dução estrito senso quando o vetor de
cultura familiar pode, em termos bem compreensão se reduz ao domínio das
gerais ou abstratos, ser consensual- relações familiares?2
mente assim conceituada: modelo de or- Como procurei demonstrar neste
ganização da produção agropecuária onde texto, os traços constitutivos dos agen-
predominam a interação entre gestão e tra- tes produtivos que foram rubricados
balho, a direção do processo produtivo pelos como agricultores familiares não se en-
proprietários e o trabalho familiar, comple- contram tão somente nas relações em
mentado pelo trabalho assalariado. jogo nos termos agricultura e família,
Entrementes, pela necessária am- mas nos diversos projetos políticos de
biguidade que confere especial eficácia constituição de uma categoria socio-
à definição jurídica, o termo se torna econômica (dotada especialmente de
objeto de tantas outras consagrações direitos sociais e previdenciários), ou
políticas. Uma delas diz respeito à ade- em projetos societários concorrentes.
são de pesquisadores, em diversos do- Levando-se em conta esses emara-
mínios das ciências sociais e agrárias, nhados de sentidos, faz-se necessário
que sistematicamente vêm tentando reconhecer que tanto agricultor familiar –
construir meios de interpretação, al- categoria socioprofissional e agente
guns deles acompanhando a imediata social correspondentes ao distintivo
rasteira das mudanças políticas e das segmento da agricultura familiar – quan-
diversas formas de inserção que vão to agricultura familiar são termos clas-
ganhando expressão pública. Essa ade- sificatórios construídos como produ-
são orientada pelo investimento inter- tos de ação política. São termos cujos
pretativo, nos casos em que a sintonia sentidos designados devem se adequar
não é metodologicamente colocada a dinâmicas que se desdobram nos
em questão, corresponde a efeitos li- campos de luta que elaboram catego-
39
Dicionário da Educação do Campo
Notas
1
Sobre o peso dos valores familiares na organização da unidade produtiva, ver Carneiro, 2000.
2
Essas questões têm sido por mim refletidas com maior detalhe em outros textos. Ver
Neves, 1995, 2006 e 2007.
40
Agricultura Familiar
A
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41
Dicionário da Educação do Campo
Agriculturas alternativas
Paulo Petersen
42
Agriculturas Alternativas
A
mediante o encurtamento do tempo agroquímica, a acelerada estruturação
dos pousios e, finalmente, a sua com- de um setor industrial voltado para a
pleta supressão, a adoção de sistemas agricultura (que, em grande medida,
alternativos de manejo da biomassa, foi herdeiro de uma indústria bélica
viabilizados pela introdução de adubos em desativação) e os pesados inves-
verdes e plantas forrageiras, e a maior timentos públicos compôs as condi-
integração ecológica entre a lavoura e ções necessárias para a viabilização da
a pecuária. Até o final do século XIX, Revolução Verde, também conhecida
as estratégias técnicas para a gestão da como Segunda Revolução Agrícola.
fertilidade eram desenvolvidas com A Revolução Verde disseminou glo-
base no manejo da biomassa localmen- balmente um novo regime tecnológico
te produzida. Porém essas dinâmicas baseado na dependência da agricultura
de interdependência e mútua transfor- em relação à indústria e ao capital fi-
mação entre os sistemas sociotécnicos nanceiro. Esse processo foi alavancado
e os ecossistemas foram profundamen- ideologicamente sob o manto da mo-
te alteradas com o surgimento dos fer- dernização, uma noção legitimadora
tilizantes sintéticos. O “pai da química dos arranjos institucionais que pas-
agrícola”, o alemão Justus von Liebig saram a articular de forma coerente
(1803-1873), comprovou por meio de interesses empresariais com os para-
seus experimentos que as plantas se digmas técnico-científico e econômi-
nutrem de substâncias químicas, procu- co consolidados. Além disso, o rumo
rando assim contestar a teoria humista, que assumiu a agricultura a partir do
um postulado teórico que fundamenta- final do século XIX foi muito funcio-
va a prática da adubação orgânica des- nal para a evolução do capitalismo em
de a Grécia Antiga. As descobertas de um momento histórico de acelerada
Liebig abriram caminho para que o de- industrialização e urbanização. Nesse
senvolvimento tecnológico na agricul- novo contexto histórico, a agroquími-
tura tomasse o rumo da agroquímica, ca assumiu o estatuto de “agricultura
permitindo o paulatino abandono das convencional” com base no qual a no-
práticas orgânicas de recomposição da ção de agricultura alternativa passou a
fertilidade. Configuraram-se assim as ser referida.
condições necessárias para a dissemi-
nação das monoculturas em substitui-
ção às agriculturas diversificadas, ajus- Vertentes de agriculturas
tadas às especificidades ecológicas alternativas à agroquímica
locais, e os avanços posteriores nos
campos da motomecanização e da ge- O sentido adotado atualmente para
nética agrícola. A simplificação ecoló- a noção de agricultura alternativa tem
gica resultante da ocupação da paisa- suas origens ligadas à contestação da
gem agrícola com monoculturas fez agroquímica organizada por “movi-
multiplicar-se exponencialmente o nú- mentos rebeldes”. Essa denominação
mero de insetos-praga e de organismos foi empregada por Ehlers (1996) em
patogênicos, abrindo a frente de inova- seu livro Agricultura sustentável: origens e
ção em direção aos agrotóxicos. Após perspectivas de um novo paradigma. Tendo
a Segunda Guerra Mundial, a conver- emergido quase que simultaneamente
gência entre os avanços científicos na na Europa e no Japão nas décadas de
43
Dicionário da Educação do Campo
44
Agriculturas Alternativas
A
teve suas bases lançadas na déca- 1970 atualizou a crítica à agricul-
da de 1930 pelo suíço Hans Peter tura convencional, em particular
Müller. Como político, Müller, ao o seu efeito sobre a diminuição da
realizar sua crítica à agroquímica, qualidade dos alimentos. Há quem
enfatizava questões de natureza defenda que Aubert seja o pai da
socioeconômica, entre elas a preo- agricultura biológica tal como ela
cupação com a crescente perda de é hoje compreendida. Segundo
autonomia por parte dos agriculto- Ehlers (1996), é difícil precisar
res e com a forma que vinha assu- se as ideias de Aubert mantinham
mindo a organização dos mercados ligação com as de Müller e Rush,
agrícolas, ao se alargarem os circui- o que justificaria sua proposta de
tos que encadeiam a produção ao agricultura biológica como uma
consumo de alimentos. Suas elabo- vertente distinta da orgânica e da
rações não foram levadas em con- biodinâmica. Um pesquisador que
sideração por cerca de três déca- certamente exerceu influência so-
das até que o médico alemão Hans bre Aubert foi o biólogo francês
Peter Rush as retomou, centrando Francis Chaboussou, autor da teo-
seu foco de atenção nas relações ria da trofobiose, que correlaciona
entre a qualidade da alimentação e a infestação de insetos-praga e pa-
a saúde humana. A diferença essen- tógenos com o estado nutricional
cial entre essa vertente alternativa das plantas, demonstrando ainda
e a agricultura orgânica tal como que a aplicação de agrotóxicos e
preconizada por Howard é que a de fertilizantes solúveis provoca
associação entre pecuária e agricul- desordens metabólicas que favore-
tura não seria a única forma de ob- cem essas infestações.
ter matéria orgânica para a repro-
d) Agricultura natural: associada à obra
dução da fertilidade. Esse recurso
de dois mestres japoneses, Mokiti
poderia ser proveniente de outras
Okada (1882-1953) e Masanobu
fontes externas à propriedade, in-
Fukuoka (1913-2008), que julgavam
clusive de resíduos urbanos. Além ser essencial a agricultura seguir as
disso, os defensores da agricultura leis da natureza e defendiam que
biológica apregoavam o uso de pós as atividades agrícolas fossem rea-
de rocha como estratégia para a lizadas com um mínimo de inter-
recomposição de minerais no solo. ferência na dinâmica ecológica dos
Dessa forma, ao contrário das no- ecossistemas. Para Fukuoka, tanto a
ções de autossuficiência propug- agricultura convencional quanto as
nadas por outras vertentes alterna- vertentes alternativas orgânica e bio-
tivas, Müller e Rush entendiam que dinâmica fundamentam-se em prá-
a propriedade agrícola deve estar ticas que intervêm profundamente
integrada ecologicamente com ou- nos sistemas naturais. Ele defendeu
tras propriedades e com o sistema o método que denominou “não fa-
do território do qual faz parte. Um zer”, ou seja, não arar a terra, não
importante difusor da agricultura aplicar inseticidas e fertilizantes
biológica foi Claude Aubert, pes- (nem os compostos defendidos por
quisador francês que na década de Howard), não podar as árvores
45
Dicionário da Educação do Campo
46
Agriculturas Alternativas
A
ativa diante dos efeitos da agricultura vencional. Nessa oportunidade, o NRC
convencional criou o ambiente pro- previa que “o alternativo de hoje será
pício para a reemergência dos movi- o convencional de amanhã” (National
mentos contestadores que, na década Research Center, 1989). No entanto,
de 1970, passaram a ser reconhecidos apesar da acentuação da crise sistêmi-
genericamente como movimentos de ca planetária ocorrida desde então e do
agricultura alternativa. A associação potencial de resposta demonstrado pe-
de um número crescente de pesquisa- las variadas manifestações da agricultu-
dores a esses movimentos resultou em ra alternativa, elas permanecem politi-
importantes desdobramentos nas déca- camente marginalizadas sob a alegação
das seguintes, com a sistematização de de que representam uma opção pelo
um novo enfoque científico: a agroe- retrocesso. Por intermédio da propa-
cologia. Segundo Stephen Gliessman, ganda ideológica e por sua influência
ecólogo da Universidade de Santa determinante nos processos decisórios
Cruz, Califórnia, o interesse pela aná- em âmbitos nacionais e supranacionais,
lise ecológica da agricultura e a busca as corporações do complexo genético-
por sistemas alternativos ampliaram-se industrial se esforçam para ocultar a
no final dos anos 1950. Miguel Altieri, existência de alternativas agronomica-
entomologista chileno e professor na mente inteligentes, socialmente éticas,
Universidade de Berkeley, Califórnia, economicamente viáveis e ecologica-
deu contribuição decisiva para o aper- mente sustentáveis. Em lugar de reais
feiçoamento da perspectiva agroe- alternativas que permitam enfrentar
cológica, ao enfatizar a importância estruturalmente o desafio de superar
dos sistemas agrícolas tradicionais as contradições do sistema nos dias
como fonte de saberes e práticas para de hoje e alimentar 9 bilhões de habi-
o desenvolvimento de métodos de tantes no planeta por volta de 2050, as
manejo produtivo em bases sustentá- propostas promovidas como alternati-
veis. Além das contribuições no pla- vas pelo sistema dominante orientam-
no científico-acadêmico, Gliessman e se para o aprofundamento da interven-
Altieri também foram responsáveis ção no mundo natural, com a utilização
pela divulgação da agroecologia a par- da agricultura transgênica. Suplantar a
tir do final da década de 1980, o que hegemonia da agricultura convencional
permitiu a organizações promotoras para que as agriculturas alternativas se-
da agricultura alternativa maior con- jam amplamente incorporadas nas so-
sistência conceitual e metodológica. ciedades contemporâneas é um desafio
Em 1989, o Conselho Nacional que encerra profundos conflitos de
de Pesquisa (NRC, do inglês National concepção e de poder. Somente uma
Research Center) dos Estados Unidos vontade coletiva forte, atuante e infor-
publicou o relatório intitulado Alter- mada por uma profunda consciência
native agriculture, a primeira manifesta- ecológica criará a correlação de forças
ção oficial de grande repercussão que necessária para isso, abrindo caminho
reconhece o potencial da agricultura para que a humanidade tenha melhores
alternativa para o enfrentamento dos condições de enfrentar os difíceis tem-
desafios colocados pela agricultura con- pos que tem pela frente.
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Dicionário da Educação do Campo
Agrobiodiversidade
Luiz Carlos Pinheiro Machado
48
Agrobiodiversidade
A
tes e não idênticos, em que cada um (ou de insumos industriais e aos latifundiá-
cada classe) deles difere dos demais, em rios, cujo único objetivo é o lucro.
uma ou mais características. Quando o A agrobiodiversidade não diz res-
vocábulo é aplicado aos seres vivos – peito somente à vida, à fauna e à flora
bio – afirmamos que cada um é sin- da superfície terrestre. Uma parcela de
gular, distinto; que não existem dois igual importância está debaixo da terra,
organismos idênticos em todas as suas no subsolo. Aí vivem milhares de espé-
características (Halffter et al., 1999). cies vegetais e animais. Em muitos so-
A avaliação da diversidade, a quan- los a vida subterrânea tem peso maior
tidade e a proporção dos diferentes ele- que os animais criados na superfície. A
mentos que o integram, é a medida da diversidade da vida no solo é um indi-
heterogeneidade de um sistema com- cador da sua fertilidade: quanto maior
plexo. Assim, a biodiversidade cor- a biodiversidade, melhor a fertilidade.
responde a um sistema que autogera, A manutenção e o incremento da vida
através do tempo, sua própria hete- do solo são antagônicos às práticas de
rogeneidade (Halffter et al., 1999). A agressão ao solo: arado, grade, subsola-
expansão da fronteira agrícola, com a gem e outras. A diversidade microbiana
destruição do bioma original, agre- é um fator que controla a produtivida-
dindo-o e transformando-o em mono- de e a qualidade do agroecossistema
culturas – de grãos, ou de bovinos, ou (Kennedy, 1999, p. 1).
de árvores – é uma severa agressão à A seleção para alcançar altas pro-
biodiversidade. As monoculturas, ve- duções reduziu a contribuição das
getais ou animais, são, pois, axiomatica- variedades e raças locais que, mercê
mente indesejáveis. A monocultura é a de adaptações milenares, demandam
antítese da agrobiodiversidade. baixos insumos, ou seja, têm melhor
A sustentabilidade do planeta, con- aproveitamento dos nutrientes. Vavilov
cebida em seus mais amplos limites, (1951, p. 2) menciona exemplos em-
começa pelo respeito e a proteção da blemáticos: na ilha de Sakurajima, no
agrobiodiversidade. Protegê-la é dever Japão, ele encontrou uma variedade de
de todos e obrigação de cada um. Isso rabanete cuja raiz pesava de 15 a 17kg!
significa que as técnicas utilizadas no Altas produções, porém, sempre de-
processo de produção agrícola devem pendem de altos insumos energéticos
se pautar pela proteção à biodiversida- (no caso do rabanete gigante, Vavilov
de: rotação de culturas, plantio direto, não informa o tempo do ciclo vegetati-
respeito às culturas locais, ausência de vo, nem se a variedade tinha alta capa-
agrotóxicos, proteção do solo contra cidade de aproveitamento da fotossín-
erosão, sucessão animal/vegetal, en- tese e dos nutrientes do solo).
fim procedimentos tecnológicos que, A fonte energética para altas pro-
respeitando o indispensável critério da duções agroecológicas é o sol. O fluxo
produção em escala, atendam a essas da água de superfície dá uma medida da
condições. A simplificação das tecno- estabilidade e complexidade do sistema:
logias agrícolas a partir do desenvolvi- quanto menor a perda de água super-
mento das monoculturas de soja, milho, ficial e maior a evaporação, mais com-
eucalipto, pínus, bovinos e outras só plexo e melhor é o sistema (Paschoal,
interessa aos fabricantes de máquinas e 1979). A matéria orgânica é a principal
49
Dicionário da Educação do Campo
fração do solo e revela a sua comple- tanto animais quanto vegetais. É neces-
xidade. As monoculturas e as agressões sário usar e proteger a adaptação milenar
ao solo destroem a matéria orgânica, ao ambiente do milho, da mandioca e do
que, ademais, é o principal reservatório feijão, ou mesmo a adaptação centenária
de carbono na superfície terrestre: 1 g de bovinos e suínos ao ambiente.
de matéria orgânica retém 3,67 g de A criação de animais pode manter,
dióxido de carbono (CO2 ). A matéria melhorar ou perturbar a biodiversida-
orgânica é o biocatalisador da vida do de (Blackburn e Haan, 1999, p. 91).
solo (Machado, 2004). Dentre os diver- Por exemplo, no sistema extensivo
sos males provocados pelas monocultu- do latifúndio, os animais promovem
ras, a erosão genética é um dos piores. a compactação do solo e perturbam a
Muitas espécies desapareceram com a biodiversidade. Se, mesmo com a con-
implantação das monoculturas. Isso afeta duta inaceitável do desmatamento, a
a cadeia trófica, porque, se um elo da cor- pastagem for manejada com o pasto-
rente desaparece, a cadeia é destruída. reio racional Voisin,1 há, então, melho-
A produção baseada na proteção de ria da estrutura do solo, incremento da
raças e culturas locais atende às deman- vida subterrânea e melhoria da biodi-
das específicas de populações locais, versidade. Os efeitos desse processo,
mas não resolve o problema mundial entretanto, dependem da combinação
de falta de escala na produção. Assim, é entre a intensidade do pastoreio e as
uma contribuição cujo valor histórico- chuvas, além de outros fatores exter-
cultural qualitativo é mais significativo nos (Blackburn e Hann, 1999, p. 87).
do que o quantitativo. Porém as cultu- As plantas na comunidade vegetal
ras locais têm dado, também, contri- não se deterioram linearmente. Há di-
buições de quantidade. Os incas, por versos níveis, de acordo com a pressão
exemplo, cultivavam uma variedade de que recebem. A produção de biomassa
milho cujo grão era quatro vezes maior e a composição botânica das plantas
do que os grãos atuais (Vavilov, 1951). flutuam e se a pressão de pastoreio é
Esse é um material genético que, se re- relaxada antes do nível crítico – ou seja,
cuperado, pode servir para melhorar a antes do ponto ótimo de repouso –,
produtividade do cereal. a recuperação da comunidade é me-
Além disso, a perda da diversidade lhor. Portanto, o gado bovino pode ter
genética ou da biodiversidade amea- impacto positivo ou negativo sobre a
ça os sistemas de produção animal de biodiversidade, dependendo da forma
todo o mundo, e a diversidade genéti- como é criado e manejado.
ca animal é essencial para satisfazer as A biotecnologia e a transgenia, da
necessidades futuras da sociedade to- forma como têm sido utilizadas na pro-
tal (National Research Council, 1993). dução agrícola, são técnicas reducionistas
Portanto, é essencial que se harmonize que promovem as monoculturas e pro-
o processo produtivo com a manuten- duzem severa erosão genética. Sem men-
ção da biodiversidade. cionar os efeitos nocivos que o consumo
No que diz respeito ao Brasil, para qual- de seus produtos causa à saúde humana,
quer programa de melhoramento e/ou são técnicas que eliminam a diversidade
seleção, é preciso respeitar e usar judi- biológica. E isso impede o melhoramen-
ciosamente os germoplasmas nacionais, to genético natural das produções.
50
Agrobiodiversidade
A
As modificações dos germoplasmas variabilidade entre e dentro das espé-
só podem ser feitas artificialmente por cies – é o elemento fundamental para
meio de genética molecular, que tem al- identificar características genéticas que
tíssimos custos. E elas beneficiam ape- são úteis para produzir novas varieda-
nas as multinacionais que as produzem, des agrícolas, novos medicamentos e
ao mesmo tempo em que implicam a novos produtos (Ribeiro, 2003).
total dependência dos produtores des- Os povos pré-históricos alimenta-
sas empresas. Isso leva ao comprome- vam-se com mais de 1.500 espécies de
timento da soberania alimentar nos ní- plantas, e pelo menos 500 espécies e
veis local e nacional. variedades têm sido cultivadas ao lon-
A produtividade também aumenta go da história. Há 150 anos a humani-
com a diversidade. Conforme relata dade se alimentava com o produto de 3
Pat Mooney: mil espécies vegetais que, em 90% dos
países, eram consumidas localmente.
Um estudo realizado por uma uni- Hoje, quinze espécies respondem por
versidade dos Estados Unidos, 90% dos alimentos vegetais e quatro
que compreende diversas varie- culturas – trigo, milho, arroz e soja –
dades de arroz, na China e nas respondem por 70% da produção e do
Filipinas, mostrou que se forem consumo mundiais. Tende-se, assim, a
cultivadas paralelamente diver- uma perigosa monocultura, e a homo-
sas variedades de arroz, o rendi- geneidade leva à morte, ao passo que a
mento aumenta 89%, enquanto heterogeneidade, que é o estado dinâ-
as doenças reduzem-se 98%. O mico, é a vida.
estudo conclui que a diversi- A homogeneização produzida
dade ultrapassa amplamente o pelos procedimentos da Revolução
desempenho das variedades ge-
V erde e pelas chamadas exigências de
neticamente modificadas (trans-
mercado tem levado à morte por pro-
gênicas) e homogêneas. (2002,
p. 154) duzir a paralisação dos processos vi-
tais, esses intrinsecamente dinâmicos
Na mesma linha, Escher (2010), em e dialéticos (Machado, 2003). A diver-
dissertação de mestrado no Programa sidade é um componente essencial de
de Pós-graduação em Agroecossiste- todos os sistemas vivos para alcança-
mas da Universidade Federal de Santa rem a sua estabilidade instável; e da
Catarina (UFSC), encontrou, na diver- instabilidade dinâmica, cria-se a esta-
sidade da flora e da fauna do entorno da bilidade. É nesse movimento dialético
lavoura, fator decisivo para a sanidade que se fundamenta e se apoia a susten-
da lavoura de arroz ecológico. A biodi- tabilidade. Não existe sustentabilidade
versidade silvestre e agrícola – isso é, a na natureza sem biodiversidade.
Nota
1
Pastoreio racional Voisin é um método de manejo das pastagens que se baseia na divisão
da área e no uso dos pastos em seu “ponto ótimo de repouso”, isto é, quando o pasto tem a
maior disponibilidade de nutrientes e melhor qualidade biológica. O pastoreio é conduzido
pelo ser humano, respeitando os tempos variáveis de repouso do pasto e os tempos variá-
veis de ocupação das parcelas.
51
Dicionário da Educação do Campo
52
Agrocombustíveis
A
Solbrig, O. T. Observaciones sobre biodiversidad y desarrollo agrícola. In:
Matteucci, S. D. et al. Biodiversidad y uso de la tierra. Buenos Aires: Eudeba, 1999.
p. 29-40.
Vavilov, N. I. The Origin, Variation, Immunity and Breeding of Cultivated Plants.
Chronica Botanica, v. 13, n. 1-6, p. 1-366, 1951.
Agrocombustíveis
Frei Sergio Antonio Görgen
53
Dicionário da Educação do Campo
54
Agrocombustíveis
A
Após o processo de filtração e de- vapor d’água produzido na caldeira. O
cantação, tem-se o caldo da cana pro- alambique pode atingir temperaturas
priamente dito e pronto para o proces- de até 104ºC e a coluna de destilação, de
so de fermentação (mosto). Devem-se até 80ºC. Com isso, o etanol evapora
medir os sólidos totais (Brix, símbolo e vai, através de tubulações, para as
ºBx) do caldo com a ajuda de um den- colunas de destilação, onde ocorre a
símetro sacarímetro. O mosto deve ser separação do etanol da água. Depois
diluído até 11ºBx para que a fermenta- de separados, ocorre a condensação do
ção ocorra corretamente. vapor de etanol e, por consequência, a
O caldo de cana a 11ºBx é levado, mudança de fase do mesmo, que pas-
por gravidade, para as dornas de fer- sa a ser líquido. Após essa última eta-
mentação. A fermentação é realizada pa, o etanol sai do sistema e vai para
pela adição de fermento específico para o armazenamento.
fermentar o caldo da cana. A levedura O álcool combustível, com gradua-
utilizada é a Saccharomyces cerevisiae. A ção entre 92º e 96ºGL, é armazenado
fermentação ocorre à temperatura am- em um tanque aéreo de aço carbono.
biente, mas é necessário o controle da O vinhoto é o principal resíduo da
temperatura para que a mesma não ul- produção de álcool. Nas microusinas,
trapasse 32ºC, pois a temperatura ideal o vinhoto é armazenado em piscina
de trabalho das leveduras é de 28ºC. A apropriada, com volume máximo de
fermentação alcoólica é a transforma- 120 m3, revestida de uma geomembra-
ção em etanol da sacarose presente no na sintética impermeável de polietileno
caldo da cana. de alta densidade (Pead), com 1 mm de
espessura, a fim de evitar infiltrações.
Pelo controle do Brix presente no
O destino desse vinhoto é a aplica-
mosto é que se sabe quão avançado está
ção na lavoura, pois o vinhoto é mui-
o processo de fermentação. Quando
to rico em matéria orgânica. Além de
o mosto atinge 0ºBx é sinal de que todo o matéria orgânica, o vinhoto contém mi-
açúcar foi transformado em etanol, e nerais, entre os quais o potássio que,
o vinho pode seguir para a destilação. juntamente com o cálcio, aparece com
Deve-se deixar o vinho em repouso por destaque. Também pode ser usado na
aproximadamente três horas, a fim de alimentação de bovinos e porcos.
que ocorra a decantação das leveduras e
se mantenha o pé de cuba – designação
popular para a cultura enzimática que Alimergia
fermenta o caldo de cana, provocando Alimergia é um novo conceito em
a separação do álcool dos demais com- agricultura, pecuária e floresta que pro-
postos químicos – no fundo das dornas, cura desenvolver formatos produtivos
para ser utilizado na próxima fermenta- que integrem, de maneira sinérgica, a
ção. O vinho é, então, transferido para o
produção de alimentos e de energia
alambique por gravidade ou pela utiliza-
com a preservação ambiental. A alimer-
ção de bomba apropriada. Com o vinho
gia visa à soberania alimentar e energé-
na dorna volante, pode-se dar início à
tica das comunidades e dos povos de
destilação do mesmo.
maneira integrada e harmônica com os
O processo de destilação se dá me- ecossistemas locais. No entanto, isso
diante o aquecimento do vinho pelo só será possível com a utilização de
55
Dicionário da Educação do Campo
56
Agrocombustíveis
A
Já na Antiguidade a força do vento O metano, principal componente do
era utilizada como energia para movi- biogás, não tem cheiro, cor ou sabor,
mentar os barcos à vela. Nos moinhos mas os outros gases presentes confe-
de vento, essa força era transformada rem-lhe um ligeiro odor desagradável.
em energia mecânica e utilizada para É uma fonte de energia renovável.
moer grãos e bombear água. É uma Para produzir o biogás, usa-se o
forma renovável e limpa de produção biodigestor. O gás produzido poderá
de energia. servir para gerar energia elétrica, para
secar cereais, como gás de cozinha ou
Energia solar no aquecimento de ambientes, tanto de
uso humano quanto na produção ani-
O Brasil é o país que mais dispõe de mal. Os resíduos da fermentação são
horas de sol por ano no mundo – entre utilizados na adubação agrícola.
2 mil e 3 mil horas, o que significa em tor-
no de 15 trilhões de megawatts por hora
Biomassa
(MWh). O sol é uma fonte praticamente
inesgotável de energia. Porém, a utilização A biomassa se origina da energia
da energia solar ainda é insignificante. solar. As plantas mantêm simultanea-
A energia proveniente dos raios mente dois processos para sobreviver:
solares é renovável, alternativa, limpa, a respiração e a fotossíntese. Por meio
não deixa resíduos no meio ambiente e da fotossíntese, as plantas produzem
não prejudica o ecossistema. Os raios tecidos vegetais, que, por sua vez, cres-
solares podem ser transformados, com cem e se reproduzem. A fotossíntese
recursos e equipamentos adequados, é uma reação bioquímica que converte
em eletricidade (energia fotovoltaica) a energia solar – que é inesgotável em
ou em calor (energia térmica). termos humanos – em energia quími-
Um exemplo de conversão direta da ca, armazenada nos tecidos vegetais
radiação solar em calor são os coletores sob a forma de compostos orgânicos
solares para aquecimento de água. A que formam a biomassa: folhas, caules,
geração de energia elétrica a partir do raízes, sementes, frutos etc.
aquecimento solar da água vem sendo A temperatura tem forte influência
testada para acionar geradores elétricos na intensidade da fotossíntese na maioria
com capacidade de até 200 MW. dos plantios de inverno, que têm seu óti-
mo térmico entre 15ºC e 30ºC; já os plan-
tios de verão têm seu ótimo térmico entre
Biogás 20ºC e 40ºC. Ou seja, nessas temperatu-
O biogás é um biocombustível ori- ras, as plantas têm o máximo rendimento
ginado da degradação biológica (sem a em termos de produção de biomassa.
presença de oxigênio, de matéria orgâ- A localização de 92% do territó-
nica). É um tipo de mistura gasosa de rio brasileiro na zona intertropical e
dióxido de carbono e metano, produzi- as baixas altitudes do relevo explicam
do pela ação de bactérias em matérias a predominância de climas quentes,
orgânicas, que são fermentadas dentro com médias de temperatura superiores
de determinados limites de temperatu- a 20ºC. Essas condições climáticas dão
ra, teor de umidade e acidez. vantagens para o Brasil na produção
57
Dicionário da Educação do Campo
58
Agroecologia
A
modelo de sociedade que atenda aos como álcool, óleos vegetais, bio-
interesses das classes trabalhadoras; diesel, biogás e energia elétrica –,
• projetos com viabilidade ambien- juntamente com o armazenamen-
tal, social, técnica e econômica; to, o beneficiamento e a comercia-
• sistemas industriais descentraliza- lização de alimentos;
dos e sob o controle de organi- • hegemonia camponesa nos territó-
zações econômicas camponesas; rios e nas comunidades;
• produção de alimentos e energia tendo • autonomia científica, tecnológica
como componente indispensável a im- e na produção e melhoramento de
plantação de sistemas agroflorestais sementes e material genético, bem
e agrosilvipastoris; como das pesquisas e dos conhe-
• organização de sistemas alimentar- cimentos científicos necessários
energéticos completos, integrando ao desenvolvimento dos projetos
as várias fontes de energia – tais implementados.
AGROECOLOGIA
Dominique Michèle Perioto Guhur
Nilciney Toná
59
Dicionário da Educação do Campo
60
Agroecologia
A
conformação atual: o ambientalismo, a Desse período inicial, destacam-se
sociologia, a antropologia, a geografia alguns pioneiros na crítica à Revolu-
e o desenvolvimento rural, e o estudo ção Verde no Brasil, cujas obras per-
de sistemas tradicionais de produção – manecem ainda hoje como referência
indígenas e camponeses – de países da para a agroecologia nos trópicos: José
periferia do capitalismo. Lutzenberger, um dos primeiros ati-
O uso do termo agroecologia se vistas ambientais do país, desempe-
popularizou nos anos 1980, a partir nhou papel importante na denúncia
dos trabalhos de Miguel Altieri e, pos- dos malefícios dos agrotóxicos e na
teriormente, de Stephen Gliessman, necessidade de sua regulamentação;
ambos pesquisadores de universidades Adilson Paschoal, que estudou o efeito
estadunidenses e atualmente conside- dos agrotóxicos nos agroecossistemas;
rados os principais expoentes da “ver- Ana Primavesi, pesquisadora pioneira
tente americana” da agroecologia. em considerar o solo como um orga-
nismo vivo e na crítica à utilização de
A outra principal vertente da agroe-
tecnologias importadas; Luiz Carlos
cologia é conhecida como “escola eu-
Pinheiro Machado, que desenvolveu e di-
ropeia”. Surgida em meados dos anos
fundiu o pastoreio racional Voisin-PRV
1980 na Andaluzia, Espanha, represen-
no Brasil (método ecológico de produ-
ta uma agroecologia de viés sociológi-
ção animal à base de pasto); e Sebastião
co, que busca inclusive uma caracteriza-
ção agroecológica do campesinato. No Pinheiro, que se destacou na denúncia
entendimento dessa escola, a agroe- das contaminações por agrotóxicos e no
cologia surgiu de uma interação entre desenvolvimento de tecnologias para a
as disciplinas científicas (naturais e produção de base ecológica.
sociais) e as próprias comunidades ru- Foi somente a partir de 1989 que
rais, principalmente da América Latina. o termo agroecologia começou a ser
Seus principais expoentes são Eduardo utilizado no Brasil, com a publicação
Sevilla-Guzmán e Manuel González do livro Agroecologia: as bases científicas da
de Molina, ambos ligados ao Institu- agricultura alternativa, de Miguel Altieri
to de Sociología y Estudios Campe- (1989). Em seguida, nos anos 1990,
sinos (ISEC), da Universidade de as organizações não governamentais
Córdoba, Espanha. (ONGs) foram as principais dissemi-
nadoras da agroecologia (Luzzi, 2007).
O desenvolvimento da No final da década de 1990, e com
agroecologia no Brasil maior força a partir do início dos anos
2000, os movimentos sociais populares
No Brasil, a contestação à Revolu- do campo, em especial aqueles vincu-
ção Verde surgiu com o movimento da lados à Via Campesina, incorporaram
“agricultura alternativa” do final da dé- o debate agroecológico à sua estratégia
cada de 1970, mas permaneceu inicial- política e passaram a dar contribuições
mente restrita a um pequeno grupo de importantes. Podemos citar a Jornada
intelectuais, em sua maioria profissio- de Agroecologia (cujo lema é “Terra
nais das ciências agrárias, até meados Livre de Transgênicos e Sem Agrotóxi-
da década de 1980 (ver Agriculturas cos”), realizada anualmente no Paraná
Alternativas). desde 2002, com um público médio
61
Dicionário da Educação do Campo
62
Agroecologia
A
Para o desenvolvimento de uma agri- e consumo que contribuam para
cultura sustentável e produtiva, a fazer frente à atual deteriora-
agroecologia orienta práticas de: apro- ção ecológica e social gerada
veitamento da energia solar através da pelo neoliberalismo. 4 (Sevilla-
fotossíntese; manejo do solo como um Guzmán, 2001, p. 1; nossa
organismo vivo; manejo de processos tradução)
ecológicos – como sucessão vegetal,
ciclos minerais e relações predador– Essa definição amplia significativa-
praga; cultivos múltiplos e sua associa- mente o entendimento da agroecologia.
ção com espécies silvestres, de modo Um primeiro aspecto dessa ampliação
a elevar a biodiversidade dos agroe- diz respeito ao fato de se conceber a
cossistemas; e ciclagem da biomassa – agroecologia para além de instrumento
incluindo os resíduos urbanos. Dessa metodológico que simplesmente per-
forma, “o saber agroecológico con- mite melhor compreensão dos sistemas
tribui para a construção de um novo agrários e soluciona problemas produ-
paradigma produtivo ao mostrar a pos- tivos que a ciência agronômica conven-
sibilidade de produzir ‘com a nature- cional não resolve, ou mesmo agrava.
za’” (Leff, 2002, p. 44). Nesse sentido mais amplo, as variáveis
sociais ocupam papel relevante. Ainda
Muito embora não exista produ- que se parta da dimensão técnica de
ção “fora da natureza”, o modelo da um agroecossistema, daí se pretende
Revolução Verde e do agronegócio de- compreender as múltiplas formas de
senvolve-se com base em tecnologias dependência dos agricultores na atual
“contra a natureza”, que bloqueiam ou política e economia. Outros níveis de
impedem processos naturais que são análise dizem respeito à matriz socio-
a base do manejo agroecológico nos cultural ou comunitária, ou seja, à prá-
agroecossistemas – como é o caso do xis intelectual e política, à identidade
uso de herbicidas, que bloqueiam ou local e às relações sociais em que os
mesmo fazem regredir a sucessão eco- sujeitos do campo se inserem. Isso
lógica em determinado ambiente. resulta na inserção da produção ecoló-
Entretanto, a agroecologia não gica em propostas para “ações sociais
pode ser entendida apenas como um coletivas” que superem o modelo pro-
conjunto de técnicas. Com base na es- dutivo agroindustrial hegemônico.
cola europeia, a agroecologia pode ser Um conceito base dessa forma de
definida como compreender a agroecologia é a coe-
volução entre os sistemas naturais e
[...] o manejo ecológico dos re- sociais, entre ambiente e cultura, sen-
cursos naturais mediante for- do que os seres humanos têm a capa-
mas de ação social coletiva que cidade de direcionar essa coevolução
apresentem alternativas à atual (Gliessman, 2000). As populações do
crise civilizatória. E isso por campo, sua cultura e suas formas de or-
meio de propostas participati- ganização e resistência são elementos
vas, desde os âmbitos da produ- centrais no processo de coevolução; no
ção e da circulação alternativa entanto, não se pode desconsiderar a
de seus produtos, pretendendo hegemonia das relações capitalistas no
estabelecer formas de produção campo no direcionamento dessa coe-
63
Dicionário da Educação do Campo
64
Agroecologia
A
mas se configura como prática social, riências de agriculturas de base ecológi-
ação de “manejo” da complexidade ca, ressaltando processos de organização
dos agroecossistemas particulares, in- social que se orientam pela luta política e
seridos em múltiplas relações naturais transformação social, indo além da luta
e sociais, relações que eles determinam econômica imediata e corporativa e das
e pelas quais são determinados. ações localizadas, e por vezes assisten-
É evidente que, à medida que se cialistas, junto dos agricultores. De fato,
ampliou o questionamento e a crítica a agroecologia possui uma especificida-
ao padrão de agricultura capitalista da de que referencia a construção de outro
Revolução Verde, os termos “agroeco- projeto de campo. Entretanto, tal projeto
lógico” e “sustentável” passaram a ser de campo é incompatível com o sistema
disputados por setores representantes capitalista e depende, em última instân-
justamente dos interesses capitalistas cia, de sua superação.
que promovem feroz depredação da Em decorrência da separação an-
natureza. Na perspectiva conhecida tagônica entre cidade e campo, e da
como “duplamente verde”, o desenvol- “alienação material dos seres humanos
vimento de novas tecnologias (como os dentro da sociedade capitalista das con-
transgênicos, por exemplo) seria capaz dições naturais que formam a base de
de minimizar os efeitos ambientais no- sua existência” (Foster, 2005, p. 229),
civos da Revolução Verde, garantindo, uma falha irreparável surgiu no meta-
ao mesmo tempo, os atuais níveis de bolismo entre o homem e a terra. Go-
produtividade. Essa perspectiva vem vernar racionalmente esse metabolismo
ganhando força com o biobussines, ou “excede completamente as capacitações
bionegócio, o agronegócio pretensa- da sociedade burguesa” (ibid.). Restau-
mente “sustentável”, porém, diante da rá-lo exige uma ordem social qualita-
tivamente orientada, que só pode ser
alcançada na sociedade dos indivíduos
[...] transformação da geopolítica
livremente associados, que, como sujei-
de uma economia ecologizada que
tos históricos autônomos, estejam no
hoje em dia revaloriza o sentido
pleno controle do processo produtivo,
conservacionista da natureza –
esse conscientemente subordinado à
reabsorve e redesenha a econo-
satisfação das necessidades humanas, e
mia natural dentro das estratégias
não a uma riqueza fetichizada.
de mercantilização da natureza,
reduzindo o valor da biodiver- Nesse sentido, está em gestação uma
sidade em suas novas funções concepção mais recente de agroecologia,
como provedora de riqueza ge- ainda mais ampliada: a partir da prática dos
nética, de valores cênicos e eco- movimentos sociais populares do campo,
turísticos e de sua capacidade de que não a entendem como “a” saída tec-
absorção de carbono (biobussines), nológica para as crises estruturais e con-
a agroecologia se encrava no con- junturais do modelo econômico e agrí-
texto de uma economia política cola, mas que a percebem como parte de
do ambiente. (Leff, 2002, p. 40) sua estratégia de luta e de enfrentamento
ao agronegócio e ao sistema capitalista
Nesse contexto, a agroecologia não de exploração dos trabalhadores e da de-
se restringe ao desenvolvimento de expe- predação da natureza.
65
Dicionário da Educação do Campo
Notas
1
A primeira edição do livro, em língua espanhola, é de 1983. Em 1987, a obra foi publicada
nos Estados Unidos e, em 1989, no Brasil.
2
“[...] una disciplina que provee los principios ecológicos básicos para estudiar, diseñar y
manejar agroecosistemas que sean productivos y conservadores del recurso natural, y que
también sean culturalmente sensibles, socialmente justos y económicamente viables.”
3
“[...] una construcción social, producto de la coevolución de los seres humanos con la
naturaleza.”
4
“[...] el manejo ecológico de los recursos naturales a través de formas de acción social co-
lectiva que presentan alternativas a la actual crisis civilizatoria. Y ello mediante propuestas
participativas, desde los ámbitos de la producción y la circulación alternativa de sus produc-
tos, pretendiendo establecer formas de producción y consumo que contribuyan a encarar el
deterioro ecológico y social generado por el neoliberalismo actual.”
66
Agroecossistemas
A
Foster, J. B. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005.
Gliessman, S. R. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável.
2. ed. Porto Alegre: Universidade–Editora da UFRGS, 2000.
Leff, E. Agroecologia e saber ambiental. Agroecologia e Desenvolvimento Rural Susten-
tável, Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 36-51, jan.-mar. 2002.
Linhart, R. Lenin, os camponeses, Taylor. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.
Luzzi, N. O debate agroecológico no Brasil: uma construção a partir de diferentes
atores sociais. 2007. Tese (Doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
Sevilla-Guzmán, E. La agroecología como estrategia metodológica de transformación social.
Córdoba, Espanha: Instituto de Sociología y Estudios Campesinos de la Univer-
sidad de Córdoba, [s.d.]. Disponível em: http://www.agroeco.org/socla/pdfs/
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Agroecológico Latinoamericano Paulo Freire (IALA), agosto de 2009.
______; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Biodiversidade,
organização popular, agroecologia. In: Jornada de Agroecologia, 5. Anais... Cascavel:
Jornada de Agroecologia, 2006.
Agroecossistemas
Denis Monteiro
67
Dicionário da Educação do Campo
68
Agroecossistemas
A
são a atmosfera e os solos. Os nutrien- nhas”, e combatidas com o uso inten-
tes são armazenados na biomassa, e sivo de herbicidas. São utilizadas redu-
retornam aos solos pela decomposição zidas espécies de plantas e animais, em
da matéria orgânica. geral pouco adaptadas às condições
ecológicas locais. A biodiversidade na-
Agronegócio e ecossistemas tiva é destruída, e a base genética das
populações é bem estreita, uma vez que
artificializados
se utilizam variedades de plantas e ra-
O agronegócio, modelo agrícola ças animais desenvolvidas pela pesqui-
hegemônico hoje no Brasil, tem como sa agropecuária para serem uniformes
base técnico-científica a chamada Re- e responderem ao pacote tecnológico
volução Verde, que se disseminou am- agroquímico. Tudo isso provoca ruptu-
plamente no país a partir da segunda ras no equilíbrio ecológico, e os agro-
metade do século XX, transformando ecossistemas adoecem. Populações de
radicalmente as paisagens. insetos e microrganismos se tornam
O avanço do agronegócio no Brasil problemas econômicos graves para os
se fez com a substituição de ecossiste- cultivos e criações, e são atacados com
mas naturais por monocultivos e com doses cada vez maiores de agrotóxicos.
a expulsão de populações tradicionais Esses agroecossistemas têm relações
dos territórios, causando grande des- com mercados distantes, em muitos ca-
truição de agroecossistemas diversifi- sos as colheitas são exportadas para ou-
cados, construídos ao longo de séculos tros países por empresas multinacionais.
por essas populações. As relações sociais são de exploração e
Esse modelo agrícola provoca gran- alienação dos trabalhadores rurais, que
de artificialização dos ecossistemas. A passam a ser vistos como operários de
biodiversidade dá lugar aos monocul- uma indústria, e não como agricultores.
tivos. Os nutrientes são fornecidos às O objetivo é gerar lucro; não existe a
plantas por meio de fertilizantes sinté- preocupação de conservar a natureza.
ticos. Os ciclos dos nutrientes são alte- Quando os agroecossistemas atingem
rados e muitos se perdem, indo poluir níveis de degradação que os tornam
os cursos d’água e os lençóis freáticos. pouco produtivos ou quando os custos
Além disso, muita energia oriunda de passam a ficar muito altos, as grandes
combustíveis fósseis é empregada, propriedades do agronegócio avançam
pois a mecanização pesada é frequen- sobre outros ecossistemas, gerando no-
te, como também o uso da irrigação, vos ciclos de exploração e degradação.
com águas bombeadas muitas vezes É possível identificar várias paisagens
de locais distantes. O ciclo das águas degradadas pelo avanço desse modelo,
é profundamente alterado pela drástica muitas inclusive já desertificadas.
redução da biodiversidade e pela perda
de matéria orgânica no sistema, pois é A agroecologia a favor da
a matéria orgânica que mantém os so-
los estruturados e retém a água. agricultura camponesa
As plantas espontâneas são vistas Para responder ao desafio de cons-
como espécies “invasoras” ou “dani- truir agroecossistemas produtivos, sus-
69
Dicionário da Educação do Campo
70
Agroecossistemas
A
cas. Diferentemente dos ecossistemas • equidade: capacidade do agroecos-
não manejados, os agroecossistemas têm sistema de gerir de forma justa sua
a função de gerar produtos para os se- força produtiva (material e imate-
res humanos. E, para as famílias agri- rial), distribuindo equilibradamente
cultoras, é do agroecossistema que é os custos e benefícios da produtivi-
obtida renda monetária. dade em todos os campos das rela-
Almeida (2001) elenca certos atri- ções sociais em que se insere; inclui
butos dos agroecossistemas que devem divisão social e técnica do trabalho
ser objeto de atenção quando se quer familiar, relações de gênero e de ge-
promover níveis crescentes de susten- ração, relações com os processos so-
tabilidade da agricultura camponesa ciopolíticos e serviços ambientais;
por meio da aplicação dos princípios • autonomia: capacidade do sis-
da agroecologia, atributos que a agri- tema de regular e controlar suas
cultura camponesa, em sua estratégia relações com o exterior (bancos,
de reprodução econômica, sempre empresas de insumos, atacadistas,
perseguiu: agroindústria, atravessadores etc.);
inclui os processos de organização
• produtividade: a capacidade do social e de tomada de decisões, e
agroecossistema de prover o nível a capacidade para definir interna-
adequado de bens, serviços e retor- mente as estratégias de reprodução
no econômico aos agricultores num econômica e técnica, os objetivos, as
período determinado de tempo; prioridades, a identidade e os valo-
• estabilidade: capacidade do sistema res do sistema.
de manter um estado de equilíbrio Agroecossistemas camponeses, de-
dinâmico estável, ou seja, de manter senhados segundo os princípios
ou aumentar, em condições normais, da agroecologia, buscam relações de
a produtividade do sistema ao longo maior autonomia com o ambiente
do tempo; econômico externo, seja garantindo
diversidade de produção para auto-
• flexibilidade (ou adaptabilidade):
consumo – e, portanto, gerando ren-
capacidade do sistema de manter
da não monetária –, seja evitando ou
ou encontrar novos níveis de equilí-
minimizando o consumo de insumos
brio – continuar sendo produtivo –
e equipamentos industriais – tratores,
diante de mudanças de longo prazo
equipamentos de irrigação, fertilizan-
nas condições econômicas, biofísi- tes, sementes comerciais e agrotó-
cas, sociais, técnicas etc.; xicos –,seja buscando diversificar os
• resiliência (ou capacidade de recu- mercados para os produtos agrícolas
peração): capacidade do sistema gerados nos agroecossistemas, priori-
produtivo de absorver os efeitos de zando os mercados locais e evitando,
perturbações graves (secas, inunda- sempre que possível, relações de su-
ções, quebras de colheita, elevação bordinação aos mercados capitalistas.
de custos etc.), retornando ao es- O enfoque agroecológico também
tado de equilíbrio ou mantendo o propõe a construção de relações so-
potencial produtivo; ciais nos agroecossistemas pautadas em
71
Dicionário da Educação do Campo
72
Agroecossistemas
A
catações manuais, podas e outros mé- mas e as agriculturas, herança preciosa
todos que não agridam a natureza. dos povos para a humanidade, forem
resgatados e ressignificados, por meio
de interações entre esses saberes po-
Para concluir: um
pulares e outros, construídos pela pes-
ambiente cultural fértil quisa em agroecologia desenvolvida
O desafio de construir agroecos- em instituições de ensino e pesquisa,
sistemas férteis, saudáveis e produ- fortalecendo, assim, em contraponto
tivos só poderá ser enfrentado se o ao modelo devastador do agronegó-
ambiente cultural da agricultura cam- cio, a agricultura camponesa, capaz de
ponesa também for fértil, se conhe- garantir o futuro para a humanidade e
cimentos valiosos sobre os ecossiste- para o planeta Terra.
Nota
1
A rigor, a subordinação à lógica do agronegócio reduz os níveis de campenização da
agricultura (Ploeg, 2009). O autor faz uma diferenciação entre agricultura camponesa, em-
presarial e capitalista. Essa linha de argumentação também permite pensar em aumentar os
níveis de campenização da agricultura familiar (ou das pequenas unidades de produção),
fortalecendo, dessa forma, a agricultura camponesa em relação ao agronegócio.
73
Dicionário da Educação do Campo
Agroindústria
Pedro Ivan Christoffoli
74
Agroindústria
A
posterior utilização e consumo. Para sileiro, foi coordenado politicamente
isso, são utilizados insumos e pro- pelo Estado e ocorreu após o final da
cessos que visam alterar as condições Segunda Guerra Mundial, quando a
físico-químicas dos produtos agrícolas, apropriação do valor gerado pelo tra-
a fim de aumentar suas possibilidades balho na agricultura e na agroindústria
de uso e conservação. Com a evolução passou a ser condição necessária para
das tecnologias de produto e processo a acumulação capitalista de parcela da
e a constituição de mercados urbanos indústria de bens de capital (Müller,
em escala internacional, cada vez mais 1981). Com isso, constituiu-se uma
os produtos agrícolas são processados interdependência intersetorial na agri-
industrialmente, alterando-se signifi- cultura que acabou por se refletir na es-
cativamente sua composição e formas trutura e na dinâmica do setor agrícola
de apresentação. Os mercados são for- (transformações técnico-econômicas),
mados crescentemente por produtos e também na sua estrutura social. A
industrializados, processados e modifi- utilização do termo industrialização
cados artificialmente, reduzindo-se os da agricultura significa que houve uma
espaços para produtos in natura, mais artificialização crescente do modelo
característicos das produções campo- produtivo na agricultura. Houve certa
nesas (ainda que periodicamente sur- autonomização relativa da produção
jam movimentos sociais e de consumi- agrícola em relação às limitações natu-
dores reagindo a essas tendências). rais (reprodução da fertilidade da terra,
A cadeia agroalimentar se refere, diminuição do tempo de produção gra-
portanto, a um conjunto de produto- ças ao emprego de conhecimentos de
res e empresas que estão envolvidos na engenharia genética, por exemplo) e à
produção agrícola e na sua transforma- destreza do trabalho humano (empre-
ção. Sua estrutura é caracterizada por go de máquinas, implementos, herbici-
um subsetor a montante (que fornece das, por exemplo) (ibid.).
os bens de produção), pelo subsetor A expansão dos serviços financei-
agrícola e por um subsetor que trans- ros para a agricultura, iniciada com a
forma e distribui os produtos agrícolas implantação do Sistema Nacional de
e alimentares (Malassis, 1973). Enquan- Crédito Rural (SNCR) nos anos 1960,
to atividade econômica, a agroindústria provocou alterações profundas nas re-
tem importância crescente em termos lações de produção da agricultura. A
de retenção do valor gerado na cadeia crescente dependência de financiamen-
produtiva. Os segmentos de forneci- to externo, com a consequente apro-
mento de máquinas e insumos para a priação, já a partir dos anos 1960, do
agricultura, e, principalmente, o seg- valor gerado na agricultura pelo setor
mento interno à “porteira”, estão gra- financeiro, conduziu à gradativa finan-
dativamente perdendo peso comparati- ceirização dos serviços e dos critérios
vamente com o segmento posterior, de de rentabilidade adotados pelo setor
industrialização e comercialização dos (Delgado, 1985).
produtos agrícolas. O complexo agroindustrial (CAI)
A esse fenômeno alguns autores é conceituado como “o conjunto de
denominam processo de industrialização da processos técnico-econômicos e so-
agricultura, processo que, no caso bra- ciopolíticos, que envolvem a produção
75
Dicionário da Educação do Campo
76
Agroindústria
A
agricultura subordina diretamente a assegura à empresa industrial o forne-
exploração da natureza e da força de cimento de matéria-prima padroniza-
trabalho no campo à dinâmica deter- da, a custos controlados, sem incorrer
minada pela expansão do capital finan- nos riscos diretos de produção e nas
ceiro em nível internacional. Significa amarras e peso da legislação trabalhis-
também a recomposição das políticas ta. E o produtor tem acesso assegurado
públicas em vista dos interesses maio- a capital, tecnologia e, principalmente,
res do capital financeiro internacional mercados, além de uma renda relati-
e das suas ramificações na agricultura vamente estável, dependendo do pro-
(para aprofundamento desse conceito, duto integrado. O sistema de integra-
ver Agronegócio). ção permitiu constituir fortes grupos
As grandes agroindústrias brasi- agroindustriais no Brasil nas últimas
leiras foram constituídas a partir do décadas, ainda que em grande medida
estímulo governamental ocorrido nos sejam hoje, em sua maioria, controla-
anos 1950, e impulsionada pela acu- dos pelo capital financeiro (fundos de
mulação industrial e pelo processo de pensão, bancos e empresas cotadas em
fusão de capitais nos vários ciclos de bolsa de valores).
expansão/crise capitalista no campo Como reação ao crescente poder
nas décadas de 1970 a 2000. Dessa di- das agroindústrias, agricultores e movi-
nâmica resultam, cada vez mais, gigan- mentos sociais do campo têm buscado
tescos conglomerados produtivos que estabelecer estratégias de resistência,
asseguram a apropriação do valor ge- visando à agregação de valor à produ-
rado na agricultura por meio de vários ção camponesa, por meio da criação
mecanismos, entre eles os contratos de agroindústrias cooperativas e asso-
de integração. ciativas, sob controle dos trabalhado-
O sistema de integração consiste no res. Essas agroindústrias associativas
estabelecimento de contratos de forne- procuram estabelecer estratégias dife-
cimento entre indústria e agricultores renciadas em relação às agroindústrias
no quais a empresa adianta capital (na capitalistas, seja no campo tecnológico,
forma de insumos e tecnologia) e assis- estimulando a agroecologia e a produ-
tência técnica, e os agricultores, em ge- ção em pequena escala, seja na forma
ral pequenos, produzem em suas uni- de organização social da base e na luta
dades matéria-prima que será coletada, por um novo modelo de desenvolvi-
transportada e processada pelas unida- mento do meio rural, com políticas pú-
des industriais. Os principais tipos de blicas diferenciadas.
integração encontram-se na produção No entanto, muitas dessas indús-
de fumo, na avicultura de corte, na sui- trias originadas dos movimentos so-
nocultura, na criação do bicho-da-seda ciais, em sua maioria de pequeno porte,
e na produção de leite e, de forma cres- terminam por sucumbir à concorrência
cente, de hortaliças (integrada a redes com as demais agroindústrias capitalis-
de supermercados). A integração en- tas, entrando em crise após curto perío-
volve cerca de meio milhão de famílias do de existência, ou convertendo-se
de pequenos agricultores nas mais di- gradualmente em cópias quase fiéis
versas regiões do Brasil, em especial no das agroindústrias capitalistas, mui-
Centro-Sul. O contrato de integração tas vezes abandonando as propostas
77
Dicionário da Educação do Campo
78
Agroindústria
A
trias) e facilidade de acesso a serviços duráveis no tempo e sejam capazes de
e comunicação. A despeito disso, uma influenciar o desenvolvimento local em
das bandeiras dos movimentos sociais bases equitativas, é fundamental a sua
rurais no Brasil tem sido a de, sempre inserção em estratégias de intercoope-
que possível, localizar fisicamente as ração, por meio da formação de redes
indústrias dentro ou próximo dos as- e agrupamentos cooperativos articula-
sentamentos e comunidades rurais, de dos aos movimentos sociais que pos-
modo que a riqueza gerada, inclusive os sibilitem o enfrentamento, ao menos
postos de trabalho criados, circule e se parcial, da concorrência capitalista e
consolide nos assentamentos, benefi- das tendências de centralização de ca-
ciando diretamente a população rural. pitais (Christoffoli, 2010).
Mesmo diante dos limites e con- Ou seja, a forma de buscar construir
tradições trazidos pela implantação de estratégias de resistência aos grandes con-
agroindústrias rurais, autores e movi- glomerados capitalistas agroindustriais
mentos sociais em geral concordam estaria na constituição de redes de coope-
que elas têm grande importância nas rativas populares, geridas autonomamen-
estratégias de desenvolvimento rural te em regime de autogestão e articuladas
da perspectiva da inclusão social, con- a grupos cooperativos empresariais, com
tribuindo para: a) elevação da renda fa- padrão de eficiência comparável aos gru-
miliar no meio rural; b) diversificação e pos capitalistas, de forma que a força
fomento das economias locais; c) ade- combinada de uma organização política
quação da produção à estrutura fundi- de base esteja acompanhada de padrões de
ária existente (pequenas propriedades eficiência técnica comparáveis aos capi-
rurais diversificadas como fornecedo- talistas e com dimensões e estruturas de
ras da matéria-prima, visto que a estra- coordenação socioeconômica compatí-
tégia de agregação de valor nas peque- veis com o estágio tecnológico e finan-
nas agroindústrias é obtida por meio ceiro atual. Para isso, é fundamental um
da diferenciação, e não do volume); movimento educativo de ampla enver-
d) valorização e preservação dos hábi- gadura na base camponesa, tendo em
tos culturais locais; e) descentralização vista a sua escolarização e a sua efetiva
das fontes de renda (por causa do au- incorporação à dinâmica autogestioná-
mento no número e da maior diversi- ria, e o desenvolvimento de tecnologias
dade de agroindústrias no território); e processos inovadores, pelo desenho e
f) estímulo à proximidade social (orga- a implantação de estratégias de desen-
nização comunitária, venda em feiras volvimento inclusivas e capazes de dar
livres ou redução de intermediários); conta dos desafios da sociedade para a
g) ocupação e geração de renda no meio agricultura, numa perspectiva ecologi-
rural; h) redução do êxodo rural; i) estí- camente sustentável.
mulo ao cooperativismo e associativis- Portanto, a permanência de agroin-
mo; j) valorização das especificidades dústrias familiares em mercados ca-
locais; k) preservação do meio ambien- pitalistas cada vez mais competitivos
te e dos recursos naturais; e l) mudança dependerá de uma série de fatores, em
nas relações de gênero e poder (Wesz especial de sua capacidade de interação
Junior, Trentin e Filippi, 2006). com macrocomponentes de políticas
No entanto, para que essas agroin- públicas – mercados, gestão, tecnologia
dústrias resultem de fato em iniciativas e infraestrutura –, de suas organização
79
Dicionário da Educação do Campo
Notas
1
“[...] the sum total of all operations involved in the manufacture and distribution of farm
supplies; production operations on the farm; and the storage, processing and distribution
of farm commodities and items made from them.”
2
Enquanto 97,2% das agroindustriais de pequeno e médio porte geram 43,9% do valor
adicionado, os outros 2,8%, correspondentes aos grandes sistemas e complexos agroindus-
triais, geram 66,1% desse valor (Lourenzani e Silva, 2004, apud Nycha e Soares, 2007).
80
Agronegócio
A
Malassis, L. Économie agroalimentaire: économie de la consommation et de la pro-
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Sober, julho de 2006.
AGRONEGÓCIO
Sergio Pereira Leite
Leonilde Servolo de Medeiros
81
Dicionário da Educação do Campo
82
Agronegócio
A
e produtos, expressão que teria assu- tanto nas reflexões sobre as circuns-
mido a “industrialização da agricultu- tâncias que informam o movimento de
ra” formulada por Kautsky no início expansão das atividades que estariam
do século XX. Como chamam atenção compreendidas nessa definição quanto,
Heredia, Palmeira e Leite, “a ideia do igualmente, para pensarmos a validade
‘agronegócio’ se tornará uma espécie do seu contraponto, isto é, o conjun-
de radicalização dessa visão, em que to de situações sociais e atividades que
o lado ‘agrícola’ perde importância e o não estariam representadas e/ou le-
lado ‘industrial’ é abordado tendo gitimadas pelo emprego desse termo:
como referência não a unidade indus- agricultores familiares, assentados de
trial local, mas o conjunto de atividades projetos de Reforma Agrária, comuni-
do grupo que a controla e suas formas dades tradicionais etc. Em boa medida,
de gerenciamento” (2010, p. 160). a permanência dessas últimas no cená-
Da perspectiva da análise dos eco- rio agrário atual tem sido identificada,
nomistas rurais, é interessante notar, pelos segmentos mais conservadores,
adicionalmente, que a resistência da como “obstáculo”, “atraso” ou, ain-
corrente dominante ao uso de uma da, como portadora de experiências
abordagem intersetorial agricultura– “obsoletas” num meio rural cada vez
indústria até meados dos anos 1980 mais industrializado.
(por considerarem que tal perspectiva A análise dos processos sociais rurais
feria a propriedade do setor agrícola que informam a análise do agronegócio não
em atestar os atributos de concorrência pode estar desvinculada da análise de prá-
pura ou perfeita na análise das funções ticas, mecanismos e instrumentos de po-
econômicas e produtivas) é comple- líticas – setoriais ou não – implementa-
tamente revertida no início da década dos pelo Estado brasileiro. Ainda que tal
posterior, quando se verifica, da pers- forma de intervenção tenha se alterado
pectiva de uma análise econômica do ao longo do tempo (por exemplo, da po-
novo estatuto do setor agropecuário, lítica de crédito rural dos anos 1970 à re-
agora funcionando de forma integra- negociação de dívidas no final dos anos
da, uma adesão aos novos termos e à 1990 e ao longo da década de 2000), ela
sua capacidade explicativa (Heredia, é importante para identificar as diferen-
Palmeira e Leite, 2010). tes políticas públicas que subsidiam a
Assim, é preciso compreender os expansão dessas atividades, aliviando os
processos sociais, econômicos, polí- constrangimentos financeiros, ambien-
ticos e institucionais relacionados à tais, trabalhistas, logísticos etc. (Silva,
emergência do termo agronegócio na vi- 2010), ou mesmo promovem a produção
do conhecimento técnico necessário ao
rada dos anos 1980 para os anos 1990
aumento da sua produtividade física nas
como dimensões que extrapolam o
mais diferentes regiões do país.
mero crescimento agrícola/agroindus-
trial e o simples aumento da produtivi-
dade física dos setores envolvidos na A dinâmica recente
cadeia de produtos e atividades, e que do agronegócio
são comumente associadas ao termo
nos debates e reportagens jornalísticas No que diz respeito ao perfil do
sobre o setor. Isso deve ser observado agronegócio hoje, o que se observa é,
83
Dicionário da Educação do Campo
por um lado, sua tendência a controlar para exportação, sem nenhum benefi-
áreas cada vez mais extensas do país e, ciamento no Brasil.
por outro, a concentração de empresas Processos semelhantes podem ser
com controle internacional. Tomando identificados na produção de etanol e
o caso da soja como exemplo, verifica- biodiesel e na indústria florestal.
se que, até 1995, a Cargill destacava-se
como a grande empresa com unidades
de esmagamento no Brasil. Como apon- Agronegócio, trabalho
ta Wesz Junior (2011), após dois anos e terra
de intenso processo de fusões e aquisi-
ções, ADM, Bunge e Dreyfus-Coinbra O que hoje se denomina agronegócio
também passaram a ter controle sobre relaciona-se, como já indicado, com a
a propriedade de unidades de benefi- alta tecnologia agrícola. As tecnologias
ciamento do grão. Assim, em 2004, o diferem bastante segundo o ramo que
número de agroindústrias controladas se toma como referência. Assim, se
pelo Grupo ABCD (que, a partir de a soja e o algodão têm sua produção
2001, passou a contar com a presença marcada, tanto no plantio quanto na
da Amaggi) alcançou trinta plantas in- colheita, pela presença de insumos quí-
dustriais. Esse movimento corresponde, micos, biotecnologias e mecanização, o
no caso da soja, a uma nova regionaliza- mesmo não se dá, por exemplo, com
ção das empresas, que buscam situar-se o café, que exige abundância de mão
de forma mais próxima às regiões pro- de obra na colheita. A própria cana-de-
dutoras, como é o caso do Mato Grosso açúcar, que pode ser cortada mecani-
e do oeste baiano. camente em áreas planas, em áreas de
Esse processo de concentração é relevo irregular exige corte manual.
marcado também pela verticalização: Mesmo culturas que são mecanizadas
os grandes grupos controlam hoje a demandam mão de obra para recolher
produção de insumos, o armazena- os restos deixados pelas máquinas (al-
mento, o beneficiamento e a venda. Sua godão, cana), plantio de mudas (euca-
estratégia é desenhada com base na sua lipto) ou combate a pragas (formiga no
dinâmica de inserção nos mercados in- eucalipto). Assim, embora tenha ha-
ternacionais. Comentando o caso par- vido uma redução de mão de obra no
ticular da soja, Wesz Junior (2011) res- setor agrícola, o emprego do trabalho
salta que, em 2010, as empresas Bunge, assalariado em atividades braçais está
Cargill, ADM, Dreyfus e Amaggi do- longe de desaparecer. Consolidou-se
minavam 50% da capacidade de esma- um mercado de trabalho composto por
gamento da oleaginosa; 65% da pro- trabalhadores permanentes e temporá-
dução nacional de fertilizantes; 80% rios os quais correspondem, embora
do volume de financiamento liberado não exatamente, àqueles com direitos
pelas tradings para o cultivo do grão; trabalhistas assegurados e outros que
85% da soja produzida no país; 95% vivem à margem desses direitos. Boa
das exportações in natura da soja bra- parte deles mora nas periferias das ci-
sileira; e 8,1% das exportações nacio- dades próximas aos polos do agrone-
nais. O autor afirma ainda que, no mí- gócio. Ao mesmo tempo, verifica-se, no
nimo, um terço da soja produzida por interior das unidades produtivas agrí-
esse grupo de empresas segue direto colas, a presença de uma mão de obra
84
Agronegócio
A
qualificada, composta por operadores últimos anos: por mais que suas terras
de máquinas, mecânicos, agrônomos, possam ser “produtivas”, a necessida-
técnicos agrícolas etc., indicando uma de de manter outras como reserva para
segmentação do mercado de trabalho sua expansão faz de qualquer mudança
ainda muito pouco estudada. nos índices de produtividade agrícola
Finalmente, a expansão do agrone- uma ameaça à lógica de reprodução do
gócio tem levado à reprodução de for- agronegócio (Medeiros, 2010).
mas degradantes de trabalho, em es-
pecial nas áreas em que as matas estão Sentidos políticos
sendo derrubadas, denunciadas por en-
tidades como a Organização Interna-
do agronegócio
cional do Trabalho (OIT) e a Comissão Desde que seu uso se impôs, o ter-
Pastoral da Terra (CPT) como sendo mo agronegócio tem um sentido amplo
condições análogas à escravidão. e também difuso, associado cada vez
Outro aspecto a ser ressaltado é mais ao desempenho econômico e à
que a lógica da expansão do agronegó- simbologia política, e cada vez menos
cio no Brasil está intimamente ligada à às relações sociais que lhe dão carne,
disponibilidade de terras. Assim, para uma vez que opera com processos não
os empresários do setor, além das ter- necessariamente modernos nas dife-
ras em produção, é necessário ter um rentes áreas e regiões por onde avança
estoque disponível para a expansão. a produção monocultora.
Isso tem provocado um constante au- Dessa perspectiva, a generalização
mento dos preços das terras, tanto em do uso do termo agronegócio, mais do
áreas onde o agronegócio já se implan- que uma necessidade conceitual, cor-
tou quanto nas áreas que podem pos- responde a importantes processos so-
sibilitar o crescimento da produção. ciais e políticos que resultaram de um
A permanente necessidade de novas esforço consciente para reposicionar
terras tem sido o motor de intensos o lugar da agropecuária e investir em
debates, em especial na esfera legis- novas formas de produção do reconhe-
lativa, em torno da concretização de cimento de sua importância. Ela indica
medidas que possam regular e colocar também uma nova leitura de um mes-
limites ao uso da terra. Isso se aplica mo processo de mudanças, acentuan-
tanto ao interior das unidades produ- do determinados aspectos, em especial
tivas (matas ciliares, áreas de preserva- sua vinculação com o cotidiano das
ção, por exemplo, e que foram o cen- pessoas comuns.
tro dos debates em torno do Código Os anos 1990 viram nascer institui-
Florestal) quanto fora delas (expansão ções como a Associação Brasileira do
de áreas indígenas, reconhecimento de Agribusiness, hoje Associação Brasi-
terras tradicionalmente ocupadas, deli- leira do Agronegócio (Abag), que teve
mitação de reservas, controle das terras importante papel na generalização do
pelo capital estrangeiro etc.). É nesse uso do termo agribusiness, inicialmente,
quadro de demanda crescente de terras e depois agronegócio. Insistindo na ne-
que também se situa o debate em tor- cessidade de uma abordagem sistêmi-
no da mudança nos índices de produ- ca, agribusiness passou a ser relacionado
tividade da agricultura que marcou os pelas entidades do setor não só com
85
Dicionário da Educação do Campo
86
Agronegócio
A
No entanto, essa construção de o agronegócio. Esse deslocamento
imagem como esforço político en- traz consigo novas vertentes: à críti-
contra outras apropriações possíveis. ca à concentração fundiária soma-se a
Assim, à medida que o termo agro- denúncia do próprio cerne do agrone-
negócio se impõe como símbolo da gócio, sua matriz tecnológica. Assim,
modernidade, passa a ser identificado, surgem críticas ao uso de sementes
pelas forças sociais em disputa, como transgênicas, ao uso abusivo de agro-
o novo inimigo a ser combatido. Já no tóxicos, à monocultura. Ao modelo
início do ano 2000, verifica-se, por do agronegócio passa a ser contrapos-
exemplo, entre os militantes do Movi- to o modelo agroecológico, pautado
mento dos Trabalhadores Rurais Sem na valorização da agricultura campo-
Terra (MST) e da Via Campesina um nesa e nos princípios da policultura,
deslocamento de seus opositores: cada dos cuidados ambientais e do controle
vez menos o adversário aparece como dos agricultores sobre a produção de
sendo o latifúndio e cada vez mais é suas sementes.
87
Dicionário da Educação do Campo
AGROTÓXICOS
Raquel Maria Rigotto
Islene Ferreira Rosa
88
Agrotóxicos
A
e também para ampliar a indústria de químicos. As principais companhias
síntese e formulação no país, que pas- agroquímicas que controlam o mer-
saria de 14 fábricas em 1974 para 73 cado são Syngenta, Bayer, Monsanto,
em 1985 (Fideles, 2006). Basf, Dow AgroSciences, DuPont e
Embora tenha havido aumento sig- Nufarm. Na América Latina, um im-
nificativo da produtividade no campo, portante e crescente mercado dentro
é importante salientar que não foi re- do contexto mundial, o faturamento lí-
solvido o problema da fome, pois boa quido na venda de agrotóxicos cresceu
parte dos excedentes agrícolas gerados 18,6% de 2006 a 2007, e 36,2% de 2007
atualmente são commodities,1 e a fome a 2008 (Sindicato Nacional da Indús-
segue assolando cerca de 1 bilhão dos tria de Produtos para Defesa Agrícola,
seres humanos subalimentados do 2009). Desde 2008, o Brasil tornou-se
planeta (United Nations Development o maior consumidor mundial de agro-
Programme, 2004). tóxicos, movimentando 6,62 bilhões de
dólares em 2008 para um consumo de
Nesse processo de modernização
725,6 mil toneladas de agrotóxicos – o
da agricultura conduzido pelos inte-
que representa 3,7 quilos de agrotóxi-
resses de grandes corporações transna-
cos por habitante. Em 2009, as vendas
cionais, configurou-se o Agronegócio
atingiram 789.974 toneladas (ibid.).
como sistema que articula o latifún-
dio, as indústrias química, meta- A partir de 1997, o governo fede-
lúrgica e de biotecnologia, o capital ral passou a conceder isenção de 60%
financeiro e o mercado (Fernandes e no Imposto sobre Circulação de Mer-
Welch, 2008), com fortes bases de apoio cadorias e Serviços (ICMS) para os
no aparato político-institucional e tam- agrotóxicos e isenção total do Imposto
bém no campo científico e tecnológico. sobre Produtos Industrializados (IPI),
Esse sistema ampliou a monocultura e além de dispensa de contribuição para
aumentou a concentração de terras, de o Programa de Integração Social/
renda e de poder político dos grandes Programa de Formação do Patrimô-
produtores. Elevou também a intensida- nio do Servidor Público (PIS/Pasep)
de do trabalho, a migração campo–cidade e para a Contribuição para o Financia-
e o desemprego rural. Por sua vez, a mento da Seguridade Social (Cofins).
apropriação dos frutos dessa produti- Como elemento das disputas por in-
vidade reverteu no aumento dos lucros vestimentos do agronegócio mediante
capitalistas para os grandes proprietá- guerra fiscal, alguns estados – caso do
rios rurais e as multinacionais envolvi- Ceará, por exemplo – ampliaram es-
das (Porto e Milanez, 2009). sas isenções para 100%, beneficiando
Frutos desse processo, atualmen- a indústria química e comprometendo
te existem no mundo cerca de vinte o financiamento de políticas públicas
grandes indústrias fabricantes de agro- como as de saúde ou meio ambiente
tóxicos, com um volume de vendas da (Teixeira, 2010).
ordem de 20 bilhões de dólares por Os agrotóxicos são utilizados em
ano e uma produção de 2,5 milhões grande escala no setor agropecuário,
de toneladas de agrotóxicos, dos quais especialmente nos sistemas de mo-
39% são herbicidas; 33%, inseticidas; nocultivo em grandes extensões. Em
22%, fungicidas; e 6%, outros grupos conjunto com a acelerada expansão da
89
Dicionário da Educação do Campo
área cultivada – 39% nas regiões Sul e vimento (Miranda, 2007). Numa série
Sudeste e 66% na região Centro-Oeste acumulada de 1989 a 2004 (Fundação
nos últimos três anos –, a soja foi Oswaldo Cruz, 2004), foram notifica-
responsável por cerca da metade do dos no Brasil 1.055.897 casos de in-
consumo de agrotóxicos no país em toxicação humana por agrotóxicos e
2008, seguida das lavouras de milho e 6.632 óbitos pelo mesmo motivo. Em
cana, essa última associada à produção 2008, 32,7% das intoxicações no Brasil
de agrocombustíveis – supostamente tiveram como principal agente tóxico
“limpos” – para exportação (Sindica- envolvido os agrotóxicos de uso agrí-
to Nacional da Indústria de Produtos cola. Vale ressaltar que a OMS indica
para Defesa Agrícola, 2009). que, para cada caso notificado de in-
Além do amplo uso de agrotó- toxicação por agrotóxicos, existem 50
xicos, ainda há uma ampla gama de casos não notificados (Marinho, 2010).
produtos disponíveis, o que complexi- Os agrotóxicos também podem causar
fica a exposição e a avaliação de seus diversos efeitos crônicos:
impactos sobre o ambiente e a saúde. • inseticidas organofosforados e car-
São inseticidas, fungicidas, herbicidas, bamatos: alterações cromossômicas;
raticidas, acaricidas, desfoliantes, ne- • fungicidas fentalamidas e herbici-
maticidas, molusquicidas e fumigantes. das fenoxiacéticos: malformações
Atualmente, existem pelo menos 1.500 congênitas;
ingredientes ativos distribuídos em 15 • nematicidas dibromocloropropano
mil diferentes formulações comerciais etc.: infertilidade masculina;
no mercado mundial (Brasil, 2004). • fungicidas ditiocarbamatos, herbici-
No país, estão registrados 2.195 pro- das dinitrofenóis, pentaclorofenóis,
dutos comerciais, elaborados com 434 fenoxiacéticos etc.: câncer;
ingredientes ativos (Brasil, 2010). E os • organofosforados e organoclora-
investimentos para encontrar novas dos: neurotoxicidade;
moléculas de ingredientes ativos con- • alquilfenóis, glifosato, ácido diclo-
tinuam crescendo: se antes dos anos rofenoxiacético, organoclorados
1990 a chance era de 1/5.000 molécu- (metolacloro, acetocloro, alacloro,
las estudadas, atualmente são gastos em clorpirifós, metoxicloro) e piretroi-
média dez anos para se combinar 150 des sintéticos: interferência endó-
mil componentes, com investimentos crina;
de US$ 256 milhões, até se chegar a um • organoclorados, herbicidas dipiridi-
novo produto (Carvalho, 2010). los: doenças hepáticas;
Como biocidas, os agrotóxicos in- • inseticidas piretroides sintéticos,
terferem em mecanismos fisiológicos ditiocarbamatos e dipiridilos: doen-
de sustentação da vida que são também ças respiratórias;
comuns aos seres humanos e, portanto, • organoclorados: doenças renais;
estão associados a uma ampla gama de • organofosforados, carbamatos, di-
danos à saúde. Segundo a Organização tiocarbamatos e dioiridilos: doen-
Mundial de Saúde (OMS), os biocidas ças dermatológicas (Franco Neto,
produzem, a cada ano, de 3 a 5 milhões 1998; Koifman e Meyer, 2002; Peres,
de intoxicações agudas no mundo, es- Moreira e Dubois, 2003; Mansour,
pecialmente em países em desenvol- 2004; Queiroz e Waissmann, 2006).
90
Agrotóxicos
A
No Brasil, a classificação toxicoló- lizada pulverização aérea de agrotóxi-
gica dos agrotóxicos está a cargo do cos herbicidas ou fungicidas.
Ministério da Saúde. Essa classificação Há ainda contaminação de alimen-
está elaborada segundo a dose letal tos com resíduos de agrotóxicos. No
50 – estabelecida de acordo com os Brasil, o Ministério da Saúde, por meio
miligramas de produto tóxico por quilo da Agência Nacional de Vigilância
de peso necessários para levar a óbito Sanitária (Anvisa), monitora a presença
50% dos animais de teste. São essas as de 234 ingredientes ativos em vinte ali-
classes: I – extremamente tóxico; II – mentos. Para o ano de 2009, os resulta-
muito tóxico; III – tóxico; e IV – pou- dos mostraram que 29% deles apresen-
co tóxico. tavam resultados insatisfatórios, seja
De forma análoga, os agrotóxicos por estarem acima do limite máximo
são classificados de I a IV de acordo de resíduos permitido (> LMR), seja
com o seu potencial de degradação por apresentarem resíduos de agrotó-
ambiental, que leva em conta a bioa- xicos não autorizados e não adequados
cumulação, a persistência no solo, a para aquele cultivo (NA), seja por esses
toxicidade a diversos organismos e os dois motivos associados.
potenciais mutagênico, teratogênico Diante do uso intenso e difuso dos
e carcinogênico. agrotóxicos no Brasil, é possível consi-
As regiões de expansão dos mo- derar que a maior parte da população
nocultivos do agronegócio têm apre- está exposta a eles de alguma forma.
sentado também problemas graves de O conceito de justiça ambiental auxilia
contaminação ambiental das águas sub- a dar visibilidade às diferentes magni-
terrâneas, caso dos aquíferos Guarani tudes dessa exposição. Os trabalhado-
e Jandaíra, nos estados do Ceará e do res são certamente os que entram em
Rio Grande do Norte respectivamente contato mais direto, e por mais tempo,
(Ceará, 2009). Também tem sido en- com esses produtos, seja nas empresas
contrada contaminação das águas su- do agronegócio, seja na agricultura fa-
perficiais de rios, lagoas, açudes e até miliar ou camponesa – onde a cultura
mesmo das águas disponibilizadas da Revolução Verde também penetra e
pelos sistemas de abastecimento às comu- tenta se impor –, seja nas fábricas quí-
nidades, nas quais já foram encontra- micas onde são formulados, seja, ainda,
dos até doze ingredientes ativos dife- nas campanhas de saúde pública onde
rentes numa única amostra (Rigotto e são utilizados. Um segundo grupo se-
Pessoa, 2010). Estudos conduzidos pela riam as comunidades situadas em tor-
equipe do professor Wanderlei Pignati no desses empreendimentos agrícolas
(2007), da Universidade Federal do ou industriais, onde comumente vivem
Mato Grosso, encontraram, na região as famílias dos trabalhadores, nas cha-
de monocultivo de soja, contaminação madas “zonas de sacrifício”, em áreas
por agrotóxicos no leite materno e na rurais ou urbanas. Um terceiro grupo
água da chuva. De forma similar, ocor- é formado pelos consumidores de ali-
re contaminação do solo, do ar e dos mentos contaminados; nele está incluí-
locais de vida e produção de comuni- da praticamente toda a população, de
dades vizinhas a grandes empreen- acordo com os dados do Programa
dimentos, especialmente quando é rea- de Análise de Resíduos de Agrotóxicos
91
Dicionário da Educação do Campo
92
Agrotóxicos
A
ou permanentes), que correspondem a ameaça que representam os agrotó-
quase 20% da população ocupada no xicos, denunciando assim todos os
país. Há que considerar ainda as condi- seus efeitos degradantes à saúde, ao
ções institucionais para o Estado fazer meio ambiente etc.;
valer as leis e normas ante a extensão 2) denunciar e responsabilizar as em-
socioespacial do país, as deficiências presas que produzem e comerciali-
das políticas públicas marcadas pelo zam agrotóxicos;
neoliberalismo, a composição dos qua- 3) pautar na sociedade a necessidade
dros de pessoal, a infraestrutura para de mudança do atual modelo agrí-
execução das ações e a correlação de cola, que produz comida envene-
forças políticas. nada;
Em resposta a esses desafios, enti- 4) fazer da campanha um espaço
dades como a Assessoria e Serviços a de construção de unidade entre
Projetos em Agricultura Alternativa ambientalistas, camponeses, tra-
(AS-PTA) desenvolvem a Campanha balhadores urbanos, estudantes,
por um Brasil Livre de Transgênicos e consumidores e todos aqueles que
Agrotóxicos; além disso, foi lançada, em prezam pela produção de um ali-
abril de 2011, a Campanha Permanen- mento saudável que respeite ao
te contra os Agrotóxicos e pela Vida, à meio ambiente;
qual já aderiram mais de trinta entidades 5) explicitar a necessidade e o poten-
da sociedade civil brasileira, entre mo- cial que o Brasil tem de produzir
vimentos sociais, entidades ambientalis- alimentos diversificados e saudá-
tas, estudantes, organizações ligadas à veis para todos, em pleno convívio
área da saúde e grupos de pesquisado- com o meio ambiente e com base
res. Ela tem como objetivos: em princípios agroecológicos.
1) construir um processo de cons- (Campanha Permanente contra os
cientização na sociedade sobre a Agrotóxicos e pela Vida, 2011)
Notas
1
Commodities são produtos de origem mineral ou vegetal, geralmente em estado bruto ou
com pouco beneficiamento, produzidos em massa e com características homogêneas, in-
dependentemente da sua origem. Seu preço, normalmente, é definido pela demanda, e não
pelo produtor. Alguns exemplos de commodities são soja, café, açúcar, ferro e alumínio.
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95
Dicionário da Educação do Campo
96
Ambiente (Meio Ambiente)
A
em grande parte, o homem domina isso, os deuses foram expulsos da Terra
a natureza. e enviados aos céus. E a natureza, sem
Ora, a ideia de dominação da natu- deuses, podia, enfim, ser dominada:
reza só tem sentido se consideramos todo o conhecimento construído por
que a espécie humana não é parte da inúmeros povos originários e grupos
natureza, pois, se considerarmos que camponeses entre os quais a nature-
somos natureza, nos vemos diante do za impunha limites à dominação, por
paradoxo de saber quem vai dominar o ser habitada pelo sagrado, é destruído
dominador. Pode-se dizer que grande como misticismo, animismo, crendice,
parte do desafio ambiental contempo- saberes inferiores...
râneo está relacionado com esse imagi- Assim, todo um rico acervo de
nário de dominação da natureza, sobre conhecimentos, criativamente desen-
o qual se edificou o mundo da ciência volvido e adaptado a circunstâncias
moderna. A ideia de dominação da na- locais, foi inferiorizado por uma visão
tureza, assim como a própria ideia de colonial que desperdiçou essa imensa
dominação, implica, sempre, que o ser experiência humana, desenvolvida ao
a ser dominado – sejam grupos sociais longo de milhares de anos, por milha-
(gênero, “raça”, opção sexual), classes res de povos. O conhecimento desses
sociais, etnias ou a natureza – não seja povos, grupos sociais e etnias é fun-
considerado em sua plenitude, em suas damental em qualquer política séria e
múltiplas virtualidades e potencialida- responsável que vise cuidar do patri-
des, mas sim em razão daquilo que nele mônio natural da humanidade. Essa é
interessa ao dominador. Assim, todo a fonte de informação da maior parte
ser dominado é, sempre, mais do que dos remédios de que a humanidade
aquilo que é sob a dominação. dispõe hoje, em grande parte objeto
Não devemos esquecer ainda que a de etnobiopirataria, pois as informa-
dominação da natureza pelos homens ções geradas por essas populações são
acabou por autorizar a dominação de apropriadas por laboratórios de gran-
povos/etnias e grupos sociais assimi- des corporações para fins de acumula-
lados à natureza. Povos selvagens, por ção, e não socializadas como o foram
exemplo, sendo das selvas, sendo das até muito recentemente, quando eram
matas, são da natureza e, assim, podem trocadas livremente com base na reci-
ser dominados pelos povos civilizados. procidade. Agora vemos interromper-
É possível dizer o mesmo das “raças” se essa tradição milenar de partilha e
inferiores, geralmente negros e “ama- enriquecimento mútuo como resultado
relos” (os indígenas e orientais), que de leis de patenteamento que cada vez
devem ser dominadas pelas “raças” su- mais beneficiam os laboratórios das gran-
periores, quase sempre brancos. des corporações, sob os ditames da Orga-
A ideia de dominação da natureza, nização Mundial do Comércio (OMC).
ao colocar o homem como sujeito – O mito segundo o qual o desen-
polo ativo numa relação – e a nature- volvimento da ciência permitiria o
za como objeto – polo passivo –, viu- domínio da natureza se desfaz quando
se obrigada a dessacralizar a natureza, vemos que o país mais desenvolvido
pois se ela estivesse povoada por deu- do ponto de vista técnico-científico,
ses não haveria como dominá-la. Por os Estados Unidos, não consegue
97
Dicionário da Educação do Campo
98
Ambiente (Meio Ambiente)
A
do fato de que há limites para a domi- se momento, os chamados países de-
nação da natureza. Assim, estamos não senvolvidos, países urbano-industria-
apenas diante de um desafio técnico, lizados, começaram a transferir para
mas também de um desafio político alguns países subdesenvolvidos, países
e civilizatório. agrícolas e rurais, suas plantas indus-
Os anos 1960 comportam uma triais, inicialmente as mais poluidoras,
ambiguidade em relação à ideia de como a indústria de papel e celulose
desenvolvimento, e essa ambiguidade e a de alumínio, dando início a uma
terá importantes efeitos na nova eta- nova divisão internacional do traba-
pa do processo de globalização nos lho. Essa nova divisão do trabalho se
anos 1970. Ao mesmo tempo em que mostra hoje mais claramente; nela os
se questiona o desenvolvimento lá mesmo países hegemônicos no sistema mundo
onde ele parecia ter dado certo – isto é, moderno-colonial são “sociedades da
na Europa e nos Estados Unidos –, a informação” ou “sociedades do conhe-
ideia de desenvolvimento, na perspec- cimento”; já os países coloniais e semi-
tiva de superar o subdesenvolvimento, coloniais, exportadores de commoditties –
ganha corpo na América Latina, na característica, aliás, que remonta ao
África e na Ásia. É preciso verificar que século XVI –, são, hoje, países que se
a própria ideia de subdesenvolvimento industrializam (vide a China e outros
traz em si a sua superação, na medida países asiáticos, além do Brasil, por
em que o prefixo sub indica que se está exemplo) numa perversa divisão do tra-
aquém de algo que se toma como pa- balho mundial. Nela, os países coloniais
râmetro, no caso o desenvolvimento: a e semicoloniais são “mão de obra” da
superação do subdesenvolvimento dar- obra desenhada, planejada e projetada
se-á pelo desenvolvimento. pelos que pensam, ou seja, pela cabe-
ça dos designers, dos executivos e dos
Desse modo, o desenvolvimentis-
intelectuais dos países hegemônicos
mo passou a ganhar corpo nos países
do sistema mundo moderno-colonial.
coloniais e semicoloniais, como Lenin
Além disso, as atividades “limpas” –
bem os caracterizou, no mesmo mo-
conhecimento e informação – ficam lo-
mento em que o desenvolvimento era
calizadas nos centros hegemônicos e as
questionado nos países hegemônicos.
atividades “sujas” – agricultura e seus
É emblemática a posição do governo
brasileiro na primeira grande reunião agrotóxicos, a indústria e seus rejeitos –,
da Organização das Nações Unidas nos países coloniais e semicoloniais. É
(ONU) sobre o meio ambiente, reali- enfim, uma geografia socialmente desi-
zada em Estocolmo em 1972, ao afir- gual dos proveitos e dos rejeitos.
mar que a pior poluição era a pobreza, Até os anos 1960, a principal crítica
convidando a que se trouxesse o desen- feita ao desenvolvimento provinha do
volvimento por meio de investimentos marxismo, que assinalava o caráter ne-
no Brasil. Na época, dizia-se “venham cessariamente desigual em que se funda
poluir no Brasil”, numa aceitação abso- o desenvolvimento capitalista. Porém,
lutamente acrítica de que o desenvol- a crítica era dirigida à desigualdade do
vimento naturalmente está associado à desenvolvimento, e não ao desenvolvi-
degradação ambiental: “é o preço que mento em si, das forças produtivas ca-
se paga pelo progresso”. A partir des- pitalistas. Com isso, os que criticavam a
99
Dicionário da Educação do Campo
100
Ambiente (Meio Ambiente)
A
O controle da subjetividade se tor- no interior do campo ambiental entre
na vital, conforme comprova o fato de, perspectivas mais técnico-científicas e
em 1998, uma empresa de fabricação outras mais abertamente preocupadas
de tênis pagar a um só homem, ao jo- com questões culturais e políticas. Não
gador de basquete Michael Jordan, mais é a primeira vez que se vai observar esse
do que pagou a todos os que fabrica- deslocamento do campo social e polí-
ram seus tênis em todos os cantos do tico para o campo técnico. Lembremos
mundo. Enfim, os talentos esportivos que a expressão “Revolução Verde”
e artísticos são destacados, e o sonho se opõe à “Revolução Vermelha”, que
de ser um deles é, por definição, a im- ganhou grande visibilidade na luta con-
possibilidade de todos o serem. O so- tra a fome quando milhões de campo-
nho de cada um desses filhos de em- neses brandiram suas bandeiras verme-
pregados dessa empresa de tênis deve lhas na Revolução Chinesa de 1949.
ser ter um tênis e ser um esportista fa- Desde então há um esforço siste-
moso, como o Sr. Michael Jordan. Há, mático para demonstrar que a questão
provavelmente, alguma organização da fome é um problema técnico, a ser
não governamental (ONG) ensinando solucionado com uma “Revolução Ver-
a essas crianças a ter autoestima e a não de”, ideia que pouco a pouco se afir-
entrar no mundo do crime! maria contra a ideia de que é necessária
Em finais dos anos 1960, o Clube a Reforma Agrária e uma revolução de
de Roma, criado por um grupo de em- outra cor nas relações sociais e de po-
presários e executivos transnacionais der. O êxito produtivo da Revolução
de empresas como Xerox, IBM, Fiat, Verde parece incontestável, e hoje con-
Remington Rand e Ollivetti coloca vivemos com o paradoxo de mais de
em debate, entre outras questões, o 1 bilhão de habitantes passarem fome
lado da demanda por recursos não re- ao lado da enorme produção de ali-
nováveis. O Relatório Meadows do MIT mentos. A concentração fundiária em
(Massachusetts Institute of Technology), grandes monocultivos, os pacotes tec-
patrocinado pelo Clube de Roma, nológicos que subjugam os agriculto-
tem um título ilustrativo: The limits to res com seu alto consumo de energia
growth (Limites do crescimento) (Meadows e insumos, inclusive agrotóxicos, e o
et al., 1972). Embora partindo de controle das sementes, cada vez mais
uma hipótese simplificadora, o docu- produzidas nas novas fábricas-labo-
mento assinalava o esgotamento dos ratórios das grandes corporações – e
recursos naturais caso fossem manti- não mais pelos camponeses e povos
das as tendências de crescimento até originários em seus próprios lugares –
então prevalecentes. adaptadas criativamente às mais varia-
Com isso, o debate ambiental co- das situações ecológicas, não só são
meça a ganhar o reconhecimento do capazes de produzir muitas toneladas
campo científico e técnico e, com ele, o de grãos, como também produzem mi-
próprio campo ambiental torna-se mais lhões de pobres expropriados de suas
complexo, na medida em que é captu- terras, bosques, campos, várzeas...
rado pelo discurso técnico-científico, É importante recuperar a origem da
antes objeto de duras críticas. Desde constituição do campo ambiental, com
então, veremos aproximações e tensões suas questões e conceitos próprios,
101
Dicionário da Educação do Campo
assim como a tensão que se estabelece consomem cerca de 80% das matérias-
com o modo de produção de verdades no in- primas e da energia do mundo, estamos
terior da sociedade moderno-colonial, diante de um fato limite, o de que seriam
no qual a ciência e a técnica ocupam necessários cinco planetas para ofere-
um lugar de destaque. Ora, o discurso cermos a todos os habitantes da Terra
científico e técnico se constituiu exa- o atual estilo de vida que, vivido pelos
tamente como o discurso de verdade ricos dos países ricos e pelos ricos dos
(da Verdade, com maiúscula, prefere- países pobres, é pretendido pela maior
se) no mundo moderno-colonial. Com parte dos que não partilham dele. E po-
isso, trouxe a desqualificação de outros demos concluir que não é a população
saberes, de outros conhecimentos, de pobre que está colocando o planeta e a
outras falas. O que se vê no Relatório humanidade em risco, como insinua o
Meadows é o deslocamento da questão pobre discurso malthusiano – afinal, os
ambiental em seus aspectos culturais 80% mais pobres do planeta consomem
e políticos e sua assimilação à lógica somente 20% dos recursos naturais, sen-
técnico-científica. do o seu impacto sobre o destino eco-
A ideia de que é preciso colocar lógico menor. Mahatma Gandhi colocou
limites ao crescimento seria refor- bem a questão, quando indagou: “Para
çada ainda quando cientistas como desenvolver a Inglaterra foi necessário
Ulrich Beck e Anthony Giddens (Beck, o planeta inteiro. O que será necessário
Giddens e Lasch, 1995) começam a falar para desenvolver a Índia?”.
de “sociedade de risco” para designar as Estamos diante de uma mudança de
contradições da sociedade moderna. escala na crise atual de escassez por po-
A caracterização da sociedade como luição do ar, de escassez por poluição
sociedade de risco traz um componente da água, de escassez (limites) de mine-
interessante para o debate ambiental, na rais, de escassez (limites) de energia, de
medida em que aponta para o fato de que perda de solos (limites) – os quais
os riscos corridos pela sociedade con- demandam um tempo, no mínimo, geo-
temporânea são, em grande parte, deriva- morfológico, para não dizer geológico,
dos da própria intervenção da sociedade para se formarem –, perda, enfim, de
humana no planeta (reflexividade), parti- elementos (ar, água, fogo, terra) que
cularmente aquela derivada das interven- eram vistos como dados e que a cultura
ções feitas pelo sistema técnico. Assim, ocidental e/ou ocidentalizada acredita-
sofremos reflexivamente os efeitos da va poder dominar. O efeito estufa, o
própria intervenção que a ação humana buraco na camada de ozônio, a mudan-
provoca por meio do poderoso sistema ça climática global, o lixo tóxico, para
técnico de que modernamente se dispõe. não falar do lixo propriamente, são os
É possível observar, então, que o modelo indícios mais fortes desses limites co-
de ação humana europeu ocidental e es- locados em escala global, ainda que sua
tadunidense, ao se expandir pelo mundo, dinâmica se evidencie melhor em outras
está colocando em risco o planeta intei- escalas (local, regional, nacional).
ro, além do fato de distribuir de modo Agora não é mais uma cultura ou
desigual seus benefícios e malefícios. um povo específico que coloca em risco
Quando se sabe que, segundo a sua própria existência. A globalização
ONU, os 20% mais ricos do planeta de uma mesma matriz de racionalida-
102
Ambiente (Meio Ambiente)
A
de, comandada pela lógica econômica mica que nos fará conter os riscos que,
em sentido estreito, nos conduz inexo- reflexivamente, a sistematização global
ravelmente a uma economia que igno- moderno-colonial está promovendo,
ra sua inscrição na Terra – isto é, no como tampouco é o conhecimento das
ar, na água, no solo, no subsolo (nos leis da gravidade que nos impede de
minérios), nos ciclos vitais das cadeias nos lançarmos do alto de um edifício,
alimentares, de carbono, de oxigênio – muito embora devamos admitir com
e, assim, a humanidade toda, embora Josué de Castro que a pulsão da fome
sofrendo de modo desigual, está sub- seja criativa, assim como o é a pulsão
metida a riscos derivados de ações de- da sexualidade, como explicou Freud.
cididas por alguns poucos. Além disso, Elmar Altvater nos alerta:
Enfim, a vida é, também, responsá-
vel pelo equilíbrio dinâmico do plane- [...] só saberemos tudo quando
ta, conforme atesta a teoria de Gaia.3 for cientificamente tarde de-
O conhecimento dessas complexas mais para evitar uma catástrofe
relações pode (e deve) ter importantes climática ou a destruição das
implicações de ordem ética e política, espécies. A ciência positivis-
sobretudo no que diz respeito à utili- ta é uma “ciência ex post ”, por
zação dos combustíveis fósseis a partir precisar estar diante do aconte-
da segunda revolução prometeica – a cimento para poder analisá-lo
Revolução Industrial, quando uma es- com seus métodos refinados.
pécie viva, o ser humano, começou a As tendências são separadas de
usar amplamente a energia solar acu- seus contextos, portanto, tam-
mulada sob a forma mineral, energia bém não há prognósticos acer-
produzida num tempo geológico de ca do desenvolvimento do todo
milhões de anos e que um motor a ex- sobre a base de análises e diag-
plosão, em fração de segundos, devol- nósticos de suas partes. (1995,
ve à atmosfera. Aqui, mais uma vez, a p. 302-303)
vida biológica, por meio de um arte- O que está em jogo com a questão
fato criado pelo homem, interfere nas ambiental é a reapropriação social da na-
condições de equilíbrio dinâmico do tureza. Com o capitalismo, as comuni-
planeta, produzindo efeitos não pre- dades camponesas e os povos originá-
tendidos e indesejados, e testando os rios foram expulsos de seus territórios.
seus limites, tal como havia feito com Desterritorializados e dispersos, torna-
a agricultura quando da primeira revo- ram-se indivíduos que nas cidades ti-
lução prometeica. E agora, quando a veram de vender sua força de trabalho,
agricultura começa, com os agrocom- transformaram-se em mercadorias da
bustíveis, a produzir energia para as mesma forma que as suas terras ago-
máquinas, e as terras para a produção ra, com a sua expulsão, passaram a ser
de alimentos passam a ser disputadas objeto de compra e venda. Assim, no
para a produção de energia, nos vemos capitalismo, a separação ser humano/
na iminência de uma terceira revolução natureza não é só uma questão de
prometeica. Novos desafios. paradigma, mas também uma ques-
Entretanto, sabemos que não é o tão que constitui a sociedade, promo-
conhecimento das leis da termodinâ- vendo a separação da maior parte da
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Dicionário da Educação do Campo
humanidade das suas condições natu- lo íntimo com aquele significado origi-
rais de existência. nário. É que a política é a arte de definir
Enfim, com a separação da natu- os limites: tirania é quando um define os
reza, o capital a submete aos seus de- limites para todos; oligarquia é quando
sígnios de acumulação e joga por terra poucos definem os limites para todos; e
a promessa iluminista de uma razão a democracia é quando todos participam
serviço da emancipação. O limite do da definição dos limites.
capital é o dinheiro, e o dinheiro, sendo Portanto, é preciso resgatar a polí-
uma expressão quantitativa da riqueza, tica, no seu sentido mais profundo de
não tem limites. A luta ambiental sina- arte de definir os limites, sentido que
liza, hoje, mais do que qualquer outra só é pleno com democracia social e
luta, que o sentido da emancipação econômica. Não há limites imperativos
humana passa pela reapropriação so- à relação das sociedades com a natu-
cial da natureza e, por isso, é contra a reza. Esses limites, necessariamente,
mercantilização do mundo, essência do haverão de ser construídos pelos ho-
capitalismo e seus fetiches. mens e mulheres de carne e osso, seja
por meio das lutas sociais, inclusive
Assim, é preciso resgatar um sen- de classes, seja por meio do diálogo
tido que os gregos reservaram para de saberes entre modalidades distintas
os limites, o termo pólis, forma como, de produção de conhecimento, seja no
originariamente, designavam o muro interior de uma mesma cultura, seja en-
que delimitava a cidade do campo. So- tre culturas distintas. A espécie humana
mente depois pólis passou a designar o terá de se autolimitar! Os limites são,
que estava contido no interior do muro: antes de tudo, políticos! Contra o capi-
a cidade. Entretanto, a pólis, a política, a talismo e a colonialidade (que sabemos
cidade e a cidadania mantêm um víncu- que sobrevive ao fim do colonialismo)!
Notas
1
Na verdade há um parâmetro, sim, que meridianamente diz a hora certa do mundo:
Greenwich. Não sem sentido, Greenwich é um subúrbio de Londres, ele mesmo marco da he-
gemonia britânica a partir do século XIX, substituindo outro meridiano – o de Tordesilhas –
que servira de marco da hegemonia ibérica. A história geografiza-se.
2
Isso talvez se explique pelo fato de a América Latina ser, de todas as regiões coloniais e
semicoloniais do mundo, aquela mais ocidentalizada, onde até mesmo o nome da região
é uma homenagem a um europeu, Américo Vespúcio. Isso não impediu que aqui se formas-
se uma rica tradição de pensamento crítico (a teoria da dependência, a teologia da liberta-
ção, a pedagogia do oprimido, o socioambientalismo) contra essa colonialidade que tão bem
caracteriza o pensamento dependente de boa parte das elites.
3
A teoria de Gaia, criada pelo cientista inglês James Lovelock, em 1969, sustenta que a Terra é
um ser vivo e que possui capacidade de autossustentação, ou seja, é capaz de gerar, manter
e alterar suas condições ambientais. De início, a teoria foi aceita apenas por ambientalistas e
defensores da ecologia; porém, atualmente, com o problema das mudanças climáticas, está
sendo revista, e muitos cientistas tradicionais já aceitam algumas de suas ideias.
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Articulações em Defesa da Reforma Agrária
A
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Dicionário da Educação do Campo
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Articulações em Defesa da Reforma Agrária
A
e formular uma proposta de interven- e as entidades agrárias nesse período.
ção social que unisse, pelo menos par- Em meados dos anos 1990, com a fi-
cialmente, a CPT, a Linha 6 da CNBB liação da Contag à CUT, essa central
[Conferência Nacional dos Bispos do dissolveu o DNTR, mas ações sindi-
Brasil], a Contag, o Cimi [Conselho In- cais ampliaram a bandeira da Reforma
digenista Missionário] e a Abra”, mas, Agrária (ver Sindicalismo rural). No
“depois de nove meses de conversas e início da década de 1990, federações
articulações, nasceu a CNRA” (Souza, sindicais e sindicatos de trabalhadores
1997, p. 13). rurais (STRs) do sistema Contag, além
A CNRA desempenhou importan- da histórica defesa da aplicação do Es-
te papel político, articulando diferen- tatuto da Terra, também “passaram a
tes atores e dando maior visibilidade mobilizar famílias sem-terra e a ocupar
às lutas do campo e aos muitos casos áreas exigindo a desapropriação para
de violência (assassinatos, tentativas fins de Reforma Agrária” (Sauer, 2002,
de assassinatos, ameaças de morte etc.) p. 149).
contra os trabalhadores rurais e suas Diante de toda essa pressão pela
lideranças. Junto com a Abra, contri- Reforma Agrária, o Governo Sarney,
buiu nas mobilizações em torno do ao lançar o I PNRA em 1985, prome-
Plano Nacional de Reforma Agrária teu assentar 1,4 milhões famílias em
(I PNRA), lançado em 1985 pelo Go- quatro anos. No entanto, as alianças
verno Sarney, e nas formulações e políticas – especialmente as alian-
propostas ao texto da Constituição de ças com setores ruralistas que deram
1988 (Silva, 1987). sustentação ao primeiro governo ci-
Nesse processo de redemocratiza- vil pós-ditadura – inviabilizariam o
ção política e rearticulação popular, I PNRA; diante do fracasso do mes-
consolida-se também, a partir do fi- mo, as mobilizações pela Reforma
nal da década de 1980, “uma estrutura Agrária se concentraram no processo
sindical paralela ao sindicalismo oficial de elaboração da nova Constituição, a
da Contag, com a criação do Departa- partir de 1987 (Sauer, 2010).
mento Nacional dos Trabalhadores Ru- Associada a outras entidades e mo-
rais (DNTR)” (Picolotto, 2011, p. 2), vimentos – Abra, Contag, MST, Cen-
como prolongamento da Articulação tral Única dos Trabalhadores, CPT,
Sindical Sul, formada em 1984 por li- Ibase, Instituto de Estudos Socioeco-
deranças e entidades ligadas ao campo, nômicos (Inesc), entre outros, a CNRA
como a própria CPT, e o então recém- sensibilizou, mobilizou e pressionou
criado Movimento de Atingidos por membros (deputados e senadores) da
Barragens (MAB). Assembleia Nacional Constituinte a
O DNTR, departamento da Central incluir um capítulo sobre a Reforma
Única dos Trabalhadores (CUT), além Agrária na nova Constituição (Silva,
de defender a “liberdade e autonomia 1987). Nesse processo, as entidades da
sindical” (Picolotto, 2011, p. 2), articu- CNRA apresentaram uma “Emenda
lou sindicatos de trabalhadores rurais e Popular da Reforma Agrária”, subscri-
departamentos estaduais (DETRs) em ta por um milhão e duzentas mil pes-
lutas por direitos e por terra. Isso for- soas, emenda com o maior número de
taleceu a bandeira da Reforma Agrária apoios (Russo, 2008).
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Dicionário da Educação do Campo
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Articulações em Defesa da Reforma Agrária
A
tem como esforços e articulações que ambientalmente predatórias e social e
procuram ampliar a histórica luta por politicamente excludentes de apropria-
Reforma Agrária e alterar as formas ção e uso da terra no Brasil.
Nota
1
As entidades do FNRA, historicamente, tomaram posição conjunta pela Reforma Agrária
e contra a violência no campo, com ações como a realização da “Conferência Nacional da
Terra e da Água” (ver Sauer, 2007), realizada em 2004. Posicionaram-se, também, contra
os programas de “Reforma Agrária de mercado”, capitaneados pelo Banco Mundial, entre
1996 e 2000, e, mais recentemente, articularam a campanha nacional pelo limite máximo de
propriedade da terra no Brasil.
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Dicionário da Educação do Campo
Assentamento rural
Sergio Pereira Leite
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Assentamento Rural
A
de famílias que acionam o novo “esta- te do universo da agricultura familiar
tuto” de assentado para a construção e/ou camponesa) ao processo produ-
de novas formas de organizar a vida, a tivo, com base na desapropriação de
produção etc., bem como para acessar terras ociosas ou, ainda, na aquisição
um conjunto de bens, serviços, merca- de imóveis rurais e fornecimento de
dos e políticas públicas. crédito fundiário, ainda que essa últi-
Grosso modo, a expressão assen- ma prática não possa ser caracterizada
tamento rural (criada na esteira dos necessariamente como um processo
processos de assentamentos urba- de Reforma Agrária (servindo muito
nos) parece datar de meados dos anos mais ao modelo implementado pelo
1960, sobretudo como referência em Banco Mundial em diferentes países,
relatórios de programas agrários ofi- como África do Sul, Brasil e Colômbia,
ciais executados na América Latina, entre outros).
designando a transferência e a alocação Em diversos programas oficiais de
de determinado grupo de famílias de assentamentos rurais, o projeto de as-
trabalhadores rurais sem-terra (ou com sentamento já foi compreendido, inclu-
pouca terra) em algum imóvel rural sive, como uma unidade administrativa
específico, visando à constituição de do Estado, o que levaria ao extremo a
uma nova unidade produtiva em um ideia de que tais áreas resultam de e ex-
marco territorial diferenciado, como pressam apenas a lógica da intervenção
frisou Fernandes (1996). Bergamasco e governamental, negligenciando-se os
Noder (1996) referem-se ao caso ve- esforços empreendidos pelos deman-
nezuelano, dessa mesma época, para dantes de terra e suas organizações.
indicar o emprego do termo nos pro- No entanto, pode-se concordar com o
gramas de reforma e/ou reestrutura- fato de que a criação do assentamento,
ção fundiária. E sugerem que essa prá- enquanto unidade de referência desses
tica encontra exemplos semelhantes no processos (políticas públicas e lutas
contexto dos ejidos mexicanos ou dos por terra), demanda necessariamente
kibutzim e moshavim israelenses. algum marco legal, passível de uma
No Brasil, o termo assentamento ru- ação do Estado.
ral esteve atrelado, por um lado, à atu- Em documento oficial de meados da
ação estatal direcionada ao controle e à década de 2000, o Estado brasileiro de-
delimitação do novo “espaço” criado e, fine o projeto de assentamento como
por outro, às características dos proces-
sos de luta e conquista da terra empreen- [...] um conjunto de ações pla-
didos pelos trabalhadores rurais. nejadas e desenvolvidas em área
No que diz respeito à atuação es- destinada à Reforma Agrária,
tatal, a definição governamental dada de natureza interdisciplinar e
ultimamente ao termo tem mantido multissetorial, integradas ao
diferenças e semelhanças com outras desenvolvimento territorial e
situações afins, como a colonização regional, definidas com base em
dirigida e a regularização fundiária, e diagnósticos precisos acerca do
enfatizado a criação e a integração de público beneficiário e das áreas
novas pequenas propriedades rurais a serem trabalhadas, orientadas
(atualmente compreendidas como par- para a utilização racional dos
111
Dicionário da Educação do Campo
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Assentamento Rural
A
Assim, a diversidade de lutas e ex- lias; organizados e/ou politicamente
periências que caracterizaram o mo- representados por associações de as-
vimento organizado de trabalhadores sentados, cooperativas, movimentos
rurais e a prática das políticas públicas, sociais, religiosos, sindicais, etc. –, mas
com diferenciações regionais significa- significarão sempre, malgrado as pre-
tivas, pode, de certo modo, ser unifi- cariedades que ainda caracterizam nú-
cada conceitualmente na terminologia mero expressivo de projetos, um ponto
proposta. Dessa forma, ao mesmo de chegada e um ponto de partida na
tempo em que se identificam trajetórias trajetória das famílias beneficiadas/
e estratégias comuns em um marco es- assentadas. Ponto de chegada enquan-
trutural em que todo o processo se de- to um momento que distingue funda-
senvolve, a busca por uma compreen- mentalmente a experiência anterior de
são de caráter globalizante permite, vida daquela vivenciada após a entrada
ainda, esboçar um quadro político de no projeto (muitas vezes representada
representação desses atores e um canal pela ideia de liberdade comparada às
específico de diálogo com o Estado de situações de sujeição às quais esta-
forma ampliada. vam presos os trabalhadores); pon-
Os assentamentos assumem, então, to de partida como conquista de
configurações distintas – coletivos/in- um novo patamar do qual se pode
dividuais; agrícolas/pluriativos; habita- acessar um conjunto importante de
ções em lotes/em agrovilas; frutos de políticas (de crédito, por exemplo),
programas governamentais estaduais/ mercados e bens, inacessíveis na si-
federais; com poucas/muitas famí- tuação anterior.
113
Dicionário da Educação do Campo
______; Leite, S. (org.). A formação dos assentamentos rurais no Brasil: processos so-
ciais e políticas públicas. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.
______ et al. (org.). Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo:
Editora da Unesp, 1994.
Romeiro, A.; Guanziroli, C.; Leite, S. (org.). Reforma agrária: produção, emprego
e renda. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1995.
Silva, M. A. M. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: Editora da
Unesp, 2004.
Stedile, J. P. (org.). A questão agrária no Brasil. São Paulo: Expressão Popular,
2005-2007. 4 v.
Teófilo, E. (org.). A economia da Reforma Agrária: evidências internacionais.
Brasília: Nead, 2001-2002. 2 v.
114
C
C
CAMPESINATO
Francisco de Assis Costa
Horacio Martins de Carvalho
115
Dicionário da Educação do Campo
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Campesinato
C
unidades camponeses ao ambiente ins- famílias com relações cliente–patrão,
titucional e natural de cada país e, no que mantêm os camponeses em graus
interior deles, de cada região que lhes elevados de subordinação.
sirva de habitat – os territórios, de que No entanto, ainda que de forma
são partes constitutivas – e, por ou- presente, as instituições comunitárias
tro lado, da configuração do ambiente vão muito além do caráter de uma eco-
institucional de uma perspectiva polí- nomia moral que provê segurança às fa-
tica, derivada das relações estratégicas, mílias, com relações cliente–patrão. Isso
mediadas pelo Estado, entre as demais porque a comunidade rural camponesa,
classes e os camponeses. sendo um elemento central no modo de
Assim, nos países industriais ricos, vida camponês, lhes dá suporte econô-
e particularmente nos Estados Unidos, mico, político e ideológico para as re-
dominam a cena agrícola formas cam- sistências sociais que permeiam os seus
ponesas apoiadas em movimentos coo- cotidianos, numa afirmação conflituosa
perativos e na introdução de inovações de suas especificidades:
tecnológicas garantidas por sistemas
de crédito e de produção de tecnolo- Na comunidade há o espaço da
gia fluentes – nem sempre adequadas a festa, do jogo, da religiosidade,
um convívio harmonioso social e com do esporte, da organização, da
a natureza –, além de mecanismos de solução dos conflitos, das ex-
controle do risco. Em troca, vêm ga- pressões culturais, das datas
rantindo produtos baratos aos setores significativas, do aprendizado
urbanos. Esses camponeses lutam com comum, da troca de experiências,
êxito por um posto na sociedade de da expressão da diversidade, da
mercado (Shanin, 1983). política e da gestão do poder,
Os países em situação econômica da celebração da vida (aniver-
pobre, por seu turno, são marcados pela sários) e da convivência com a
existência de um grande número de cam- morte (ritualidade dos funerais).
poneses economicamente pobres, por Tudo adquire significado e todos
vezes com dificuldades de suprir a si pró- têm importância na comuni-
prios, dado o tipo de tecnologia pouco dade camponesa. Nas comunidades
apropriada ao contexto onde se situam camponesas as individualidades
ou à precariedade relativa de meios fun- têm espaço. As que contrastam
damentais, como a terra. Essas realida- com o senso comum encontram
des se caracterizam pela relevância do meios de influir. Os discretos são
papel dos comerciantes e proprietários notados. Não há anonimato na
de terras, por vezes fundidos em um só comunidade camponesa. Todos se
agente, na mediação entre o campesinato conhecem. As relações de paren-
e a sociedade envolvente, seja nas rela- tesco e vizinhança adquirem um
ções econômicas, seja nas relações po- papel determinante nas relações
líticas (Bernstein, 1982; Badoury, 1983; sociais do mundo camponês. Nis-
Díaz-Polanco, 1977). Essas redes so- to se distingue profundamente das
ciais assumem geralmente o caráter de culturas urbanas e suas mais varia-
economia moral, que combina instituições das formas de expressão. (Görgen,
comunitárias, que provêm segurança às 2009, p. 5)
117
Dicionário da Educação do Campo
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Campesinato
C
a construção da autonomia relativa dar conta de um conjunto de ativida-
camponesa é um processo político e des cujos resultados entram direta ou
economicamente necessário para que indiretamente no processo produtivo,
o campesinato se afirme como classe na forma de meios de produção, ou
social, como sujeito da realização dos no processo reprodutivo da família, na
seus interesses de classe social que forma de meios de consumo.
são distintos daqueles que motivam as Um padrão reprodutivo é, portan-
ações de classe seja da burguesia, seja to, constituído de um hábito de consumo
do proletariado. familiar ajustado a uma rotina de trabalho,
A primeira premissa é a de que a um e outro entendidos – isto é, subje-
unidade produtiva camponesa tende a ser tivamente avaliados – como adequados.
regulada em seu tamanho e em sua ca- Devido a distintas variáveis que afetam
pacidade de mudar pela capacidade de a alocação da força de trabalho, um
trabalho que ela possui enquanto família. padrão reprodutivo alcança um ponto
A capacidade de trabalho total de uma de acomodação num determinado ní-
família camponesa tenderá a apresen- vel de aplicação de trabalho, nível esse
tar um limite, tanto para garantir a re- que é necessariamente menor ou igual
produção social da família quanto para à capacidade de trabalho potencial to-
empreender inovações nos processos tal (primeira premissa) que a família
de trabalho que desejem concretizar. possui. Esse ponto de acomodação na
Essa premissa permite que se alocação da força de trabalho familiar
estabeleçam desdobramentos sobre num determinado momento da unidade
a extensão e a intensidade do uso da de produção camponesa é denominado
capacidade de trabalho própria à famí- orçamento de reprodução.
lia tanto nas suas alocações diretas nas O orçamento de reprodução é, portanto,
atividades a campo quanto na gestão constituído de dois componentes: um
do processo produtivo. Os resultados equivale aos bens diretamente consu-
desejados da unidade produtiva são li- midos pela família, componente que é
mitados por essa capacidade interna de resultante do hábito de consumo familiar;
trabalho familiar. e outro equivale ao que Tepicht (1973)
A segunda premissa afirma que, na chamou de consumo produtivo da família,
dinâmica da reprodução social da fa- quer dizer, a necessidade de manuten-
mília, emergem forças que promovem ção dos meios de produção utilizados,
tensões contrárias: umas originadas das que são decorrentes da rotina de traba-
necessidades reprodutivas da família, lho estabelecida.
que impulsionam ao trabalho, e ou- Por fim, de acordo com a terceira
tras que apelam ao lazer.2 Estabelece- premissa, as relações entre a família
se, assim, pela experiência pessoal dos camponesa (na dinâmica da unidade
componentes da família e sua vivência de produção/consumo) e os demais
cultural, um padrão reprodutivo. setores da sociedade (local, regional ou
O que aqui se denomina de padrão nacional) são realizadas por múltiplas
reprodutivo é a resultante conjuntural, mediações, algumas imediatas outras
num dado momento da vida da famí- mediatas, relações essas que estabele-
lia camponesa, que envolve certa ma- cem as condições de realização do orça-
neira na distribuição do trabalho para mento de reprodução (segunda premissa).
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Dicionário da Educação do Campo
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Campesinato
C
mudanças que, ao mesmo tempo, pos- vezes exitosas, da expansão da raciona-
sam responder às tensões para o cresci- lidade capitalista, seja pela indução a
mento da produtividade do trabalho – uma diferenciação social em curso, seja
uma exigência da convivência com as pelo estabelecimento de relações sociais
leis de reprodução do próprio sistema de dominação que lhes subalternizam,
capitalista – e para garantir a lógica re- venha ocorrendo em uma multiplicida-
produtiva baseada na família que é pró- de de formas e de contextos sociais, a
pria da racionalidade camponesa. possibilidade de uma autonomia relati-
O esforço das famílias camponesas va da unidade de produção camponesa
para encontrarem um padrão reproduti- pressuporá que tais famílias já estejam
vo que lhes permita a reprodução social em fase de redefinição de sua identi-
da família sem tenderem para uma di- dade, de uma identidade de resistência
ferenciação social – quer pela hipótese para outra identidade social, que se su-
da proletarização, quer por sua transfor- põe de projeto.
mação em pequenos burgueses agrários, A redefinição de ou a passagem para
com a introdução de relações sociais de essas identidades se manifesta mais além
produção de assalariamento –, pressu- do nível do indivíduo. Elas revelam a
põe que, mesmo em distintos contextos afirmação do campesinato como sujeito
sociais, afirmem a sua autonomia relati- social, como ator social coletivo cuja di-
va perante as diversas frações do capital reção principal das ações está orientada
com as quais se relacionam nos diversos para a superação das relações de domi-
mercados onde se inserem. nação e de subalternidade a que ele se
Essa afirmação da autonomia relati- encontre submetido. A mediação dos
va camponesa está diretamente relacio- movimentos e organizações sociais cam-
nada com a construção de uma identi- ponesas está presente nesse processo.
dade que supere a identidade de resistência Na formação social brasileira, a
para alcançar, conforme Castells (1999, construção de uma identidade social de
p. 22 e seg.), uma identidade de projeto. projeto do campesinato deverá pressu-
Essa última se constitui quando atores por não apenas a afirmação da autono-
sociais, utilizando-se de qualquer tipo mia relativa dos camponeses perante os
de material cultural ao seu alcance, capitais – portanto, de uma concepção
constroem uma nova identidade capaz de campesinato portadora da lógica que
de redefinir sua posição na sociedade assevera a especificidade camponesa –,
e, ao fazê-lo, transformam toda a es- como a presença, em maior ou menor
trutura social. grau de explicitação, de uma maneira
Ainda que a resistência social cam- de se fazer agricultura diferente daque-
ponesa às tentativas, na maior parte das la presente no paradigma capitalista.
Notas
1
Recursagem é um potencial da natureza recursado pelo conhecimento sistematizado e
conjunto de técnicas da família, que está embasado numa classificação e discriminação do
meio, passada de geração a geração. Ver Mazzetto, 1999.
2
Ou substanciam uma aversão à penosidade do trabalho. Alguns autores acham que essa
é a característica mais marcante da racionalidade camponesa. Ellis (1988, p. 102-119) en-
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Capital
C
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Capital
Guilherme Delgado
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Capital
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ção dos recursos naturais pelo capital processos produtivos agrícola e indus-
é distinto do padrão europeu, mas não trial é a mais lenta rotação do capital
deixa de ser também um processo coer- na agricultura.
citivo de apropriação da renda fundiá- Não obstante as diferenças aponta-
ria em diferentes condições históricas, das, o processo produtivo agrícola tam-
até o presente, e que está muito bem bém será “modernizado” pelo capital
documentado em Terras devolutas e la- industrial, por meio da combinação de
tifúndio, texto clássico de Ligia Osorio inovações mecânicas, biológicas e físico-
Silva (2008). químicas que tendem a elevar a pro-
O fato de o capitalismo penetrar di- dutividade do trabalho na agricultura.
retamente no mercado de terras, trans- O aumento da produtividade se dará
formando-as em ativo mercantil com- pela substituição da energia muscular e
pletamente ajustado às necessidades da animal por tração mecânica, pela ace-
expansão da produção de commodities, leração dos processos de absorção da
não elimina a contradição original, pois fotossíntese e pelo incremento da ab-
a terra não é mercadoria – ou seja, um sorção de nutrientes do solo (NPK +
produto do trabalho humano – e, por- micronutrientes), combinados com o
tanto, não pode ser convertida em mer- uso intenso de agrotóxicos.
cadoria pela apropriação capitalista dos Por sua vez, como os períodos de
recursos naturais. Assim, o mercado de produção não são contínuos, mas de-
terras continua sendo uma questão es- pendentes dos calendários estacionais,
sencialmente jurídica ligada à conota- o processo de circulação das mercado-
ção do estatuto do direito da proprie- rias produzidas também comportará
dade fundiária em cada país, e não uma defasagens, sob a forma de distribuição
questão estritamente mercantil. irreversível do estoque produzido no
Retomando as distinções materiais ano. Isso terá consequências na forma-
do capital agrário nos processos de ção dos preços agrícolas, introduzin-
produção e circulação de mercadorias, do neles elementos de estacionalidade
convém fazer dois destaques de certa e volatilidade que são específicos dos
importância conceitual. O processo de produtos agrícolas.
produção de mercadorias na agricul- Finalmente cabe uma digressão
tura está sujeito ao regime natural das específica sobre o capital financeiro e,
fases adequadas de plantio e colheita, em especial, acerca de sua relação com
e aos tratos culturais. Diferentemente a agricultura, consideradas as particu-
dos processos produtivos na indústria, laridades que levantamos neste texto:
o período de produção é descontínuo, e capital fundiário e renda fundiária, ino-
o trabalho humano se ajusta aos ritmos vações técnicas e diferenças no proces-
naturais de absorção da energia da fo- so produtivo e comercial.
tossíntese. Isso impõe um ritmo e uma Retornando ao tema inicial deste
forma de produzir mercadoria essen- texto, quando tratamos do equivalente
cialmente dependentes dos recursos da geral – dinheiro transformado em ca-
natureza, algo que também é distinto pital, tendo em vista acrescer seu valor
dos processos urbano-industriais. Uma pela produção da mais-valia –, temos
diferença crucial para a teoria do ca- nessa formulação a mediação necessária
pital oriunda dessa distinção entre os dos processos de produção e circulação
125
Dicionário da Educação do Campo
126
Ciranda Infantil
C
Para saber mais
Delgado, G. C. Capital financeiro e agricultura no Brasil: 1965-1985. Campinas:
Ícone–Unicamp, 1985.
Furtado, C. Introdução ao desenvolvimento: enfoque histórico-estrutural. São Paulo:
Paz e Terra, 2000.
Marx, K. O capital. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. L. 1-3.
Silva, L. O. Terras devolutas e latifúndio. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.
Ciranda Infantil
Edna Rodrigues Araújo Rossetto
Flávia Tereza da Silva
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Dicionário da Educação do Campo
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Ciranda Infantil
C
criança Sem Terra e de referência para • quinto e último núcleo: crianças de
as famílias, não apenas por permitir 9 a 12 anos; para cada doze crian-
que mães, pais e responsáveis possam ças, havia um/a educador/a.
empreender suas tarefas, mas princi-
palmente por implicar a construção de As crianças que participaram do
um coletivo infantil por meio do qual processo de luta pela terra possuem ca-
as crianças sentem-se parte do MST. racterísticas coletivas que contribuem
para o seu processo de formação e que
As Cirandas Infantis Itinerantes se manifestam nas atitudes cotidianas,
são organizadas sempre que a partici- na família, na Ciranda Infantil, na escola
pação das mulheres em instâncias, di- e no grupo social no qual convivem, ou
reções, cursos, reuniões, congressos e seja, no meio em que estão inseridas.
marchas – enfim, no processo de luta
É nesse cirandar da Ciranda que as
pela terra – o exige. Como são orga-
crianças vão compreendendo o pro-
nizadas especialmente para as crianças jeto de sociedade que o Movimento
que acompanham seus pais e mães em dos Trabalhadores Rurais Sem Ter-
ações e atividades do processo de luta ra está construindo e vão realizando
pela terra, elas têm data para começar e sua infância, pois esse processo não
para terminar. O MST do Ceará foi um precisa ser isolado do espaço da luta
dos primeiros a introduzir a experiência. de classe. A coletividade vivenciada
No âmbito nacional, a primeira Ciranda pelas crianças nas Cirandas Infantis
Infantil Itinerante ocorreu em 1997, no tem uma intencionalidade pedagógi-
Encontro Nacional dos Educadores/ ca vinculada ao projeto educativo que
as da Reforma Agrária (Enera), em vem sendo desenvolvido no interior
Brasília, e contou com a participação do MST. E pelas vivências no cole-
de 80 crianças de todo o país. tivo infantil as crianças têm possibi-
Na Ciranda Itinerante do V Con- lidade de se apropriar dos elementos
gresso do MST, que ocorreu de 11 a 15 do processo histórico para a compre-
de junho de 2007 em Brasília, e do qual ensão da realidade.
participaram 18 mil delegados de todos Por fim, o coletivo infantil é uma
os assentamentos e acampamentos do construção conjunta da qual partici-
Brasil, a organização das crianças foi feita pam crianças, educadores e educado-
por núcleos de base, da seguinte forma: ras, com a Ciranda Infantil constituin-
do uma referência para as crianças,
• primeiro núcleo: bebês de até 1 pois possibilita a sua participação na
ano de idade; para cada dois bebês, luta pela terra. A Ciranda se configura
havia um/a educador/a; como espaço de resistência e reafirma-
• segundo núcleo: bebês de 2 a 3 ção da identidade tanto de Sem Terra
anos idade; para cada três bebês, quanto de ser criança. Isso ocorre por
havia um/uma educador/a; intermédio das brincadeiras, jogos, pa-
• terceiro núcleo: crianças de 4 a 6 lavras de ordens, místicas, enfim, pela
anos de idade; para cada dez crian- vivência da infância no movimento. As
ças, havia um/a educador/a; crianças estão em constante movimen-
• quarto núcleo de base: crianças de 7 to na Ciranda Infantil e são as vivên-
a 8 anos; para cada dez crianças, há cias nesse coletivo infantil que desper-
um/a educador/a; tam nelas uma verdadeira prática de
129
Dicionário da Educação do Campo
130
Comissão Pastoral da Terra (CPT)
C
terra para uma terra sem homens”. A Em 1972, realizou-se, em Santarém/
fim de tornar viável esse objetivo, foi PA, um encontro inter-regional dos
criada a Superintendência de Desen- bispos de toda a Amazônia. O en-
volvimento da Amazônia (Sudam). Por contro foi um marco histórico da
meio da Sudam, foram oferecidos in- caminhada da Igreja na região, ao defi-
centivos fiscais às empresas que se dis- nir “Linhas prioritárias da pastoral da
pusessem a investir no desenvolvimen- Amazônia”. Essas linhas prioritárias
to da Amazônia. Dessa forma, grandes tinham como uma de suas diretrizes
bancos e empresas dos mais diferentes básicas a encarnação da Igreja na rea-
ramos, para terem acesso aos recursos lidade do povo; entre suas prioridades
dos incentivos fiscais, adquiriram ex- estavam a Pastoral Indigenista e a ação
tensas áreas de terra, onde iriam con- diante da abertura de estradas e de ou-
cretizar seus projetos. Consideravam tras frentes pioneiras.
como inabitadas as áreas adquiridas, Em 1975, a Comissão Brasileira
mesmo se nelas houvesse aldeias indí- de Justiça e Paz, vinculada à Confe-
genas e vilarejos de sertanejos, a maior rência Nacional dos Bispos do Brasil
parte constituída de posseiros. (CNBB), convocou os bispos e prela-
O resultado imediato dessa política dos da Amazônia a uma reunião em
foi a invasão dos territórios indígenas Goiânia, para intercâmbio de conhe-
e a expulsão de milhares e milhares de cimentos sobre a realidade da região e
famílias sertanejas. Ao mesmo tempo, busca de uma ação conjunta da Igreja
de outras partes do país, sobretudo do diante da mesma. O encontro termi-
Nordeste, eram trazidos milhares de nou com algumas propostas, entre
trabalhadores para derrubar as matas, a elas a de se constituir uma comissão
fim de nelas se estabelecerem as ativida- de terras que interligasse, assessorasse
des agropecuárias dos projetos aprovados. e dinamizasse os que trabalhavam em
Foi o início de um longo período favor dos homens sem-terra e dos tra-
de conflitos e violência contra os tra- balhadores rurais. Em reuniões sub-
balhadores, que não tinham qualquer sequentes para dar corpo à comissão,
forma de organização. Quem compar- acabou-se por nomeá-la Comissão
tilhou com os trabalhadores e trabalha- Pastoral da Terra.
doras essa situação foi a Igreja, única Nascida da premência e da urgên-
instituição presente na região. cia da realidade amazônica, a recém-
Em 1971, por ocasião de sua ordena- criada CPT começou a se articular não
ção episcopal, dom Pedro Casaldáliga, só na Amazônia, mas em praticamente
bispo da recém-criada Prelazia de São todas as regiões do Brasil, de tal forma
Félix do Araguaia, no Mato Grosso, pu- que logo estava implantada em quase
blicou uma carta pastoral com o título todo o território nacional, adquirin-
“Uma igreja da Amazônia em conflito do, em cada região, tonalidade dife-
com o latifúndio e a marginalização so- rente, de acordo com os desafios que
cial”. Nela, descreve a realidade dura e a realidade regional colocava. Hoje a
violenta em que viviam as comunida- CPT está organizada em 21 seções
des indígenas e sertanejas e os peões regionais, com equipes de base em
(trabalhadores das fazendas). várias dioceses.
131
Dicionário da Educação do Campo
132
Comissão Pastoral da Terra (CPT)
C
porou uma atenção especial à água, sumam as rédeas de suas lutas, sendo
com suas múltiplas dimensões e usos. protagonistas de sua história. A CPT
Incorporou também o conceito de nunca desenvolveu processos de edu-
território na defesa do direito à terra, cação formal, a não ser de alfabetiza-
sobretudo pelas comunidades indíge- ção de adultos em alguns lugares, mas
nas, quilombolas e outras comunidades dedicou e dedica parte significativa de
tradicionais. seu tempo e de seus recursos a realizar
A atenção aos trabalhadores e tra- encontros e cursos de formação que
balhadoras assalariados, os boias-frias, ajudem os trabalhadores e trabalhado-
foi um dos acentos na trajetória da ras a ler com olhos críticos a realidade
CPT; com isso, os boias-frias consegui- na qual estão inseridos, a conhecer os
direitos que a lei lhes garante, a reivindi-
ram, por algum tempo, ganhar a cena,
car direitos que a lei lhes nega e a de-
mas hoje enfrentam dificuldades de or-
senvolver práticas de cultivo e cuidado
ganização e articulação.
da terra que melhorem a sua produção,
Desde sua origem, a CPT se preo- respeitando os direitos da natureza.
cupou com os peões das fazendas, mui-
Também desenvolveu e desenvolve
tas vezes submetidos a condições aná-
ações de formação com grupos específi-
logas ao trabalho escravo, e denunciou
cos de camponeses, como os ribeirinhos,
esse tipo de exploração. Em 1997, lan-
os quilombolas, os seringueiros e outros.
çou uma Campanha Nacional contra o Ao mesmo tempo, tem dado atenção à
Trabalho Escravo, que, além de denun- formação das mulheres camponesas,
ciar a continuidade dessa chaga social, incentivando-as a se empoderarem e
promove ações de conscientização nas a defenderem suas próprias causas. A
regiões de onde saem os trabalhadores CPT acompanhou com carinho e aten-
e busca dar apoio aos resgatados. ção a formação da Articulação Nacio-
Apesar das ênfases diferentes, uma nal das Mulheres Trabalhadoras Rurais
linha comum entrelaça os diferentes (ANMTR), que se converteu no atual
períodos: a dos direitos. Na sua ação, Movimento das Mulheres Camponesas
explícita ou implicitamente, o que (MMC Brasil).
sempre esteve em jogo foi o direito Como suporte às ações de forma-
do trabalhador, de tal forma que se ção, a organização produziu, em todos
pode dizer que a CPT é também uma os cantos do país, cartilhas sobre a
entidade de defesa dos direitos huma- realidade brasileira, os direitos das di-
nos, ou uma pastoral dos direitos dos versas categorias de trabalhadores do
trabalhadores e trabalhadoras da terra. campo – posseiros, meeiros, arrendatá-
rios, ribeirinhos, quilombolas – e sobre
A formação, mola mestra práticas de saúde alternativa e popular,
de cultivo da terra e de preservação
da ação e recuperação de fontes e nascentes.
Desde os primeiros momentos até Também produziu cartilhas de alfabe-
hoje, a Comissão Pastoral da Terra tização dentro do espírito e do método
considerou a formação um elemento de Paulo Freire.
essencial para a sua ação e para que os Nesse contexto, a CPT também não
homens e as mulheres do campo as- descurou da formação de seus agentes
133
Dicionário da Educação do Campo
para que pudessem prestar um serviço tre si e que fortaleçam sua própria
mais qualificado aos grupos e às co- identidade, compreendendo os de-
munidades com as quais trabalhavam safios da realidade e as ciladas do
e trabalham. modelo atual de desenvolvimento.
4) A luta pela terra e pelos territórios, com-
batendo o latifúndio e o agronegócio e in-
Reafirmação de corporando na luta a convivência com os
compromissos diversos biomas e as diversas culturas dos
povos que ali vivem e resistem, buscando
A CPT, ao longo de sua história, foi
formar comunidades sustentáveis: a luta
avaliando sua ação e, a fim de manter
pela terra não é só a luta por um
fidelidade à sua missão, reafirmou seus
pedaço de chão para trabalhar, mas
compromissos e assumiu novos que
a luta pela defesa de territórios, nos
melhor respondessem aos desafios da
quais as comunidades exercem sua
realidade. São eles:
autonomia, definem suas próprias
1) A promoção da vida dos seres humanos e formas de ocupação e organizam
do planeta terra: a luta pela terra não seu espaço de vida e relações.
pode estar dissociada da luta pela 5) O enfrentamento ao modelo predador do
Terra, o planeta, que sofre contínu- ambiente e escravizador da vida de pessoas e
as agressões e manifesta o estresse comunidades: o modelo de desenvolvi-
a que foi submetida. mento capitalista só enxerga a nature-
2) A construção de práticas e valores no za como fonte de riqueza que deve
campo que criem novas relações entre pes- ser explorada até o esgotamento para
soas, famílias, comunidades e povos numa gerar lucros cada vez maiores, lan-
perspectiva de solidariedade: a CPT çando mão de relações de trabalho,
entende que um projeto novo ex- superadas como o trabalho escravo,
ige práticas novas ou o resgate de para que seus lucros sejam cada vez
práticas antigas que o modelo de maiores. A CPT propõe que esse
desenvolvimento imperante fez modelo seja enfrentado com clareza
abandonar, mas que carregam sa- e firmeza.
beres e dinâmicas capazes de salvar
o planeta e as boas relações. Por isso, a CPT, atuando como su-
3) O protagonismo dos camponeses e das porte e parceira solidária, tem como
camponesas, dos trabalhadores e das objetivo estratégico de sua ação que as
trabalhadoras, em busca do fortaleci- comunidades camponesas conquistem práticas,
mento do poder popular: campon- valores e direitos que promovam e defendam a
eses e camponesas, trabalhadores vida dos seres humanos e do planeta Terra e
e trabalhadoras devem assumir as que, ao mesmo tempo, garantam o protagonis-
rédeas de sua história; não podem mo das populações camponesas e dos traba-
ficar subordinados ao que ditam as lhadores e trabalhadoras do campo.
elites, que determinam o que todos Nessa luta, a CPT não está sozinha.
têm de fazer, para garantir seus Articula-se com as pastorais sociais das
próprios interesses. Por isso, a ação Igrejas e com os movimentos, associa-
da CPT junto das comunidades ções e organizações de camponeses e
camponesas pretende que elas es- camponesas. A CPT é parte integran-
tejam organizadas e articuladas en- te do Fórum Nacional pela Reforma
134
Commodities Agrícolas
C
Agrária e Justiça no Campo (FNRA) e balhadores e trabalhadoras do campo,
da Via Campesina. Por ser a Via Cam- a CPT, como entidade de assessoria e
pesina uma articulação internacional apoio, dela participa ativamente, ainda
de movimentos e entidades dos tra- que na qualidade de convidada.
COMMODITIES AGRÍCOLAS
Nelson Giordano Delgado
135
Dicionário da Educação do Campo
136
Commodities Agrícolas
C
dupla tendência: 1) o declínio nos ter- cução de projetos de industrialização
mos de troca entre commodities agríco- orientados e estimulados pela ação da
las e produtos manufaturados a longo política econômica dos Estados na-
prazo; e 2) a enorme volatilidade nos cionais, visando superar sua condição
preços dessas commodities a curto pra- de países “vocacionados” para a pro-
zo. Essa volatilidade usualmente está dução de commodities primárias.
associada aos hiatos temporais entre as A segunda ocorrência que merece
decisões de produzir e a capacidade de registro no tema das commodities agrí-
entregar as mercadorias no mercado; colas foram as tentativas de enfrentar
aos choques de oferta causados por mu- os problemas oriundos da deterioração
danças climáticas ou perturbações na- dos termos de intercâmbio e, princi-
turais inesperadas; à baixa elasticidade- palmente, da volatilidade dos preços
renda da demanda desses produtos; e à por meio da realização de acordos in-
inelasticidade-preço de sua oferta.1 ternacionais ou intergovernamentais
Duas ocorrências merecem des- sobre commodities. Embora intentos de
taque na consideração das commodities concretização desse tipo de acordos
agrícolas tropicais (e das commodi- tivessem sido feitos anteriormente
ties primárias em geral) e do “problema (em grande parte de forma bilateral),
das commodities”, acima assinalado. Em foi no processo de negociação da or-
primeiro lugar, a análise do comporta- dem comercial internacional a vigorar
mento histórico da relação de trocas no segundo pós-guerra que surgiram
entre os preços das commodities e os pre- tentativas de retomar a discussão des-
ços dos produtos industriais, as primei- ses acordos internacionais nos fóruns
ras exportadas pelos países da periferia internacionais em construção (Depart-
e os segundos exportados pelos países ment for International Development,
centrais, tornou-se um dos pilares da 2004; Delgado, 2009).
pioneira teoria do desenvolvimento e Inicialmente, Keynes, em sua pro-
do subdesenvolvimento econômicos posta de reorganização da ordem finan-
formulada, no quase imediato pós- ceira e comercial internacional apre-
Segunda Guerra Mundial, pela Comis- sentada na reunião de Bretton Woods,
são Econômica para a América Latina incluiu a criação de agências internacio-
e o Caribe (Cepal) (Prebisch, 1964; nais para o controle dos preços das com-
Furtado, 1961). A deterioração históri- modities primárias, mediante uma política
ca desses termos de troca ou intercâm- de estoques, intento abortado devido à
bio está associada, na concepção de oposição dos Estados Unidos e sua de-
Prebisch e Furtado, à insuficiência di- fesa da liberalização comercial.
nâmica do desenvolvimento baseado Também nas discussões prepara-
em commodities agrícolas ou primárias em tórias para a elaboração de uma pro-
geral, que, além disso, não pode ser posta de Organização Internacional do
enfrentada de forma equitativa por Comércio (abandonada pelos Estados
intermédio dos mecanismos de mer- Unidos em 1950), a questão dos acor-
cado. Daí a proposição que se tor- dos intergovernamentais sobre com-
naria fundadora da reivindicação de modities esteve presente em abordagens
desenvolvimento econômico dos paí- alternativas, algumas das quais implica-
ses periféricos no pós-guerra: a exe- vam ampla intervenção governamental.
137
Dicionário da Educação do Campo
138
Commodities Agrícolas
C
cola”, tão cara às suas elites agrárias, modities agrícolas no início da década de
a partir da década de 1970 – com as 1980, dando origem aos conflitos co-
mudanças ocorridas no comércio e no merciais entre Estados Unidos e CEE
sistema agroalimentar mundiais – e du- (atual União Europeia), que passaram
rante as décadas de 1980 e de 1990 – a dominar o cenário das negociações
com as mudanças da política econô- agrícolas internacionais desde então.
mica e a abertura dos mercados, in- Ademais, com a necessidade de os
duzidas pela crise da dívida externa e países periféricos aumentarem consi-
pela adoção do receituário neoliberal deravelmente suas exportações de com-
(Delgado, 2010). A diferença funda- modities agrícolas “duras”, em virtude
mental é que essa reconstrução está da crise da dívida e das transformações
baseada agora na especialização em do sistema agroalimentar mundial, as
commodities agrícolas “duras” e não mais políticas protecionistas dos países cen-
em commodities agrícolas tropicais, con- trais passaram a influenciar igualmente
tornando algumas condições de insu- as possibilidades não apenas de cresci-
ficiência dinâmica do desenvolvimento mento da agricultura e das exportações
associado a essas últimas, mas não en- agrícolas, mas também de equilíbrio na
frentando – e muitas vezes obstaculi- balança comercial desses países.
zando – as mudanças estruturais de- O exame do comportamento histó-
fendidas por Prebisch e Furtado para rico dos preços das commodities agríco-
as economias periféricas. las “duras” indica substancial variabi-
O preço internacional, a quantidade lidade de preços, alternando elevações
produzida e a rentabilidade das commodi- e quedas periódicas nos preços reais
ties agrícolas “duras” são determina- com evidências, embora controversas,
dos em grande medida pelas políticas de tendência declinante de seus preços
agrícolas protecionistas dos países cen- reais a longo prazo (Hathaway, 1987,
trais. Essas políticas foram inauguradas cap. 1 e 2). Assim, na década de 1960,
na década de 1930 nos Estados Uni- o comércio agrícola mundial cresceu
dos, em resposta aos efeitos devasta- lenta mas continuamente, e os preços
dores da Grande Depressão, de 1929 das commodities permaneceram relativa-
sobre o meio rural, e se fortaleceram mente estáveis. Essa situação mudou
bastante no pós-guerra, após a decisão consideravelmente na década de 1970,
norte-americana de impedir que as com- quando o volume do comércio de com-
modities agrícolas fossem submetidas às modities agrícolas aumentou, em termos
regras do Gatt, e com o surgimento, reais, quatro vezes mais do que a sua
na década de 1950, da Política Agrí- produção, provocando aumentos con-
cola Comunitária, a PAC, que repre- sideráveis nos preços mundiais (nomi-
sentou um componente politicamente nais e reais). Nessa década, dentre as
importante no processo de construção transformações ocorridas no comércio
da Comunidade Econômica Europeia mundial de commodities, cabe destacar o
(CEE) no período. Como resultado, a grande aumento das exportações agrí-
produção agrícola cresceu extraordi- colas dos Estados Unidos, estimulado
nariamente nos Estados Unidos e na pela política de desvalorização do dó-
Europa, de modo que essa última pas- lar – o que tornou a sua agricultura
sou a ser exportadora líquida de com- mais dependente das exportações – e
139
Dicionário da Educação do Campo
140
Commodities Agrícolas
C
a queda dos rendimentos agrícolas por mente voláteis e sua evolução futura
causa da destruição dos solos e dos é extremamente incerta. Na medida
investimentos públicos inadequados em que a especulação excessiva não
e insuficientes em pesquisa agrícola e ex- for contida, a forte presença de in-
tensão rural; o impacto das mudanças vestidores financeiros continuará a
climáticas sobre as safras agrícolas; e a adicionar instabilidade nesses mer-
redução dos estoques mundiais de com- cados” 4 (United Nations Conference
modities. Além disso, também são men- on Trade and Development, 2010,
cionados fatores como a desvalorização p. 11; nossa tradução).
do dólar e a redução das taxas de juros, Por fim, para muitos analistas este
notadamente nos Estados Unidos. comportamento internacional das com-
No entanto, número crescente de modities agrícolas na primeira década de
análises sugere que variações na oferta 2000 reflete, na verdade, a existência
e na demanda não são suficientes para de uma verdadeira “crise agrária e ali-
explicar a explosão de preços ocorrida mentar”. Para Ploeg, por exemplo, esta
em 2007, e, especialmente, no início crise emerge da interação de três fatores:
de 2008, que parece estar associada ao
processo de “financeirização das com- 1) uma parcial, mas progressiva
modities”, ou seja, à especulação finan- industrialização da agricultura;
ceira, que se deslocou para o setor de 2) a emergência do mercado
commodities primárias com a crise finan- mundial como o princípio or-
ceira internacional, desencadeada pela denador da produção e da co-
inadimplência do subprime2 nos Estados mercialização agrícolas; e 3) a
Unidos. A maior preocupação dos reestruturação das indústrias
analistas é que a especulação finan- processadoras, das grandes em-
ceira tenha se tornado um novo presas comercializadoras e das
componente estrutural explicativo cadeias de supermercados em
da volatilidade dos preços das com- ‘impérios alimentares’ que exer-
modities agrícolas, como parece ser cem um poder monopolista
exemplificado pelo que ocorreu na crescente sobre a cadeia de ofer-
metade de 2008, quando muitos ta de alimentos como um todo.5
investimentos financeiros tiveram (2010, p. 99; nossa tradução)
de abandonar o mercado de com-
modities para cobrir perdas e prover A interação desses fatores, asso-
liquidez em outras atividades, pro- ciada à constatação de que o mercado
vocando uma queda em seus preços. mundial é um princípio organizador
Como diz Ghosh, “os mercados in- intrinsecamente instável do sistema
ternacionais de commodities começa- agroalimentar internacional, tende a
ram progressivamente a desenvolver tornar a turbulência, segundo Ploeg,
muitas das características dos mer- uma característica permanente do re-
cados financeiros” 3 (2011, p. 54; gime alimentar, com consequências
nossa tradução). sobre o aumento da volatibilidade dos
De acordo com o relatório da preços das commodities agrícolas, em de-
Unctad de 2010, “em geral, os preços trimento tanto de produtores quanto
das commodities têm permanecido alta- de consumidores.
141
Dicionário da Educação do Campo
Notas
1
Os termos de troca entre commodities agrícolas e produtos manufaturados indicam a rela-
ção entre os preços desses produtos (Pcommodities/Pindustrializados, onde P=índice de
preços). Se essa relação é declinante ao longo do tempo, isso significa que os preços dos
produtos industrializados aumentam mais rapidamente do que os preços das commodities
agrícolas, acarretando, como consequência, uma transferência de recursos dos produtores
de commodities agrícolas para os produtores de manufaturas. Uma baixa elasticidade-renda da
demanda denota que, quando a renda aumenta, o incremento da demanda por commodities
agrícolas dela derivado ocorre numa proporção inferior – usualmente muito inferior – à ele-
vação da renda. A inelasticidade-preço da oferta sugere que, quando o preço das commodities
agrícolas aumenta, a quantidade ofertada aumenta em menor proporção do que o preço
e quando o preço cai, a quantidade ofertada diminui também em menor proporção.
2
Crédito de risco concedido a um tomador de empréstimos que não oferece garantias
suficientes; no caso dos Estados Unidos, o termo designa especificamente as hipotecas do
setor imobiliário.
3
“[...] international commodity markets increasingly began to develop many of the features
of financial markets.”
4
“In general, commodity prices have remained highly volatile, and their future evolution
is extremely uncertain. As long as excessive speculation on commodity markets is not
properly contained, the strong presence of financial investors will continue to add
instability to these markets [...].”
5
“(1) a partial but constantly ongoing industrialization of agriculture; (2) the emergence of
the world market as the ordering principle for agricultural production and marketing; and
(3) the restructuring of processing industries, large trading companies and supermarket
chains into ‘food empires’ that increasingly exert a monopolistic power over the entire food
supply chain.”
142
Conflitos no Campo
C
Ghosh, J. Commodity Speculation and the Food Crisis. In: Institute for
Agriculture and Trade Policy (IATP). Excessive Speculation in Agriculture Com-
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CONFLITOS NO CAMPO
Clifford Andrew Welch
O título deste verbete expressa uma mo, a história dos conflitos e a situa-
frase que virou marca da C omissão ção atual.
Pastoral da Terra (CPT), organiza-
Os relatórios da CPT estabelecem
ção ecumênica fundada em 1975, com
categorias de análise para registrar os
a missão de defender os interesses dos
conflitos. Os organizadores dos rela-
camponeses. Desde 1985, a organiza-
ção publica Conflitos no campo Brasil, tórios destacam os temas terra, água,
inicialmente um relatório ocasional trabalho, violência e manifestações.
e depois uma série, com um volume Para aprofundar a análise, a CPT criou
anual, e livro-testemunho da situação subcategorias, como “despejos,” “ex-
socioeconômica dos trabalhadores ru- pulsões,” “tempos de seca,” “áreas de
rais e de sua resistência aos ataques garimpo,” “políticas públicas” e “sin-
constantes contra seus direitos tra- dicatos.” Além disso, a CPT procura
balhistas e posses territoriais. Vamos registrar todas as “ações de resistên-
utilizar a CPT como ponto de partida cia e enfrentamento” que ocorrem
para examinar a conceituação do ter- no Brasil.
143
Dicionário da Educação do Campo
144
Conflitos no Campo
C
marias implantado na colônia precisa outras áreas. O abandono do cultivo da
ser examinado, uma vez que permane- terra não resultou em devolução, pois a
ce influenciando os conflitos no campo fiscalização sempre foi muito precária
até o presente. (Alveal e Motta, 2005).
O sistema original de sesmaria foi Dessa forma, a sesmaria atribuída
criado em 1375, em Portugal. Com ele, a determinado nobre no Brasil tornar-
buscou-se promover o desenvolvimen- se-ia permanente, como uma grande área
to rural por meio do cultivo de cereais, particular. É ela a base de um sistema de
além de segurar os camponeses na ter- latifúndio pouco produtivo, que contri-
ra. O sistema ajudou a amenizar a cri- buiu para a problemática da formação
se alimentar que devastara Portugal e social do país. Como dificilmente as
causara grande êxodo do campesinato. sesmarias coloniais eram devolvidas ao
No século XV, o rei Afonso V utilizou rei, o significado de “terras devolutas”
a mesma lei para promover a coloniza- também diferiu no Brasil, referindo-se
ção das áreas de fronteira, aumentar a essencialmente às terras ainda não doa-
produção e assegurar as fronteiras de das ou desenvolvidas – isto é, a grande
Portugal contra a invasão espanhola maioria daquilo que viria a ser o Brasil
pelo Reino de Castela. Quem não con- independente a partir de 1822.
seguisse cultivar as terras num prazo Parece claro que o período colo-
previamente determinado, precisava nial produziu uma tendência a permi-
devolvê-las. Essas “terras devolutas” tir que o poderoso controlasse gigan-
deviam ser repassadas, com as mesmas tescas porções de terras e sustentasse
restrições, para novos sesmeiros (aque- suas vantagens através dos tempos. O
les que recebiam a doação) (Motta, elemento português menos influen-
2009, p. 15-17). te possuía a terra de modo precário,
No Brasil – onde os “piratas” como arrendatário, meeiro ou mesmo
franceses e holandeses ameaçavam a posseiro; os índios e africanos foram
hegemonia portuguesa –, os motivos escravizados. E isso transferiu para as
para a utilização do sistema não esta- futuras gerações uma estrutura fun-
vam muito distantes daqueles que ha- diária dualista, de terras subutilizadas
viam inspirado o uso prévio da política em forma de latifúndio e de terras su-
pela monarquia lusa. Uma vez doado pela perutilizadas em forma de minifúndio,
Coroa, ficava a cargo do sesmeiro culti- bem como uma formação social alta-
var, medir e demarcar o território. mente estratificada.
Entretanto, as exigências do sistema Outra herança do sistema colonial,
de sesmaria não tiveram efeito prático argumenta a historiadora Márcia Motta
no Brasil. O arrendatário, que recebia (2009, p. 263-266), é o uso pelos tribu-
porções de sesmarias para desenvol- nais da data de concessão da sesmaria
vê-las, alugava parcelas delas para pe- como referência para determinar a ti-
quenos agricultores, mas ninguém se tularidade. Em caso de conflito sobre
interessou em medi-las ou demarcá- a legitimidade de um título de terra, os
las. Muito pelo contrário, os grandes tribunais geralmente exigem a realiza-
arrendatários aproveitavam a madeira ção de um processo de discriminação, a
produzida pelo desbravamento e pres- fim de comprovar o direito original de
sionavam os camponeses a desmatar uso e posse da sesmaria.
145
Dicionário da Educação do Campo
146
Conflitos no Campo
C
lhares de trabalhadores. Os coronéis agricultura de pequena escala sobrevi-
eram políticos locais que manipula- via precariamente, dependendo, mui-
vam o apoio eleitoral dos seus agre- tas vezes, da grande propriedade para
gados e dependentes, buscando que o continuar a existir (Guimarães, 1968;
aparelho do Estado atendesse às suas Linhares e Silva, 1999).
reivindicações imediatas e de longo Após 1930, as mudanças políticas
prazo (Silva, 1996; Fausto, 1997), num no Brasil permitiram a instituição de
sistema onde “uma mão lavava a ou- um governo central forte, que procurou
tra.” Ao longo do tempo, formas de reduzir a influência da oligarquia rural
registro da terra foram estabelecidas e priorizando uma política desenvolvi-
a data-limite para a garantia de direi- mentista. O Estado Novo getulista se
tos adquiridos de imóveis, nos termos estendeu de 1937 a 1945 e, no período,
da Lei de Terras de 1850, foi adiada de decretos-leis procuraram reforçar as
1854, para 1878 e, depois, para vários relações capitalistas no campo. Entre
anos entre 1900 e 1930, dependendo as contribuições do regime semifascis-
dos interesses dos governos estaduais ta de Getúlio Vargas, destaca-se a pro-
e de coronéis e latifundiários. moção da organização social e política
A necessidade da documentação das classes rurais, inclusive a criação de
original de aquisição e utilização efe- uma estrutura associativa e o estabele-
tiva no interior do Brasil criou um cimento do sistema judiciário do traba-
novo protagonista para os conflitos no lho, usado para regular os conflitos no
campo: o grileiro. O valor da terra em campo (Welch, 2010).
São Paulo e o medo do proprietário de A partir de então, as estruturas or-
perdê-la para especuladores são fatores ganizativas se tornaram objeto de dis-
que contribuíram para tornar a prática puta política até os anos de 1960, quan-
bastante comum no estado. O grileiro do o governo determinou a criação de
falsificava documentos e os registrava um sistema de sindicatos tanto para os
oficialmente, corrompendo os oficiais latifundiários quanto para os campone-
dos cartórios que, muitas vezes, fize- ses. No entanto, esse ato fez agravar o
ram parte do processo de falsificação medo da oligarquia rural, uma vez que
de títulos de propriedades. A prática sinalizou a possibilidade da perda de
da grilagem continuou a falsificar do- seu poder e o aumento do controle
cumentos para a apropriação de terras do Estado sobre a terra. Dessa forma,
que pertenceram aos estados (Silva, os proprietários de terra preferiram rea-
1996; Linhares e Silva, 1999). gir e garantir a dominação mediante o
A descentralização do sistema de golpe militar de 1964 (Welch, 2010).
registros e o poder de influência das Numa aparente contradição, a admi-
oligarquias r urais tomaram for mas nistração inicial da ditadura militar con-
diversas nas diferentes regiões do seguiu aprovar no Congresso Nacio-
Brasil. Em todos os casos, no entanto, nal a primeira lei de Reforma Agrária,
prevaleceu a tendência de reafirmação em novembro de 1964. O Estatuto da
do sistema latifúndio-minifúndio. Os Terra definiu Reforma Agrária como
grileiros aumentavam o tamanho e a “o conjunto de medidas que visam a
quantidade dos latifúndios por meio promover melhor distribuição da ter-
da obtenção de documentos falsos e a ra mediante modificação no regime de
147
Dicionário da Educação do Campo
148
Conflitos no Campo
C
Relembrar as lutas sociais de des- de pessoas – representadas por cerca
taque na história subalterna do campo de 30 organizações de diversas orien-
não é um exercício de história social, e tações. O novo camponês mora e tra-
sim a tentativa de caracterizar pontos- balha em mais de 8.500 assentamentos,
chave na tradição inventada do movi- estabelecidos pelos governos estaduais
mento camponês do fim do século XX e federal, e que ocupam quase 80
e no início do século XXI, que conse- milhões de hectares – 20% da terra
guiu elevar os eventos a mitos entre explorada pela agricultura (Núcleo
os seus seguidores, se não na popula- de Estudos, Pesquisas e Projetos de
ção em geral. A história subalterna é Reforma Agrária, 2010). A gran-
a escrita da narrativa do passado pela de maioria dessas famílias foi assentada
perspectiva dos vencidos, dos subor- depois de 1988, quando foi promulga-
dinados, que se colocam eles mesmos da a nova Constituição, que especificou,
no papel de protagonistas dos eventos. como dever do Estado, a desapropria-
A tentativa de territorializar a história ção para fins de Reforma Agrária, de
é outra marca dos conflitos no campo. propriedades em violação das leis traba-
Mitos, longe de serem contos de deu- lhistas, ambientais ou simplesmente im-
sas falsas, são a liga cultural que serve produtivas. Os artigos constitucionais,
como memória coletiva de comunida- apesar de oferecerem menos do que
des, tais como os movimentos socio- fora exigido, são produtos dos conflitos
territoriais (Fernandes, 2000). no campo.
As histórias das lutas camponesas – Outras estatísticas são reveladoras
relembradas em cartilhas ou recriadas das complexidades dessas conquistas.
em místicas – fortalecem o movimento Nos embates provocados entre porta-
camponês, dando sentido e fundamen- vozes da Via Campesina e do agrone-
to aos conflitos contemporâneos no gócio, é clara a impossibilidade de diá-
campo. Eles não são conflitos isolados, logo entre as partes: a Via Campesina
mas parte de um fio histórico. A luta prega a Reforma Agrária e a segunda,
de hoje faz parte de uma luta contínua a extinção da mesma. Por isso, a CPT
e permanente que precisa de seus sol- relatou que as ocorrências de conflitos
dados tanto quanto as lutas do passa- de terra aumentaram bastante entre
do. Um dia seremos “nós” os sujeitos 2001 (625) e 2010 (853); as incidências
inspiradores de mais uma fase da luta de trabalho escravo aumentaram mais
pela territorialização do campesinato do que cinco vezes, de 45 (2001) para
no Brasil. 204 (2010); os conflitos pela água pu-
A fase atual, testemunhada pela laram de 14 (2002) para 87 (2010); e a
CPT, é a mais rica de todas em termos média dos assassinatos – para mencio-
de avanços dos movimentos socioter- nar só a forma mais extrema de vio-
ritoriais. Enquanto o camponês tradi- lência praticada no campo – foi de 38,
cional, vivendo na terra durante gera- com alta de 73 em 2003 e baixa de 26
ções, sofreu brutais transformações no em 2009 (Comissão Pastoral da Terra,
Brasil, o camponês produto da luta 2011). Com tragédias e vitórias como
pela Reforma Agrária nunca esteve tão essas, os conflitos no campo continua-
bem organizado. São mais de 1 milhão rão a criar novos territórios e memórias
de famílias – por volta de 5 milhões de resistência.
149
Dicionário da Educação do Campo
Nota
1
“Via farmer” é uma expressão utilizada desde o século XIX para descrever o modelo de
desenvolvimento rural utilizado inicialmente no nordeste dos Estados Unidos da América,
caracterizado pela predominância do pequeno agricultor.
150
Conhecimento
C
Silva, L. O. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora
da Unicamp, 1996.
Welch, C. A. A semente foi plantada: as raízes paulistas do movimento camponês,
1924-1964. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
______. Movimentos sociais no campo: a literatura sobre as lutas e resistências
dos trabalhadores rurais do século XX. Revista Lutas e Resistências, Londrina, n. 1,
p. 60-75, set. 2006.
Conhecimento
Márcio Rolo
Marise Ramos
151
Dicionário da Educação do Campo
152
Conhecimento
C
opiniões subjetivas se destacam ou se no de modo adequado” (Marx, 2008a,
agregam irremediavelmente à objetivi- p. 128).
dade passam a ser um problema teóri- As considerações de Marx se re-
co de grande complexidade. portam à determinada abertura que
Marx – um dos pensadores moder- permite instalar o conhecimento como
nos que se dedicaram a compreender processo. Sem jamais duvidar da in-
como as coisas podem ser conhecidas dependência que o mundo material
para que possam ser transformadas – tem em relação ao homem, ele chama
afirmou que toda ciência seria supérflua a atenção, entretanto, para o aspecto
se a forma de aparecimento (forma fe- sempre problemático e criador que ca-
nomênica) e a essência das coisas ime- racteriza o método por meio do qual o
diatamente coincidissem. Há, segundo conhecimento nasce e se estabiliza no
ele, um descompasso entre o que perce- interior de uma formação social.
bemos com os nossos sentidos e aquilo Vale a pena nos deter na relação aci-
que as coisas são quando explicadas me- ma mencionada: a relação entre método
diante categorias científicas. Esse des- de conhecimento e sociedade. Em um de
compasso se evidencia, por exemplo, no seus primeiros livros, os Manuscritos
campo da economia política. A forma econômico-filosóficos, Marx relacionou os
acabada das relações econômicas – tal sentidos humanos – segundo ele, a
como elas se mostram em sua superfí- base de toda ciência – com o conjunto
cie, em sua existência real – é bastante das relações sociais nas quais os ho-
diferente e, de fato, contrária ao conceito mens vivem e se formam, mostrando
que corresponde a ela. que o trabalho, a cultura, a linguagem,
Pode-se ver a não imediaticidade em suma, a história do homem, são
entre essência e fenômeno em diver- uma condição inerente ao modo como
sos campos do conhecimento. No livro se engendram os sentidos humanos e,
Contribuição à crítica da economia política, por conseguinte, o conhecimento. Para
Marx desenvolve uma densa reflexão Marx, os homens se “efetivam” objeti-
sobre o descompasso entre o modo vamente no mundo não somente por
com a mercadoria se apresenta aos ho- meio do pensamento, mas também pe-
mens – aparentemente como uma coi- los sentidos, e a formação desses sen-
sa sem relação com os homens – e o tidos não é senão um processo social:
que ela é na verdade, isto é, uma relação “A formação dos cinco sentidos é um
entre os homens. Esse descompasso trabalho de toda a história do mundo
entre os sentidos e as categorias cien- até aqui” (Marx, 2008b, p. 110).
tíficas pode evidenciar-se, igualmente, É preciso abandonar o ponto de
no âmbito das ciências da natureza. De vista a partir do qual as coisas são da-
acordo com Marx, a verdade científica das como imediatas, para descobri-las
é sempre um paradoxo se julgada pela em seu condicionamento histórico.
experiência cotidiana (a lua não pare- Apoiado na noção de que a consciência
ce mover-se no céu segundo um mo- humana só nasce mediante outra cons-
vimento para nós inteiramente falso?) ciência, Marx dirá que o sensível é tanto
e, por isso, ele dirá: “a natureza não uma forma social definida pela práxis hu-
está, nem objetiva nem subjetivamente, mana – isto é, pela ação transformado-
imediatamente disponível ao ser huma- ra do homem – quanto um objeto social
153
Dicionário da Educação do Campo
154
Conhecimento
C
parte do que é dado imediatamente, da tem por base o materialismo histórico-
forma como a realidade se manifesta – dialético, a saber, a relação constituti-
o concreto empírico –, e, mediante uma va, necessária, entre as formas concretas de
determinação mais precisa através da existência de uma sociedade e as formas de
análise, chega a relações gerais que são consciência social que essa sociedade produz.
determinantes da realidade concreta. A forma como os homens trabalham e
Essas relações gerais constituem a sín- produzem suas condições de existên-
tese, isto é, a forma geral do conceito cia material determina a forma como
que reúne o conjunto de propriedades eles pensam, sentem e representam o
reveladas pela análise, e que represen- mundo em que vivem. O conjunto das
ta “com a maior fidelidade possível” o relações de produção constitui a estru-
concreto do qual se partiu. “O método tura econômica da sociedade, a base
que consiste em elevar-se do abstrato concreta sobre a qual se eleva uma su-
ao concreto não é senão a maneira de perestrutura jurídica e política e à qual
proceder do pensamento para se apro- correspondem determinadas formas
priar do concreto, para reproduzi-lo de consciência social.
como concreto pensado” (Marx, 1978, Todo conhecimento traz inscrito
p. 117). São as apreensões assim elabo- no corpo de suas proposições as mar-
radas e formalizadas que constituem a cas da história a quem ele deve sua
teoria e os conceitos. A ciência é a par- gênese, e essa história, sabe-se, gira
te do conhecimento expresso na forma essencialmente em torno dos diversos
de conceitos representativos das rela- modos que o homem cria para suprir
ções determinadas e apreendidas da rea- as suas condições materiais de vida. O
lidade considerada. O conhecimento trabalho é um aspecto estruturante da
de uma seção da realidade concreta, ou vida humana, sem ele não há vida hu-
a realidade concreta tematizada, consti- mana, e por isso não se pode pensar o
tui os campos da ciência. conhecimento, a linguagem, os concei-
Colocado nessa perspectiva, o co- tos independentemente dele.
nhecimento do real é tanto histórico Com isso, torna-se claro que o co-
quanto dialético, uma vez que as mo- nhecimento é parte constituinte do tra-
tivações e as formas de se conhecer balho, ele é a dimensão refletida da ex-
são orientadas historicamente pelos periência que o homem faz da natureza,
problemas que a humanidade se coloca autonomizando-se gradativamente, à
e pelas delimitações e contornos teóri- medida que ganha aspectos de genera-
cos, metodológicos e políticos que as lização. Ora, conquanto tenha ter por
relações sociais de produção impõem base o conjunto das relações de pro-
ao processo de produção do conheci- dução, a consciência não mantém com
mento. Por essa razão, nenhum conhe- elas, entretanto, uma relação imediata,
cimento é neutro, absoluto ou estático, mas pode vir a assumir a forma de di-
podendo vir a ser superado pelo mo- versas mediações. “A consciência” –
vimento histórico e contraditório do diz Luckács – “se torna certamente
real, que contempla superações e re- sempre mais difusa, sempre mais au-
construções de tais limites. tônoma, e no entanto continua ineli-
Chegamos assim ao aspecto cen- minavelmente, embora através de mui-
tral da definição de conhecimento que tas mediações, em última análise, um
155
Dicionário da Educação do Campo
156
Conhecimento
C
como potência construtiva na sua for- as relações de produção (a propriedade
ma universal – o conhecimento é uma privada, na sua forma universal, ganha
força universalizante e um local de a forma de propriedade coletiva) etc. –,
confirmação das forças essenciais hu- o que somente acontecerá na sociedade
manas – e, por outro, entre o que ele é sem classes.
em ato, isto é, uma sequência dos vá- A ciência entra, pois, no projeto
rios momentos particularizados que ele societário de Marx como uma media-
assume como resultado das formas de ção fundamental da formação social
existência. A ciência tal como é prati- capitalista, como uma das instâncias
cada no capitalismo é somente um mo- mais relevantes de extração de mais-
mento particular do conhecimento, um valia, e daí advém a cuidadosa explici-
momento no qual ele se constitui como tação analítica empreendida por ele no
uma força que se opõe ao homem. decorrer de sua obra, examinando-a,
É possível ver o movimento dialéti- metodicamente, nas suas relações con-
co que caracteriza as funções sociais da cretas e contraditórias com o capital e
ciência na história. De início, a ciência o trabalho, com a questão da proprie-
desempenhou uma importante fun- dade privada, da tecnologia, da sensibi-
ção civilizatória, quando se contrapôs lidade humana e da formação humana,
à realidade socioeconômica do mundo ou seja, com todas as instâncias consti-
feudal – daí o papel revolucionário que tutivas da totalidade social.
cumpriram pensadores como Giordano De acordo com a lição de Marx,
Bruno, Descartes, Galileu, dentre mui- para que o homem possa realizar todo
tos outros, ao se posicionarem contra o seu potencial emancipatório de vida
o dogmatismo obscurantista da Igreja é preciso que ele liberte, antes, todas
Católica –, mas veio a se tornar, no interior as instâncias sociais, a ciência entre
da dinâmica histórica, um dos elemen- elas, da força destrutiva do capital – o
tos centrais de reprodução do sociome- que só poderá ser feito pela classe dos que
tabolismo do capital (Mészáros, 1981). vivem do trabalho. “A suprassunção
Hoje, indubitavelmente, o capital preci- da propriedade privada”, afirma Marx,
sa da ciência para a sua reprodução. “é a emancipação completa de todas
A verdade científica, do ponto de as qualidades e sentidos humanos”
vista dialético, é sempre contraditória, (2008b, p. 109).
e Marx não se cansa de sublinhar que A aceitação irrefletida, por parte
precisamente as forças que hoje cons- da classe dominada, das relações so-
trangem a ciência em seu papel huma- ciais que subordinam o conhecimento
nístico podem vir a ser uma platafor- científico à hegemonia ideológica da
ma para a construção de um espaço de classe dominante resulta de uma forma
conhecimento baseado em trocas múl- de consciência “passiva e impotente”.
tiplas, multilaterais e solidárias. Daí a Desconstruir o movimento histórico
asserção marxista de que a ciência deve que deu origem a essa forma de cons-
ser tensionada rumo ao desenvolvi- ciência exige a compreensão de que a
mento da sua forma universal – a ciên- realidade humano-social não se reduz
cia se universalizará na medida mesmo à forma reificada que assumiu na so-
em que também se universalizem o tra- ciedade contemporânea, mas que ela
balho, as forças produtivas, a riqueza, pode ser “reinventada” segundo uma
157
Dicionário da Educação do Campo
158
Cooperação Agrícola
Cooperação agrícola
Pedro Ivan Christoffoli
159
Dicionário da Educação do Campo
produtos em menos tempo, pois é pos- lho social gerado é sempre maior que
sível distribuir as diversas operações a soma de todos os trabalhos indivi-
entre diversos trabalhadores e, por con- duais. “Quando o trabalhador coopera
seguinte, executá-las simultaneamente, sistematicamente com outros, livra-se
reduzindo o tempo necessário para dos grilhões de sua individualidade e
a produção do produto total; b) uma desenvolve as possibilidades de sua
extensão do espaço em que se pode espécie” (Marx apud Bottomore,
realizar o trabalho; c) um aumento da 1993, p. 80).
produção num menor tempo e espaço O capitalismo, como modo de
de ação (no caso da agricultura). Nesse produção, desenvolve a cooperação
caso, a brevidade do prazo em que se
em grau amplo e avançado por toda a
executa o trabalho é compensada pela
sociedade. Para isso é necessário que
magnitude da massa de trabalho lança-
o capitalista detenha grande concen-
da, no momento decisivo, ao campo de
tração de meios de produção em suas
produção – por exemplo, na colheita
mãos (capital fixo). Nesse contexto, é o
ou numa roçada (Marx, 1988).
capital que mantém e estimula a coo-
A cooperação baseia-se no princípio peração, posto que os trabalhadores
elementar de que a junção dos esforços encontram-se numa posição passiva:
individuais cria uma força produtiva são considerados mercadorias pelo
superior à simples soma das unidades fato de venderem sua força de trabalho
que a integram. Cria-se a força coletiva ao capitalista.
do trabalho. Segundo Marx,
Embora também tenha existido nos
[...] a soma mecânica das forças modos de produção anteriores ao capi-
de trabalhadores individuais di- talismo, só nesse modo de produção a
fere da potência social de forças cooperação é sistematicamente explo-
que se desenvolve quando mui- rada e transformada em necessidade
tas mãos agem simultaneamen- objetiva para o capital. A busca por
te na mesma operação indivisa. maximização da exploração do traba-
[...] O efeito do trabalho com- lho cooperado é que vai dar origem à
binado não poderia neste caso administração tipicamente capitalis-
ser produzido ao todo pelo tra- ta de empresas, que visa disciplinar e
balho individual ou apenas em extrair conhecimento dos trabalhado-
períodos de tempo muito mais res em prol da valorização do capital
longos ou somente em ínfima (Bottomore, 1993).
escala. Não se trata aqui apenas A autogestão socialista é uma das
do aumento da força produtiva formas mais avançadas de cooperação.
individual por meio da coope- Refere-se à condição de autogoverno
ração, mas da criação de uma for- dos trabalhadores em relação ao seu
ça produtiva que tem de ser, em trabalho e às suas condições de vida.
si e para si, uma força de massas. A autogestão pode se dar no nível da
(Marx, 1988 p. 246-247) empresa, de empresas de um mesmo
ramo, ou do conjunto das empresas e
O ser humano, na cooperação, da vida (da comunidade, da região, do
como resultado do contato social, su- país, internacional). Os domínios de
pera seus limites pessoais, e o traba- decisão numa organização autogestio-
160
Cooperação Agrícola
C
nária podem envolver: a) o domínio aplicar esse princípio. Em alguns
da organização do trabalho – delimita- países, levava-se em consideração,
ção das tarefas e das funções, ritmo de além do tempo de trabalho, a quali-
trabalho, chefias etc.; b) o domínio do ficação do trabalhador e da função
pessoal – carreira profissional, promo- e a dificuldade do trabalho.
ções, demissões etc.; c) a gestão comer- 4) A organização do trabalho se dava
cial e financeira; d) os meios tecnoló- por meio de equipes semiautôno-
gicos de produção; e e) a organização mas de trabalho (nas cooperativas
geral da empresa – estrutura, direção maiores) ou por setores especializa-
etc. (Chauvey, 1975). dos de trabalho (nas cooperativas
Nos países do antigo Bloco Socialista menores).
(Cuba, Leste Europeu e parte da Ásia), as 5) As instâncias diretivas da cooperativa
cooperativas coletivas de trabalhadores em geral eram compostas por uma
rurais receberam uma série de condições assembleia geral, que era a instância
favoráveis e estímulos para seu estabele- máxima de decisão, e por diretorias
cimento e desenvolvimento e responde- eleitas pelos associados, com prazo de
ram pela geração dos principais exceden- mandato variável e podendo ou não
tes agrícolas destinados ao abastecimento se reeleger – a reeleição era vetada na
do mercado interno. De maneira geral, Iugoslávia (Flavien e Lajoinie, 1977).
essas cooperativas coletivas apresenta- Lenin, ao liderar a experiência de
vam as seguintes características: construção socialista na Rússia, iden-
1) O agricultor entrava com a terra e tificou alguns elementos-chave que
os meios de produção e a coopera- constituiriam os princípios para o es-
tiva o reembolsava gradualmente tímulo à cooperação na agricultura:
por esses bens, seja mediante a • respeito absoluto à voluntariedade
compra dos mesmos, seja pela des- do camponês – não permitir ne-
tinação de uma proporção da renda nhum tipo de coação;
distribuída para os cooperantes
• necessidade de um paciente e pro-
que ingressaram com a terra (essa
longado trabalho de persuasão e
proporção variou entre 40% e 20%
convencimento;
da renda total distribuída entre os
• desenvolvimento gradual do mo-
cooperantes). Gradualmente esse
vimento cooperativo: das formas
percentual tendeu a ser reduzido e
simples às formas superiores e das
eliminado.
pequenas às grandes cooperativas;
2) De forma geral, os agricultores
supostamente tinham livre escolha, • elevação constante do nível cul-
tanto para a entrada nas cooperativas tural do campesinato sem a qual é
quanto para a saída. Em alguns paí- impossível o domínio das técnicas
ses, esse preceito foi de fato exercido modernas;
livremente, enquanto foi cerceado • absoluto cumprimento da demo-
em outros. cracia cooperativista: elegibilidade
3) A distribuição dos resultados era dos órgãos de direção, direito dos
feita basicamente em função do cooperativistas à crítica etc.;
trabalho aportado pelo sócio. Havia • necessidade de ajuda material, técni-
algumas diferenças na forma de ca e financeira por parte do Estado;
161
Dicionário da Educação do Campo
162
Cooperação Agrícola
C
namento das experiências de coope- nizações. Não está acima deles. A
ração, sintetizados pela Confederação cooperativa deve alinhar sua atua-
das Cooperativas de Reforma Agrária ção do dia a dia com os princípios
do Brasil (Concrab) (1997): e objetivos estratégicos da luta pela
Reforma Agrária.
• É fundamental desenvolver a coope- • O que determina o avanço da coope-
ração em suas mais diversas formas, ração são as condições objetivas
pois o importante não é a forma, e não apenas a vontade dos asso-
mas o ato de cooperar. A cooperativa ciados. A forma de cooperação a
é apenas uma dessas formas, e não ser adotada, bem como o grau de
deve ser a única a ser impulsionada. desenvolvimento que a mesma
• É preciso respeitar a voluntariedade pode alcançar dependem tanto
das pessoas, mas lembrar que “a ne- de condições objetivas (mercado,
cessidade comanda a vontade”. Ou meios de produção, capacitação e
seja, nem sempre os agricultores qualificação da força de trabalho
participam porque estão conscientes etc.) quanto de condições subje-
da necessidade de cooperação ou tivas (vontade das pessoas, seus
de seu papel estratégico, mas sim sonhos e projetos). A coopera-
porque estão necessitados. A ideia ção deve estimular o aumento da
é partir das necessidades objetivas produtividade do trabalho de seus
para ir construindo uma forma de associados, resguardados os as-
cooperação que dê conta dos pro- pectos de sustentabilidade e equi-
blemas e necessidades dos sócios e dade social.
avance em sua conscientização. • A cooperativa deve ser vista
• A cooperação deve ser um espaço como um instr umento de estabi-
de gestão democrática no qual os lização econômica, mas também
sócios possam exercer sua sobera- contribuir como instrumento de
nia. Cada experiência de cooperação transfor mação social.
deve definir espaços (instâncias) e • As atividades da cooperativa de-
formas que permitam, organiza- vem contribuir com a sustentabili-
damente, a participação de todos. dade ambiental e fomentar a pro-
A direção da cooperação deve ser teção da agrobiodiversidade e das
exercida por um coletivo de mili- sementes, como patrimônio dos
tantes, rompendo com a prática do povos a serviço da humanidade,
personalismo do poder. com a agroecologia como estraté-
• É fundamental desenvolver a inter- gia produtiva básica.
cooperação entre as diversas formas • A cooperação deve promover a
associativas existentes nos assenta- organicidade de base, mediante a
mentos, ou seja, as formas de coope- constituição de núcleos de associa-
ração também devem cooperar entre dos, viabilizando e estimulando a
si para terem mais força e maior ca- participação política das pessoas, a
pacidade de enfrentamento da con- conscientização e a superação das
corrência capitalista e de criação de desigualdades sociais e econômicas.
riqueza sob a forma associativa.
• O econômico deve estar ligado aos No meio rural brasileiro, e em par-
objetivos estratégicos das orga- ticular nos assentamentos, desenvol-
163
Dicionário da Educação do Campo
164
Cooperação Agrícola
C
a mobilização de recursos locais em vis- coletivamente sua força de trabalho,
ta do apoio a atividades econômicas que de forma a prestar serviços técni-
promovam o desenvolvimento regional e cos, executar obras, produzir bens
a melhoria de condições de vida de seus etc., com autonomia e autogestão,
associados. A cooperativa de crédito fun- a fim de melhorar suas condições
ciona fortemente com base na confiança de vida e trabalho, dispensando a
de seus associados e, portanto, depende, intervenção de patrões ou empre-
além de uma adequada gestão de emprés- sários. Nos assentamentos, as co-
timos e cobranças, de solidez financeira operativas de trabalho técnico, que
e política. prestam serviços de assistência téc-
nica às famílias assentadas e às suas
Cooperativas de trabalho entidades, são as mais comuns. Le-
galmente, as CPAs também podem
As cooperativas de trabalho reú- ser caracterizadas como cooperati-
nem trabalhadores que organizam vas de trabalho.
165
Dicionário da Educação do Campo
Crédito fundiário
João Márcio Mendes Pereira
166
Crédito Fundiário
C
concentração fundiária. Como política ma Agrária” era pensada sem qualquer
redistributiva, implica, antes de tudo, a relação com a transformação da estru-
desapropriação “punitiva” (isto é, me- tura fundiária brasileira, a democratiza-
diante indenização abaixo do preço de ção do poder político, o crescimento da
mercado ou sem indenização) de terras produção agrícola e a mudança do mo-
privadas que não cumprem a sua fun- delo de desenvolvimento econômico,
ção social. entendida como a ampliação e o fortale-
Como mostra a experiência histó- cimento do mercado interno de massas
rica e vem sendo insistentemente rei- e a redistribuição substantiva de renda e
terado pelos movimentos camponeses riqueza. Tratava-se, tão somente, da
contemporâneos de todo o mundo, realização pontual e dispersa de assen-
a Reforma Agrária precisa vir acom- tamentos de trabalhadores sem-terra a
panhada de um conjunto de políticas fim de aliviar a pobreza rural. Não por
complementares nas áreas de infraes- acaso, quando teve início o primeiro go-
trutura, educação, saúde e transporte, verno de Fernando Henrique Cardoso
bem como de uma política agrícola (FHC), o programa de Reforma Agrária
que favoreça o campesinato, baseada foi vinculado ao programa Comunidade
na oferta pública de crédito, assistência Solidária, de caráter assistencialista.
técnica e acesso a mercados. Em outras Apesar das orientações minimalis-
palavras, seu objetivo central é redis- tas do Governo FHC, o tema da Re-
tribuir terras e garantir as condições forma Agrária retornou à agenda po-
de reprodução social do campesinato, lítica nacional pela confluência de um
atacando as relações de poder na socie- conjunto de pressões e acontecimentos
dade que privilegiam os grandes pro- desencadeados no biênio 1996-1997.
prietários – que podem ser, inclusive, Desses, foram fundamentais: a) a enor-
grandes empresas e bancos (nacionais
me repercussão internacional que tive-
ou estrangeiros). Por tudo isso, a Re-
ram os massacres de trabalhadores ru-
forma Agrária exige o fortalecimento
rais em Corumbiara (Rondônia, agosto
do papel do Estado na provisão de
de 1996) e, sobretudo, em Eldorado
bens e serviços públicos essenciais à
dos Carajás (Pará, abril de 1996); b) o
melhoria das condições de vida dos
aumento em praticamente todo o país
camponeses assentados e ao desempe-
das ocupações de terra organizadas
nho econômico do setor reformado.
pelo Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) e, em alguns
A implantação da estados, por sindicatos e federações
Reforma Agrária de ligados à Confederação Nacional dos
mercado no Brasil Trabalhadores na Agricultura (Contag);
c) a tensão social crescente no Pontal
O programa do Partido da Social do Paranapanema (São Paulo) em vir-
Democracia Brasileira (PSDB) apresen- tude do aumento das ocupações de
tado na campanha eleitoral de 1994 re- terra e da violência paramilitar pratica-
conhecia a necessidade de mudanças em da por latifundiários; d) a Marcha Na-
favor da desconcentração da proprieda- cional por Reforma Agrária, Emprego
de da terra e do fortalecimento da agri- e Justiça, organizada pelo MST, que
cultura familiar. No entanto, a “Refor- chegou a Brasília em abril de 1997 –
167
Dicionário da Educação do Campo
168
Crédito Fundiário
nal de terras, o que se consumaria em fe- tando que o projeto Cédula da Terra:
C
vereiro de 1998, com a criação do Ban- a) não estava sendo implantado como
co da Terra pelo Congresso Nacional. projeto-piloto, uma vez que não havia
Note-se que, naquela altura, o Cédula da sido sequer avaliado e que o BM já as-
Terra mal havia começado e nem sequer sumira o compromisso com a sua am-
fora feita a avaliação intermediária pre- pliação, consumada na criação do Ban-
vista no acordo de empréstimo com o co da Terra; b) estava sendo executado
BM. Além disso, todas as organizações como alternativa, e não como comple-
nacionais de representação de trabalha- mento à desapropriação, revogando, na
dores rurais do país eram contrárias à prática, o papel do Estado de garantir
criação do Banco da Terra. Mesmo as- o cumprimento da função social da
sim, o governo federal acionou a sua propriedade, previsto na Constituição
base parlamentar para aprová-lo, utili- Federal de 1988; c) havia sido dirigido
zando como argumento o fato de que para estados com grande estoque de ter-
o programa contaria com empréstimos ras desapropriáveis, possibilitando que
significativos do BM. terras mantidas como reserva de valor
Em outras palavras, partindo de durante décadas fossem remuneradas à
uma experiência pontual no estado vista a preço de mercado; d) aquecia o
do Ceará até a mobilização do “rolo mercado fundiário, contribuindo para
compressor” do governo federal no a elevação do preço da terra, reverten-
Congresso Nacional, em apenas um do a tendência de queda relativa até
ano e seis meses o Brasil conheceu três então observada; e) suas condições de
projetos direcionados para a mesma fi- financiamento eram proibitivas, o que
nalidade: instituir o financiamento pú- geraria inadimplência e perda da terra;
blico para a compra privada de terras f) o projeto não atendia, por essa mesma
como mecanismo alternativo à Refor- razão, o objetivo de “combate à pobre-
ma Agrária, a fim de aliviar as tensões za rural” preconizado pelo BM; g) não
sociais no campo e reconstituir o pro- se tratava de um processo transparente
tagonismo político do governo na con- e participativo, na medida em que não
dução da política agrária. havia publicização de informações aos
Contra essa tentativa de substitui- mutuários ou às suas organizações de
ção da política de Reforma Agrária representação, nem tampouco mecanis-
posicionaram-se, de 1997 e 1999, a mos de consulta e participação social;
Contag, o MST e uma enorme gama de h) permitia a reprodução de relações
organizações sociais articuladas no Fó- tradicionais de dominação e patrona-
rum Nacional pela Reforma Agrária e gem no meio rural, na medida em que a
Justiça no Campo. Tais programas eram negociação em torno do preço da terra,
vistos como extensão da agenda neoli- longe de ser uma transação mercantil
beral para o campo brasileiro. Naquela entre iguais, era controlada pelos agen-
conjuntura, a crítica a tais programas tes dominantes no plano local (proprie-
serviu como referência para uma críti- tários e políticos).
ca mais geral às ações do governo fede- Em maio de 1999, o Painel de Ins-
ral no meio rural. peção julgou improcedentes todos os
Assim, o Fórum encaminhou, em argumentos do Fórum e não recomen-
outubro de 1998, uma solicitação ao dou à diretoria do Banco Mundial a in-
Painel de Inspeção do BM,1 susten- vestigação solicitada. Imediatamente, o
169
Dicionário da Educação do Campo
170
Crédito Fundiário
C
tes (inclusive externas) para financiar tidade de representação rural (patronal
a compra de terras por trabalhadores ou de trabalhadores) considerava que o
rurais. Constitui, por isso, um instru- Governo Lula tinha intenção de subs-
mento de caráter permanente. tituir o modelo convencional de Refor-
O primeiro governo de Lula, rede- ma Agrária pela Reforma Agrária de
finindo alguns parâmetros, incorporou mercado. A segunda descontinuidade
esse instrumento à sua política fundiá- diz respeito à legitimação dada por or-
ria, fortalecendo-o como fonte da con- ganizações sindicais de representação
trapartida nacional aos empréstimos de trabalhadores rurais aos programas de
do BM para a implantação da Reforma crédito fundiário, como a Contag e a
Agrária de mercado. Por outro lado, Federação dos Trabalhadores na Agri-
enquanto linha de crédito, o Banco da cultura Familiar da Região Sul do Brasil
Terra foi renomeado de Consolida- (Fetraf-Sul). Durante o primeiro Go-
ção da Agricultura Familiar (CAF) em verno Lula, a luta contra esse modelo
outubro de 2003. O nome mudou, os de ação fundiária deixou de aglutinar o
itens financiáveis foram ampliados e as conjunto das entidades de representa-
condições de financiamento foram re- ção do campesinato pobre. Depois da
divisão política do Fórum em 2000, os
vistas, mas a lógica permaneceu a mes-
movimentos contrários a tal modelo
ma. Por sua vez, o Crédito Fundiário de
(como o MST e os demais integrantes
Combate à Pobreza Rural não apenas
da Via Campesina-Brasil) relegaram
teve continuidade, como foi ampliado
essa questão a um plano secundário,
no Governo Lula, sendo renomeado de
para evitar atritos com as entidades
Combate à Pobreza Rural (CPR).
sindicais e por entenderem que a
Em novembro de 2003, foi criado o contradição principal no meio rural
Programa Nacional de Crédito Fundiá- brasileiro durante aquele período era
rio (PNCF), responsável pela gestão do entre o agronegócio exportador e os
CPR e do CAF. A instrumentalidade trabalhadores rurais sem-terra, e não
do PNCF foi tecnicamente aperfeiçoa- entre a desapropriação e o crédito
da para dar continuidade ao financia- fundiário.
mento público à compra de terras por A expansão dos programas de cré-
agentes privados potencialmente em dito fundiário entre 2003 e 2010 fez da
todo território nacional. experiência brasileira a mais abrangen-
Se, do ponto de vista técnico, os te em âmbito internacional, tanto em
programas não apenas tiveram con- número de famílias financiadas quan-
tinuidade como foram ampliados, do to em volume de recursos gastos. Ne-
ponto de vista político houve desconti- nhum outro país contratou tal volume
nuidades relevantes em relação ao qua- de empréstimos com o BM para finan-
dro de disputas que marcara o governo ciar a compra de terras, negociadas por
anterior. A primeira é que nenhuma en- trabalhadores e proprietários.
Nota
1
O Painel de Inspeção foi criado em 1994 para proporcionar um fórum “independente”
aos agentes sociais que se sentissem prejudicados direta ou indiretamente pela realização de
projetos financiados pelo Banco Mundial. A reclamação deveria demonstrar que os efeitos
171
Dicionário da Educação do Campo
CRÉDITO RURAL
Sergio Pereira Leite
172
Crédito Rural
C
vidades produtivas, há também linhas dos empréstimos (o produtor), o uso
de crédito direcionadas ao consumo, do financiamento somente será inte-
por exemplo. No nosso caso, vamos nos ressante quando a expectativa de retor-
deter no crédito orientado à produção, no e a rentabilidade da sua produção
em particular àquela existente no meio compensarem o custo (juros, admi-
rural brasileiro. nistração, seguro etc.) de fazer uso do
Primeiramente devemos lembrar dinheiro emprestado. Caso contrário, a
que estamos tratando de um emprés- capacidade de pagamento das dívidas
timo que, para tanto, pressupõe algu- contraídas com esses empréstimos fi-
mas condições prévias, entre as quais: cará seriamente comprometida.
instituições devidamente reconhecidas Uma segunda lembrança que nos
e/ou credenciadas para operar esses parece importante fazer aqui refere-se
financiamentos (bancos, públicos ou às especificidades da atividade agrope-
privados, por exemplo1) e que contem cuária e seu rebatimento sobre as mo-
com fundos disponíveis para tanto, dalidades de empréstimo. Como nos re-
prazos para a devolução dos recursos corda Delgado (2000), nem sempre os
emprestados, cobrança de taxas pela gestores da política macroeconômica
antecipação dos recursos financeiros (que engloba a política monetária) são
(taxas de juros), cobrança de taxas sensíveis ou estão atentos às particu-
administrativas para viabilizar a ope- laridades dos setores com os quais a
ração, garantias exigidas do tomador política interage. Isso é mais evidente
(que variam de acordo com o tipo de no setor rural, visto o caráter majori-
financiamento, a instituição financeira tariamente urbano da sociedade e da
envolvida, o programa governamen- economia brasileiras. Aspectos como
tal etc.), assinatura de contrato entre diferenças entre o tempo de produção
as partes envolvidas, enquadramento e o tempo de trabalho (sendo o primei-
do beneficiário nos critérios previstos ro maior do que o segundo na agricul-
para a linha de financiamento, seguro tura), maior suscetibilidade aos riscos
do valor financiado. É bom frisar que climáticos (secas, geadas, intempéries
a política de crédito está, por definição, etc.), forte instabilidade de preços, pe-
atrelada à política monetária propria- recibilidade dos produtos, inflexibilida-
mente dita, pois depende das taxas de de na escala produtiva após o plantio,
juros praticadas pelo sistema financeiro calendário agrícola (safra, entressafra,
e, em especial, definidas pelas autorida- época de plantio, época de colheita etc.)
des monetárias (no caso brasileiro, pelo levam o setor agropecuário a demandar
Banco Central). Ou seja, num contexto instrumentos de políticas relativamen-
de política monetária que vise à con- te adequados às suas condições produ-
tenção da inflação por intermédio de tivas. No caso dos programas de crédi-
uma frenagem da capacidade de gasto, to, isso tem implicado algumas ações,
o aumento da taxa de juros geral da entre elas: a) taxa de juros média prati-
economia certamente influenciará as cada no setor em geral inferior àquela
condições de operação de programas praticada no restante da economia (vis-
específicos de crédito, podendo torná- to que os riscos para a produção são
los mais “caros” aos interessados em maiores na agricultura e os retornos
recorrer a esse tipo de recurso. Assim, mais baixos); b) adaptação do crono-
podemos deduzir que, para o tomador grama de disponibilidade de recursos
173
Dicionário da Educação do Campo
174
Crédito Rural
C
do grau de monetização da economia, crédito; b) uma elevação no montante
verificou-se igualmente um acréscimo de recursos ofertados; c) a criação de
dos recursos do crédito lastreados nas títulos privados de financiamento; d) o
exigibilidades bancárias. surgimento de linhas diferenciadas de
É amplamente sabido, conforme crédito (praticando taxas de juros mais
atesta a literatura especializada, que o baixas ou com prazos mais elásticos
crédito rural atuou como mola mestra para pagamento) que atendiam seg-
do processo brasileiro de moderniza- mentos do meio rural historicamente
ção agrícola, especialmente no interva- excluídos do programa; e e) o cresci-
lo 1965-1980. Nessa época, a deman- mento do processo de endividamento.
da por crédito rural pelos produtores Os dois últimos pontos demandam
comportou-se ascendentemente, quer alguns comentários adicionais. Em re-
pelas exigências de recursos que o au- lação aos mecanismos diferenciados de
mento da produção e a utilização de crédito, a referência ao Programa Espe-
insumos “modernos” requeriam, quer cial de Crédito para a Reforma Agrária
ainda pelo estímulo que os vultosos (Procera) e ao Programa Nacional de
subsídios implícitos ao sistema causava Fortalecimento da Agricultura Fami-
nos tomadores (Guedes Pinto, 1981). liar (Pronaf) parece-nos obrigatória. O
Assim, além de financiar a chamada Procera, voltado para o financiamen-
“moderna agricultura”, o sistema fi- to de atividades produtivas (custeio e
nanciava, por “tabela”, as indústrias investimento), o fomento e a habita-
produtoras de insumos e equipamen- ção nos assentamentos rurais iniciou
tos que integravam o pacote da Revo- suas atividades na segunda metade da
lução Verde e que passaram a ser década de 1980. Operado a princípio
utilizados pelos agricultores (semen- de forma totalmente descontínua, o
tes, agrotóxicos, fertilizantes, vacinas, programa se consolidou na década de
tratores, colheitadeiras etc.). De forma 1990, respondendo pelo acesso dos as-
muito rápida, poderíamos dizer que a sentados aos insumos e equipamentos
utilizados na produção agropecuária
política de crédito nesse período prio-
em áreas reformadas. Atuando com ta-
rizou os médios e grandes produtores,
xas diferenciadas, e mesmo assim ainda
em particular aqueles localizados na re-
onerosas para o público beneficiário ao
gião Centro-Sul do país que produziam qual se dirigia, o volume crescente de
bens destinados à exportação (com- recursos aplicados nessa política foi re-
modities). No entanto, dados os subsí- sultado de um persistente processo de
dios acima referidos, não foram pou- pressão política exercido pelas organi-
cos os desvios de recursos oriundos do zações de representação política de as-
crédito, aplicados em outras atividades sentados, além do aumento no número
(Sayad, 1984). de projetos de assentamentos existen-
Na década de 1990, uma série de tes no país. Em 1999, esse instrumento
reformas na política agrícola envolveu foi extinto, dando lugar à chamada “li-
também a área de financiamento rural nha A” do Pronaf.7
(Helfand e Rezende, 2001). Podemos Em 1996, passou a ser operaciona-
destacar alguns aspectos desse perío- lizado o Pronaf (resolução nº 2.191,
do: a) o já comentado aumento dos re- de 24 de agosto de 1995). Essa linha de
cursos obrigatórios na composição do financiamento dirige-se ao agricultor
175
Dicionário da Educação do Campo
176
Crédito Rural
C
saneamento das dívidas do agronegó- Frota de Tratores Agrícolas e Imple-
cio. Dados coletados na Assessoria da mentos Associados e Colheitadeiras
Presidência da República informavam (Moderfrota), que impactou decisi-
que, num universo de 3 milhões de vamente o aumento da venda de tra-
agricultores, 10 mil se encontravam na tores e equipamentos agrícolas no
situação de devedores, e que o grosso Brasil (Vidotto, 1995; Faveret Filho
do endividamento se concentrava em et al., 2000).
não mais de 1.800 contratos. A distribuição dos recursos entre
Todas essas medidas estiveram em as modalidades de financiamento (cus-
voga a partir dos anos 1990 e permane- teio, investimento e comercialização)
cem vigentes, com variações, até hoje, permaneceu praticamente inalterada
compondo, de certa forma, o arcabou- durante todo o período. Contudo,
ço de instrumentos da política agrícola quando consideramos os produtos agrí-
direcionado ao setor rural, em especial colas financiados, podemos observar
ao segmento identificado pelas institui- o aumento da participação da soja no
ções financeiras como “agronegócio”, total de recursos obtidos. Com base
em contraposição ao crédito direciona- nos registros do SNCR, os empréstimos
do à “agricultura familiar”. Alguns as- à soja, ao milho e ao café somam cer-
pectos adicionais podem ser lembrados. ca de 60% de todo o crédito destinado
Os bancos públicos – em especial o às lavouras. Alguns produtos, como a
Banco do Brasil, o Banco do Nordeste própria soja e a cana-de-açúcar, contam
e, de forma crescente, o Banco Nacio- ainda com financiamentos oriundos
nal de Desenvolvimento Econômico do setor privado não regulados pelo
e Social (BNDES) – ainda se mantêm SNCR (como empréstimos internacio-
como os principais responsáveis pela nais, adiantamentos proporcionados
oferta de dinheiro ao setor rural (ten- pelas tradings, cédula do produto rural
do em vista a “timidez” que caracteriza etc.). Em estados como o Mato Grosso,
o setor financeiro privado nessa área). O por exemplo, a soja vem representan-
BNDES adentrou os anos 1990 com do isoladamente mais de 60% dos re-
um pesado financiamento, viabilizado cursos do SNCR para as lavouras. Essa
por intermédio do Finame Agrícola, e, característica, entre outras, mostra que
no período mais recente (pós-1999), a política permanece ainda concentrada
com ênfase no primeiro mandato do em termos de produtos e em médios/
Governo Lula, com a implementação grandes produtores (esses medidos pelo
do Programa de Modernização da valor médio dos contratos).
Notas
1
No setor agropecuário, é comum a ocorrência de antecipações monetárias realizadas por
empresas do setor agroindustrial para os produtores dos quais a empresa compra a matéria-
prima. Nesse caso, não se trata de uma operação formalmente reconhecida como crédito,
embora envolva empréstimos que serão saldados no momento da entrega dos produtos à em-
presa, invariavelmente corrigidos por taxas acima daquelas vigentes no mercado financeiro.
No setor da produção de oleaginosas, essa modalidade ficou conhecida como contratos de
“soja-verde” ou, ainda, operando modalidades que foram denominadas de “CPRs (cédulas
de produto rural) de gaveta”.
177
Dicionário da Educação do Campo
2
Ao longo da década de 1970, por exemplo, a política de crédito rural brasileira praticou
taxas de juros reais negativas. Isto é, ao corrigir os valores emprestados somente pela taxa
de juros nominal e não imputar a variação inflacionária do período, o resultado efetivo da
operação representou um repasse líquido de recursos do governo para os tomadores
de crédito, visto que a amortização da dívida era inferior ao valor original do empréstimo
corrigido pela variação inflacionária (Delgado, 1985). Essa prática induziu muitas empresas
e pessoas não associadas ao setor rural a buscarem terra, especialmente na região Norte do
país, para o acesso a essa política de crédito “facilitada”, o que ficou conhecido, num deter-
minado momento, como “territorialização da burguesia” (Kageyama, 1986). Vale ressaltar
ainda que essa “busca” por terras foi baseada em boa medida em processos de expropriação
de pequenos agricultores, repasse de terras públicas ao setor privado e outros mecanismos
menos convencionais (Palmeira e Leite, 1998).
3
O SNCR, criado pela lei nº 4.829, de 5 de novembro de 1965, e regulamentado pelo decre-
to nº 58.380, de 10 de maio de 1966, era constituído pelo Banco Central, Banco do Brasil,
bancos regionais de desenvolvimento, bancos estaduais, bancos privados, caixas econômi-
cas, sociedades de crédito, financiamento e investimento, cooperativas e órgãos de assis-
tência técnica e extensão rural. Tinha como propósito compartilhar a tarefa de financiar a
agricultura entre instituições financeiras públicas e privadas. No entanto, a participação dos
bancos privados, com base nas exigibilidades sobre os depósitos à vista (isto é, um percen-
tual fixado pelo governo dos depósitos à vista que deveria financiar a atividade rural ou,
caso o banco não atuasse nessa área, ser objeto de repasse ao Banco Central), apresentou-se
constantemente decrescente, impondo uma participação maior dos recursos lastreados pelo
Tesouro Nacional, repassados, sobretudo, pelo Banco do Brasil. Vale acrescentar que, como
lembra Guedes Pinto (1981), entre 1970 e 1979, dois terços das aplicações dos bancos
privados direcionavam-se ao crédito de comercialização, reforçando o argumento de que
a esfera propriamente produtiva (custeio e investimento) era bancada pelo setor público.
Os recursos públicos provinham da administração de fundos e programas (recursos fiscais
e parafiscais) feita pelo Banco Central e também dada a vigência das “contas em aberto”
no orçamento monetário (peça orçamentária na qual estavam alocadas rubricas da política
de crédito), da categoria “recursos não especificados” inscrita no orçamento (Oliveira e
Montezano, 1982). Tais recursos contavam, ainda, com o lastro da captação de recursos
externos e com a oferta expansionista do crédito por parte do Banco do Brasil, coberta pela
emissão monetária. Esses instrumentos atuavam no sentido de suprir o diferencial entre as
necessidades do programa e o volume de crédito oriundo das exigibilidades sobre os de-
pósitos à vista “líquidos” dos bancos comerciais privados. No período recente (pós-1999),
com o aumento do peso dos recursos obrigatórios (exigibilidades) no total do crédito,
aumentou também a participação dos bancos privados no repasse do mesmo.
4
Em 1986, com a unificação dos orçamentos monetário, fiscal e das empresas estatais, foi
constituído o Orçamento Geral da União (OGU).
5
A conta movimento representava um passivo do Banco do Brasil em relação ao Banco Cen-
tral, esse último concebido na reforma do sistema financeiro da década de 1960, e foi criada
para atuar como instrumento transitório. A sua manutenção até a década de 1980 facultou
a política expansionista do crédito praticada pelo Banco do Brasil (que atuava de fato como
autoridade monetária) sem registro no orçamento geral do governo (Delgado, 1985).
6
Dentre esses últimos, destacamos a CPR, criada pela lei nº 8.929, de 22 de agosto de 1994,
que consiste na alocação de recursos privados para o financiamento da comercialização de
produtos agropecuários, constituindo-se num título cambiário líquido e certo, representa-
tivo de promessa de entrega da mercadoria, e operacionalizado sobretudo pelo Banco do
Brasil (Nuevo, 1996). Alguns anos depois, criou-se ainda a CPR Financeira, que permitiu
a liquidação financeira do título. Em dezembro de 2004, foi objeto da política agrícola um
178
Crédito Rural
C
conjunto de novos títulos privados, dessa vez batizados de “títulos do agronegócio”, entre
os quais as Letras de Crédito do Agronegócio (LCA), que chegaram a ter atuação destacada
no período recente (Oliveira, 2007 e 2010).
7
Em 1999, com a instituição da política conhecida à época como “Novo Mundo Rural”,
o governo extinguiu o Procera e transformou o Pronaf em diversas linhas de crédito, di-
ferenciadas quanto ao público e à atividade a ser financiada. Nesse sentido, o Pronaf A
destinou-se a financiar as atividades produtivas dos assentados em projetos de Reforma
Agrária, substituindo o antigo Procera.
8
O termo securitização é empregado para designar, na prática, “a conversão de emprésti-
mos bancários e outros ativos em títulos (securities) para a venda a investidores, que passam
a ser os novos credores dessa dívida” (Sandroni, 2005, p. 759). Tal conversão tem facilitado,
em boa parte dos casos, a negociação de dívidas contraídas em programas – como aquele
do financiamento rural – e a sua liquidação em mercados de derivativos – envolvendo ou-
tros agentes que passam a adquirir/vender tais títulos –, bem como aumentado os prazos
que envolvem tais operações.
179
Dicionário da Educação do Campo
Cultura camponesa
José Maria Tardin
180
Cultura Camponesa
C
subjetividade por meio das artes, teo- campo, cultivar o campo – como ex-
rias, ciências, religiões, ideologias etc. pressões diferenciadas das relações das
O ser humano vai, assim, impri- campônias e dos campônios no campo
mindo suas marcas na natureza, “tendo e com o campo. Recomenda-se a lei-
essa como mediadora às suas relações tura dos verbetes Agricultura cam-
e comunicações entre si e com ela pró- ponesa e A groecologia, por exemplo,
pria” (Souza, s. d.). E, com isso, hu- para uma revitalização etimológica da
maniza a natureza, na medida em que palavra cultura e, talvez, da prática re-
imprime nela seus objetivos e a reso- lacional que ela propõe.
lução prática de situações em benefí- A agricultura traduz, sem equívoco,
cio da satisfação das suas necessidades uma relação humano–natureza marca-
humanas. Na condição de ser biológico da pelo sentido de forte conexão, de
e natural, vai histórica e espacialmente pertencimento, de ato transformador
realizando transformações crescentes e criador, uma relação fundada no cui-
e constituindo assim sua humanização, dado, como assinalado anteriormente.
distinguindo-se na natureza como por- É, portanto, identidade humano/na-
tador de cultura, com um novo “modo tureza. Assinalamos um conjunto de
de ser radicalmente inédito, o ser so- aspectos que serão desenvolvidos em
cial” (Netto e Braz, 2010, p. 36). seguida e que podem nos levar a uma
Em se tratando do campesinato, primeira aproximação ao entendimen-
ele se constitui a partir de uma diversi- to das culturas camponesas, por meio
dade de sujeitos sociais históricos que da formulação relativa à experiência do
se forjaram culturalmente numa íntima campesinato brasileiro: influências étni-
relação familiar, comunitária e com a cas, relações cotidianas com a nature-
natureza, demarcando territorialidades za, conhecimento empírico amplo,
com as transformações necessárias à oralidade e prática, espiritualidade,
sua reprodução material e espiritual, religiosidade, estética, relações diver-
gerando uma miríade de expressões sificadas de cooperação, forte predo-
particulares que, ao mesmo tempo, minância patriarcal, e relação família,
respaldam-se em elementos societários comunidade e território.
gerais, marcando sua humanização e Ademais desses aspectos, aos quais
humanizando a natureza, em um intri- certamente se somam outros não de-
cado complexo de agroecossistemas. senvolvidos aqui, há de se considerar
Nesses termos, o campesinato con- que o campesinato como sujeito social
firma e exige tomar o tratamento da histórico se forja em condições sociais,
cultura em sua pluralidade; trata-se, materiais e políticas acentuadamente
portanto, de culturas do modo de ser adversas que marcarão suas culturali-
de cada sociedade, nas quais se supe- dades. Aqui destacaremos três elemen-
ra a pretensão de que haja “a cultura” tos, a saber: sofre violências e contí-
e, fora dela, a “não cultura”, como, na nuas agressões no percurso da história;
particularidade no campo, tem-se as é historicamente ativo em processos
culturas camponesas. de rebeliões; e apresenta elevado grau de
Há que tratar então das “agri-cul- radicalidade na sua ação política.
turas” – do grego ager e do latim colere, No Brasil, povos originários, po-
que significa cuidar do campo, criar no vos africanos negros e povos europeus
181
Dicionário da Educação do Campo
182
Cultura Camponesa
C
A natureza do conhecimento cam- Esses sistemas aparecem ao longo
ponês faz dele um efetivo práxico- da história camponesa, e muitas expe-
empírico, que preponderante e ne- riências alcançam elevado nível de coo-
cessariamente faz ensinando e ensina peração complexa, nas quais todos os
fazendo, ao mesmo tempo em que co- meios de produção e o trabalho são pos-
munica oralmente explicações dos sabe- suídos e geridos coletivamente e a re-
res intrínsecos a cada objeto e prática. partição da produção social e de seus
Estão presentes em suas relações resultados econômicos é feita de for-
sociais acentuados valores humanos fun- ma igualitária ou mediante uma base
damentais, entre os quais a solidarie- geral igualitária que estabelece dife-
dade e a fraternidade, que se concre- renciações segundo a posição que cada
tizam em múltiplas práticas de ajuda membro associado ocupa no trabalho –
mútua entre vizinhos, em situações de periculosidade, jornada de trabalho etc.
catástrofes, perdas de safra, doenças e Também estão à frente de sistemas de
mortes, ou mesmo na organização de cooperativas de crédito ou de serviços,
festividades comunitárias ou casamen- e, tanto na forma de associações ou
tos, batizados, entre outras. cooperativas quanto nas demais ati-
Da mesma forma, a ajuda mútua vidades econômicas, voltam-se ainda
faz parte não apenas do seu cotidiano – para a realização de atividades culturais
com sementes, animais de trabalho ou e sociais.
para a reprodução, com ferramentas Sua imbricação e cotidianidade com
e máquinas –, mas também do seu tra- a natureza colocam o camponês ante a
balho – seja nas trocas de dias ou nos grandiosidade e a complexidade dos fe-
mutirões, sendo que esses últimos re- nômenos naturais, o que vai ser apreen-
sultam sempre em festividade ao final dido muito mais na sua aparência do
das tarefas realizadas. que em sua essência fenomênica, mar-
Essa tradição cultural leva-os a pra- cando profundamente a subjetividade
ticarem vários trabalhos coletivos para camponesa. Emerge daí um sentimen-
o bem comum da comunidade, reali- to de pertencimento, um vínculo umbi-
zando obras públicas voluntariamente – lical com a “mãe Terra”, mito primitivo
manutenção de estradas, bueiros e que persiste no tempo.
pontes, escolas, postos de saúde – de Essa relação com a natureza vai ca-
acordo com as suas necessidades, mui- racterizar uma espiritualidade própria,
tas vezes ausência e por causa do des- que será traduzida numa estética de ex-
caso do Estado. pressão variada, que se revela em músi-
Também se verifica a formalização cas de estilos variados, danças, poética,
de sistemas organizativos voltados para teatro, bailes e festividades, instrumen-
o alcance de resultados econômicos tos musicais, causos e contos, histórias
mais vantajosos, como as associações e lendas, artesanato, artes plásticas, ri-
comunitárias ou de produtores espe- tos, mitos e outros.
cializados em determinadas mercado- Esse contágio com o mistério na-
rias ou as cooperativas de porte comu- tural, seja pela via da contemplação,
nitário ou municipal, havendo também seja pela via do medo, do sentir-se pe-
iniciativas de alcance regional, estadual queno, frágil e vulnerável, seja, ainda,
e nacional. por sentir-se afagado, acolhido e con-
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Dicionário da Educação do Campo
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Cultura Camponesa
C
é sempre patriarcal e atribui à mulher ção do trabalho solidário e cooperado
culpabilidades como o pecado origi- e da sociabilidade mais intensa, espa-
nal, responsabilizando-a, por exemplo, ço que, para muitos, é praticamente o
não só pelo sofrimento humano, mas único local conhecido. De outra parte,
também pelo sofrimento da divindade as relações externas estão limitadas ao
encarnada. Toda essa complexidade contato apenas para a resolução de
está acentuadamente posta nos marcos necessidades pontuais. Esse horizonte
culturais do campesinato brasileiro e restrito fragiliza a tomada de consciên-
vai, por sua vez, imprimir no homem cia política, a organização de classe e a
camponês um sentido de superioridade exponenciação de sua humanização. A
que o autolegitima como portador de invasão cultural burguesa, aí consolida-
certa autoridade, um sentido exterio- da em suas formas prática e ideológica,
rizado na sua estética física e no seu também turva a sua capacidade de se
vestuário, na expressão de bravura e autoperceberem como sujeito social
valentia, na supervalorização de ser o complexo e de conceberem o seu espaço
macho, num sentir exacerbado da hon- como território, aspecto menos acen-
ra, da austeridade e de ser trabalhador tuado nos povos originários e nas co-
e na acentuada capacidade para o sacri- munidades quilombolas, para as quais
fício diante das asperezas do ambiente a existência social, que expressa uma
e do labor. visão de totalidade histórico-espacial
O horizonte imediato do campe- e populacional com recorte étnico,
sinato é a família, que, forçosamente está diretamente vinculada a determi-
consolidou-se aqui sob a forma cultu- nado território.
ral europeia cristã capitalista, reforçan- A contenção, o impedimento de
do as relações patriarcais, ao mesmo acesso à terra e a exploração do seu
tempo em que impediu, seja pela for- trabalho constituem expressão da vio-
ça jurídica e policial, seja pela ordem lência histórica e estrutural que perdu-
social moral, outras formas típicas dos ra sobre os povos camponeses; para
povos originários ou africanos. isso, o Estado burguês e os agentes do
Ocupando o epicentro imediato capital fizeram uso das mais variadas
de sua visão de mundo, os membros do formas de agressão. Porém, ainda que
campesinato brasileiro vão organizar condicionados a situações materiais
e direcionar suas ações em geral e seu precárias e inferiores, povos originários,
trabalho em particular preponderante- africanos e o campesinato miscigenado
mente para a busca de satisfação das lançaram mão de sua indignação, capa-
suas necessidades individuais e familia- cidade organizativa e conhecimento e
res, ao mesmo tempo em que demar- ergueram-se em rebeliões com elevado
cam seus horizontes existenciais pela grau de radicalidade, realizando com-
incumbência maior de deixar aos des- bates armados com seus inimigos ex-
cendentes uma herança material supe- propriadores e exploradores.
rior à que receberam. Na sua relação com a natureza, o
Do imediato familiar, as relações se camponês utiliza meios e instrumentos
estendem para o plano da comunidade, de trabalho que em geral exigem muito
como espaço da vizinhança, da realiza- esforço físico. Além disso, ele está posto
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Dicionário da Educação do Campo
diante de realidades que exigem sua ação mento dos Atingidos por Barragens
direta familiar ou coletiva, essa associada (MAB), o Movimento dos Pequenos
a seu grupo étnico ou de vizinhança na Agricultores (MPA), o Movimento
comunidade. O mesmo ocorre nas rela- das M ulheres C amponesas (MMC
ções de produção e de busca de territó- Brasil), os quais, por sua vez, e de
rios, na medida em que sempre encontra- maneira inédita, vão integrar a arti-
rá forças inimigas no seu encalço. culação internacional camponesa Via
Esses condicionamentos históricos – Campesina (ver Sindicalismo Rural).
e portanto persistentes – não só cons- Ao mesmo tempo, é organizada, na
tituem sua experiência prática, como Amazônia, uma ampla coalizão entre os
também vão se imprimir em sua subje- Povos da Floresta e o Conselho Nacio-
tividade, sendo comunicados em causos, nal dos Seringueiros (CNS), enquanto os
repentes, trovas, cordéis e músicas, povos originários e quilombolas se re-
ocupando o seu imaginário e seu acervo posicionam, com vigor renovado, na
cultural. Os povos originários se de- luta política.
frontaram com os invasores europeus; A ditadura militar instalada no país
os povos africanos negros, com os se- em 1964 impôs a Revolução Verde
nhores escravistas, europeus e nativos; que implica a utilização de todo um
e o campesinato se deparou, e ainda se aparato industrial, financeiro, científi-
depara, com latifundiários e oligarcas, co, tecnológico, educacional, agroin-
com o agronegócio e o Estado bur- dustrial e comercial por meio de ações
guês. As rebeliões radicalizadas no en- do Estado e do capital privado, con-
frentamento armado se efetivaram ora figurando um poderoso sistema e um
localizadamente, ora ocupando vastos bloco de poder burguês que invade am-
territórios, a exemplo de Canudos, plos territórios camponeses, impondo-
no sertão baiano, da comunidade de lhes a modernização conservadora e a
Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, condição de subalternidade, seja como
no Ceará, e da Guerra do Contestado “produtores menores” de alimentos e
em Santa Catarina e Paraná. de determinadas matérias-primas, seja
Se nesses processos de rebelião a como trabalhadores semiassalariados
desumanidade imposta ao extremo ou assalariados em processos produti-
somou-se às inspirações messiânicas vos agrícolas e agroindustriais.
e colocou o campesinato em guerras, Na atualidade, esse sistema e bloco
sua resistência se atualiza e alcança ou- de poder, reconfigurados sob a hegemo-
tra qualidade política inicialmente com nia do capital financeiro e das empresas
a influência do ideário comunista e, transnacionais – os quais ampliam e
depois, com a teologia da libertação. aprofundam a dominação e a exploração,
Tais influências revitalizam a criativi- impondo novas tecnologias no campo,
dade e a radicalidade do homem do notadamente as biotecnologias, tendo
campo, levando o campesinato a esta- à frente os cultivares transgênicos, os
belecer novas formas de organização associados a determinados agrotóxicos,
política, como as Ligas Camponesas mas também as nanotecnologias e uma
e, mais recentemente, entre outros, série de outras tecnologias baseadas na
o M ovimento dos T rabalhadores informática satelitizada – passaram a ser
Rurais Sem Terra (MST), o Movi- identificados como “agronegócio”.
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Cultura Camponesa
C
Tudo isso se associa às mudanças atualidade, tomada em sua totalidade
gerais nas legislações impostas por or- social. Sua autocrítica e sua crítica à or-
ganismos internacionais multilaterais a dem burguesa no âmbito do seu modo
fim de legitimar a permissividade para de produção – relações sociais e com a
a maior dominação, a exploração do natureza – vai levá-lo a formular diretri-
trabalho e a depredação e mercantili- zes e ações que, sob a orientação cientí-
zação da natureza em escala planetária fica da agroecologia como fundadora de
pelo agronegócio. uma práxis comprometida com a “re-
Essa expansão e invasão do capi- construção ecológica da agricultura”,
tal no campo são devastadoras para o priorizam a soberania alimentar.
campesinato, seja por imporem a mer- A violência histórica e estrutural
cantilização – um padrão de produção do capital, agora exponenciada em seu
e consumo absolutamente distante da apogeu imperialista, segue encontran-
sua trajetória cultural, étnica, familiar do o parapeito camponês, que resiste
e comunitária –, seja por alterarem in- criando e recriando-se culturalmente.
tensamente suas bases materiais pro- Seu posicionamento como sujeito so-
dutivas, até então profundamente vin- cial consciente e organizado se expres-
culadas aos processos ecológicos e às sa historicamente em significativos pro-
tecnologias endógenas, seja, ainda, por cessos de rebelião, com elevado grau
elevarem as contradições a ponto de de radicalidade em suas ações. Isso não
fazerem irromper novo ciclo de lutas apenas se inscreve em seu imaginário,
camponesas no país. expressando-se em sua estética cultu-
Nesse novo ciclo, agrega-se o que ral, mas continua sendo ativado de for-
há de mais avançado politicamente no ma renovada no tempo.
movimento camponês brasileiro, com É notório, no presente, que a maior
claro posicionamento de classe de parcela do campesinato brasileiro se en-
orientação filosófico-teórica e organi- contra subsumida na alienação e na ma-
zativa marxista, que direciona sua for- nipulação ideológica, enquanto outra
mulação estratégica e sua ação política, parte se situa no estado de consciência
de caráter socialista, para o combate de classe em si e uma fração menor,
anticapitalista. Ademais de apreender e mas significativa, toma a frente da sua
situar-se de forma consciente em rela- organização e ação em movimentos
ção à sua condição de classe explorada sociais com clara consciência de clas-
e expropriada dos meios de produção e se para si, qualificando sua prática
da renda do seu trabalho pelo capital, política e produtiva e traduzindo-a na
esse movimento integra a consciência e elaboração autônoma do seu projeto
a prática internacionalistas e a memória de campo e de sociedade, em arti-
histórica das lutas libertárias e de eman- culação e diálogo com os setores po-
cipação humana, elaborando diretrizes pulares urbanos e outras forças sociais
e lutas unificadas e ampliando enorme- da classe trabalhadora e em interação
mente o seu referencial cultural. internacionalista. Uma realidade tão
O movimento social camponês se clara e reveladora da sua significativi-
situa culturalmente na contemporanei- dade histórica e cultural, e, ao mesmo
dade, forjando respostas aos desafios da tempo, tão oculta e ocultada.
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D D
Defesa de Direitos
Marcus Orione Gonçalves Correia
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medida em que houve a sua diminui- em eleição popular. É claro que aqui
ção; porém, esta mesma jornada imposta não podemos nos sentir confortá-
pode ser vista, pelo viés do trabalhador, veis com tais “frases feitas” e de pou-
como algo que restringe a liberdade. No co conteúdo no mundo dos fatos. O
direito civil, podemos citar os limites às mundo real, aquele que palpita lá fora,
nossas ações por cláusulas contratuais, mostra que os poderes hoje são apenas
às quais, mais aparentemente do que arremedo da vontade popular.
qualquer outra coisa, encontramo-nos Ora, se os próprios interessados
livres para aderir. No direito penal, a estão alijados do processo de escolhas,
imposição da pena é fator restritivo de não há como se admitir que serão livres
nossa liberdade. com a imposição de condições que al-
Logo, o direito é apenas mais um guns acreditam que lhes farão livres. A
instrumento eficaz de restrição das li- lógica de capacidades para a constru-
berdades. É claro que alguns utilitaristas ção de liberdades, assim, merece crí-
imediatamente irão lembrar que a liber- ticas: que capacidades? Decididas por
dade de um começa onde a liberdade do quem? Para fazer construir que tipo de
outro termina. Portanto, qualquer um é mundo? Aliás, aqui estamos diante
completamente livre, desde que não im- de qualquer crítica que se possa fazer
pinja, em nome de sua liberdade, ônus à à meritocracia, e devemos nos lembrar
liberdade de outra pessoa. das palavras de Paulo Freire, para quem
Não é de se estranhar que esse ra- ninguém deve ser considerado titular
ciocínio simplista remonte ao século da autonomia do outro.
XIX, às observações de Stuart Mill em Caso não se observem as críticas
sua clássica obra Sobre a liberdade. No anteriores, não estamos jogando um
entanto, no capitalismo, a apuração jogo de iguais. E liberdade sem igual-
da liberdade a ser preservada em face da dade não significa coisa alguma.
liberdade de outro não passa de sim-
Por isso, entende-se por que alguns
ples ilusão. A liberdade, nessa lógi-
preferem fazer uma leitura dicotômica
ca, é substituída imediatamente pela
ideia de interesse. O que era liberdade, da igualdade em relação à liberdade.
no capitalismo, equivale a liberdade/ Colocadas em lados opostos, fica muito
interesse. A noção de interesse, por sua mais fácil para a lógica capitalista a sua
vez, está intimamente relacionada com própria consolidação. Um capitalismo
a de poder. Prevalecem as liberdades, em que igualdade e liberdade, e acres-
isto é, os interesses dos que detêm o cento aqui, solidariedade, fossem postas
poder. Logo, no capitalismo, liberdade lado a lado, certamente seria muito difí-
é o mesmo que interesse/poder. cil – se não impossível – de concretizar.
A igualdade, nesse contexto, passa a Logo, a relação entre política e jus-
ser uma dimensão menor. Não se pode tiça, observados ainda os limites do di-
fazer que alguém desigual possa, para reito posto, está na busca da superação
receber certo benefício social, esco- dos limites de igualdade/liberdade im-
lher se pretende, ou não, submeter-se postos pela ordem capitalista.
às regras de alguém mais poderoso que Agora já temos elementos para o
escolheu por ele. Dizer que a lei é obra de segundo aspecto: o direito de resistên-
todos é uma falácia, pois o Legislativo, cia como espaço para a conquista de
que impingiu as condições, é escolhido novos direitos. Somente a arena políti-
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Defesa de Direitos
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Democracia
Virgínia Fontes
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Democracia
como algo finalizado com a implanta- ao conjunto das relações sociais das
ção de um regime político, como suge-
re a primeira definição, introduziremos
quais emergem. D
o viés da reivindicação democrática
ou da democratização (Lukács, 1998,
A democracia ateniense
p. 15-16) como correspondendo a uma É difícil datar o momento preciso
antiquíssima aspiração, o que não a im- em que as lutas pela democracia se ini-
pede de ser mais atual do que nunca: ciam: o relato histórico raramente con-
assegurar a igualdade (que é diferente solida as lutas dos subalternos, e tende
da homogeneidade) de todos os seres a registrá-los apenas quando a subver-
sociais, garantir a liberdade de todos e são da ordem é dramática ou quando
de cada um, proceder de maneira que a conquistam alguma vitória importan-
direção do destino coletivo emane de te, ainda que débil e frágil. A datação
todos, e que os benefícios e prejuízos clássica relaciona o nascimento da de-
das decisões, com seus erros e acertos, mocracia à Atenas do século V a.C.,
revertam a todos. onde se forjou o próprio termo. Essa
As reivindicações democráticas não é uma referência fundamental, pois ali
se limitam a um anseio genérico, mas se instaurou um regime social com teor
remetem a lutas concretas de classes radicalmente distinto dos até então
exploradas, de subalternos e oprimidos, conhecidos, com intensa participação
em diferentes sociedades e em diversos popular e iniciativas igualitárias. Tal
períodos históricos. A história dos ex- ênfase na experiência grega é todavia
perimentos democráticos é complexa: parcial, pois esquece as lutas anteriores
muitas vezes reivindicações democráti- de muitos outros povos – mesmo se os
cas obtiveram melhores condições para termos empregados fossem outros –
alguns setores subalternos, ou a incor- e que, mesmo derrotadas, deixaram
poração de alguns grupos na dinâmica marcas nos seus sucessores; esquece as
social dominante, sem necessariamente influências recíprocas entre os povos;
colocar em xeque o conjunto da desi- e, finalmente, é uma atitude que pode
gualdade e sem assegurar para todos as confortar eurocentrismos, como se as
liberdades experimentadas por alguns. lutas por democracia começassem na
A reivindicação democrática será trata- Europa, e isso garantisse uma espécie
da aqui como a constante atualização de qualidade superior e única à expe-
das lutas dos subalternos pela demo- riência europeia (Dussel, 2005). Mui-
cratização permanente, isto é, pela rea- tos autores sublinham a existência de
lização concreta das aspirações à liber- diversas influências anteriores à expe-
dade e à igualdade. riência ateniense – influências negras,
As variadas experiências históri- oriundas do Egito; influências fenícias
cas de democratização revelam-se ao (Hornblower, 1995) –, demonstrando
mesmo tempo originais e limitadas, que o processo histórico não é linear,
demonstrando a intensidade de sua mas complexo e contraditório.
persistência. As lutas democratizan- Assim, se as lutas sociais não se
tes e suas experiências concretas rara- iniciam com Atenas, ou, melhor dizen-
mente se circunscreveram à forma de do, com a Ática – o território da ci-
governo; ao contrário, relacionam-se dade-Estado no qual se situava Atenas,
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local da atual capital grega –, foi ali que vel contradição: ao resistirem contra a
a democracia encontrou não apenas a sua própria escravidão, esses campone-
sua primeira realização mais duradoura, ses admitiram o crescente ingresso de
mas também suscitou intensa literatura. escravos de outras regiões, que, dora-
O termo democracia, em grego, embo- vante, realizariam as tarefas que ante-
ra signifique governo do povo, repre- riormente lhes incumbiam nas terras
sentou bem mais do que isso, envol- dos grandes proprietários, no traba-
vendo modificações expressivas na lho das minas e nos serviços domés-
vida social. A construção da experiência ticos. Democracia e escravidão em
democrática grega é muito contraditó- Atenas estiveram unidas de maneira
ria, porém riquíssima do ponto de vista inseparável (Wood, 2003, p. 161).
da consolidação prática de uma expe- Esses embates não se limitaram,
riência original e das tensões que ex- porém, à libertação dos camponeses
plicitou precocemente sobre a relação atenienses, e desembocaram numa cres-
entre forma de governo e vida social cente participação dos homens adultos
(Mazzeo, 2009). atenienses – mulheres e estrangeiros li-
A cidade-Estado (pólis) de Atenas vres estavam excluídos – nos processos
era predominantemente agrária, porém de decisão coletiva e na garantia de uma
o crescimento das desigualdades e a crescente igualdade entre eles. Por essa
constituição de grandes famílias levara razão, é difícil afirmar – como o fazem
a processos de escravização por dívi- muitos – que a experiência democrática
das, opondo grandes e pequenos pro- grega se limitou ao terreno da política,
dutores agrários. A origem ateniense embora seja considerada o momento da
da democracia remete, portanto, à luta “invenção da política” (Finley, 1985).
entre pequenos camponeses e grandes Vejamos algumas das inovações da de-
proprietários de terras. A escravidão mocracia ateniense. Lembremos que
era disseminada no mundo antigo sob Atenas, durante o auge da experiência
múltiplos formatos. Para Ellen Wood democrática, contava com uma popu-
“os gregos não inventaram a escravi- lação de algo mais de 200 mil pessoas,
dão, mas, em certo sentido, inventaram dentre as quais um máximo de 40 mil
o trabalho livre” (2003, p. 157), pois a homens adultos (livres e cidadãos), e
luta camponesa contra a sua escravi- seu contingente de escravos situava-se
zação tornaria evidente a conexão da em torno de 80 mil pessoas.
liberdade com a igualdade. Wood en- Atenas, no período democrático
fatiza a importância desse caráter cam- mais significativo, era dirigida por um
ponês da democracia ateniense: “Não conselho com quinhentos integrantes,
seria exagero afirmar, por exemplo, provenientes de todas as circunscri-
que a verdadeira característica da pólis ções, urbanas ou rurais (os demoi), que
como forma de organização de Estado somente poderiam ser indicados duas
é exatamente essa, a união de trabalho e vezes em toda a sua vida, o que garan-
cidadania específica da cidadania campo- tia uma participação rotativa e ampliada
nesa” (ibid., p. 162). nas decisões da vida social. Seus inte-
A importância dessa luta pela liber- grantes tinham direito a uma remune-
tação camponesa não pode ser diminuí- ração pública, assim como os jurados,
da, mesmo se resultou numa formidá- permitindo a participação plena dos
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Notas
1
“Ce que je soutiens en fait, c’est que le sustème pleinement démocratique de la seconde
moitié du Ve. s. av. J.C n’aurait pas été introduit s’il n’y avait eu l’Empire athénien.”
2
“[...] les orateurs et les écrivains de cette période (ou ceux qui en parlent) montrent une
conscience de classe si explicite que seul un historien moderne très borné peut garder un
silence total sur les divisions de classe.”
Desapropriação
Miguel Lanzellotti Baldez
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Desapropriação
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nida Presidente Vargas. As duas mo- mento em títulos da dívida pública res-
dalidades estão previstas no artigo 4º gatáveis no prazo de vinte anos, só será
do decreto-lei nº 3.365, de 1941, sob possível quando se tratar de desapro-
o nome “desapropriação por zona” priação de terra improdutiva – a única
(Brasil, 1941). susceptível de desapropriação para Re-
A Constituição de 1988, ao erigir forma Agrária, por não cumprir a sua
a função social da propriedade como função social, como preveem os arti-
garantia fundamental, incluiu o uso da gos 184 e 186 da Constituição.
propriedade no elenco das garantias in- Nessas duas situações de desapro-
dividuais e coletivas (artigo 5º, inciso priação por interesse social para fins
XXIII). Em consequência, previu a de- que atendam a interesses coletivos e
sapropriação dos imóveis urbanos ou modifiquem política e juridicamente o
rurais que não cumprirem, segundo os tratamento estrutural e estratégico da
critérios que estabelece, sua função so- terra, como já se anotou sobre o caráter
cial (artigo 182, inciso III, e artigos 184 político da desapropriação, configura-
e 186). Há um dado que merece desta- se importante repercussão no processo
que nestas modalidades de desapropria- expropriatório em toda a sua extensão
ção: seu compromisso com o interes- e na chamada ação de desapropriação,
se coletivo, uma vez que esse modelo introduzindo-se, no campo amplo do
constitucional não se limita à dicção do processo e no campo específico da
interesse historicamente definido como ação, a discutibilidade tanto do méri-
público na divisão maior do direito em to do ato administrativo, formalizado
público e privado, alcançando em seus no decreto declaratório do interesse
efeitos as necessidades fundamentais de social, quanto do mérito, em sentido
camadas despossuídas da coletividade. processual civil, da ação de desapro-
A desapropriação prevista no arti- priação. Isso permite à processualística
go 182, inciso III, relativa aos imóveis que, nas ações típicas para a reforma
urbanos, significa a etapa derradeira urbana ou Reforma Agrária, discuta-se
da sequência de sanções estabelecidas também, em benéfico do expropriado,
como penas pelo não uso ou mau uso da proprietário de casas urbanas ou de
propriedade. Esse tipo de sanção, cujo latifúndios rurais, a legalidade do ato
preço poderá ser pago em títulos da administrativo, ou seja, se a terra cum-
dívida pública com prazo de regaste de pre ou não sua função social, dificul-
até dez anos – uma exceção à regra que tando-se, ou protelando-se no tempo,
exige pagamento prévio e em dinheiro –, a prática dos atos processuais, sempre
só será possível depois de esgotadas, que se trate de desapropriação no inte-
em ordem sucessiva prevista na Cons- resse dos despossuídos.
tituição Federal, as duas anteriores es- Algumas ponderações devem ser
pécies de sanção: parcelamento ou edi- feitas em relação à eventual urgência
ficação compulsórios e impostos sobre da desapropriação. O poder público
propriedade predial e territorial urbana pode declarar, por meio de decreto,
progressivos no tempo, sujeitos ambos quando necessário, o caráter urgente
a demorado procedimento. da desapropriação, qualquer que seja
Quanto à desapropriação para fim seu fundamento e a finalidade à que se
de Reforma Agrária mediante paga- destina. Com a declaração de urgência,
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Desenvolvimento sustentável
Carlos Eduardo Mazzetto Silva
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Desenvolvimento Sustentável
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Desenvolvimento Sustentável
que hoje é mais do que nunca coman- riscos ambientais. Essas contradições
dado pelo capital transnacional. Para esses
poderosos atores do cenário mundial, não
entre a racionalidade capitalista e o
discurso da sustentabilidade vêm se
D
há contradição entre o processo de acu- constituindo na verdadeira questão de
mulação capitalista (e suas escandalosas fundo do debate, acabando por expli-
desigualdades sociais e desastres ecológi- car o fracasso das iniciativas globais em
cos) e a perspectiva de sustentabilidade. reduzir o aquecimento global e reverter
o processo de deterioração dos indica-
As questões que ficam dores ambientais. Desde a ECO-92,
ao invés de melhorar, esses índices
O esforço diplomático e consensual vêm piorando.
em torno do desenvolvimento susten- Apesar das críticas, o desenvolvimen-
tável não conseguiu diluir os diferentes to sustentável se tornará uma espécie de
interesses em jogo, os quais estão rela- consenso tácito e inconsciente que define
cionados a diferentes visões de mundo, os limites do problematizável (Carneiro,
em especial aquelas que, de uma forma 2005). Esse limite exclui não apenas o
ou de outra, não sucumbiram inteira- questionamento do sistema produtor
mente à forma ocidental/moderna de de mercadorias – o grande responsável
pensar. Aí, as contradições e os dissen- pela crise ambiental contemporânea –,
sos na discussão da sustentabilidade
mas também o que se chamou de se-
vêm à tona. Afinal, trata-se de definir o
gunda contradição do capitalismo, que
que e a quem se quer realmente susten-
diz respeito às condições naturais para
tar. Esses conflitos se manifestam, por
o processo de produção de mercadorias,
exemplo, quando os Estados Unidos
condições que têm de ser continuamente
se recusaram a assinar a Convenção
produzidas, reproduzidas e fornecidas.
da Biodiversidade durante a ECO-92.
Nesse sentido, o capitalismo destrói a
Aí estão em jogo estratégias e direitos
sua própria base: “é o próprio funcio-
relativos ao processo de apropriação
namento de um sistema de produção de
da natureza. Nessas negociações, os
mercadorias [...], estruturalmente orien-
países do Norte defendem os interes-
tado pela busca da maior rentabilidade
ses das empresas transnacionais de
na acumulação de riqueza abstrata, que
biotecnologia de se apropriarem, por
conduz à degradação daquelas condições
meio dos direitos de propriedade in-
naturais das quais depende visceralmen-
telectual, de recursos genéticos locali-
te” (ibid., p. 29).
zados no Terceiro Mundo. Ao mesmo
tempo, grupos indígenas e camponeses Nos limites dados por esse contex-
defendem sua diversidade biológica e to, o consenso em torno do desenvol-
étnica, ou seja, seu direito de se apro- vimento sustentável é a saída para os
priarem de seu patrimônio histórico de impasses atuais deste sistema de pro-
recursos naturais e culturais. A mesma dução de mercadorias, mas não para
contradição se coloca no momento em reformular a relação com a natureza,
que a biossegurança se confronta com nem para construir possíveis socie-
a introdução de variedades transgêni- dades sustentáveis. Esse consenso é,
cas, quando o princípio da precaução “simultaneamente, condição e produto
sucumbe à fome de lucro, introduzindo dos conflitos implicados na ‘questão
produtos e processos que ampliam os ambiental’” (Carneiro, 2005, p. 42).
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Dicionário da Educação do Campo
Notas
1
Entropia é um conceito relativo à segunda lei da termodinâmica (transforma-
ção da for ma de energia). Para nossos propósitos neste texto, importa o que
Georgescu-Roegen (1971) afirmou sobre sua relação com o crescimento econômico: o
processo econômico é, do ponto de vista físico, uma transformação de energia e de recur-
sos naturais disponíveis (baixa entropia – energia ordenada e útil) em lixo e poluição (alta
entropia – energia desordenada e inútil). Essa transformação, entre outras coisas, gera calor,
daí a desordem ambiental e o aquecimento global.
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Desenvolvimento Sustentável
2
O nome oficial da ECO-92 ou Rio-92, que se realizou entre 3 e 14 de junho de 1992 no
Rio de Janeiro, é Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvi-
mento (Cnumad). D
3
“Las estrategias de apropiación de los recursos naturales en el marco de la globalización
económica han transferido sus efectos de poder al discurso de la sustentabilidad.”
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Dicionário da Educação do Campo
Despejos
Antonio Escrivão Filho
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Despejos
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direito à moradia quanto no acesso aos Apenas como exemplo, basta lem-
serviços públicos e equipamentos urba- brar que a primeira vez que o Exército
nos coletivos necessários à vida digna, brasileiro fez uso de canhões foi na Guer-
como estruturas de saneamento, trans- ra de Canudos, ao passo que o primeiro
porte, cultura e lazer. uso militar de aviões ocorreu na Guerra
Em oposição ao processo estrutu- do Contestado contra os camponeses.
ral de remoção (ou seja, de despejo) de Com a Constituição de 1988, a
comunidades dos espaços ocupados, chamada Constituição Cidadã, o Esta-
reivindica-se uma atuação estatal pau- do brasileiro assumiu a forma de Es-
tada pelo princípio da não remoção,3 tado democrático de direito, elegendo
que implica o Estado buscar esgotar os direitos humanos como direitos
primeiro as vias de regularização fun- fundamentais a serem garantidos e
diária destas comunidades nos locais promovidos pelo Estado e pela pró-
onde estão. pria sociedade.
Em último caso, quando esgotadas Assim, a repressão estatal contra a
todas as possibilidades de regularização luta pela terra ganhou também o reves-
fundiária das famílias nos locais onde timento jurídico deste Estado demo-
construíram a sua história, o Estado crático de direito, realizando-se na for-
deve garantir a sua retirada por meio do ma (histórica) dos despejos, mediante
diálogo e do respeito ao interesse social, procedimentos judiciais e policiais que
realizando o deslocamento das famílias visavam conferir legalidade à repres-
para áreas que sejam de seu interesse e são, quer dizer, visavam dizer que o
consentimento, de maneira digna e ga- despejo, mesmo quando violento, está
rantindo-lhes uma justa indenização. “dentro da lei”. Mas não está. O despe-
jo forçado e violento não está “dentro
da lei” porque ignora aspectos da legis-
Despejos rurais lação, justamente a parte mais impor-
No campo, os despejos apresentam- tante dela, que diz respeito aos direitos
se como a forma atual de uma históri- humanos. É como se o juiz, o promo-
ca e violenta repressão aos indígenas, tor de justiça e os policiais escolhessem
quilombolas e camponeses que não se algumas leis para usar, e fechassem os
submetem ao jugo do latifúndio e lu- olhos para outras – no caso, as leis re-
tam por seus direitos de acesso à terra. ferentes aos direitos humanos. Porém,
fechar os olhos para determinadas leis é
De fato, seja na resistência indígena
ilegal, e quando isso ocorre, os despejos
ao trabalho para o branco, seja na es-
forçados transformam-se em crimes do
tratégia de fuga, organização e comba-
próprio Estado.
te nos quilombos (Moura, 1981), seja
na posse familiar ou ocupação de mo- Daí a importância dos movimentos
vimentos sociais organizados de cam- sociais e de suas assessorias jurídicas
poneses, a história da questão agrária populares para transformarem a justiça
demonstra que a luta pela direito à e fazer que o Estado, os juízes, promo-
terra do povo brasileiro, desde as suas tores e policiais respeitem os direitos
diferentes dimensões culturais, sempre humanos do povo brasileiro (Frigo,
foi reprimida com muita violência por 2010). Como dizia o poeta Bertold
forças do latifúndio e do Estado. Brecht em seu “Elogio da dialética”:
214
Despejos
“De quem depende que a exploração pelo latifúndio e pelos poderes que es-
continue? De nós. E de quem depende
que ela se acabe? Também de nós!”.
tiveram historicamente à sua disposi-
ção, como a mídia e o Judiciário. Além
D
Por isso as ocupações de terra no da violência, os movimentos sociais
Estado democrático de direito são legí- sofrem também com a criminalização
timas, porque é pelas ocupações que os das suas atividades e manifestações,
movimentos sociais pressionam o Es- que ocorre quando o Estado atribui a
tado a promover e efetivar os direitos condição de crime às manifestações so-
humanos do povo, desestabilizando o ciais e a suas lideranças, com vistas a
poder econômico do latifúndio crimi- intimidar e inviabilizar a luta social.
noso, que degrada o meio ambiente, A repressão e a criminalização ocor-
que não produz alimentos, que explora rem, como é sabido, porque, pelos mo-
o trabalho escravo, que assassina de- vimentos sociais e pelas ocupações, o
fensores dos direitos humanos e que povo, organizado, adquire a potência que
causa conflitos e tensão social. Tudo permite desafiar o latifúndio na correla-
isso, conforme a Constituição de 1988. ção de forças em disputa pelo Estado.
A propósito, vale fazer uma leitura Como resultado da atuação dos
conjunta dos artigos 1º, 3º, 5º, 170, 184 movimentos sociais, posições mais mo-
e 186 da Constituição e, a partir daí, dernas dos juízes preocupados com a
pensar qual deveria ser a postura de efetivação dos direitos humanos – ex-
juízes, promotores e policiais dian- ceções que merecem reconhecimento
te das ocupações do Movimento dos para que possam também ganhar força
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), dentro da instituição – exigem que o
e das retomadas de terras realizadas fazendeiro comprove o cumprimen-
por indígenas e quilombolas no chama- to da função social da sua posse (ver
do Estado democrático de direito. Fachin, 1988; Alfonsin, 2003) e pro-
Segundo o filósofo Enrique Dussel priedade para que a reintegração de
(2007), os direitos humanos refletem posse seja deferida judicialmente. Esta
as conquistas históricas da consciên- atitude ainda constitui uma exceção
cia política de um povo. De fato, assim na atuação de juízes, mas tende a se con-
como a resistência indígena, quilombo- solidar com o aumento da pressão social.
la e camponesa no passado, as ocupa- Mediante uma ocupação ou reto-
ções de terras indicam que hoje a cons- mada de terras, o Estado deve movi-
ciência política dos movimentos sociais mentar-se de modo a assentar famílias
de sem-terra, indígenas e quilombolas sem-terra, titular territórios quilom-
estão à frente do próprio Estado – na bolas ou demarcar reservas indígenas
verdade, à frente da consciência políti- e extrativistas conforme o interesse
ca dos agentes que historicamente ocu- social, que é o interesse mais próxi-
pam o Estado brasileiro. mo do núcleo fundamental dos direi-
Todos os direitos humanos reco- tos humanos, em oposição ao interesse
nhecidos pelos Estados resultaram da público (do Estado ou governo) e ao
luta, manifestação e pressão popula- interesse privado.
res (ver Comparato, 2003; Lyra Filho, Em último caso, esgotadas todas as vias
1995). Por este motivo, as ocupações e possibilidades de manter as famílias no
de terra são tão criticadas e reprimidas local, o Estado deve garantir uma retirada
215
Dicionário da Educação do Campo
Notas
1
Atualmente o Poder Público, via Ministério Público e municípios, tem também requerido
o despejo de famílias em áreas urbanas, sob a alegação de risco ou degradação ambiental.
No entanto, e não por acaso, são somente famílias de baixa renda que sofrem tais ações do
Estado, uma vez que não se observa qualquer ação deste tipo sobre os condomínios fecha-
dos nas margens de rios e encostas de morros.
2
Ver Saule Junior (2004) e os sítios da Relatoria do Direito à Cidade/Plataforma Dhesca
Brasil (http://www.dhescbrasil.org.br), da Terra de Direitos (http://www.terradedireitos.
org.br), do Instituto Pólis (http://www.polis.org.br) e do Fórum Nacional da Reforma
Urbana (FNRU) (http://www.forumreformaurbana.org.br).
3
Ver o Manifesto da Plataforma Brasileira para Prevenção de Despejos (http://www.concidades.pr.gov.
br/arquivos/File/Resumo_das_Propostas_da_Plataforma_Brasileira_para_Prevencao_de_Despejos.
pdf) e as recomendações do II Encontro Nacional do Fórum de Assuntos Fundiários/CNJ (http://
www.cnj.jus.br/images/programas/forumdeassuntosfundiarios/urbano_iiencontro.pdf).
216
Direito à Educação
DIREITO À EDUCAÇÃO
Sérgio Haddad *
*
Com a colaboração de Ester Rizzi e Filomena Siqueira, assessoras da organização não
governamental Ação Educativa.
217
Dicionário da Educação do Campo
218
Direito à Educação
219
Dicionário da Educação do Campo
220
Direito à Educação
para desenvolver nas crianças as bases reito à educação está no campo. Além
cognitivas para futuras aprendizagens.
Mesmo com um aumento tímido nos
dos fatores mencionados anteriormente,
a análise das matrículas mostra que nas
D
últimos anos, a taxa de frequência es- escolas rurais, para cada duas vagas
colar de crianças entre 0 e 3 anos conti- nos anos iniciais do ensino fundamen-
nua baixa. As que menos têm acesso ao tal, existe apenas uma nos anos finais
atendimento de creches são as do meio (50%). E essa proporção se acentua
rural e as mais pobres: apenas 8,9% ainda mais quando se comparam as sé-
das crianças com 0 a 3 anos de idade ries finais do ensino fundamental com
da área rural têm acesso à educação in- as vagas dos anos iniciais do ensino mé-
fantil; na área urbana esse índice sobe dio: seis vagas para uma (17%). Já nas
para 20,5%. As taxas de frequência na regiões urbanas, a taxa é de quatro vagas
pré-escola são ainda mais alarmantes: nas séries iniciais, três nas finais (75%) e
cerca de 1,5 milhões de crianças nessa duas no ensino médio (50%). A ausência
faixa etária (4 a 5 anos) estão fora da de políticas efetivas e específicas para o
escola (25,2%). campo colabora na perpetuação dos ní-
O acesso ao ensino fundamental é veis desiguais de quantidade e qualidade
considerado universalizado para a faixa de instituições escolares quando com-
dos 6 aos 14 anos, embora ainda exis- parados ao meio urbano.
tam cerca de 740 mil crianças e ado- Portanto, não se atingiu a universa-
lescentes não atendidos e um enorme lização da oferta pública dos serviços
contingente de pessoas com mais de educacionais, visto haver limites na sua
14 anos que não conseguiu completar acessibilidade para setores da sociedade,
esse nível de ensino. No ano de 2008, esse em virtude das suas condições de ren-
número atingiu quase 60 milhões entre da, raça e local de moradia, indicando
jovens e adultos que não têm o ensino que há pouca aceitabilidade e adaptabili-
considerado fundamental. Dentre eles, dade nos serviços ofertados. Estamos,
14,1 milhões são analfabetos, e o mes- portanto, muito longe de cumprir com
mo número de pessoas têm menos de o direito humano à educação. A situa-
3 anos de escolarização, e são conside- ção revela um quadro de desafios para
radas analfabetas funcionais: pessoas a educação pública no que se refere à
que passaram pela escola mas não universalização do acesso ao ensino
conseguiram adquirir o conhecimento de qualidade. As causas dessa situação
mínimo necessário para serem consi- estão relacionadas a fatores internos e
deradas letradas. externos ao sistema educativo.
Outro dado alarmante é a distorção Entre os fatores externos, um dos
idade–série, com dois ou mais anos de problemas centrais são as desigualda-
atraso na escolarização em relação à des socioeconômicas e étnico-raciais
faixa etária adequada. Entre as razões que estruturam a sociedade brasileira.
para esse fenômeno, estão ingresso tar- Embora a educação seja vista, tanto
dio, repetências, evasões e reingressos. pelo senso comum quanto por espe-
Os dados do relatório As desigualda- cialistas, como um fator essencial para
des na escolarização no Brasil (Brasil, 2011) a melhoria das condições de vida, a
mostram que um dos principais grupos verdade é que no Brasil a expansão
populacionais não favorecidos pelo di- do ensino ocorreu num quadro de
221
Dicionário da Educação do Campo
Notas
1
A Convenção relativa à luta contra as discriminações no campo do ensino, da Unesco, entende por
discriminação: “1) [...] toda distinção, exclusão, limitação ou preferência fundada na raça,
na cor, no gênero, no idioma, na religião, nas convicções políticas ou de qualquer outra ín-
dole, na origem nacional ou social, na posição econômica ou no nascimento que tenha por
finalidade destruir ou alterar a igualdade de tratamento na esfera de ensino, e em especial:
a) Excluir uma pessoa ou um grupo do acesso aos diversos graus e tipos de ensino. b) Limi-
tar a um nível inferior a educação de uma pessoa ou de um grupo. c) [...] instituir ou manter
sistemas ou estabelecimentos de ensino separados para pessoas ou grupos. d) Colocar uma
pessoa ou um grupo em uma situação incompatível com a dignidade da pessoa humana”
(Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 1960).
2
Para obter mais informações e compreensão sobre o tema, ver Organización de las
Naciones Unidas, 1999.
3
Sobre o Observatório da Equidade e seus relatórios, ver o site do Conselho de Desenvolvi-
mento Econômico e Social da Presidência da República do Brasil http://www.cdes.gov.br.
222
Direito à Educação
223
Dicionário da Educação do Campo
______. Pacto internacional dos direitos civis e políticos. Nova York: Assembleia Geral
da ONU, 1966a. Disponível em: http://www.rolim.com.br/2002/_pdfs/067.pdf.
Acesso em: 15 set. 2011.
______. Pacto internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais. Nova York:
Assembleia Geral da ONU, 1966b.
______. Regras mínimas para o tratamento de prisioneiros. Genebra: ONU, 1955.
______. Declaração universal dos direitos humanos. Genebra: ONU, 1948. Disponível
em: http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.
pdf. Acesso em: 15 set. 2011.
Organización de las Naciones Unidas (ONU). Comité de Derechos Económi-
cos, Sociales y Culturales. Aplicación del pacto internacional de los derechos económicos,
sociales y culturales, observación general nº 13: el derecho a la educación. Genebra: ONU,
1999. Disponível em: http://www.escr-net.org/resources_more/resources_more_
show.htm?doc_id=428712&parent_id=425976. Acesso em: 15 set. 2011.
Peregrino, Mônica. Desigualdade numa escola em mudança: trajetórias e embates na
escolarização pública de jovens pobres. 2005. Tese (Doutorado em Educação) –
Programa de Pós-graduação e Pesquisa em Educação, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2005.
Piovesan, Flávia. Temas de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2002.
Plataforma Dhesca Brasil; Ação Educativa. Cartilha direito à educação.
Curitiba: Plataforma Dhesca Brasil; São Paulo: Ação Educativa, 2009. (Cartilhas de
Direitos Humanos, 4). Disponível em: http://www.bdae.org.br/dspace/bitstream/
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Tomasevski, K. Human Rights Obligations: Making Education Available, Accessi-
ble, Acceptable and Adaptable. Estocolmo: Swedish International Development
Cooperation Agency, 2001. (Right to education primers, 3). Disponível em:
http://graduateinstitute.ch/faculty/clapham/hrdoc/docs/rte_03.pdf. Acesso
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Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco). Declaração de Hamburgo: agenda para o futuro. Brasília: Sesi/Unesco, 1999.
Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001297/129773porb.
pdf. Acesso em: 15 set. 2011.
______.Convenção relativa à luta contra as discriminações no campo do ensino.
Paris: Unesco, 1960. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/
images/0013/001325/132598por.pdf. Acesso em: 15 set. 2011.
224
Direitos Humanos
D
D
Direitos Humanos
Jacques Távora Alfonsin
225
Dicionário da Educação do Campo
O primeiro dos enfoques é o da delas padecem. Pela redação das leis que
realidade econômica, social e política na reconhecem os direitos humanos, de-
qual esses direitos estão presentes, vem elas merecer um cuidado preferen-
para avaliar se os direitos humanos cial, justamente por força dos precon-
são, efetivamente, respeitados. O se- ceitos que pesam sobre elas. Constituir
gundo é o da responsabilidade que cada os direitos humanos nos atos da admi-
pessoa, cada povo e o próprio Estado nistração pública e do Judiciário como
têm quando ocorre ameaça ou viola- uma exceção e não como regra cria um
ção desses direitos. O terceiro é o dos círculo vicioso. Relegados à desconside-
encargos exigíveis de cada ser huma- ração e até à indiferença, os seus efeitos
no, da sociedade e do Poder Público, jurídico-sociais se frustram, impondo, a
identificando-se a responsabilidade do cada período histórico, novas formula-
segundo enfoque, e se deve impedir ções e novas afirmações da urgência de
ou reparar os efeitos da ameaça ou da serem respeitados.
violação desses direitos. No Brasil, a sucessão histórica de
democracias, quando menos formais,
Uma realidade que interrompidas por ditaduras comprova
desafia o respeito aos esses fatos. Se os direitos humanos são
universais, indivisíveis, interdependen-
direitos humanos tes e inalienáveis, basta a ausência de
A miséria e a pobreza de multidões uma dessas características, na realidade
brasileiras, como se verifica entre as/ da convivência humana, para se ter cer-
os índias/os, as/os quilombolas, as/os teza de que estão sendo violados.
sem-terra, as/os sem-teto, as/os cata- Convém, então, lembrar a classi-
doras/es de material e outros grupos, ficação desses direitos, pelo menos a
não são consideradas violações de di- mais geral, com o objetivo de empode-
reitos humanos. Essa é, talvez, a causa rar a sua defesa, evitando-se acentuar
principal de os direitos humanos ainda o desvio ideológico que os coloca em
não terem alcançado plena efetividade, nível inferior aos patrimoniais ou que
ou, ao menos, efetividade igual à dos simplesmente, os ignora.
direitos patrimoniais, como o direito São reconhecidas três espécies
de propriedade, por exemplo. Embora tradicionais de direitos humanos,
nossa realidade ateste uma profunda e além de uma quarta espécie, o direi-
inaceitável injustiça social, a maior par- to de solidariedade humana, que está
te das pessoas vítimas dessa situação em fase de debate há bastante tempo,
não sabem que têm direito (!) de satisfa- embora sobre ele não exista consenso.
zer as suas necessidades vitais, sem as Os três primeiros são: os direitos civis
quais suas vidas e liberdades passam a e políticos; os direitos sociais, tam-
estar sob permanente risco. bém chamados de coletivos; e os di-
A fome, a doença, a ignorância, a reitos culturais e ambientais. Depen-
insegurança, entre outros males que dendo do período histórico em que
afetam multidões de brasileiros e bra- foram reconhecidos, são identifica-
sileiras, continuam sendo consideradas dos também por “gerações”, em cada
fatalidades ou, pior, são atribuídas à res- uma das quais se reconhecem os direi-
ponsabilidade das próprias pessoas que tos “econômicos”.
226
Direitos Humanos
227
Dicionário da Educação do Campo
Caberia examinar ainda neste ver- lidade, está mais presente a qualidade
bete os crimes praticados contra a in- de vida, a ética, o respeito aos valores,
tegridade física e moral das pessoas a justiça distributiva, ao passo que na
(como os hediondos, de abuso de racionalidade importa mais a quan-
poder, de cárcere privado, de assédio tidade, a técnica, a justiça retributiva.
sexual, de racismo, de tortura, de ho- Assim, para dar solução a um conflito
mofobia, de exploração do trabalho envolvendo multidão pobre, quando se
escravo, de negação do direito de defe- invoca a necessidade de se obedecer ao
sa para pessoas processadas ou presas, devido processo legal, muito raramen-
e tantos outros), mas os limites deste te se questiona se essa legalidade não
texto não permitem que isso seja feito. está inviabilizando o devido processo
É suficiente a lembrança de que, para social, inerente aos direitos humanos.
os direitos humanos, é a dignidade da A nossa Constituição Federal pre-
pessoa que está ameaçada ou é agredi- viu, no seu artigo primeiro, a dignidade
da de modo particular em tais casos,
humana e a cidadania como dois dos
não se permitindo em nenhum deles a
fundamentos da República, e colocou
condescendência com a impunidade.
os direitos civis e políticos juntamen-
Já é hora, então, de relembrar, te com os “coletivos” num mesmo
mesmo resumidamente, as responsa- capítulo, justamente o dos “direitos e
bilidades próprias de cada pessoa, da garantias fundamentais”, dando-lhes
sociedade e do Poder Público, no con- abrigo em “cláusulas pétreas” no seu
cernente às garantias devidas aos direi- artigo 60.
tos humanos.
A Constituição visou garantir pelo
menos duas coisas: que nenhum con-
Desafios relacionados a flito entre brasileiras/os possa ser de-
responsabilidades inerentes cidido sem consulta e respeito ao dis-
posto sobre tais condições de vida e de
aos direitos humanos liberdade, e que, estando em lide com
Os direitos humanos ainda estão outros direitos, exige a superior hierar-
longe de alcançar a efetividade na ga- quia dos direitos humanos que não se-
rantia de uma convivência solidária en- jam eles os sacrificados.
tre as pessoas e na eliminação de injus- Trata-se da difícil garantia de tornar
tiças sociais, como preveem as leis que compatíveis os direitos de liberdade e
os instituem. de segurança com os de igualdade e de
Por isso, a interpretação e a aplica- emancipação. Há muito debate teórico
ção dessas leis carece de um “envolvi- e prático sobre a igualdade, entre quem e
mento maior”, capaz de comprometer sobre o que ela deve ser referida. Em
a administração pública e o Judiciário matéria de direitos, por paradoxal que
com uma postura suficiente para ga- pareça, pretender a igualdade significa
rantir esses direitos de forma concreta. respeitar diferenças.
A “racionalidade” que preside a apli- Em realidade, os direitos humanos
cação das leis no que diz respeito a que garantem a igualdade visam, princi-
outros direitos precisa ser substituída palmente, eliminar desigualdades que não se
pela “razoabilidade” quando estão em justificam, nem econômica, nem política, nem
causa os direitos humanos. Na razoabi- socialmente, como as de um tratamento
228
Direitos Humanos
público que discrimine as pessoas pelo tuinte” dos direitos sociais, culturais e
seu poder econômico. Vale lembrar, por
isso, que as leis sobre responsabilidade
ambientais, que estão em permanente
processo de construção e reconheci-
D
jurídica preveem quatro elementos, de mento. Se até os já “constituídos” de-
regra, para a responsabilidade poder ser mocraticamente (reconhecidos em lei),
reconhecida como imputável a alguém: permanecem, pelo menos em parte, sem
a capacidade (coisa que é suficiente para efetividade, os que ainda são devidos
eximir de responsabilidade uma crian- têm a sua vigência prorrogada sempre
ça ou um débil mental), o fator causal para um remoto e pouco provável futu-
(nexo provado entre a ocorrência de um ro. Os direitos humanos que dependem
fato e o sujeito que o provocou), o papel das reformas agrária, urbana, tributária
social (situação do indigitado responsá- e política dão exemplo desse fato.
vel dentro do convívio, do poder que ele É por essa razão que os direitos so-
exerce sobre os demais) e a sancionabi- ciais, culturais e ambientais dependem
lidade (previsão legal dos efeitos que a muito mais da democracia econômica e
imputabilidade acarreta). participativa do que, somente, de uma
Ora, por tudo isso é que os direitos democracia representativa. Esta não
humanos, particularmente os sociais, tem conseguido caracterizar, de forma
sofrem muito da ameaça e da violação, plena, um Estado como efetivamente
que são consequências do movimen- democrático, social e de direito, como
to do chamado livre mercado, porque comprova a simples preferência verifica-
esse é dotado de um poder tal que aca- da no destino dado às verbas orçamen-
ba por garantir irresponsabilidades. tárias pelas administrações públicas.
Não por acaso, a injustiça social, tão Que o Estado não deve descurar da
presente em nosso país, conserva suas proteção aos direitos civis e políticos,
causas e seus perversos efeitos, justa- bem como aos patrimoniais, isso nin-
mente pela fraqueza com que a inter- guém discute. Aos sociais, ambientais
pretação e a aplicação das leis relacio- e culturais, então, como aqui já se de-
nadas aos direitos humanos alcançam monstrou, o apoio do Estado, inclusive
efetividade. Assim, importa analisar financeiro, é indispensável.
os encargos próprios dessas respon- É fato notório, por outra parte,
sabilidades, objetivando, também re- que o direito de propriedade ocupa (se
sumidamente, esclarecer como podem não na lei) na realidade econômico-
ser identificados. social do Brasil uma posição prefe-
rencial, com poder suficiente para
Desafios públicos e privados pôr em risco garantias e liberdades
e direitos humanos próprias de outros direitos. Em razão
da chamada “liberdade de iniciativa”,
Pelo exposto até aqui, é impossível prevista no artigo 170 da Constituição
negar que os direitos humanos sofrem Federal, qualquer intervenção públi-
de uma histórica anemia e vivem sob ca ou privada que afete o direito de
crise permanente. Se ela é menos visí- propriedade pode ser julgada como
vel nos direitos civis e políticos, pela infração da lei que o sustenta, passível
sua própria condição de autonomia, de responsabilização civil ou penal de
pode ser identificada como “consti- quem a pratique.
229
Dicionário da Educação do Campo
230
Diversidade
cito. Daí pode-se concluir que um dos lidade, até, do direito à resistência e à
principais encargos da administração
pública, do Poder Judiciário, do povo
desobediência civil.
O chamado “respeito à lei”, por-
D
e da própria vítima de violação dos di- tanto, tão lembrado em sentido opos-
reitos humanos é o de rebelar-se contra to ao exercício dos direitos humanos,
uma contradição de efeitos tão preju- especialmente os de gente pobre, tam-
diciais ao bem-estar social. Em casos bém tem o seu encargo: o de não ser
extremos, fica sempre aberta a possibi- invocado sem a “lei do respeito”.
Diversidade
Miguel G. Arroyo
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Diversidade
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Diversidade
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Diversidade
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Dicionário da Educação do Campo
das diversas lutas por terra, território, empobrecimento do humano. Nas suas
vida, produção e trabalho? Como nessa lutas pelo reconhecimento da diversi-
diversidade de resistências se formam, dade eles enriquecem a compreensão
educam, humanizam-se, afirmam-se do humano, enriquecendo as teorias e
como sujeitos de história política, inte- os projetos de formação humana.
lectual, cultural e ética? A incorporação dessa comple-
Conhecer essa história de inferio- xidade de processos formadores na
rização-emancipação será uma contri- conformação histórica e política da
buição à história do pensamento peda- diversidade de coletivos e de povos
gógico. Segregar os coletivos diversos do campo confere uma radicalidade
porque diferentes como inferiores até política à conformação da Educação
em humanidade tem representado um do Campo.
238
E
Educação Básica do Campo E
Lia Maria Teixeira de Oliveira
Marília Campos
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Educação Básica do Campo
241
Dicionário da Educação do Campo
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Educação Básica do Campo
do. Há que se avançar ainda no âmbito bre as contradições por ele apontadas
da institucionalização das políticas e entre os discursos legais e a prática.
diretrizes para a educação do campo Logo em seguida, fazendo referên-
nos planos municipais e estaduais de
Educação, bem como na proposi-
cia aos dados de pesquisa e do Censo
Escolar de 2010, citados por Hage, as E
ção de concursos específicos para os autoras descortinam o palco da medio-
profissionais da Educação do Cam- cridade, quando ressaltam
po, garantindo o perfil necessário ao
trabalho escolar. [...] o fato de as escolas do cam-
A implementação da pedagogia da po somente serem de 1ª a 4ª
alternância é outro tema polêmico, es- séries, não só porque estão dis-
tando instituída e respaldada em alguns tante, não há dinheiro, porque os
planos estaduais de educação. Entre- políticos não têm vontade... Mas
tanto, de todos os aspectos caracterís- porque, na realidade, o único
ticos da educação do campo, o mais tempo mais ou menos reconhe-
contraditório é o do fechamento das es- cido como tempo de direitos é de
colas. Por parte dos sistemas estaduais 7 a 10 anos. A infância tem uma
e municipais de ensino, permanece a vida muito curta no campo, por
política de fechamento das escolas do isso, a educação da infância tem
campo, por meio da nucleação e da uma vida muito curta no campo.
oferta de transporte dos educandos A adolescência não é reconhe-
para escolas urbanas. Essa política já cida, porque se insere precoce-
foi reiteradamente criticada e condena- mente no trabalho, e a juventude
da pelo MEC, pelo Conselho Nacional se identifica com a vida adulta
dos Secretários de Educação (Consed), precocemente. O não reconheci-
pela União Nacional dos Dirigentes mento da adolescência e juven-
Municipais de Educação (Undime) e tude no/do campo é resultado
pelo CNE, visto que contribui para a de um processo histórico de não
evasão, a repetência e a distorção série– reconhecimento destes povos
idade, na medida em que as viagens re- como sujeitos de direitos. Nes-
alizadas pelos estudantes de casa até a te sentido, o deslocamento no
escola são cansativas, constituindo-se sentido campo-cidade pela nu-
em fator de desistência. O MST reali- cleação de escolas que apresen-
zou uma campanha nacional em 2011 ta como um de seus princípios
contra o fechamento das escolas do a “igualdade de oportunidades”
campo, denunciando que mais de 24 nega a estes jovens do campo
mil escolas foram fechadas no meio [...] o direito de pensar o mun-
rural desde 2002 (Albuquerque, 2011). do a partir de onde vivem e de
Vários estudiosos vêm denunciando a sua realidade, além de subtrair-
nucleação de escolas como responsável
lhes um tempo que poderia ser o
pela dificuldade de acesso, de inclusão
tempo de ser jovem. (Cavalcante
e de permanência dos jovens e crianças
e Silva, 2010, p. 3-4)
do campo nas escolas.
As autoras Cavalcante e Silva (2010) Outro tema que merece também
reforçam a análise de Hage (2010) so- ser tratado é o da formação inicial e
243
Dicionário da Educação do Campo
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Educação Básica do Campo
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Dicionário da Educação do Campo
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246
Educação Corporativa
Educação Corporativa
Aparecida Tiradentes E
A educação corporativa é um mo- rativa por meio de programas dispersos,
delo de formação no qual a empresa mesmo sem ostentar uma universidade
ocupa o lugar da escola, desenvolven- corporativa ou um setor específico para
do programas de educação formal, in- este fim. Igualmente, uma universidade
formal e não formal de trabalhadores, corporativa pode desenvolver programas
de fornecedores e da comunidade, para em todos os níveis de ensino, não neces-
aumento de produtividade, valorização sariamente na educação superior, poden-
do capital de marca e como estratégia do, ainda, desenvolver cursos livres ou
hegemônica de difusão da concepção atividades formativas informais.
de mundo da classe dominante.
Quando atua no âmbito da educação
Ela surgiu na década de 1950, nos formal, a universidade corporativa, não
Estados Unidos, com o objetivo de tendo credenciamento para certificar e
treinar os trabalhadores de algumas in- emitir diplomas, institui parcerias com
dústrias, mas adquiriu maior expressão escolas e universidades acadêmicas.
no contexto neoliberal. Por um lado, a Nestes casos, a instituição credenciada
ideologia de desqualificação do Estado fornece sua chancela a um projeto que
social enseja que o capital se declare nasce exatamente da desqualificação da
“mais competente” para formar os tra- formação acadêmica oficial. Uma das
balhadores. Por outro lado, as mudan- demandas do movimento de educação
ças nas bases técnicas e de gestão do corporativa, representado pela Associa-
trabalho implicam a exigência de adesão ção Brasileira de Educação Corporativa
subjetiva do trabalhador aos valores da (Abec), é o poder de certificação pelo
empresa. A educação corporativa passa mercado. Até o momento, no Brasil,
a ter, então, a função de promover essa essa demanda não foi aceita. Caso seja
adesão. Sob a justificativa de oferecer a aprovada, constituirá um fator de agra-
formação intelectual e técnica suposta- vamento da subordinação do trabalho
mente exigida pelo mercado, de modo, ao capital, visto que, ao ser certificado,
segundo o capital, “mais eficiente do por exemplo, em um curso de gradua-
que o Estado”, a educação corporativa ção em Nutrição de determinada in-
avança sobre a dimensão ético-política, dústria de alimentos, esse trabalhador
impondo os modos de ser, pensar, agir tem sua capacidade de venda da força
e sentir convenientes ao capital. de trabalho limitada àquela empresa e
Denomina-se educação corporati- à sua tecnologia. Assim, caso a Uni-
va o projeto em seu sentido amplo, e versidade do Hambúrguer, como é
“universidade corporativa” ou “unidade denominada a universidade corporati-
de educação corporativa”, as instâncias va da rede McDonalds, obtivesse no
formais especialmente criadas pelas em- Brasil a autorização para certificar em
presas para este fim. Uma empresa pode seu próprio nome, isso implicaria o
desenvolver ações de educação corpo- cerceamento da liberdade formal de
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Educação Corporativa
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Educação de Jovens e Adultos (EJA)
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Educação de Jovens e Adultos (EJA)
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Nota
1
O termo modalidade é diminutivo do latim modus (modo, maneira), e expressa uma medida
dentro de uma forma própria de ser. Ela é, assim, um perfil próprio, uma feição especial
diante de um processo considerado padrão. Essa feição especial se liga ao princípio da pro-
porcionalidade para que este modo seja respeitado (Brasil, 2000).
258
Educação do Campo
Pinto, A. V. Sete lições sobre educação de adultos. 6. ed. São Paulo: Cortez; Campinas:
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Educação do campo
Roseli Salete Caldart
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Educação do Campo
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Educação do Campo
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Notas
1
Note-se que este texto integra um dicionário que leva o mesmo nome, ou tem o mesmo
objeto deste verbete, e cuja forma de organização procura nos mostrar a quantidade e a
complexidade dos nexos que permitem compreender a Educação do Campo como um
fenômeno concreto (síntese de muitas determinações).
2
As entidades que apoiaram o I Enera foram também depois, junto com o MST, as pro-
motoras da I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo: Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef),
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e Univer-
sidade de Brasília (UnB), por meio do Grupo de Trabalho em Apoio à Reforma Agrária.
3
O Pronera começou a ser gestado no I Enera, mediante o desafio colocado pelo MST
aos docentes de universidades públicas convidados ao encontro para pensar um desenho
de articulação nacional que pudesse ajudar a acelerar o acesso dos trabalhadores das áreas de
Reforma Agrária à educação escolar. A ideia foi levada pela Universidade de Brasília ao III
Fórum das Instituições de Ensino Superior em Apoio à Reforma Agrária, em novembro
de 1997, e o desenho do programa foi formatado entre janeiro e fevereiro de 1998 (ver
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária).
4
No campo: “o povo tem direito a ser educado no lugar onde vive” (Kolling, Cerioli
e Caldart, 2002, p. 26), e do campo: “o povo tem direito a uma educação pensada desde
o seu lugar e com sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e
sociais” (ibid.), assumida na perspectiva de continuação da “luta histórica pela constituição
da educação como um direito universal” (ibid.), que não deve ser tratada nem como serviço
nem como política compensatória e muito menos como mercadoria.
5
Segundo o censo agropecuário de 2006 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
2009), no Brasil, 30% dos trabalhadores rurais são analfabetos e 80% não chegaram a con-
cluir o ensino fundamental.
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Educação Omnilateral
Educação omnilateral
Gaudêncio Frigotto
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Educação Omnilateral
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Educação Omnilateral
Notas
1
Com efeito, na literatura que analisa as concepções de educação e instrução na obra de
Marx e outros autores marxistas, de forma recorrente, especialmente o trabalho como prin-
cípio educativo e a educação politécnica ou tecnológica são tratados como dimensões da
educação omnilateral. Ver, a esse respeito, Frigotto, 1984 e Souza Júnior, 2010.
2
Cabe não confundir propriedade como valor de uso com a propriedade privada dos meios
e instrumentos de produção com o fim de gerar lucro e acumular capital mediante a explo-
ração do trabalho alheio. Como sublinha Marx, “originariamente propriedade significa nada
mais que a atitude do homem ao encarar suas condições naturais de produção como lhe
pertencendo, como pré-requisitos da sua própria existência” (1977, p. 85; grifos do autor).
3
Ver, a esse respeito, Mészáros, 2002 e Altvater, 2010.
4
Uma análise profunda, a partir dos Manuscritos econômico-filosóficos, sobre o caráter fun-
dante do trabalho na constituição do homem como ser social é efetivada por Lukács,
2010.
5
Essa síntese de István Mészáros (1981, p. 16) é desenvolvida de forma detalhada e didá-
tica ao longo de toda essa obra, que trata da teoria da alienação em Marx, destacando seus
aspectos econômicos, políticos, ontológicos e morais e educacionais.
6
Sobre a necessidade de ir além da emancipação religiosa e política e buscar construir a
emancipação humana, ver Marx, 2007 e Marx e Engels, 2003.
7
Ver Barata-Moura, 1998, p. 69-145.
8
Para aprofundar esta questão, ver Saviani, 2008, p. 65-73.
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Dicionário da Educação do Campo
Educação politécnica
Gaudêncio Frigotto
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Educação Politécnica
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Educação Politécnica
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Educação Politécnica
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capital, mas isto não elide a dimensão achem natural a exploração do traba-
fundamental do trabalho como princí- lho alheio. Na expressão de Antonio
pio educativo no processo de sociali- Gramsci, para não criar mamíferos de luxo.
zação e constituição da personalidade A Educação do Campo, nos acam-
da criança e do jovem. Por isso, per- pamentos, na escola itinerante, nas es-
manece válido e necessário ainda hoje colas dos assentamentos, ao desenvol-
que, no processo educativo, “se dê a ver a educação intelectual e corpórea e
conhecer os princípios gerais de todos os princípios gerais dos processos de
os processos de produção e se inicie, produção, e a organização de peque-
ao mesmo tempo, a criança e o jovem nos trabalhos com sentido educativo,
no manejo dos instrumentos elemen- explicitam, de forma concreta, a con-
tais de todas as indústrias” (Marx, cepção de educação politécnica. Do
1983c, p. 60). mesmo modo, partindo dos sujeitos do
Em termos práticos, isso significa campo – crianças, jovens e adultos –
que é crucial que toda a criança e jo- na sua singularidade e particularida-
vem dediquem, em seu processo for- de dadas pela realidade, o horizonte
mativo, algum tempo a qualquer forma é o do acesso ao conhecimento em
de trabalho social produtivo, na família sua universalidade histórica possível,
e na instituição escola. E isto nada tem é o da construção de processos edu-
a ver com exploração do trabalho in- cativos, de conhecimento e processos
fantil. Pelo contrário, trata-se de socia- produtivos que apontam para uma
lizar, desde a infância, o princípio de sociedade sem classes, fundamento
que a tarefa de prover a subsistência da superação da dominação e aliena-
é comum a todos os seres humanos. ção econômica, cultural, educacional,
Trata-se de não criar indivíduos que política e intelectual.
Notas
1
Uma leitura interessante e didática para aqueles que buscam entender, na perspectiva
de Marx, a especificidade das relações sociais de produção na sociedade capitalista, é o livro de
José Paulo Netto e Marcelo Braz, 2008.
2
Tal domínio não se refere simplesmente a apreender os fundamentos da ciência burguesa
marcada por seus limites de classe e dentro de uma concepção fragmentária, atomizada,
funcionalista e pragmática da realidade. Trata-se de se apropriar, pelo método materialista
histórico, das determinações e mediações que permitem compreender como se produz a
realidade em todos os seus domínios. Nos termos de Marx, como assinala Barata-Moura
(1997), trata-se da busca da cientificidade do saber.
3
Vários estudos, com diferentes recortes, foram desenvolvidos no Brasil sobre educação
politécnica. Destacamos, além das análises já referidas de Saviani e Nosella, três outros: o
de Lucília Regina Machado (1989), que aborda a concepção de politecnia dentro da herança
do marxismo e da experiência socialista; o de José Rodrigues (1998), que contextualiza a
gênese e o panorama geral das diferentes ênfases na abordagem da educação politécnica no
Brasil; e o de Justino de Souza Júnior (2010), que traz esse debate dentro de uma retomada
ampla da obra de Marx e da crítica da educação.
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Educação Politécnica
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Educação popular
Conceição Paludo
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Educação Popular
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Educação Popular
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la pública e popular sempre será algo repensar a nova sociedade, a nova edu-
pelo qual vale lutar, dada a importância cação e a nova escola.
da educação dos trabalhadores, e para A educação popular, em sua origem,
os processos transformadores (Vale, indica a necessidade de reconhecer o
2001). Como resistência e, portanto, movimento do povo em busca de direi-
como contra-hegemonia, ela demanda tos como formador, e também de voltar
que, além da atuação no interior das a reconhecer que a vivência organizativa
escolas, a inserção dos educadores seja e de luta é formadora. Para a educação
também ativa nas lutas dos trabalhado- popular, o trabalho educativo, tanto na
res, ou seja, há uma opção política de escola quanto nos espaços não formais,
“fazer com”. A resistência exige “um visa formar sujeitos que interfiram para
pé na escola e um pé na sociedade”, transformar a realidade. Ela se consti-
nos espaços de organização dos tra- tuiu, ao mesmo tempo, como uma ação
balhadores. É a resistência à lógica do cultural, um movimento de educação
capital que amplia as possibilidades de popular e uma teoria da educação.
Notas
1
Os libertários, no início do século XX, não lutavam pelo ensino público e gratuito. Inspira-
dos em Ferrer, desenvolveram a chamada educação racionalista e fundaram a Universidade
Popular e dezenas de escolas modernas, que eram autossustentadas (ver Ghiraldelli, 1987).
2
Por exemplo, o Movimento de Cultura Popular (MCP), criado em 1960, no Recife, por
Paulo Freire; o Movimento de Educação de Base (MEB), criado em março de 1961 pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); o Centro de Popular de Cultura (CPC),
criado em 1961 pela União Nacional dos Estudantes (UNE); e o Plano Nacional de Alfabe-
tização (PNA), criado em 1963 por Paulo Freire, no Governo João Goulart.
3
Nesse período, surgem ou ressurgem, entre outros, as comunidades eclesiais de base
(CEBs), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e
diversas outras pastorais populares e movimentos de bairros, além da Articulação dos Mo-
vimentos Populares ou Sindicais (Anampos). Houve também a rearticulação do movimento
sindical – Com a criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), da Central Geral dos
Trabalhadores (CGT) e da União Sindical Independente (USI); a organização do Movi-
mento Negro Unificado (MNU), do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua
(MNMMR), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento
das Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR) – hoje Movimento de Mulheres Camponesas
(MMC Brasil) –, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), do Movimento de
Luta pela Moradia (MLM) e do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH).
4
Vale pontuar que a conscientização, hoje, não pode mais ser compreendida somente como
conscientização política, que se traduz na capacidade de leitura da estrutura e dinâmica da so-
ciedade capitalista, na tomada de posição e inserção efetiva nos processos de luta. É preciso que
se trabalhe (e se pratique), nos processos educativos e nos espaços organizativos, com a ideia de
formação de uma consciência ampliada e da formação omnilateral, formação humana.
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Educação Popular
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Educação Profissional
Isabel Brasil Pereira
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Educação Profissional
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Educação Profissional
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Educação Profissional
Notas
1
O chamado Sistema S é composto pela seguintes entidades: Serviço Social da Indústria
(Sesi), Serviço Nacional da Indústria (Senai), Serviço Social do Comércio (Sesc), Serviço
Nacional de Aprendizagem do Comércio (Senac), Serviço Nacional de Aprendizagem Rural
(Senar), Serviço Social do Transporte (Sest), Serviço Nacional de Aprendizagem em Trans-
porte (Senat) e Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop).
2
Criado em 2007 e constituindo uma das metas do Plano de Desenvolvimento da Educação
(PDE), o programa Brasil Profissionalizado visa fortalecer as redes estaduais de educação
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Educação Rural
Educação Rural
Marlene Ribeiro
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família, de onde se retira a expressão lhar nas áreas rurais. Ele registra que “os
agricultura familiar. Mas na escola ape- programas de alfabetização – as esporá-
nas se estuda, e este estudo nada tem dicas campanhas nacionais de que temos
a ver com o trabalho que o camponês conhecimento – pouca relação têm com
desenvolve com a terra. Assim, o tra- a escola rural” (ibid., p. 99). Outra carac-
balho produtivo articulado à unidade terística identificada na educação rural
familiar que se envolve com este traba- pelo mesmo autor é a sua desvinculação
lho assume papel essencial no proces- da comunidade dos trabalhadores rurais
so educativo de ingresso e participação que enviam seus filhos à escola.
ativa do camponês no corpo social. Compreendida no interior das rela-
Portanto, não é da escola a tarefa pri- ções sociais de produção capitalista, a
mordial de formar as crianças campo- escola, tanto urbana quanto rural, tem
nesas, tanto porque estas quase sempre suas finalidades, programas, conteúdos
ingressam mais tarde no processo de e métodos definidos pelo setor indus-
escolarização – e permanecem pouco trial, pelas demandas de formação para
tempo nele envolvidas – quanto pelas o trabalho neste setor, bem como pe-
deficiências peculiares à instituição las linguagens e costumes a ele ligados.
escolar. A permanência das crianças Sendo assim, a escola não incorpora
na escola depende do que esta pode questões relacionadas ao trabalho pro-
oferecer em relação às atividades práti- dutivo, seja porque, no caso, o trabalho
cas relativas ao trabalho material como agrícola é excluído de suas preocupa-
base da aprendizagem, ou seja, da pro- ções, seja porque sua natureza não é a
dução de conhecimentos. de formar para um trabalho concreto,
Todavia, um dos maiores proble- uma vez que a existência do desempre-
mas da modalidade de formação que go não garante este ou aquele trabalho
relaciona o estudo, feito na escola, ao para quem estuda. E, ainda, como a es-
trabalho produtivo, feito na terra, é o cola poderia valorizar a agricultura, tão
que Petty, Tombim e Vera (1981) iden- desvalorizada nas concepções que sus-
tificam como a capacitação dos docen- tentam ser o camponês um produtor
tes para que eles possam corresponder arcaico e um ignorante em relação aos
às necessidades da educação no meio conhecimentos básicos de matemática,
rural, em particular a que relaciona leitura e escrita?
trabalho e escola. Entre as alternativas Nos países latino-americanos, a edu-
para a formação de professores, en- cação rural voltada para o desenvolvi-
contradas na época em que esses au- mento econômico esteve, em determi-
tores escreveram seu artigo, estavam as nado período histórico (que se iniciou
escolas normais rurais. nos anos 1930, se intensificou nos
Chamando a atenção para esta pro- anos 1950-1960, e se estendeu até
blemática, João Bosco Pinto (1981) os anos 1970), associada à Reforma
refere-se aos professores justificando Agrária. Para o modo de produção ca-
que eles não recebem uma formação pitalista vigente nestes países, a exis-
adequada para lidar com a realidade do tência do latifúndio nem estimulava a
campesinato, por isso seu desinteresse penetração do capital no campo, sob
em estabelecer relações com as comu- forma de investimentos em maquina-
nidades, quando encaminhados a traba- rias e uso de tecnologias de produção,
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Educação Rural
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Educação Rural
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Nota
1
A Carta de Punta del Este foi firmada na Conferência do Uruguai, realizada em 1961, de-
vido à pressão dos Estados Unidos, então sob a presidência de John F. Kennedy, para que
os governos dos países latino-americanos adotassem a estratégia de promover a Reforma
Agrária, a fim de estimular o desenvolvimento capitalista e a modernização do campo e,
ainda, como meio de frear as guerrilhas rurais; procurando anular a potencialidade revo-
lucionária do camponês, essa estratégia orientava-o para uma posição conservadora (ver
Pinto, 1981).
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Educação Versus Cidadania
Partimos da realidade de uma cida- que ela expressa como fenômeno em-
dania abstrata, assentada na liberdade pírico. Num segundo momento, vamos
do indivíduo, na propriedade privada contrapor essa emancipação, tal como
e na competição, justificadoras das vem sendo esboçada, à concepção dos
desigualdades sociais, para projetar a movimentos sociais populares, entre
emancipação, como busca de uma hu- os quais destacamos os que lutam pela
manização que se assenta na solidarie- terra de trabalho, por uma vida digna e
dade, na justiça e na dignidade para to- pela educação do campo.
dos. Para isso, começamos por definir a Cidadania, colocada pelos gregos
cidadania tanto no seu conteúdo histó- que participam da política na pólis
rico quanto no que é possível captar do ateniense, pressupõe a liberdade de
301
Dicionário da Educação do Campo
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Educação Versus Cidadania
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Dicionário da Educação do Campo
nossas próprias forças para viver e para propriedade privada e à servidão, toma
lutar. Para esse autor, uma ética da dig- a forma política da emancipação dos
nidade está no centro da prática eman- trabalhadores” (Marx, 1993, p. 170).
cipatória consciente. Essa emancipação, porém, não atin-
Para o educador brasileiro Paulo ge apenas os trabalhadores: “inclui a
Freire (1978 e 2003), a libertação não emancipação da humanidade enquanto
se dá como uma tomada de consciên- totalidade, uma vez que toda a servidão
cia isolada da injustiça que marca as humana se encontra envolvida na rela-
relações sociais na sociedade capitalis- ção do trabalhador à produção e todos
ta, mas, essencialmente, numa práxis os tipos de servidão se manifestam
datada e situada, que tem por sujeitos como modificações ou consequências
os povos oprimidos. Dussel, Rebellato da sobredita relação” (ibid.).
e Freire pensam a emancipação como Da análise efetuada até aqui, emerge
projeto e ação coletivos das vítimas, a pergunta: como conquistar a emanci-
dos excluídos, dos desumanizados. Já pação das condições de exploração e
Marx e Engels têm a classe revolucio- opressão que atingem a maior parte da
nária como autora de tal projeto e ação: humanidade? Antes de mais nada, é for-
para além da liberdade e da autonomia çoso constatar que a existência de uma
individuais implícitas na cidadania, a classe oprimida só pode ser explicada
classe revolucionária, no seu processo por sua relação contraditória com outra
de construção, coloca como horizonte classe, a classe opressora, e, portanto,
a emancipação de toda a humanidade, numa sociedade alicerçada no antago-
uma emancipação social, portanto. nismo de classes. Nesse sentido, para
Em algumas obras, Marx e Engels que a libertação da classe oprimida –
também identificam a libertação à pressuposto da emancipação humana –
emancipação, não como um problema tenha lugar, é condição essencial que
que pode ser resolvido no plano da se constitua uma nova sociedade, mas
abstração, mas sim como uma necessi- isso exige que as forças produtivas e as
dade concreta e que, como tal, deve ser relações sociais de produção tenham
solucionada: “A ‘libertação’ é um ato chegado a tal nível de confronto que
histórico, não é um ato de pensamen- não possam continuar existindo da
to, e é efetuada por relações históricas, forma como se mantêm: “A condição
pelo nível da indústria, do comércio, de libertação da classe trabalhadora é a
da agricultura, do intercâmbio” (Marx abolição de toda a classe, assim como
e Engels, 1984, p. 25). a condição de libertação do ‘terceiro
A emancipação da sociedade de- estado’, da ordem burguesa, foi a abo-
duz-se da possibilidade de se romper lição de todos os ‘estados’ e de todas as
a relação contraditória entre o trabalho ordens” (Marx, 1989, p. 218).
alienado e a propriedade privada dos Compreendida como separação en-
meios de produção e de subsistência – tre o produtor e o produto do seu tra-
nos quais está incluída a terra, como balho, apropriado pelo capital, e como
bem não produzido pelo trabalho: “Da inversão desse processo na consciência
relação do trabalho alienado à pro- do trabalhador, a alienação humana
priedade privada deduz-se, ainda, que tem por base a propriedade privada dos
a emancipação da sociedade, quanto à meios de produção e subsistência. Para
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Educação Versus Cidadania
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Ensino Médio Integrado
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Ensino Médio Integrado
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Ensino Médio Integrado
Notas
1
O termo educação integral compartilha da ideia de uma educação mais completa, mas a reduz
à duração ampliada da jornada escolar e ao sentido de ensino com outros recursos pedagó-
gicos, além dos tradicionais, em implantação, até agora, no ensino fundamental, pré-escolar
e creches. “O Programa Mais Educação, criado pela portaria interministerial nº 17/2007,
E
aumenta a oferta educativa nas escolas públicas por meio de atividades optativas que foram
agrupadas em macrocampos como acompanhamento pedagógico, meio ambiente, esporte
e lazer, direitos humanos, cultura e artes, cultura digital, prevenção e promoção da saúde,
educomunicação, educação científica e educação econômica” (Brasil, s.d.).
2
Instituído pelo decreto no 5.840, de 13 de julho de 2006.
3
Ver, por exemplo, os trabalhos reunidos em Frigotto, Ciavatta e Ramos, no prelo.
313
Dicionário da Educação do Campo
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Escola Ativa
ESCOLA ATIVA
Adriana D’Agostini
Celi Zulke Taffarel
Claudio de Lira Santos Júnior
315
Dicionário da Educação do Campo
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Escola Ativa
mesmo com a criação da Secretaria de uma ação prioritária para a educação bá-
Educação Continuada, Alfabetização, sica no campo, e as universidades fede-
Diversidade e Inclusão (Secadi), per- rais foram alçadas a participar das inicia-
maneceu na estrutura do Fundo Nacio- tivas nos estados brasileiros, juntamente
nal de Desenvolvimento da Educação com as secretarias de Educação, o que E
(FNDE) – agência que faz a gestão dos possibilitou um aprofundamento das crí-
recursos do Ministério da Educação ticas à proposição teórico-metodológica
(MEC) advindos do Banco Mundial. O do programa.3
programa somente passou para a Secadi Em 2009, a expansão do programa
no decorrer de 2007. Foram encerradas assume dimensão nacional, abrangen-
as transações com o Banco Mundial, e do aproximadamente 3.100 municípios,
o MEC assumiu o programa com re- com financiamento que toma a maior
cursos próprios, expandindo-o a todas parte do orçamento da Secadi. Porém,
as regiões do país e transferindo, então, ao analisar a dimensão do programa em
sua gestão à estrutura da Secadi. Para relação aos números reais das escolas
tanto, chegou a solicitar uma avaliação do campo, ainda é pouco abrangente,
com vistas a redirecionamentos, mas pois no universo da realidade da educa-
esta avaliação, feita pela Universidade ção do campo no Brasil o número total
Federal do Pará (UFPA), nunca chegou de escolas multisseriadas é de aproxi-
a ser considerada. madamente 51 mil, a maioria delas no
O processo de reformulação do Nordeste (Brasil, 2009a).
programa se dá em confronto e con-
flito com as concepções apresentadas Problema da implementação
nas “Diretrizes operacionais para a do programa Escola Ativa
educação básica nas escolas do cam-
po” (resolução CNE/CEB nº 1, de 3 “Melhorar a qualidade do desempe-
de abril de 2002) (Brasil, 2002) e nas nho escolar em classes multisseriadas
“Diretrizes complementares, normas das escolas do campo” (Brasil, 2008,
e princípios para o desenvolvimento p. 33) é o objetivo do programa Esco-
de políticas públicas de atendimento la Ativa. No entanto, este objetivo não
à educação básica do campo” (reso- vem sendo alcançado. Nas avaliações da
lução CNE/CEB nº 2, de 28 de abril própria Secadi, os problemas advêm
de 2008) (Brasil, 2008). Nas reformu- da base das escolas multisseriadas, que
lações propostas para o programa, são possuem estruturas precárias e profes-
levadas em consideração formulações sores leigos, sem formação continuada,
de alguns autores a respeito de dire- desestimulados e resistentes ao novo.
trizes para a Educação do Campo.2 O Além disso, a Secadi alega que as secre-
programa avança em suas formulações, tarias estaduais e municipais são muito
mas não assume o referencial teórico e limitadas frente às necessidades dessas
metodológico da Educação do Campo. escolas e de implementação do progra-
Desde 2008, o programa expandiu-se ma. Em relação à sua própria atuação,
para todo o Brasil, recebeu financiamento a Secadi assume a responsabilidade
direto do MEC e deixou de estar atrelado quanto ao atraso do material didático e
ao Banco Mundial. Além disso, os livros kits pedagógicos para que a metodolo-
foram revisados, mudados e reeditados. O gia do programa possa ser efetivada de
programa foi assumido pela Secadi como acordo com o seu planejamento.
317
Dicionário da Educação do Campo
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Escola Ativa
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Dicionário da Educação do Campo
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Escola Ativa
321
Dicionário da Educação do Campo
322
Escola Ativa
Notas
1
Segundo Menezes e Santos, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova é “um docu-
mento escrito por 26 educadores, em 1932, com o título A reconstrução educacional no Brasil:
ao povo e ao governo. Circulou em âmbito nacional com a finalidade de oferecer diretrizes para
uma política de educação” (2002). Ver também http://www.educabrasil.com.br/eb/dic/
E
dicionario.asp?id=279.
2
Entre elas, os trabalhos de Kolling, Cerioli e Caldart, 2002; Kolling, Nery e Molina, 1999a;
e Molina e Jesus, 2004.
3
O trabalho de Marsiglia e Martins (2010) traz uma análise do teor dessas críticas.
4 Entre esses estudos, destaca-se o do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação do Cam-
po da Amazônia (Geperuaz). Ver mais em Hage, 2009.
5
A solicitação de audiências às autoridades, pelos coordenadores do programa na Univer-
sidade Federal da Bahia (UFBA), deixa evidente os problemas e as dificuldades para imple-
mentação do programa (Taffarel e Santos Junior, 2010).
6
O neo-escolanovismo é atualmente difundido a partir do lema “aprender a aprender”,
que, para Saviani, desloca o “processo educativo do aspecto lógico para o psicológico; dos
conteúdos para os métodos; do professor para o aluno; do esforço para o interesse; da
disciplina para a espontaneidade, configurando uma teoria pedagógica em que o mais im-
portante não é ensinar e nem aprender algo, isto é, assimilar determinados conhecimentos.
O importante é aprender a aprender, isto é, aprender a estudar, a buscar conhecimentos, a
lidar com situações novas. E o papel do professor deixa de ser o daquele que ensina para ser
o de auxiliar o aluno em seu processo de aprendizagem” (2007, p. 429).
7
Ver http://anfope.spaceblog.com.br/.
323
Dicionário da Educação do Campo
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Escola Ativa
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Dicionário da Educação do Campo
Escola do Campo
Mônica Castagna Molina
Lais Mourão Sá
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Escola do Campo
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Dicionário da Educação do Campo
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Escola do Campo
área rural, conforme definida pela Fun- A partir destas ideias, faz sentido
dação Instituto Brasileiro de Geografia afirmar que a escola do campo pode
e Estatística – IBGE, ou aquela situa- contribuir para a formação de novas
da em área urbana, desde que atenda
predominantemente a populações do
gerações de intelectuais orgânicos ca-
pazes de conduzir o protagonismo dos E
campo” (Brasil, 2010). trabalhadores do campo em direção à
Mantém-se, neste instrumento legal consolidação de um processo social
que eleva a Educação do Campo à po- contra-hegemônico. Mas esta afirmação
lítica de Estado, não só a demarcação se faz a partir do reconhecimento dos
das escolas do campo neste território, limites que a escola, ainda que trans-
mas também a importante definição de formada em seus aspectos principais,
que sua identidade não se dá somente pode vir a ter nos processos maiores
por sua localização geográfica, se dá de transformação social.
também pela identidade dos espaços Partindo dessa materialidade, a
de reprodução social, portanto, de vida Educação do Campo, nos processos
e trabalho, dos sujeitos que acolhe em educativos escolares, busca cultivar
seus processos educativos, nos diferen- um conjunto de princípios que devem
tes níveis de escolarização ofertados. orientar as práticas educativas que
Nesta tarefa coloca-se também promovem – com a perspectiva de
uma disputa epistemológica por fun- oportunizar a ligação da formação es-
damentos ético-políticos e concei- colar à formação para uma postura na
tuais que garantam a legitimidade da vida, na comunidade – o desenvolvi-
construção do projeto. Como toda a mento do território rural, compreen-
riqueza no sistema do capital, o co- dido este como espaço de vida dos
nhecimento científico também está sujeitos camponeses.
desigualmente distribuído, e a disputa A partir das concepções sobre as
entre projetos de sociedade coloca em possibilidades de atuação das institui-
pauta a necessidade de desconstrução ções educativas na perspectiva contra-
destes privilégios epistemológicos. A hegemônica, além das funções tradi-
escola do campo deve fazer o enfren- cionalmente reservadas à escola, como
tamento da hegemonia epistemológica a socialização das novas gerações e a
do conhecimento inoculado pela ciên- transmissão de conhecimentos, a esco-
cia capitalista. la do campo, que forja esta identida-
O conhecimento científico acumu- de, pode ser uma das protagonistas na
lado pela humanidade não pode ser criação de condições que contribuam
usado com neutralidade; ele deve dialo- para a promoção do desenvolvimento
gar com as contradições vividas na rea- das comunidades camponesas, desde
lidade destes sujeitos, o que envolve a que se promova no seu interior im-
busca de alternativas para as condições portantes transformações, tal como já
materiais e ideológicas do trabalho vem ocorrendo em muitas escolas no
alienado e para as dificuldades de re- território rural brasileiro, que contam
produção social da classe trabalhadora com o protagonismo dos movimentos
do campo, todas elas condições ineren- sociais na elaboração de seus projetos
tes ao antagonismo intrínseco à lógica educativos e na sua forma de organizar
do capital. o trabalho pedagógico.
329
Dicionário da Educação do Campo
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Escola do Campo
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Dicionário da Educação do Campo
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Escola Itinerante
Escola Itinerante *
Caroline Bahniuk
Isabela Camini
*
Este verbete reflete sobre a forma escolar itinerante e suas contribuições para a escola e a edu-
cação do campo, na perspectiva da classe trabalhadora. No entanto, temos clareza de não termos
abarcado todos os aspectos e aprendizados que constituíram essa escola no decorrer dos quinze
anos de sua existência. Por isso, nas referências deste verbete, listamos as principais publicações
sobre a escola itinerante dos acampamentos do MST, assim como outras obras que questionam o
projeto hegemônico de escola. Também indicamos a consulta das pesquisas sobre a temática.
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Escola Itinerante
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Escola Itinerante
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Dicionário da Educação do Campo
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Escola Única do Trabalho
O termo “Escola Única do Trabalho” dos. Isso não é pouco, pois, na socieda-
tem sua formulação mais acabada logo nos de capitalista, a escola tem caráter dual,
primeiros momentos da Revolução Russa ou seja, dependendo da origem social
de outubro de 1917. Seu entendimento do estudante, ela provê um caminho
exige que esclareçamos alguns conceitos ascendente para os patamares mais ele-
que estão embutidos na expressão. vados de instrução ou provê o caminho
Em primeiro lugar, a formulação da terminalidade, sendo o estudante
reconhece a escola como local de for- excluído em algum ponto do sistema
mação da juventude, ainda que não escolar sem possibilidade de acessar
isolada de outras agências formativas níveis mais elevados de formação.
existentes na sociedade, em especial as O termo “único” quer fortalecer a
que tratam da organização política da ideia de que não existem duas escolas ou
juventude. Reconhece a importância uma escola com dois caminhos dentro
da escola como um instrumento de luta dela, mas todos transitam por ela segun-
na construção de uma nova socieda- do suas necessidades e possibilidades e
de, na perspectiva de que esta atenda não segundo quanto dinheiro carregam
aos interesses da classe trabalhadora – no bolso. É importante assinalar que o
vale dizer, como instrumento de termo único, aqui, não tem nada a ver
sua conscientização e emancipação. com uma escola de pensamento único
Neste entendimento, a apropriação ou de metodológica única.
do conhecimento científico não ocupa Em terceiro lugar, fixa que tal esco-
lugar menor. la é voltada para o trabalho. Aqui, cabem
Em segundo lugar, define a escola dois sentidos – um, no entendimento
como sendo única, ou seja, há um úni- ontológico do termo trabalho como
co caminho para todos os jovens, para atividade criativa dos seres humanos
todos os trabalhadores. Tal afirmação (portanto significando uma relação da
parte da concepção de que a sociedade escola com a vida), e outro como tra-
que almejamos é uma sociedade de tra- balho produtivo, ligado diretamente à
balhadores iguais, e não dividida entre subsistência, no qual emerge o sentido
exploradores e trabalhadores explora- da politecnia.
339
Dicionário da Educação do Campo
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Escola Única do Trabalho
341
Dicionário da Educação do Campo
quase todos os estudos redu- Não é raro que se tente apropriar des-
zem-se a uma única grande dis- tas ideias segundo a lógica de nossas
ciplina, ainda não diferenciada: relações sociais atuais. Por outra parte,
o conhecimento, pelo trabalho, não é possível uma transferência direta
do meio ambiente natural e so- deste conceito de Escola Única do Tra-
cial que cerca a criança. Jogos, balho para a realidade das nossas esco-
excursões, palestras fornecem las regulares. Sua construção se dará na
material para o pensamento co- prática do magistério, em espaços em
letivo e individual na atividade que a criatividade possa ser exercitada,
da criança. Começando com guiada por um projeto social alterna-
a criança mesma e seu meio tivo. Entretanto, os avanços da peda-
ambiente, tudo serve de obje- gogia russa nesta área são um legado
to para perguntas e respostas, fundamental para que possamos cami-
contos, composições, desenhos, nhar mais rapidamente em direção a
imitações. O professor sistema- uma pedagogia socialista, a qual é um
tiza, sem dificuldade, a curiosi- esforço coletivo da classe trabalhado-
dade da criança e seu desejo de ra mundial.
movimento e direciona-os de Esta escola está sendo gestada
modo a obter resultados mais no interior dos movimentos sociais,
valiosos. Tudo isso também é em especial no Movimento dos Tra-
matéria básica de ensino, como balhadores Rurais Sem Terra (MST).
uma enciclopédia infantil. Os Seja nas escolas itinerantes, seja nas
níveis mais altos de ensino, escolas dos assentamentos mais orga-
evidentemente, não se limitam nizados, os germens da nova escola
a isso. O trabalho sistemático estão plantados. Uma intensa expe-
para a assimilação de uma série rimentação não dogmática está em
de conhecimentos determina- curso na prática dos educadores do
dos ocupa lugar principal. Con- campo, baseada na necessidade de li-
tudo, este ensino de disciplinas gar a escola com o trabalho, ou seja,
isoladas não pode jamais subs- com a vida e com o trabalho produti-
tituir esta enciclopédia, conti- vo; na necessidade de garantir o aces-
nuando aqui também a jogar um so ao conhecimento historicamente
grande papel, mas adquirindo acumulado pela humanidade e farta-
um caráter um pouco diferente. mente negado à classe trabalhadora
A saber, adquire agora caráter ao longo do desenvolvimento do ca-
de pesquisa da cultura huma- pitalismo; na necessidade de que
na em ligação com a natureza. a classe trabalhadora se constitua
(Narkompros, 1974b, p. 139; como classe organizada e com ca-
nossa tradução) pacidade para se auto-organizar e
cumprir suas tarefas históricas; e na
Uma escola com estas característi- necessidade de um grande domínio
cas ainda precisa ser construída e, em de seu tempo atual, suas culturas, suas
nosso tempo, marcado por relações so- histórias e das contradições sociais nas
ciais capitalistas, a dificuldade é maior. quais se vê inevitavelmente envolvida.
342
Escola Unitária
Notas
1
Em russo, “edinoy”.
2
Em russo, “odnotipnost”.
E
Para saber mais
Camini, I. Escola itinerante: na fronteira de uma nova escola. São Paulo: Expressão
Popular, 2009.
Freitas, L. C. A Escola Única do Trabalho: explorando caminhos de sua cons-
trução. In: Caldart, R. S. (org.). Caminhos para transformação da escola. São Paulo:
Expressão Popular, 2010.
Narkompros [Comissariado Nacional de Educação]. Deliberação da Escola
Única do Trabalho. In: Abakumov, A. A. et al. (org.). Instrução pública na URSS:
educação geral. Documentos: 1917-1973. Moscou: Pedagogika, 1974a. (Original
em russo.)
______. Princípios básicos da escola única do trabalho. In: Abakumov, A. A.
et al. (org.). Instrução pública na URSS: educação geral. Documentos: 1917-1973.
Moscou: Pedagogika, 1974b. (Original em russo.)
P istrak , M. M. Fundamentos da escola do trabalho. São Paulo: Expressão
Popular, 2000.
______. Escola comuna. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
Escola Unitária
Marise Ramos
343
Dicionário da Educação do Campo
344
Escola Unitária
Num sentido distinto tanto dos dessas propostas tem como motivação a
iluministas quanto dos economistas adoção de medidas pós-revolucionárias
clássicos e dos utópicos, ainda que que confluam para a passagem a uma
sob alguma influência destes últimos,
desenvolve-se o pensamento pedagó-
sociedade sem classes, na qual todos
trabalhem e o desenvolvimento omni- E
gico de Marx e de Engels, postulando lateral (ver Educação omnilateral)
o trabalho como elemento formativo das capacidades seja premissa e resultado
na perspectiva do desenvolvimento in- do fim da divisão do trabalho fundada
tegral do indivíduo. No entanto, ape- na propriedade privada.
nas propor a associação entre ensino Sabia-se que a viabilidade de um de-
e trabalho como estratégia educativa senvolvimento omnilateral posta pela
não seria suficiente para compreender indústria só seria plenamente realizável
o real sentido que tem, para Marx, o numa sociedade livre da propriedade
trabalho como princípio educativo. privada. Desse modo, o princípio da
A pedagogia do trabalho foi desen- união entre ensino e trabalho estava
volvida por Marx de modo original, colocado como parte de um progra-
a partir de uma análise das condições ma político de transição de uma so-
históricas concretas, e apreende o mo- ciedade capitalista para uma sociedade
vimento dialético que caracteriza a pro- pós-capitalista.
dução capitalista. Conforme nos indica No século XX, particularmente
mais uma vez Manacorda (2006), nos nos anos 1930, Antonio Gramsci atua-
vários representantes das pedagogias lizou o programa marxiano de educa-
modernas não marxistas, a Revolução ção, especialmente ao se contrapor à
Industrial pode ser objeto de lamenta- Reforma Gentile, realizada na Itália
ção, aceitação a-histórica, ou contrapo- fascista, e a qualquer separação no in-
sição utópica; porém, em Marx, ela é terior do sistema educativo, seja entre
expressão consciente da historicidade as escolas elementar, média e superior,
das relações sociais. seja entre elas e a escola profissional.
Marx criticou o ensino industrial Tais críticas são a fonte de sua pro-
defendido pelos burgueses, destina- posta de escola unitária, que Gramsci
do ao treinamento dos operários. No (1991b) assim definia: escola única ini-
Manifesto do Partido Comunista (Marx, cial de cultura geral, humanista, for-
1996), figura, como programa da revo- mativa, que equilibre equanimemente
lução, o ensino público e gratuito a to- o desenvolvimento da capacidade de
das as crianças, a abolição do trabalho trabalhar manualmente (tecnicamente,
das crianças nas fábricas em sua forma industrialmente) e o desenvolvimento
atual, e a unificação do ensino com a das capacidades de trabalho intelectual.
produção material. Segundo ele, deste tipo de escola úni-
Mais tarde, os termos educação poli- ca, por meio de repetidas experiências
técnica e educação tecnológica2 serão utiliza- de orientação profissional, passar-se-ia
dos por ele, explicitando sua defesa por a uma das escolas especializadas ou ao
um ensino que não seja apenas poliva- trabalho produtivo.
lente, mas que permita a compreensão A escola unitária tem um princí-
dos fundamentos técnico-científicos dos pio que a organizaria, o trabalho, pos-
processos de produção. A formulação to que a ordem social e estatal (direitos
345
Dicionário da Educação do Campo
346
Escola Unitária
como a fase decisiva, na qual se tende- ciedade, preceitos ideológicos não são
ria a criar os valores fundamentais do suficientes para promover o ingresso
“humanismo”, a autodisciplina intelec- da cultura do trabalho nas escolas, nem
tual e a autonomia moral necessárias a
uma posterior especialização, “seja ela
como contexto pedagógico – aprender
no e pelo trabalho – e, menos ainda, E
de caráter científico (estudos univer- como princípio educativo. Assim, uma
sitários), seja de caráter imediatamen- política consistente de profissionaliza-
te prático-produtivo (indústria, buro- ção, dadas as outras razões e condicio-
cracia, organização das trocas etc.)” nada à concepção de integração entre
(Gramsci, 1991b, p. 124). trabalho, ciência e cultura, pode ser a
A escola unitária em Gramsci, por- travessia para a organização da educa-
tanto, não é profissionalizante. Esta ção brasileira com base no projeto de
finalidade conferida à educação básica escola unitária, tendo o trabalho como
na educação brasileira, especialmente princípio educativo.
ao ensino médio, tem razões sócio- Compreendendo a escola unitária
históricas específicas que precisam como uma utopia ainda a ser construí-
ser compreendidas. da, enquanto a finalidade profissionali-
A primeira dessas razões é de caráter zante na educação básica seja uma ne-
econômico. A sociedade brasileira não cessidade, deve-se assegurar uma base
construiu condições para que jovens e unitária para a formação num projeto
adultos da classe trabalhadora possam educativo que, conquanto reconheça e
traçar uma carreira escolar em que a valorize o diverso, supere a dualidade
profissionalização – de nível médio ou histórica entre formação para o traba-
superior – seja um projeto posterior lho intelectual e para o trabalho manual.
à educação básica. O reconhecimento Trabalho, ciência e cultura integram a
social e a autonomia possibilitada pela base unitária desse projeto e orientam
apreensão de fundamentos científico- a seleção e a organização dos conteú-
tecnológicos, sócio-históricos e cultu- dos de ensino, a fim de proporcionar
rais de atividades produtivas tornam- aos educandos a compreensão do pro-
se importantes instrumentos na luta cesso histórico de produção da ciência
contra-hegemônica, especialmente se o e da tecnologia como conhecimentos
projeto educativo tiver como finalida- desenvolvidos e apropriados social-
de a formação de trabalhadores como mente para a transformação das condi-
dirigentes. E esta possibilidade vem a ções naturais da vida e para a ampliação
ser a segunda razão a tornar pertinente das capacidades, das potencialidades e
a possibilidade de profissionalização na dos sentidos humanos.
educação básica. A compreensão da cultura como as
A terceira razão refere-se ao caráter diferentes formas de (re)criação da so-
dual da educação brasileira e à corres- ciedade possibilita ver o conhecimen-
pondente desvalorização da cultura do to marcado pelas necessidades e pelas
trabalho pelas elites e pelos segmen- disputas sociais de um tempo histórico.
tos médios da sociedade, tornando a Esse é o sentido que Gramsci confe-
escola refratária a essa cultura e suas re ao historicismo como método que
práticas. Assim, a não ser por uma efe- ajuda a superar o enciclopedismo –
tiva reforma moral e intelectual da so- quando conceitos históricos são trans-
347
Dicionário da Educação do Campo
Notas
1
Entendemos que a ressalva feita por Gramsci em relação a um “humanismo no sentido
amplo” e não apenas em “sentido tradicional” implica compreender o humanismo não na
perspectiva essencialista – que levaria a uma pedagogia escolástica (lembremos que o ter-
mo tradicional em pedagogia está vinculado ao pensamento de Herbart, para quem a escola
cumpria a função da transmissão de valores e de formação moral dos estudantes) –, mas na
perspectiva histórico-dialética, no sentido de que a produção da existência humana é uma
obra do próprio ser humano em condições objetivas enfrentadas e transformadas por ele
próprio. Esse universo “humano” é o universo do trabalho, da ciência e da cultura.
348
Estado
2
Saviani (2007) recupera os estudos de Manacorda sobre o uso, por Marx, dos termos
“educação tecnológica” e “politecnia” ou “educação politécnica”. Segundo ele, para além
da questão terminológica, é importante observar que, do ponto de vista conceitual, o que
está em causa é um mesmo conteúdo, isto é, a união entre formação intelectual e trabalho
produtivo. Um debate sobre o uso desses termos na obra de Marx e na atualidade pode ser
encontrado em Saviani (2007) e Nosella (2007). A leitura do verbete Educação Politécnica
E
neste dicionário também pode ser elucidativa.
3
Entendemos que a ressalva feita por Gramsci em relação a um “humanismo no sentido
amplo” e não apenas em “sentido tradicional” implica compreender o humanismo não na
perspectiva essencialista – que levaria a uma pedagogia escolástica (lembremos que o termo
tradicional em pedagogia está vinculado ao pensamento de Herbart, para o qual a escola
cumpria a função da transmissão de valores e de formação moral dos estudantes) –, mas na
perspectiva histórico-dialética, no sentido de que a produção da existência humana é uma
obra do próprio ser humano em condições objetivas enfrentadas e transformadas por ele
próprio. Esse universo “humano” é o universo do trabalho, da ciência e da cultura.
Estado
Sonia Regina de Mendonça
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Estado
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Estado
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Estrutura Fundiária
Estrutura fundiária
Paulo Alentejano
355
Dicionário da Educação do Campo
concentração foi puxado pelas gran- do total, ocupando uma área de cerca
des culturas de exportação, pela ex- de 20%, ao passo que os com mais de
pansão do agronegócio e pelo avanço 100 hectares são menos de 10% do to-
da fronteira agropecuária, em direção tal e ocupam cerca de 80% da área. E
à Amazônia, impulsionada pela cria- este quadro permaneceu praticamente
ção de bovinos e pela soja. No caso de inalterado nos últimos 50 anos.
São Paulo, o crescimento deveu-se à Se considerarmos os dados do Incra
cultura de cana-de-açúcar (estimulada (2003)2 em vez dos dados do IBGE
pelo maior uso de álcool com os carros (2006), ou seja, se considerarmos os
bicombustíveis e pelos bons preços imóveis rurais em vez dos estabeleci-
do açúcar). mentos agropecuários, verificamos que
Os dados do Censo Agropecuário o panorama não é muito diferente. Os
de 2006 (Instituto Brasileiro de Geo- imóveis com menos de 10 hectares são
grafia e Estatística, 2006) apontam a 31,6% do total, mas ocupam apenas
existência de 5.175.489 estabelecimen- 1,8% da área, e os com mais de 5 mil
tos agropecuários no Brasil ocupando hectares representam apenas 0,2% do
uma área total de 329.941.393 hectares, total de imóveis, mas controlam 13,4%
correspondente a 38,7% do território da área. Somados os imóveis com me-
nacional. Apontam ainda a existência nos de 100 hectares, eles correspon-
de 125.545.870 hectares de terras indí- dem a 85,2% do total e possuem me-
genas, 72.099.864 hectares de unidades nos de 20% da área, ao passo que os
de conservação e 30 milhões de hecta- que possuem mais de 100 hectares re-
res de águas internas, rodovias e áreas presentam menos de 15% dos imóveis
urbanas. Sobram, assim, praticamente e concentram mais de 80% da área.
300 milhões de hectares de terras de- Dos 4,375 milhões de imóveis, apenas
volutas que têm sido sistematicamente 70 mil (1,6% do total) totalizam 183
objeto de grilagem, isto é, da apropria- milhões de hectares.
ção ilegal de terras públicas por parte Assim, seja qual for a base estatís-
de especuladores. Segundo Delgado tica, a concentração fundiária aparece
(2010), são cerca de 170 milhões de como uma marca inegável da estru-
hectares grilados. tura fundiária brasileira e geradora de
Os dados do censo demonstram profundas desigualdades. Porém, o pro-
ainda que os pequenos estabelecimen- blema é ainda mais grave, pois as ca-
tos – com menos de 10 hectares – con- tegorias utilizadas pelo IBGE (esta-
tabilizam 2.477.071 (47,9% do total), belecimentos agropecuários) e pelo
mas a área ocupada pelos mesmos é de Incra (imóveis rurais) não dão conta da
apenas 7.798.607 (2,4 % do total), ao complexidade das formas de acesso à
passo que, no polo oposto, os estabe- terra existentes no Brasil. Ao se centra-
lecimentos com mais de 1.000 hectares rem nas dimensões econômica (IBGE)
são apenas 46.911 (0,9% do total), mas e jurídica (Incra), essas categorizações
ocupam 146.553.218 hectares (44,4% tornam invisíveis várias modalidades
da área total). O contraste se torna de acesso à terra que têm profundo
ainda mais nítido quando observa- enraizamento na cultura camponesa,
mos que os estabelecimentos com me- mas que não são evidenciadas pelas
nos de 100 hectares são cerca de 90% estatísticas de tais órgãos. Por isso, as
356
Estrutura Fundiária
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Dicionário da Educação do Campo
358
Estrutura Fundiária
Notas
1
O índice de Gini serve para medir desigualdades (de terra, de renda, de riqueza, de acesso
a bens etc.) e varia de 0 a 1, sendo que, quanto mais igualitária a distribuição, mais próximo
de 0 fica o índice, e quanto maior a desigualdade, mais próximo de 1 ele fica.
2
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) utiliza a categoria “estabeleci-
mentos agropecuários”, que considera a unidade produtiva, enquanto o Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra) utiliza a categoria “imóvel rural”, que tem como
base a propriedade da terra. Assim, por exemplo, se uma fazenda é arrendada para quatro
diferentes agricultores, o Incra contabiliza um imóvel rural, e o IBGE, quatro estabeleci-
mentos agropecuários. Por outro lado, se três diferentes fazendas são administradas como
uma unidade produtiva contínua, o Incra contabiliza três imóveis rurais, e o IBGE, apenas
um estabelecimento agropecuário. Assim, os dados do IBGE e do Incra devem ser consi-
derados como complementares para a análise da concentração fundiária.
3
Segundo a legislação brasileira, as pequenas propriedades são as que têm até 4 módulos
fiscais, as médias são as que têm entre 4 e 15 módulos, e as grandes, as que têm mais de 15
módulos. O tamanho dos módulos varia de acordo com a localização e as condições natu-
rais, e vai de 5 a 110 hectares.
359
Dicionário da Educação do Campo
360
F
Formação de Educadores do Campo
Miguel G. Arroyo
F
A concepção e a política de forma- Se a condição docente é pensada
ção de professores do campo vão se como única e as diretrizes que regu-
construindo na conformação da edu- lam sua formação também são únicas,
cação do campo. só resta aplicá-las com as “permitidas”
Os movimentos sociais inauguram adaptações em tempos, cargas horá-
e afirmam um capítulo na história da rias, nos tipos presencial ou em alter-
formação pedagógica e docente. Na nância, em comunidade etc. (Arroyo,
diversidade de suas lutas por uma edu- 2008). Nessa lógica, os cursos espe-
cação do/no campo, que fazem parte cíficos de formação de professores
de um outro projeto de campo, prio- do campo e de professores indíge-
rizam programas, projetos e cursos nas e quilombolas não passariam de
específicos de Pedagogia da Terra, de cursos comuns, genéricos, com as
formação de professores do campo, devidas e permitidas adaptações, mais
de professores indígenas e quilombo- ou menos elásticas. Ao serem incorpo-
las. Como está sendo construída essa rados como cursos das universidades,
concepção de formação? Quem são os poderão ser pressionados a perder seu
sujeitos dessa política? Como ela con- caráter específico, sendo reduzidos a
tribui na consolidação da educação do secundárias adaptações.
campo? Que contribuições traz para as Sem a superação desse protótipo úni-
políticas e os currículos da formação co, genérico de docente, as consequên-
docente e pedagógica? cias persistem: a formação privilegia a
visão urbana, vê os povos-escolas do
Superar um protótipo campo como uma espécie em extinção,
e privilegia transportar para as escolas
único de docente-educador do campo professores da cidade sem
O primeiro significado a extrair dessa vínculos com a cultura e os saberes
história é a superação da formação de um dos povos do campo. As consequên-
protótipo único, genérico de docente- cias mais graves são a instabilidade
educador para a educação básica. Na desse corpo de professores urbanos
história do ruralismo pedagógico dos que vão às escolas do campo, e a não
anos 1940, houve tentativas de formar conformação de um corpo de profis-
professores para a especificidade das es- sionais identificados e formados para
colas rurais; porém, venceu a proposta a garantia do direito à educação básica
generalista de que todo professor deve- dos povos do campo. Assim, um siste-
rá estar capacitado para desenvolver os ma específico de escolas do campo não
mesmos saberes e competências do en- se consolida.
sino fundamental, independentemente Entretanto, os movimentos, ao de-
da diversidade de coletivos humanos. fenderem a especificidade da forma-
361
Dicionário da Educação do Campo
ção, não defendem uma função gené- formação, trazem suas marcas políti-
rica nem um currículo único com as cas à formação docente e ao perfil de
devidas adaptações. E nem retornam docente-educador não apenas do cam-
à proposta do ruralismo pedagógico, po, mas de toda a educação básica. Além
mas superam a visão da escola rural disso, invertem os processos tradicio-
e do professor rural ao politizarem a nais de formulação de políticas vindas
educação do campo em um outro pro- de cima para os setores populares vistos
jeto de campo. apenas como destinatários de políticas e
não como autores-sujeitos políticos
de políticas. Essa inversão tem trazido
Os movimentos do campo tensões não apenas nas concepções
como sujeitos de políticas de formação, mas tensões políticas de
de formação reconhecimento dos movimentos so-
ciais como autores nas universidades,
Os movimentos do campo e o no MEC e nos órgãos de formulação e
Programa Nacional de Educação na análise de políticas do Estado.
Reforma Agrária (Pronera) tentam
A política de formação de profes-
quebrar essa visão genérica de docente- sores do campo de que os movimen-
educador e, dessa maneira, superar as tos sociais são autores está sendo um
desastrosas consequências para a afir- processo que obriga a repensar e rede-
mação da educação do campo. Esses finir a relação entre o Estado, as suas
movimentos se afirmam não como instituições e os movimentos sociais.
reivindicadores de mais escolas e de Esse processo tem um significado de
mais profissionais, mas como sujeitos grande relevância política. Consequen-
coletivos de políticas de formação de temente, os currículos de formação
docentes-educadores. Deles e de suas têm como um dos seus objetivos for-
lutas por terra, território, agricultura mar profissionais do campo capazes de
camponesa e Reforma Agrária parte a influir nas definições e na implantação
defesa de cursos de Pedagogia da Terra de políticas educacionais, ou seja, os
e de formação de professores do campo. currículos objetivam afirmar esses pro-
Os cursos de Pedagogia da Terra re- fissionais como sujeitos de políticas.
presentam um programa específico das
lutas dos movimentos sociais pela Re-
forma Agrária. Os cursos de formação
Incorporar nos cursos a
de professores partem das demandas formação acumulada
dos movimentos do campo reunidos
O fato de os movimentos sociais
na Conferência Nacional realizada em
serem atores centrais nos cursos de
2004, que deu origem, na Secretaria de
formação traz consequências para as
Educação Continuada, Alfabetização,
políticas e para os currículos de forma-
Diversidade e Inclusão do Ministério
ção. Seu ponto de partida é a radicali-
da Educação (Secadi/MEC), ao Pro-
dade política, cultural e educativa, que
grama de Apoio às Licenciaturas em
vem dos próprios movimentos sociais e
Educação do Campo (Procampo).
dos seus processos de formação como
Os movimentos sociais, ao se afir- militantes-educadores. Levam para os
marem como sujeitos de políticas de cursos formais a riqueza de práticas, de
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Formação de Educadores do Campo
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Formação de Educadores do Campo
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Formação de Educadores do Campo
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Função Social da Propriedade
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Dicionário da Educação do Campo
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Função Social da Propriedade
reivindicações esposadas pelos lavra- cumpra sua função social, porque esta
dores sem-terra organizados nas Ligas foi elevada à categoria de direito fun-
Camponesas, teve o mérito de esmiu- damental. Complementando o regime
çar e estabelecer os requisitos e pres- jurídico da propriedade, a Constituição
supostos do conceito da função social Federal atribuiu um “conteúdo posi-
da propriedade. tivo à função social” (Tepedino, 2000,
Analisando a recente história da fun-
ção social da propriedade nas nossas
p. 125), no artigo 186 e incisos, dizen-
do que atender a função social significa,
F
cartas magnas, verificamos uma cres- simultaneamente, fazer um “aprovei-
cente evolução no conceito. Nunca, tamento racional e adequado”, utilizar
porém, como agora, a questão assumiu adequadamente os recursos naturais
tamanha relevância jurídica, posto que disponíveis e preservar o meio ambien-
o artigo 5º da Constituição Federal, nos te, observar “as disposições que regulam
incisos XXII e XXIII, estabelece, em as relações de trabalho” e exercer uma
passos sucessivos, a garantia do direito “exploração que favoreça o bem-estar
de propriedade e a indispensabilidade de dos proprietários e dos trabalhadores”.
que ela atenda a sua função social. Além A função social da propriedade,
disso, a Constituição de 1988, sobretudo que fique claro desde logo, conforme
no artigo 186 e seus incisos, estabeleceu lição de José Afonso da Silva, “não se
o conteúdo de função social. confunde com os sistemas de limitação
A propriedade privada dos meios da propriedade” (Silva, 1996, p. 273).
de produção, no nosso caso, a terra, As limitações dizem respeito ao exer-
é para o Estado um direito individual cício do direito; por sua vez, a função
oponível a toda a coletividade, e o social diz respeito “à estrutura do di-
cumprimento da sua função social é, reito mesmo, à propriedade” (ibid.).
ao mesmo tempo, uma obrigação para Isso quer dizer que a função social é
o proprietário4 (por isso foi contem- uma obrigação intrínseca ao direito de
plada na ordem econômica), um direi- propriedade, e não mera barreira ao
to difuso da sociedade – porque a co- exercício do direito de propriedade.
letividade necessita de alimentos, que Outro ponto fundamental deste
seja preservado o meio ambiente e tema é em que medida e como deve
que sejam respeitadas as leis traba- ser interpretada a posse da terra. Está
lhistas –, e um direito coletivo dos mais do que evidente que todo uso da
trabalhadores rurais sem-terra (por- propriedade deve estar de acordo com
que possuem direito ao e interes- o conceito de função estabelecido no
se no assentamento em projetos de artigo 186 e incisos da Constituição
Reforma Agrária). Federal; portanto, à propriedade ru-
O artigo 5º, inciso XII da Consti- ral que não cumpra os requisitos da
tuição de 1988 assegurou a proprieda- função social da propriedade não está
de, bem como o direito à vida, à liber- assegurada a proteção possessória pre-
dade, como direito fundamental do ser vista na legislação infraconstitucional,
humano. O inciso XIII do mesmo arti- principalmente aquela proteção previs-
go estabeleceu que a propriedade aten- ta no Código Civil.
derá a sua função social e, portanto, a A única garantia legal reservada
propriedade está assegurada desde que à propriedade rural que não cumpre
371
Dicionário da Educação do Campo
Notas
1
O Centrão foi uma aglutinação de deputados constituintes que pretendiam não se identifi-
car com a esquerda nem com a direita. Na verdade, representava os interesses dos grandes
grupos econômicos e empresariais, de latifundiários e da grande mídia, e que, reunindo a
maioria dos deputados constituintes, conseguiu aprovar e incluir na Constituição Federal
muitos artigos contrários aos interesses dos trabalhadores.
2
Artigo XXV – 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a
sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos
372
Função Social da Propriedade
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Dicionário da Educação do Campo
FUNDOS PÚBLICOS
José Marcelino de Rezende Pinto
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Fundos Públicos
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Dicionário da Educação do Campo
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Fundos Públicos
deste século, arrolou um conjunto ex- lidade social. Não se visa a uma escola
tremamente detalhado de insumos e de de qualidade para uma pequena elite de
condições de funcionamento que deve- crianças e jovens, mas para o conjunto
riam ser assegurados em todas as esco- da população brasileira. Parte-se tam-
las do país em suas diferentes etapas e bém do pressuposto de que a qualidade
modalidades. Mais do que isso, o plano é um conceito em disputa, e que o pró-
fixou também os meios para se atingir
essas metas, ao determinar a ampliação
prio processo de debatê-la já é um de
seus componentes. Buscou-se, então,
F
dos gastos públicos com educação de a construção de escolas típicas (cre-
forma a atingir 7% do PIB. Contudo, che, pré-escola, anos iniciais do ensi-
essa determinação, fundamental para no fundamental, anos finais do ensino
viabilizar o PNE, foi vetada pelo então fundamental, ensino médio, anos ini-
presidente Fernando Henrique Cardoso. ciais e finais do ensino fundamental na
Foi nesse contexto que a Campanha educação do campo), estabelecendo-se
Nacional pelo Direito à Educação, em padrões de construção, equipamen-
2002, iniciou um movimento de mobili- tos, número de profissionais, padrões
zação social para a construção do CAQ. de remuneração, e número de alunos
A ideia central norteadora do processo por turma. Todos esses insumos foram
foi: qual deve ser o recurso gasto por precificados em valores de 2005, e as
aluno para se ter um ensino de qualida- tabelas podem ser obtidas no sítio da
de? Já a metodologia para a construção entidade.5 Na proposta foram ainda
do CAQ envolveu ampla participação. previstos recursos para que as escolas
Nesse sentido, foram organizadas ofi- possam desenvolver projetos especiais,
cinas de trabalho que contaram com a assim como recursos para a formação
presença de profissionais da educação, profissional (de toda a equipe) e para
de especialistas, de pais e alunos e de a administração central dos sistemas
gestores educacionais. de ensino. A proposta da Campanha
Nacional pelo Direito à Educação en-
Nessas oficinas, em coerência com
tende ainda que, no que se refere a mo-
a legislação, buscava-se definir os insu-
dalidades específicas, como educação
mos que deveriam compor uma esco-
de jovens e adultos, educação especial,
la com padrões básicos de qualidade.
educação indígena, educação quilom-
Neste sentido, firmou-se o consenso
bola, educação profissional e mesmo
de que o que se discutiria seria um pon-
educação do campo (para a qual foi fei-
to de partida, um padrão mínimo de ta uma proposta de CAQi), seriam ne-
qualidade que deveria ser assegurado cessários estudos específicos para uma
a todas as escolas do país, até por- melhor definição do respectivo CAQi.
que os critérios de qualidade evoluem A proposta sugere ainda a criação
com o tempo. Daí surgiu o conceito de adicionais do CAQi como forma de
de custo aluno-qualidade inicial (CAQi), destinar mais recursos para as escolas
entendido como um primeiro passo que atendam crianças em condições
rumo à educação pública de qualida- de maior vulnerabilidade social. Final-
de no Brasil (Carreira e Pinto, 2007). mente, em 5 de maio de 2010, a Câ-
Portanto, o conceito de qualidade que mara de Educação Básica do Conselho
norteou a proposta referenciou-se em Nacional de Educação aprovou a reso-
uma perspectiva democrática e de qua- lução nº 8/2010, que definiu o CAQi
377
Dicionário da Educação do Campo
378
Fundos Públicos
e os contratos envolvem valores signi- lidade passa por achar o equilíbrio en-
ficativos (são milhares de quilômetros tre um número de alunos mínimo que
por dia no conjunto das linhas), abre- garanta uma escala de funcionamento
se também um campo propício para a adequada e que, ao mesmo tempo, não
corrupção com fins eleitorais. implique, para os alunos, longas jorna-
Com o objetivo de reverter esse das para chegar até a escola. No caso
processo de fechamento das escolas da
zona rural, boa parte delas, na verda-
dos assentamentos de Reforma Agrá-
ria, a situação é de mais fácil solução,
F
de, sem condições mínimas de funcio- pois há um contingente relativamente
namento (Pereira, 2007), e compensar concentrado de famílias. A questão se
o seu maior custo, existe um diferen- torna bem mais complexa para as re-
cial no valor contabilizado por aluno giões tomadas pelo latifúndio (e que
no Fundeb. Hoje, esse adicional é de são majoritárias), pois, nesses casos,
20%, um avanço em relação aos 2% do o número de famílias é muito peque-
Fundef, mas muito aquém ainda da di- no para uma grande extensão de área.
ferença real de custos. Estimativas fei- Assim, a luta por uma educação do
tas para a realização do CAQi apontam campo de qualidade passa necessaria-
para um adicional de, no mínimo, 65% mente pela luta por Reforma Agrária
nos recursos para as escolas do cam- e se dá concomitantemente a esta. De
po. Recentemente, graças em especial qualquer forma, nas regiões nas quais
à ação dos movimentos sociais de luta a densidade populacional é baixa, é
pela reforma agrária, observam-se al- fundamental o desenvolvimento de
gumas experiências de escolas do cam- projetos pedagógicos de escolas de
po que conseguem oferecer condições qualidade, que, necessariamente, terão
para um ensino de qualidade. de ter poucos alunos.
A rede federal de ensino de escolas Considera do a obrigatoriedade cons-
técnicas e profissionais também oferece titucional do ensino dos 4 aos 7 anos,
um padrão de excelência para a área, com pode-se pensar em projetos de escola
gastos por aluno cerca de quatro vezes do campo que englobem da pré-escola
superiores ao valor mínimo do Fundeb. ao ensino médio, com uso criativo do
Tendo por base as estimativas do CAQi, espaço e do corpo docente e funcio-
o valor para garantir um padrão inicial de nal, e que assegurem qualidade e um
qualidade seria de R$ 4.500,00 por alu- custo-aluno compatível com as metas
no/ano (escola projetada de 70 alunos) de gasto em relação ao PIB, fixadas ini-
para os anos iniciais do ensino funda- cialmente pela Conferência Nacional
mental, e de R$ 3.500,00 por aluno/ano de Educação, e readequadas por um
(escola projetada de 100 alunos) para os conjunto amplo de entidades da socie-
anos finais, em valores de 2010. dade civil para o novo Plano Nacional
O grande desafio para o financia- de Educação, em 7% do PIB até 2015,
mento de uma escola do campo de qua- e em 10% até 2020.6
Notas
1
Sobre a timidez das políticas equalizadoras da União, recomendam-se os estudos de Araújo,
2007; Cruz, 2009; e Martins, 2009.
379
Dicionário da Educação do Campo
2
No caso da União, recomenda-se o trabalho de Ximenes, 2009.
3
Ver, entre outros, Pinto, 1991; Mello, 1991; Mello e Costa, 1993; Monlevade, 1997;
Farenzena, 2005; Verhine e Magalhães, 2006; e Gouveia et al., 2006.
4
Sobre a discussão insumos versus qualidade, recomenda-se a leitura de Brooke e Soares,
2008.
5
Ver http://www.campanhaeducacao.org.br.
6
Ver http://www.campanha.org.br, http://www.cedes.org.br e http://www.anped.org.br.
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G
Gestão Educacional
Lisete R. G. Arelaro
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Gestão Educacional
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Gestão Educacional
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Gestão Educacional
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H
Hegemonia
Marcela Pronko
Virgínia Fontes
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Dicionário da Educação do Campo
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Hegemonia
do um ser social adequado aos interes- Mas quais são as formas específi-
ses (e valores) hegemônicos” (Fontes, cas de produção social da hegemonia
2006, p. 212). e da contra-hegemonia? Em primeiro
Assim, o terreno da sociedade ci- lugar, deve-se afirmar que essas for-
vil aparece como local de formulação mas se definem no processo de luta
e consolidação dos projetos sociais e que, pela própria complexificação das
de constituição das vontades coleti- sociedades capitalistas contemporâne-
vas, por se configurar como momen- as, assume cada vez menos a forma de
to organizativo e espaço de mediação um assalto frontal e direto a uma forta-
entre o âmbito da dominação direta (a leza central da classe dominante, repre-
produção), mediante a organização e o sentada pelo Estado (como na figura
convencimento, e o terreno da direção
geral e do comando sobre o conjunto
da “guerra de movimento”, da metá-
fora militar empregada por Gramsci),
H
da vida social, por meio do Estado em transformando-se fundamentalmente
sentido estrito (sociedade política). numa “guerra de posição”, com o esta-
belecimento de inúmeras trincheiras, o
Dessa forma, a hegemonia, criada e
que envolve uma extensa organização
recriada numa teia de instituições, rela-
industrial, técnica, de abastecimento e
ções sociais e ideias, é, necessariamen-
de unificação de massas humanas dis-
te, como afirma Gramsci, “uma relação
persas (Gramsci, 2001, v. 3, p. 72), de
pedagógica, que se verifica não apenas
forma a que essas trincheiras atuem
no interior de uma nação, entre as di-
como espaços que combinam defesa e
versas forças que a compõem, mas em
ataque. Para fazer frente a tal tipo de
todo o campo internacional e mundial,
entre conjuntos de civilizações nacio- dominação, Gramsci destaca a necessi-
nais e continentais.” (Gramsci, 2001, dade do avanço progressivo das forças
v. 1, p. 399). No âmbito nacional, essa em luta, num processo de consolidação
relação pedagógica se desenvolve no da direção intelectual e moral do con-
seio do Estado, que assume o papel junto da sociedade.
de Estado educador, capaz de adaptar A hegemonia nada tem de estática
o conjunto da sociedade a uma forma ou de mecânica. O crescimento inces-
particular de “estar no mundo”. Segun- sante de novas contradições na socie-
do Neves: dade capitalista, tanto no interior das
frações dominantes quanto entre as
O Estado educador, como ele- classes sociais, resulta em equilíbrios
mento de cultura ativa, deve sempre provisórios. Permanentes dispu-
servir para determinar a vontade tas hegemônicas alteram e recompõem
de construir, no invólucro da so- as formas de dominação burguesa. A
ciedade política, uma complexa solução de tensões internas entre fra-
e bem articulada sociedade civil, ções de classe pode ocorrer pela cap-
em que o indivíduo particular se tura para o interior da visão de mundo
governe por si sem que, por isso, dominante de segmentos expressivos
esse autogoverno entre em con- dos grupos subalternos (transformis-
flito com a sociedade política, mo). Daí a extrema importância, para
tornando-se, ao contrário, sua Gramsci, de que os trabalhadores cons-
normal continuação, seu com- truam organizações de modo a garantir
plemento orgânico. (2005, p. 26) uma prática coerente, uma formulação
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Hegemonia
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Hidronegócio
HIDRONEGÓCIO
Roberto Malvezzi
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Hidronegócio
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Dicionário da Educação do Campo
uso da água, uma prática ainda mais de- que falta a chuva para complementar
safiadora e cheia de contradições. Por o período de germinação das plantas.
exemplo, as águas da transposição do Dessa forma, poupa-se água de chuva e
São Francisco criarão o maior mercado produzem-se alimentos sem investir nos
de águas do Brasil, quiçá do mundo. aquíferos subterrâneos ou nos rios. Essa
Produzir grãos em território alheio irrigação, aliada à agricultura orgânica, é
é poupar água no próprio território. ecologicamente sustentável e pode abrir
Técnicas pesadas, como pivôs centrais um novo horizonte na produção dos as-
e irrigação por sulco, consomem ain- sentamentos e da pequena agricultura.
da mais água do que a microaspersão. Ainda mais: se a captação de água
Essa é a verdadeira disputa pela água de chuva para a pequena irrigação é viá-
que se materializa na transposição do vel no semiárido, pode ser muito mais
rio São Francisco. A humanidade terá em outras regiões com maior índice de
de rever seu consumo de água para precipitação. Não há motivos para que
irrigação. Não existe água para que os assentamentos fiquem aguardando
esse modelo de produção continue apenas as chuvas, sem cooperar com
ad infinitum. a natureza, sem armazenar essa água
A quantidade de água para produzir para os períodos de estiagem. O mo-
alguns alimentos escapa da imaginação vimento social começa a dar os primei-
(Brasil, 2003, p. 10). Por exemplo, 1 ros passos para assimilar o binômio
quilo de arroz demanda 4.500 litros de terra–água como meio de produção
água; um quilo de carne de gado de- indissociável e indispensável. Nos dias
manda 20 mil litros de água; um quilo atuais, é preciso fazer sempre a ressal-
de trigo demanda 1.500 litros. Não é va da mudança climática e dos cenários
por acaso que a agricultura demanda funestos que se desenham para a agri-
em média 70% da água doce utilizada cultura e para o próprio abastecimento
em todo o globo terrestre. de água potável.
Enquanto isso, os pequenos agri-
cultores, principalmente dentro dos Carcinicultura
assentamentos, às vezes não possuem
sequer água de qualidade para beber. Outro ramo do hidronegócio, muito
Compreender que a água, além de um mais específico, é a criação de ca-marão
direito humano fundamental para uso em cativeiro. Segundo dados da Orga-
doméstico, é um meio de produção tão nização das Nações Unidas para Agri-
indispensável quanto a terra ainda é cultura e Alimentação (FAO), a criação
um salto de qualidade que o movimen- de 1 quilo de camarão em cativeiro
to social apenas começa dar. Luta-se consome de 50 a 60 mil litros de água,
pela terra, ainda não se luta pela água ou seja, aproximadamente 50 a 60 to-
como meio de produção. neladas. Some-se à criação de camarão
Existem iniciativas ainda incipientes também a de peixes em cativeiro, assim
nessa direção, sobretudo no semiárido, como a de ostras e de outros frutos do
com a captação de água de chuva para mar. É a chamada “Revolução Azul”, a
a chamada irrigação de salvação. Capta- aquicultura, quando se supunha que a
se a água de chuva em reservatórios produção de alimentos iria se transferir
pequenos, e é usada nos momentos em da terra para a água.
400
Hidronegócio
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Dicionário da Educação do Campo
402
Hidronegócio
403
Dicionário da Educação do Campo
Santos, M. Por uma outra globalização. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
United Nations (UN). Water, Energy, Health, Agriculture and Biodiversi-
ty (WEHAB) Working Group. A Framework for Action on Agriculture. In: World
Summit on Sustainable Development (WSSD). 2002, Joanesburgo. Anais…
Joanesburgo: WSSD, 2002. Disponível em: http://www.un.org/jsummit/html/
documents/summit_docs/wehab_papers/wehab_agriculture.pdf. Acesso em: 7
maio 2011.
404
I
Idosos do Campo
Johannes Doll
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Idosos do Campo
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Idosos do Campo
atendimento aos idosos, foi implanta- renda dos idosos. Estão afetan-
do um sistema de aposentadoria rural, do a composição dos arranjos
incluindo trabalhadores formais e in- familiares, a estrutura produtiva
formais, com efetiva aplicação a par- e a economia familiar rural. Fa-
tir de 1992, com as seguintes normas mílias com três ou mais gerações
(Delgado, 2004): têm crescido no meio rural bra-
sileiro. Uma outra consequência
a) equiparação de condições de é o maior empoderamento do
acesso para homens e mulheres; idoso dentro da sua família, em
b) redução do limite de idade particular das mulheres. O pa-
para aposentadoria por idade pel tradicional do idoso mudou
(60 anos para homens e 55 anos de dependente para provedor.
para mulheres); As mulheres foram as maio-
c) introdução de um piso de apo-
sentadoria e pensões em um sa-
res beneficiárias dos avanços
na seguridade social. (Beltrão, I
lário mínimo. Camarano e Mello, 2004, p. 1)
409
Dicionário da Educação do Campo
Notas
1
Para maiores detalhes sobre o envelhecimento biológico, ver, por exemplo, Hayflick, 1997
e Jeckel-Neto, 2006.
2
Para esta pesquisa, foram entrevistadas 1.608 pessoas entre 16 e 59 anos, e 2.136 pessoas
com 60 anos e mais, escolhidas por amostra probabilística em 204 municípios de todas as
regiões do Brasil. Desta forma, trata-se de uma das poucas grandes pesquisas representati-
vas sobre os idosos no Brasil. Ela foi realizada pela Fundação Perseu Abramo, em parceria
com o Serviço Social do Comércio (Sesc) de São Paulo, e os seus resultados foram publica-
dos e analisados por especialistas em Neri, 2007.
410
Idosos do Campo
Beltrão, K. I.; Camarano, A. A.; Mello, J. L. Mudanças nas condições de vida dos
idosos rurais brasileiros: resultados não esperados dos avanços da seguridade ru-
ral. In: Congresso da Associação Latina Americano de População (Alap),
1. Anais... Caxambu: Alap, 2004. Disponível em: http://www.alapop.org/2009/
images/PDF/ALAP2004_288.PDF. Acesso em: 4 maio 2011.
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Dicionário da Educação do Campo
412
Indústria Cultural e Educação
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Dicionário da Educação do Campo
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Indústria Cultural e Educação
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Dicionário da Educação do Campo
novos contornos. Não à toa este pro- Nesse contexto, incluem-se ainda
cesso coincide com o fortalecimento a reforma universitária, a criação das
do mercado publicitário brasileiro, por disciplinas de Educação Moral e Cívi-
meio de altos investimentos na conso- ca e Estudos dos Problemas Brasilei-
lidação de um sistema de televisão de ros, e de programas como o Projeto
abrangência nacional. Todos estavam a Rondon – criado num seminário cha-
serviço da construção da identidade de mado “Educação e Segurança Nacio-
um país sem contradições, harmônico, nal” (!) – e o Movimento Brasileiro de
cordial, uma “potência em crescimen- Alfabetização (Mobral), que buscava
to”, à revelia do país real. contrapor-se à experiência de educa-
A presença da TV nos lares de ção popular e alfabetização do método
grande parte dos brasileiros, por todo Paulo Freire.
o território, estimulada a partir da dé- Assim, educação, comunicação e
cada de 1970 e alcançando seu ápice cultura estavam a serviço de um pro-
nas décadas seguintes, forjou uma jeto de destruição ou cooptação dos
imagem de país útil para o regime mi- projetos contra-hegemônicos anteriores
litar e eficiente para o cumprimento de ao golpe, mas estava a serviço, princi-
mais um ciclo de modernização con- palmente, da construção do ideário de
servadora. A promessa do país gran- um país-potência no qual a democracia
de, inserido no concerto das nações, seria garantida pelo acesso ao consumo,
não era sustentável diante do acirra- e não aos direitos.
mento da segregação sociorracial, e a Daí se explica a adesão acrítica da
contradição não tardou a se manifes- escola brasileira aos padrões hegemô-
tar por ocasião da crise do petróleo de nicos da indústria cultural. Após a var-
1973, que abalou as bases econômicas redura que a ditadura brasileira operou
do “milagre brasileiro”. sobre as propostas de educação po-
Movimento idêntico ocorreu na edu- pular que se pautavam pela formação
cação, especialmente por meio dos con- no sentido emancipatório, subjetivo,
vênios entre o Ministério da Educação coletivo e estrutural, o ímpeto mercan-
brasileiro e a Agência dos Estados Unidos til se fez presente no universo escolar,
para o Desenvolvimento Internacional mediante a enxurrada de metodologias
(Usaid, do inglês United States Agency for modernizantes, que tomavam por si-
International Development), os chamados nônimo “educação” e “capacitação
acordos MEC–Usaid. Estes tinham por técnica para o mercado de trabalho”.
objetivo implantar o modelo escolar norte- Gruschka ressalta que a chave de aná-
americano, desde o ensino primário ao lise dos vínculos entre a IC e a escola
universitário, da formação dos profes- não está primeiramente na questão do
sores ao material didático, com vista à ensino e da aprendizagem, mas na “sis-
educação tecnicista e às demandas do temática subsunção da educação à eco-
mercado. Destaque-se, desses convênios, nomia” (2008, p. 174). Segundo Pucci,
o acordo de 1966 entre a Usaid, o Minis-
tério da Agricultura brasileiro e o Con- [...] se analisada do ponto de
selho de Cooperação Técnica da Aliança vista do sistema, a indústria cul-
para o Progresso (Contap) para treina- tural é plenamente educativa, se
mento de técnicos rurais. preocupa com o enforme inte-
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Indústria Cultural e Educação
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Dicionário da Educação do Campo
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Infância do Campo
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Infância do Campo
Ana Paula Soares da Silva
Eliana da Silva Felipe
Márcia Mara Ramos
419
Dicionário da Educação do Campo
mundo global. Elas são sujeitos que Adolescente, são marcos para a inser-
atuam no mundo e são afetados por ção das crianças brasileiras no mundo
ele. Assim, falar de infância do campo, dos direitos humanos, num movimen-
das crianças concretas que o habitam, to de reconhecimento daquilo que as
é inexoravelmente falar de sujeitos do iguala em suas condições gerais. Ao
mundo, integrados a lugares, e sujeitos mesmo tempo, legislações específicas,
que a globalização uniu, partilhando materializadas em leis, decretos e reso-
de seus dramas e tragédias, realidades luções voltados a grupos particulares,
e fantasias. na maioria das vezes resultado da luta
Contraditoriamente, elas estão incluí- organizada desses mesmos grupos,
das e excluídas, uma vez que são parte de compõem esse sistema de proteção com
grupos socioculturais submetidos a vistas ao combate às desigualdades que
processos distintos de acesso a bens caracterizam a realidade das crianças.
materiais e imateriais, e implicados em Esse sistema orienta-se pelo princípio
lógicas de diferenciação atravessadas da equidade e da justiça social, e pre-
por relações de poder e dominação. tende promover a visibilidade dos gru-
pos de crianças que se diferenciam por
suas filiações e identidades territoriais,
Os direitos da criança étnico-raciais, religiosas, linguísticas e
de gênero.
A distribuição desigual da riqueza
material e simbólica produz um quadro Assim, o processo de construção
de resultados sociais e educacionais ex- da cidadania das crianças do campo é
tremamente desfavorável para as crian- construído no embate entre a realidade
ças do campo. plural, geralmente desigual, e os instru-
A violação de direitos sociais põe mentos legais conquistados e disponí-
em questão uma legislação avançada, veis para as crianças filhas de agriculto-
mas ainda de baixa efetividade. Essa le- res familiares, extrativistas, pescadores
gislação, contudo, serve de instrumen- artesanais, ribeirinhos, assentados
to de luta em favor das crianças como e acampados da Reforma Agrária,
sujeitos de direito, e tem se materializa- trabalhadores sem-terra, quilombolas
do no campo sob várias perspectivas. e caiçaras.
Como todas as crianças, os meninos A desigualdade no que se refere à
e meninas do campo são juridicamente efetivação de direitos é um grande obs-
constituídos como sujeitos de direitos, táculo ao processo de democratização
o que equivale a dizer que possuem to- do país. Para a maioria das crianças
dos os direitos humanos, fundamentais que habitam o campo, faltam alguns
para qualquer pessoa, que devem ser elementos básicos, porém essenciais,
reconhecidos e efetivados pela socie- ao projeto moderno. A educação, por
dade e pelo Estado. Direito à vida, ao exemplo, é dessas ausências mais pro-
lazer, à educação, à saúde, à integridade fundas. A escola “rural”, quando exis-
física e moral, à convivência familiar e te, acontece com uma infraestrutura
comunitária, por exemplo, compõem precária e uma visível desqualifica-
o rol dos chamados direitos de proteção ção profissional, derivada claramente
à infância. Garantidos na Constituição do abandono do Estado, com pouco
Federal e no Estatuto da Criança e do ou nenhum investimento e definição
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Dicionário da Educação do Campo
ção, como também formou seus qua- fora, transformadora das relações ex-
dros de intelectuais “orgânicos” para ternas, desde aquela com a natureza e
operarem na sociedade política e na com os outros homens em vários ní-
sociedade civil, configurando o que se- veis, nos diversos círculos em que vive,
ria o bloco histórico burguês (unidade até a relação máxima, que abarca todo
entre o estrutural e o superestrutural o gênero humano” (ibid.).
ou ético-político: direção intelectual Parafraseando Gramsci, manter ou
e moral mais controle do aparato do modificar uma concepção do mundo,
Estado), além de desencadear mecanis- suscitar novas maneiras de pensar, trans-
mos voltados para cooptar os intelec- formar o mundo exterior e as relações
tuais tradicionais, isto é, aqueles per- gerais significa fortalecer e desenvolver
tencentes à velha sociedade. Discorre a si mesmo, mas também consolidar
Gramsci: “Uma das características mais uma vontade coletiva nacional-popular.
marcantes de todo grupo que se desen-
O conceito de “vontade coletiva
volve no sentido do domínio é sua luta
nacional-popular” ou “vontade social
pela assimilação e pela conquista ‘ide-
coletiva” de Gramsci está estreitamente
ológica’ dos intelectuais tradicionais”
ligado ao de “reforma intelectual e mo-
(Gramsci, 2000a, p. 17). Daí a tese de
ral”, ou seja, à questão da hegemonia,
que os intelectuais não são um grupo
da atividade prática, política, correspon-
social autônomo, pois, com graus dis-
dendo às necessidades objetivas históri-
tintos de autonomia, possuem a função
cas. Para Gramsci, “é preciso também
de produzir maior homogeneidade e
definir a vontade coletiva e a vontade
organicidade na classe a que se encon-
política em geral no sentido moderno,
tram vinculados por meio de sua pró-
‘a vontade como consciência operosa
pria hegemonia político-cultural.
da necessidade histórica’, como pro-
Ao introduzir seus estudos sobre a tagonista de um drama histórico real e
filosofia da práxis, Gramsci, no cader- efetivo” (Gramsci, 2000a, p. 18).
no 10 dos Cadernos do Cárcere, indagan-
Para ele, os fatos econômicos em
do sobre o que é o homem, discorre
si não são o “máximo fator da histó-
que o homem deve ser compreendido
ria”, e sim o homem. Mas os homens
“como um bloco histórico de elemen-
tos puramente subjetivos e individuais em relação entre si, a “sociedade dos
e de elementos de massa e objetivos ou homens”, desenvolvendo nessa relação
materiais” (Gramsci, 1999, p. 406) re- que se estabelece nos contatos e dos
lacionados, ativamente, entre si. Nessa entendimentos entre si uma “vontade
perspectiva, afirma que a transforma- social coletiva” fundada na compreen-
ção do mundo exterior, isto é, das rela- são crítica e na adequação dos fatos
ções sociais, passa pelo fortalecimento econômicos à sua vontade, num movi-
e pelo desenvolvimento de si mesmo. mento tal que “essa vontade se torne
Entretanto, considera “uma ilusão e o motor da economia, a plasmadora
um erro supor que o ‘melhoramento’ da realidade objetiva, a qual vive, e se
ético seja puramente individual” (ibid.), move, e adquire o caráter de matéria
pois a síntese desses elementos que telúrica em ebulição, que pode ser di-
constitui a individualidade é individual, rigida para onde a vontade quiser, do
porém essa síntese não se realiza e nem modo como a vontade quiser” (Gramsci
se desenvolve “sem uma atividade para apud Coutinho, 2009, p. 33).
428
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Dicionário da Educação do Campo
civilização moderna”. E que esses dois ções, desde que não comprometam a
pontos fundamentais – vontade social agenda político-estratégica fundamen-
coletiva e reforma intelectual e moral – tal. No caso italiano, sustenta Gramsci:
deve fazer parte da constituição da “Qualquer formação de uma vontade
estrutura do trabalho do partido. coletiva nacional-popular é impossível
(Gramsci, 2000b, p. 18). se as grandes massas dos camponeses
O “partido” não é mero organismo cultivadores não irrompem simultanea-
corporativo, mas um organismo político, mente na vida política” (ibid., p. 19).
“catártico” e universalizante que supe- Para Gramsci, a “reforma intelec-
ra os interesses “egoístico-passionais” tual e moral” encontra seu ponto mais
ou “econômico-corporativos” em di- alto na “filosofia da práxis”, a ativi-
reção à consolidação do momento dade teórico-prática que proporciona
ético-político da consciência política a todos a possibilidade de compreen-
coletiva, que se constitui na unidade der e decidir a respeito do mundo em
entre fins econômicos e políticos e inte- que se vive. E essa nova inteligibilida-
lectual e moral posta no plano univer- de consiste na formação e na difusão de
sal. O momento ético-político para uma nova “racionalidade”, de um “es-
Gramsci (2000b) é a fase que assinala pírito crítico” e de uma sensibilidade
a passagem das correlações de força que critica qualquer explicação mítica
do âmbito corporativo para o univer- do mundo e recusa todo princípio de
sal, da esfera da estrutura para a das autoridade absoluto e pré-constituído
superestruturas complexas, inserindo- (Semeraro, 2001).
se numa luta frontal contra as ideolo- Trabalhando de modo criativo
gias anteriormente predominantes e na as teorias de Marx, Gramsci pôde se
irradiação da nova cultura em todo o apropriar do materialismo histórico
tecido social. Isto é, num confronto para tornar pensável um período histó-
pela hegemonia de um grupo social rico cuja sociedade civil era mais com-
fundamental sobre uma série de grupos plexa. Em sua época, as forças sociais
subordinados (Gramsci, 2000b, p. 18). que se apontavam como revolucioná-
O “partido” deve operar e dirigir a rias estavam organizadas em sindicatos
“grande política”, que “compreende as e em partidos políticos, possuíam “apa-
questões ligadas à fundação de novos relhos privados de hegemonia”, tais
Estados, à luta pela destruição, pela como jornais e revistas, com a função
defesa, pela conservação de determi- de difundir uma nova racionalidade, e
nadas estruturas orgânicas econômico- já tinham conquistado o sufrágio uni-
sociais” (Gramsci, 2000b, p. 21). Cabe versal. Foram as condições postas ob-
ao “partido” elaborar de modo homo- jetivamente pela realidade histórica que
gêneo e sistemático uma vontade co- o permitiram superar dialeticamente as
letiva nacional-popular, em mediação concepções de Estado, de sociedade
com os vários organismos particulares civil e de hegemonia, e ampliar a visão
das classes subalternas. Nesse sentido, de intelectual.
para Gramsci (2000b), o partido enga- Nesse sentido, a tarefa de buscar
jado na edificação da hegemonia dos elementos para definir a função polí-
subalternos tem de buscar a incorpo- tica e social dos intelectuais coletivos de
ração ativa das demandas de outras fra- classe numa perspectiva revolucionária,
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Nota
1
As aspas na palavra partido têm a intenção de destacar as aspas que o próprio Gramsci
utiliza nos trechos em que discute o tema.
432
J
Judicialização
Jadir Anunciação de Brito
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Judicialização
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Dicionário da Educação do Campo
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Juventude do campo
Elisa Guaraná de Castro
439
Dicionário da Educação do Campo
formal básica (ensino básico e médio). te por não estarem inseridos no mer-
O recorte de juventude com base em cado de trabalho. Com isto, se exclui
uma faixa etária específica é pautado o jovem das classes trabalhadoras da
pela definição de juventude como pe- concepção de juventude. Esta é uma
ríodo de transição entre a adolescência contribuição importante para perce-
e o mundo adulto. Essa concepção se bermos juventude como construção
estabelece como a mais recorrente a social (Castro, E. G., 2009).
partir da Conferência Internacional so- Uma construção recorrente é a que
bre Juventude, realizada em Grenoble, associa juventude a uma concepção ine-
em 1964 (ver Weisheimer, 2004). rentemente transformadora (Margulis,
A classificação que define jovem 1996), ou associada a um problema so-
mediante limites mínimos e máximos cial, como os textos que utilizam ter-
de idade é amplamente discutida. Para mos como delinquência juvenil para
Levi e Schmitt (1996), em História da retratar determinados indivíduos que
juventude, a idade como classificadora teriam em comum a idade e uma forma
é transitória e só pode ser analisada de se comportar. E diversos estudos
em uma perspectiva histórica de lon- tratam juventude a partir do problema
ga duração. O recorte etário permite do aumento da violência.1 Nestas duas
pesquisas quantitativas em larga escala perspectivas, jovem carrega caracterís-
e a definição de públicos-alvo de po- ticas que definem determinados indiví-
líticas públicas. Atualmente, o recorte duos a priori.
utilizado pelo poder público e por or- Contudo, outra leitura comum
ganismos internacionais é o de 15 a 29 atravessa o debate sobre juventude:
anos. No entanto, devem-se observar juventude como um período da vida,
os limites destas definições e questio- uma transição para a vida adulta. Ju-
nar a naturalização da associação entre ventude é uma categoria transitória e,
juventude e uma faixa etária específica como experiência individual, como
(Castro, E. G., 2010). identidade social ou, ainda, identidade
O debate sobre juventude, princi- política ela pode assumir contornos
palmente a partir das décadas de 1980 mais perenes. O peso da transitorie-
e 1990, trouxe o olhar da diversidade. dade aparece como uma “marca” re-
Para além dos cortes etários, ou apesar corrente nas definições e percepções
deles, não se fala mais em juventude, sobre juventude nos mais diferentes
mas em juventudes (Novaes, 1998). Sem cenários e contextos.
dúvida, é um caminho que contribuiu Podemos afirmar que juventude
para fugirmos de um olhar homogenei- é uma categoria social que posicio-
zante. Helena Abramo (2007) nos traz, na aqueles assim identificados em um
por exemplo, a importante reflexão so- espaço de subordinação nas relações
bre a associação entre juventude, edu- sociais. Paradoxalmente, jovem é asso-
cação e lazer, como uma construção ciado a futuro e a transformação social.
socialmente informada. Para a autora, Pode-se afirmar que o olhar para de-
essa seria uma concepção que trata a terminados indivíduos, informado pela
juventude como aqueles que estão em ideia de que estão numa fase de transi-
processo de formação e que ainda não ção do ciclo de vida, ou mesmo bioló-
têm responsabilidades, principalmen- gico, transfere, para aqueles que assim
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trou que, de um total de mais de 5.500 roça não precisam de estudos” (ibid.,
assentamentos pesquisados em todo o p. 126), e 70% “esperam que a maioria
país, em 87,8% deles o acesso é feito por dos jovens do assentamento entre na
estradas de terra. O principal meio de universidade” (ibid., p. 124).
transporte utilizado para ir à escola Assim, “ficar ou sair” do campo é
é percorrer o trajeto a pé para 57%, mais complexo do que a leitura da atra-
seguido de apenas 27% com acesso a ção pela cidade e nos remete à análi-
transporte escolar. Apesar desse qua- se de juventude como uma categoria
dro lastimável, a escolarização apare- social-chave pressionada pelas mudan-
ceu como muito valorizada.4 Entre os ças e crises da realidade no campo, e
entrevistados pela Pnera, 97% discor- para a qual a educação do campo tor-
dam que “os filhos que trabalham na nou-se uma questão estratégica.
Notas
1
A associação entre “jovem” e delinquência foi muito recorrente em pesquisas nas áreas
de psicologia e sociologia realizadas na Alemanha (ver Flitner, 1968). Nos Estados Unidos,
a Escola de Chicago privilegiava temas como delinquência e criminalidade, nos quais o
jovem aparece como um personagem em destaque ( ver Coulon, 1995). No Brasil, a Unesco
vem financiando, desde a década de 1990, pesquisas que analisam a juventude a partir de
enfoques que privilegiam questões como violência, cidadania e educação. Fazem parte desse
esforço trabalhos como o de Castro, M. G. et al., 2001.
2
Ver Deser, 1999; Abramovay et al., 1998; Carneiro, 1998; Majerová, 2000; e Jentsch e
Burnett, 2000.
3
A principal expressão dessa política de reforma agrária é o Plano Nacional de Reforma
Agrária, centrado em uma política de assentamentos rurais e regularização fundiária em
áreas de conflitos. Ver o portal do Ministério do Desenvolvimento Agrário: http://www.
mda.gov.br/portal/.
4
Essa também foi a impressão colhida na pesquisa Perfil da Juventude Brasileira (Abramo
e Branco, 2005). Os dados sobre juventude rural (669 entrevistados, representando 19% da
amostra total) foram analisados por Maria José Carneiro (2005), que revela semelhanças entre
o perfil de jovens rurais e urbanos nas quais o acesso à escolarização apareceu em destaque.
444
Juventude do Campo
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Dicionário da Educação do Campo
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L
Latifúndio
Leonilde Servolo de Medeiros
447
Dicionário da Educação do Campo
448
Latifúndio
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Dicionário da Educação do Campo
ao Golpe de 1964 e com o peso que, nessa nificativa dos trabalhadores que viviam
articulação política, tiveram os interesses no interior das fazendas (como colonos,
ligados aos grandes proprietários de terra, moradores, parceiros e arrendatários). As
a opção dos governos militares foi pelo grandes empresas que compraram ou ob-
incentivo à modernização tecnológica das tiveram concessões de terras nas áreas de
grandes propriedades, com incentivos fis- fronteira buscavam expulsar os posseiros
cais e crédito farto e barato. As limitações que lá viviam e restringir as dimensões
no tamanho de terras (até 3.000 hectares) dos territórios ocupados por grupos indí-
a serem concedidas sem autorização do genas, ampliando o campo de conflito. A
Senado Federal viraram letra morta. A ca- isso se somava outra dimensão: o avan-
tegoria latifúndio por extensão foi esque- ço sobre novas áreas e a reocupação
cida e foram dados incentivos não só à sua das antigas com tecnologias de ponta
transformação tecnológica, como também para a produção de exportação, com
se criaram condições favoráveis para que a concomitante devastação da vegeta-
essa forma de propriedade se viabilizasse ção nativa, seja da Mata Atlântica, do
nas regiões de fronteira agrícola, por meio Cerrado ou da Floresta Amazônica.
de concessões de terras públicas e demais Em resultado, os conflitos por terra e
políticas de incentivo à produção. por direitos se ampliaram, permanecendo
Esses estímulos atraíram também o latifúndio como símbolo de relações de
grandes empresas do setor industrial e exploração e opressão. No que se refere
financeiro para o meio rural, interessadas às pequenas propriedades, em especial no
na especulação com a terra. Com esse tipo sul do país, o endividamento causado pelo
de política, a ideia de criação de uma clas- esforço de acompanhar a modernização
se média rural deixou de ser relevante. Da levou muitos pequenos proprietários a
mesma forma, perdeu-se de vista que a vender suas terras, facilitando ainda mais
definição de empresa não poderia ser feita a concentração fundiária.
apenas pelas suas características produti- Com suas organizações fortemente
vas, mas também pelo respeito à legislação reprimidas, a própria luta dos camponeses
trabalhista e pela preservação ambiental, por direitos ficava extremamente limitada.
condição para que o imóvel cumprisse No início dos anos 1980, o latifúndio ain-
a sua função social, segundo o Estatuto da se mantinha como um “emblema míti-
da Terra. co” (Novaes, 1997), mas já correspondia
Ao longo das transformações que im- a um novo modelo de produção. Contra
plicaram a modernização tecnológica das ele se voltavam todas as organizações que
atividades agropecuárias – mecanização representavam os trabalhadores rurais – o
em larga escala, introdução de insumos Movimento dos Trabalhadores Rurais
químicos, aumento de produtividade, Sem Terra (MST), a Confederação dos
agroindustrialização, redução drástica da Trabalhadores na Agricultura (Contag),
população rural em relação à urbana e o Conselho Nacional dos Seringueiros
expansão da fronteira agrícola –, as con- (CNS) etc. – e as entidades que lhes da-
dições de trabalho no meio rural se de- vam apoio, com destaque para a Comissão
terioraram, bem como as condições de Pastoral da Terra (CPT) (ver Sindica-
reprodução da propriedade familiar. O lismo Rural).
450
Latifúndio
logo no início da Nova República, voltava- datários ou parceiros. Nesse caso, des-
se fundamentalmente contra o latifúndio de que os proprietários cumprissem os
e, com base numa leitura desapropria- princípios legais reguladores dos con-
cionista do Estatuto da Terra, procurava tratos, não se fariam desapropriações.
extirpá-lo. A apresentação da proposta Criavam-se, assim, condições para a
de plano resultou em forte reação dos revalorização dessas formas de explo-
proprietários de terra, e não daqueles ração da terra que se mostravam, de
dos rincões mais distantes, onde su- há muito, geradoras de conflito e que
postamente estaria o latifúndio, mas sempre tiveram a marca da precária uti-
dos setores mais modernizados, que lização e do absenteísmo patronal, tra-
tinham uma face de empresa (a mo- ço característico do que se considerava
dernidade tecnológica) e outra face do até então como latifúndio.
latifúndio tradicional (desrespeito aos
direitos dos trabalhadores e à preser- A Constituição de 1988
vação ambiental).
e seus resultados
Ao longo dos debates em torno
do PNRA, ganhou fôlego a ênfase na Os pontos centrais dos debates
negociação com os proprietários, em em torno do PNRA mantiveram-se na
lugar da desapropriação, eliminando- pauta da Assembleia Nacional Cons-
se a conotação punitiva que as desa- tituinte de 1988. O produto final im- L
propriações tinham no plano. Parale- plicou uma tensão entre as ideias de
lamente, desenvolveu-se a crítica aos produtividade e de função social. A
imóveis mantidos com fins meramente Constituição de 1988 afirma que a
especulativos e também uma polêmi- propriedade deve atender à sua fun-
ca a respeito da definição do que era ção social (art. 5º, XXIII), com uma
imóvel “produtivo” (portanto, não definição explícita do que se entende
passível de desapropriação). Na reda- por tal, inspirada no Estatuto da Ter-
ção final do PNRA (e nos documentos ra: aproveitamento racional, utilização
subsequentes), ficou preservado todo adequada dos recursos naturais dis-
imóvel rural que estivesse “em produ- poníveis e preservação do meio am-
ção”, entendendo-se por produção até biente, observância das disposições
mesmo a existência de um projeto de que regulam as relações de trabalho
aproveitamento ou, ainda, a exploração e exploração que favoreça o bem-
de parte do imóvel. Com isso, firmou- estar dos proprietários e trabalhado-
se uma tendência a reduzir a função res. Também tornou insuscetível de
social da propriedade a índices de pro- desapropriação para fins de Reforma
dutividade, deixando em segundo pla- Agrária a pequena e a média proprie-
no os demais elementos que, segundo dades rurais. O mais significativo, no
o Estatuto da Terra, compunham a sua entanto, foi a inserção de um artigo
definição. Enquanto categoria legal, determinando que a propriedade pro-
o latifúndio foi sendo ressignificado. dutiva não poderia ser desapropriada.
Também se inverteu a leitura contida A Constituição foi regulamentada
no Estatuto da Terra, que dava prio- pela Lei Agrária, como é conhecida a
ridade na desapropriação aos imóveis lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993.
que tivessem alta incidência de arren- Essa lei definiu que a propriedade que
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Legislação Educacional do Campo
L
L
LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL DO CAMPO
Mônica Castagna Molina
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Legislação Educacional do Campo
Além desta determinação geral con- dos movimentos sociais nas audiências
tida no artigo 28, há também o detalha- públicas que antecederam a elaboração
mento de como podem ser respeitadas das diretrizes, em seus artigos 5º, 7º,
estas especificidades para garantia do 8º e 9º, legitimam-se possibilidades de
direito à educação, explicitadas nos in- alterações na organização do trabalho
cisos de I a III deste artigo, e que dis- pedagógico, na organização curricu-
põem respectivamente sobre a garantia lar, e nos tempos educativos a serem
de: “conteúdos curriculares e metodo- vivenciados na construção da Escola
logias apropriadas às reais necessidades do campo.
e interesses dos alunos da zona rural; As determinações constantes nas
organização escolar própria, incluindo diretrizes que estabelecem as obriga-
a adequação do calendário escolar às ções do poder público são ferramentas
fases do ciclo agrícola e às condições importantes na luta política para a sua
climáticas; adequação à natureza do materialização, além dos dispositivos
trabalho na zona rural”. que determinam a obrigatoriedade do
De acordo com o parecer que oferecimento da educação infantil e
acompanha as Diretrizes Operacionais das séries iniciais nas próprias comu-
para a Educação Básica nas Escolas do nidades rurais, o que tem sido flagran-
Campo, a Educação do Campo “tem temente descumprido pelos sistemas
um significado que incorpora os espa-
ços da floresta, da pecuária, das minas
municipais de ensino. O artigo 6º da
Doebec de 2002 dispõe que “o Poder
L
e da agricultura, mas os ultrapassa ao Público, no cumprimento das suas
acolher em si os espaços pesqueiros, responsabilidades com o atendimento
caiçaras, ribeirinhos e extrativistas” escolar e à luz da diretriz legal do re-
(Brasil, 2001). A intencionalidade da gime de colaboração entre a União, os
definição apresentada é que a garantia estados, o Distrito Federal e os muni-
do direito à educação que propugna cípios, proporcionará educação infantil
considere a incorporação dos diferen- e ensino fundamental nas comunidades
tes sujeitos que garantem suas condi- rurais” (Brasil, 2002).
ções de reprodução social a partir do Outro aspecto a se destacar das
trabalho ligado diretamente à natureza, diretrizes refere-se à incorporação em
assim como definem as diretrizes, ao suas determinações de princípios fun-
afirmar que, “nesse sentido, mais do dantes da Educação do Campo no que
que um perímetro não urbano, é um se refere às práticas de gestão da es-
campo de possibilidades que dinami- cola, que devem ser compartilhadas,
zam a ligação dos seres humanos com tal como disposto no artigo 10o, que
a própria produção das condições da estabelece que a gestão deverá cons-
existência social e com as realizações da tituir “mecanismos que possibilitem
sociedade humana” (ibid). estabelecer relações entre a escola, a
No artigo 3º das Doebec (Brasil, comunidade local, os movimentos so-
2002 e 2008), reafirma-se a obrigato- ciais, os órgãos normativos do sistema
riedade de o poder público garantir de ensino e os demais setores da so-
a universalização do acesso da popu- ciedade” (Brasil, 2002). A relação da
lação do campo à educação básica. escola do campo com a comunidade
Também como resultante da presença é ponto nevrálgico de sua estruturação
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Dicionário da Educação do Campo
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Legislação Educacional do Campo
do referido decreto traz não só extensa não lograram ainda ações proporcio-
lista de tipificação das populações do cam- nais à magnitude do problema). Dentre
po (agricultores familiares, extrativis- elas, destacam-se a taxa de analfabetis-
tas, pescadores artesanais, ribeirinhos, mo da população de 15 anos ou mais,
assentados e acampados da Reforma que apresenta um patamar de 23,3% na
Agrária, quilombolas, caiçaras, povos área rural, três vezes superior àquele da
da floresta e caboclos), como reco- zona urbana, que se encontra em 7,6%;
nhece, contidas nesta categoria, outras a escolaridade média da população de
populações não explicitadas no corpo 15 anos ou mais que vive na zona rural,
da lei, que “produzam suas condições que é de 4,5 anos, enquanto, no meio
materiais a partir do trabalho no meio urbano, na mesma faixa etária, é de 7,8
rural” (Brasil, 2010). anos; as condições de funcionamento
Também se destaca a importância das escolas de ensino fundamental, que
do acolhimento, no referido decre- são extremamente precárias, pois 75%
to, da concepção de escola de campo, dos alunos são atendidos em escolas
definindo como suas características que não dispõem de biblioteca; 98%,
identificadoras não só a localização em em escolas que não possuem laborató-
território rural, mas também reconhe- rio de ciências; e 92%, em escolas que
cendo como tais as escolas que não se não possuem acesso à internet (Molina,
situam neste espaço, mas que atendem
predominantemente populações do campo,
Oliveira e Montenegro, 2009, p. 4). L
Estes indicadores expõem a urgen-
conforme explicitação desta categoria te necessidade da adoção de políticas
feita no inciso I do parágrafo 1o, ante- afirmativas para o enfrentamento des-
riormente comentado. tas privações, em função das variadas
O decreto no 7.352, no caput do arti- consequências que geram ao negar o
go 3o, reconhecendo esta especificida- desenvolvimento amplo e integral não
de, determina que caberá à União criar só desses indivíduos, mas também das
e implementar mecanismos “com o ob- comunidades rurais às quais perten-
jetivo de superar as defasagens históri- cem. O fato de este decreto determinar
cas de acesso à educação escolar pelas que o Estado conceba, e execute, polí-
populações do campo” (Brasil, 2010), ticas específicas para acelerar a supres-
desenvolvendo políticas específicas são das históricas defasagens no direito
para enfrentar os problemas mais gra- à educação dos povos do campo fun-
ves e persistentes, entre eles: reduzir os damenta-se na compreensão sustenta-
indicadores de analfabetismo; fomen- da por estudiosos das políticas públicas
tar políticas de educação de jovens e (por exemplo, Kerstenetzky) que defen-
adultos; garantir condições de infraes- dem que, para restituir a grupos sociais
trutura básica para as escolas (energia o acesso efetivo a direitos universais
elétrica, água potável e saneamento); e formalmente iguais, que, por diversos
promover nelas a inclusão digital . fatores históricos, não foram garanti-
A exigência de políticas afirmati- dos na prática, faz-se necessária uma
vas para essas situações dá-se funda- intervenção do Estado com progra-
mentada em estatísticas que expõem a mas afirmativos específicos para enfren-
absurda privação do direito à educação tar estas desigualdades. Pois, conforme
escolar no campo (políticas estas que Kerstenetzky, “sem ação – política – e
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já evidencia o caráter central que a le- quadro normativo. Ainda que esta li-
galidade apresenta para o conceito de nha da análise possa parecer em certa
legitimidade nas sociedades modernas. medida conservadora, por aproximar
O sociólogo alemão Max Weber foi legitimação de legalidade, note-se que
um dos primeiros pensadores a evi- não foi outra a estratégia principal
denciar de forma expressa e minuciosa adotada pelos movimentos sociais no
os mecanismos pelos quais as socie- Brasil no processo de democratiza-
dades contemporâneas buscam legiti- ção, e, principalmente, de elaboração
mar o poder e sua distribuição social da Constituição de 1988. Diga-se de
por meio da legalidade – ou, dito de passagem, com razoável sucesso, tanto
outra forma, a reconhecer e pensar o que esta ocupação permanente de es-
papel central que o direito desempenha paços na Constituinte forçou a reestru-
na legitimação das ordens sociais mo- turação dos setores conservadores no
dernas. Para ele, as sociedades pré- chamado “Centrão”. Apesar de vários
modernas baseavam suas estruturas de recuos determinados pela atuação dos
legitimação em elementos mágicos ou setores conservadores, esta estratégia
sobre-humanos (como a origem divina de legitimação constitucional das lutas
do poder), conclusão que obtém estu- sociais fixou em termos bastante am-
dando várias sociedades, e não apenas plos e razoáveis na Constituição Fede-
as europeias. Segundo Weber, a tran- ral o dever do Estado de implantar um
sição para a modernidade implica um programa nacional de Reforma Agrária
desencantamento do mundo, um processo de (art. 184 a 191 da Constituição), e mui-
racionalização em que o homem e a ra- tas das reivindicações dos movimentos
zão humana passam a figurar no centro sociais de sem-terras no país são arti-
da legitimação do poder. Com o poder culadas não como meras pretensões de
desvinculado de sua origem mágica ou fato, mas como exercícios de direito –
religiosa, torna-se necessário encon- no que, inclusive, estão certas.
trar um fundamento racional para ele, Essa perspectiva nos abre, portan-
e este elemento de racionalidade se ex- to, outra forma de olhar para as pre-
pressa por meio de mecanismos jurídi- tensões de luta pela terra pelos mo-
cos que abrangem boa parte da vida em vimentos populares em geral, na qual
sociedade: eleições, direitos subjetivos, a legitimação da luta em si está dada
como os de livre manifestação, de li- pelo próprio texto constitucional. Tan-
berdade religiosa, de greve, etc. to é assim que os setores mais conser-
Neste contexto, as sociedades mo- vadores, há poucos anos, tendiam a
dernas tendem a equiparar (ou, pelo criticar mais os métodos de luta pela
menos, a aproximar em grande medida) terra do que a reivindicação do direito
os conceitos de legitimidade e de lega- em si. Esta realidade mudou no último
lidade – reivindicações populares são período, com o desenvolvimento do
legítimas quando canalizadas mediante agronegócio e a consequente disputa
mecanismos institucionais e ampliam por áreas de plantio e por apoio eco-
sua legitimidade quando acolhidas por nômico e político do governo, quando
normas jurídicas e medidas administra- se passou a articular publicamente um
tivas, ou, pelo menos, quando se mos- discurso que questiona a legitimidade
tram em geral compatíveis com este da luta pela Reforma Agrária em si
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Legitimidade da Luta pela Terra
Notas
1
2
Ver http://www.cptnacional.org.br.
Ver http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/15203-justica-faz-mutirao-para-julgar-crimes-no-para.
L
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Licenciatura em Educação do Campo
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ram na dicotomia entre o campo e a ci- esta situação começou a mudar, resul-
dade, e nunca atenderam às necessidades tante do protagonismo dos movimentos
e especificidades dos povos do campo, sociais na disputa pela concepção de um
especialmente no tocante à forma- projeto de educação e de campo que se
ção de professores. Somente com o avan- afinem com um projeto de desenvolvi-
ço das lutas dos trabalhadores do campo, mento emancipatório para o país.
Nota
1
Para uma discussão sobre a questão da formação por áreas de conhecimento, ver Caldart,
2010, p. 127-154.
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M
Mística
Ademar Bogo
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Mística
essas tradições retornam pelo registro da ameaça também instiga o seu contrá-
memória militante, que não esquece nem rio: a reação para o crescimento.
abandona as gerações que lutaram no pas- A areia, que com a ajuda da água
sado, mesmo não as tendo conhecido. mistura e dissolve o cimento, torna-se,
Compreende-se que é nas formas com o calor do sol, parte da velha rea-
de consciência (histórica, política, re- lidade e base do novo concreto que
ligiosa, ecológica etc.) que se revela a sustenta belas construções com as
qualidade da existência dos grupos formas e os contornos desejados pelo
e das classes sociais que fizeram os projeto arquitetônico.
movimentos populares acreditarem A violência que intimida é também
que um ser que trabalha, convive, a escola para a resistência. O carisma
luta e transforma tem de considerar da militância se manifesta na diversi-
como parte deste compartilhar, a tá- dade do empenho de cada sujeito para
tica, a força, o sacrifício a dor, etc. e, fazer o belo.
ao mesmo tempo combinar o ânimo,
a vontade, a disposição, a alegria e o A criatividade que surpreende o ini-
prazer de fazer o belo e o melhor para migo surge das práticas mais simples,
a humanidade. originadas na inspiração de produzir o
novo. Assim, as lutas, que formam os fa-
tos lembrados pelas datas, e descritos,
A mística na militância associados aos lugares, como cenários
Se qualquer ser humano é melhor artísticos articulados, também produ-
do que a melhor abelha, porque conse-
gue antecipar em sua mente aquilo que
zem os sujeitos individuais e coletivos.
A fonte que sacia a sede é também
M
vai fazer depois (Marx, 1996), por o espelho que reflete a imagem, como
que nem todos os seres humanos ex- ocorreu com Orígenes, revelando a
pressam tais capacidades e muitos omi- beleza de cada militante, que arranca,
tem-nas, mesmo sabendo que as têm? com o esforço coletivo, a própria au-
A mística na militância é como a toestima. Nomes e apelidos tornam-se
força de germinação que existe dentro conhecidos e representam mais do que
das sementes. Assim como saem da identidades, irrompem como sinôni-
dormência as gêmulas das sementes, mo de segurança, confiança e lealdade,
despertam os militantes para a histó- como exemplo de conduta e de ânimo.
ria como sujeitos conscientes de suas No fazer coletivo, destacam-se lideran-
funções sociais. Descobrem as poten- ças, projetam-se cantadores, poetas e
cialidades das mudanças adormecidas animadores, como se fossem variedades
nos contextos sociopolíticos e des- novas de sementes em germinação que
vendam, na penumbra dos processos, desconheciam o potencial que traziam
possibilidades de agregar elementos em si mesmas. Dessa forma, a polí-
diferenciadores que impulsionam as tica vira arte e a arte ganha função
mudanças sociais. política nas ações e eventos.
Os riscos e perigos empunhados É na luta transformadora feita com
pelas forças contrárias são obstáculos arte que o ser social se reinventa e se
constantes a serem enfrentados e ultra- exterioriza, expondo-se de outra ma-
passados. Porém, a força que oprime e neira que ainda não era aparentemente
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Dicionário da Educação do Campo
conhecida, para fazer surgir a nova e rem, ganham a massa que lhes dá vo-
bela sociedade na qual viverá. É por lume e, ao mesmo tempo, por dentro,
meio da arte que o indivíduo se auto- abrigam a formação das sementes.
produz: “se o homem só pode se rea- Sem a mística, não haveria histó-
lizar saindo de si mesmo projetando- ria militante. As massas perderiam a
se fora, isto é, objetivando-se, a arte esperança logo no início e deixariam
cumpre com este papel de humani- escapar a energia do combate, da re-
zação do próprio homem” (Sánchez sistência e da persistência. As lideran-
Vázquez, 1968, p. 57). Gostar e lutar ças se corromperiam e se aliariam aos
pelo belo é um princípio que se tor- criminosos assim que vislumbrassem
na um dever. Acima de tudo, fazer o alguns privilégios.
belo transformador torna-se hábito
com o mais puro sentir e com o mais Na mística militante, a organização
profundo querer. é um instrumento indispensável. Os
tempos passados ensinam que, desor-
Com a mística, os tempos das lutas
ganizados e dispersos, os povos não
ganham outras dimensões. Se o tempo
têm força, ânimo ou condições de en-
produtivo mede-se pela produtividade
frentar os criadores da violência. Ao
material, o tempo da luta se mede pela
contrário, quando se adota uma postu-
espera e pela preparação das vitórias.
ra ativa no mundo, a vida consciente
A espera militante nunca é “tempo per-
dido”: é preparação. A futura mãe que é sempre ação: “atuo mediante o ato,
cuida da gestação não perde nem ganha a palavra, o pensamento, o sentimen-
tempo, apenas prepara o nascimento. to; vivo, venho a ser através do ato”
Sabe que não pode ter pressa, nem (Bakhtin, 2000, p. 154).
abandonar o processo em andamen- A organização se eleva em vista da
to. Sendo assim, quando chega “a sua causa que ganha forma no projeto, tal
hora”, é um momento novo pelo qual qual um edifício: antes da construção,
viveu. É a prévia-ideação objetivada na somente os engenheiros e os arquite-
prática (Lessa, 2007, p. 38). tos sabem como será. A planta dese-
Sendo assim, os longos anos de nhada é de difícil leitura e, por isso,
espera pela terra, acampados sob todos sabem que, pelo esforço huma-
barracas de lona, nunca significaram no, crescerá no local um edifício; mas
perda, mas ganho, em formação, em a força para que ele aconteça está com
consciência e organização popular. os construtores, que desejam ver a
Perde tempo quem abandona a luta; obra pronta e se empenham para rea-
ganha, quem persiste no lugar em que lizar tal acontecimento. A mística não
se faz sujeito. está no projeto, mas nos sujeitos que
A mística é o ânimo para enfrentar o constroem.
as dificuldades e sustentar a solidarie- A mística necessita de perspectivas;
dade entre aqueles que lutam. A místi- precisa do olhar no horizonte, no lu-
ca não somente ajuda a transformar os gar em que fica a utopia que instiga a
ambientes e cenários sociais; acima de aproximação dos passos das cansativas
tudo, impulsiona e provoca mudanças marchas, para se afastar tanto quanto
por fora e por dentro dos sujeitos, tal avançara. O projeto é o condutor da
qual o fazem as frutas, que, ao cresce- marcha que liga a distância histórica
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Modernização da Agricultura
Modernização da Agricultura
Paulo Alentejano
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Modernização da Agricultura
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Todo esse processo de moderniza- Um aspecto que não pode ser ne-
ção implicou ainda o crescente contro- gligenciado ao se analisar o impacto
le das transnacionais do agronegócio da modernização é o ideológico. A
sobre a agricultura brasileira – seja pela modernização não é imposta apenas
determinação do padrão tecnológico pelo mercado, mas também pelos
(sementes, máquinas e agroquímicos), meios de comunicação, pela ação do
seja pela compra/transformação da extensionismo rural, da propaganda
produção agropecuária (grandes tra- etc. Esta imposição ideológica da mo-
ders, agroindústrias). Do ponto de vista dernização passa pelo convencimen-
do padrão tecnológico, os processos to do agricultor no que diz respeito
mais notórios atualmente dizem res- à superioridade das formas modernas
peito à difusão das sementes transgê- de produzir em relação às tradicio-
nicas pelas grandes empresas do setor nais, e seu impacto é expressivo, por-
(como Monsanto, Bayer, Syngenta, que que, além de reforçar a expropriação
também são as grandes produtoras de econômica, representa uma forma de
agroquímicos), mas também são dig- expropriação do saber, pois torna os
nos de nota a ampliação da presença camponeses dependentes, uma vez
das transnacionais na comercialização que não mais dominam as técnicas e
e o processamento industrial da produ- os processos produtivos.
ção agropecuária, sobretudo pelas em- O caráter socialmente excludente
presas ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus, destas transformações que moderniza-
que, inicialmente, concentravam sua ram significativamente o setor levou à de-
atuação no ramo de cereais, mas têm se nominação deste processo como moder-
expandido para outros ramos, sobretu- nização dolorosa (Silva, 1982), mo-
do o sucroalcooleiro. dernização desigual (Gonçalves Neto,
Pesquisas recentes (Paulin, 2011) 1997), ou, mais generalizadamente,
indicam que a participação do capital “modernização conservadora”.
externo no agronegócio aumentou de Assim, o que resulta do processo
31%, em 1990, para 44%, em 2010. de modernização é uma agricultura
As grandes corporações estrangei- subordinada às grandes corporações
ras já controlam 51% dos embarques agroindustriais e ao capital financei-
de soja e 37% dos de carne suína, e, ro e que beneficia cada vez menos os
agora, voltam-se para o açúcar e o camponeses e trabalhadores do cam-
álcool. Estas corporações concentraram po em geral e que tampouco contri-
sua atuação, num primeiro momento, bui para a soberania alimentar. Ao
na comercialização; posteriormente, contrário, como nos lembra Delgado
avançaram sobre o processamento agro- (2010), a modernização conservadora
industrial e, só mais recentemente, da agricultura brasileira foi construída
vêm atuando diretamente na produção à base de devastação e violência, sob
agropecuária, tanto que o percentual “pata de boi, esteira de trator e rifle de
de recursos externos neste segmento jagunço” (ibid., p. 1). E isso revela a
é de apenas 4%. face colonial dessa modernização.
Nota
1
Para um maior detalhamento dessa polêmica, ver, entre outros, Gonçalves Neto, 1997 e
Palmeira e Leite, 1998.
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Movimento de Mulheres Camponesas (MMC Brasil)
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Movimento de Mulheres Camponesas (MMC Brasil)
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Movimento de Mulheres Camponesas (MMC Brasil)
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Nota
1
Ver http://www.mmcbrasil.com.br.
488
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
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Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
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Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
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Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)
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Direção Nacional – cada estado em (crédito, assistência técnica, mecani-
que o MPA está organizado indicará, zação camponesa, sementes crioulas,
no encontro nacional, o número de comercialização, seguro agrícola, apoio
seus representantes para compor a di- para agroindústrias etc.).
reção nacional. A tarefa desta instância Este projeto só se viabilizará com
é garantir a organicidade política, a ar- a relação direta entre campo e cidade,
ticulação das lutas e as negociações em e a aliança entre a classe camponesa e a
nível nacional do MPA. classe operária. Esta relação se cons-
truirá nas lutas de massa, na organiza-
Plano Camponês ção e na industrialização da produção,
na comercialização direta, na relação
A principal formulação estratégica entre iguais. O plano camponês se
do MPA é o Plano Camponês, resultado contrapõe ao projeto do agronegócio,
de suas lutas e de sua história. Ele está hoje predominante no campo, sendo
sendo construído para atender as ne- as seguintes as principais oposições
cessidades da classe camponesa e para entre ambos: produção diversifica-
responder aos desafios de toda a so- da versus monocultivos; mercado interno
ciedade, que precisa comer alimento versus exportação; trabalho versus desem-
saudável, beber água limpa, respirar ar prego; trabalho familiar versus explo-
puro, enfim, viver bem. É, portanto, a ração do trabalho alheio; terra distri-
contribuição da classe camponesa para buída versus latifúndio; comunidades
um projeto popular para o Brasil. versus isolamento e vazio populacio-
O Plano Camponês tem dois pilares nal; sementes próprias versus sementes
fundamentais: 1) condições para viver patenteadas/transgênicas; preservação M
bem no campo (educação camponesa, da biodiversidade versus destruição
moradia digna, espaços de esporte, la- ambiental; alimentos saudáveis versus
zer e cultura, saúde, vida em comuni- contaminação alimentar/venenos; so-
dade etc.); 2) condições para produzir berania alimentar versus monopólio dos
comida saudável, respeitando a nature- alimentos; e povo brasileiro versus mul-
za, e para alimentar o povo trabalhador tinacionais/imperialismo.
Nota
1
São eles: Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Rondônia, Pará, Mato Grosso, Goiás,
Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande
do Norte, Ceará e Piauí.
497
Dicionário da Educação do Campo
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Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
dos (Fernandes, 1996; Fernandes e 1994, que realizou ampla política de as-
Stedile, 1999). sentamentos rurais. Em 1998, em seu
No governo militar, foi elabora- segundo mandato, Fernando Henrique
da a primeira lei de Reforma Agrária, Cardoso adotou a política agrária de
representada pelo Estatuto da Terra – caráter neoliberal, reprimiu a luta pela
uma lei que expressava os princípios da terra e implantou uma política de mer-
reforma agrária clássica, que, todavia, ja- cantilização da mesma, denominada
mais foi aplicada. Em 1985, no primeiro “reforma agrária de mercado”. Ainda
governo da redemocratização, foi ela- criou a medida provisória no 2.109-50,
borado o I Plano Nacional de Reforma de 2001, que suspendeu por dois anos a
Agrária (PNRA). Elaborado pela equipe desapropriação de áreas ocupadas uma
do professor José Gomes da Silva, o pla- vez, e por quatro anos se ocupadas por
no retratava o ascenso do movimento duas vezes ou mais. Também destruiu
de massas da época e propunha o as- a política de crédito para a Reforma
sentamento de 1,4 milhão de famílias Agrária e a política de assistência téc-
em apenas quatro anos. Em resposta, os nica, inviabilizando o desenvolvimento
latifundiários se articularam politicamen- dos assentamentos e precarizando a
te e de forma armada para combater os vida de centenas de milhares de famí-
movimentos e as lutas sociais. Criaram a lias assentadas.
União Democrática Ruralista (UDR), que
A esperança na realização da Refor-
atuou intensamente para que o PNRA
ma Agrária foi recuperada com a eleição
jamais fosse implantado. José Gomes da
de Luiz Inácio Lula da Silva para pre-
Silva e sua equipe foram demitidos do
Instituto Nacional de Colonização e Re-
sidente do Brasil. Em 2003, foi elabo-
rado o II Plano Nacional de Reforma
M
forma Agrária (Incra) pelo então presi-
dente José Sarney (ver Organizações da Agrária (II PNRA), com a promessa
Classe Dominante no Campo). de assentar 400 mil famílias por meio de
desapropriação, regularizar 500 mil pos-
Em 1988, na elaboração da nova ses, e assentar 130 mil famílias por meio
Constituição, a Reforma Agrária so- da política de crédito fundiário. Lula
freu revezes dos ruralistas. Embora te- foi reeleito em 2006 e, em 2010, quan-
nha sido aprovada na Constituição, os do terminou o segundo mandato, havia
ruralistas conseguiram retirar o prin- realizado parcialmente o que prometera
cípio da eliminação do latifúndio e o em 2003. No entanto, o Governo Lula
condicionaram a ser produtivo ou não, seguiu priorizando a regularização fun-
e ainda repassaram sua definição para diária na Amazônia, e só desapropriou
uma lei complementar que precisaria em casos de conflito intenso (Núcleo de
ser criada. Com essa estratégia, criaram Estudos, Pesquisas e Projetos de Refor-
um imbróglio jurídico que paralisou as ma Agrária, 2010). A Reforma Agrária
iniciativas e a celeridade do Incra. So- do Governo Lula incorporou a regula-
mente em 1993, com a aprovação da lei rização como componente principal,
no 8.629, passou a existir regulamenta- enquanto milhares de famílias perma-
ção para a desapropriação de terras. neceram acampadas. O compromisso
O aumento das ocupações de ter- de investir na melhoria da qualidade dos
ra e do número de famílias acampadas assentamentos foi cumprido parcial-
pressionou o governo do presidente mente, com investimentos em infraes-
Fernando Henrique Cardoso, eleito em trutura, comercialização e educação.
499
Dicionário da Educação do Campo
500
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Nota
1
Até 2011, o MST não estava organizado nos estados do Acre, Amapá e Amazonas.
501
Dicionário da Educação do Campo
MST e Educação
Edgar Jorge Kolling
Maria Cristina Vargas
Roseli Salete Caldart
502
MST e Educação
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Dicionário da Educação do Campo
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MST e Educação
505
Dicionário da Educação do Campo
506
MST e Educação
507
Dicionário da Educação do Campo
Isso também permitiu pensar que a ções sociais. Nesse sentido, salienta-
“escola diferente” que desde o come- se a importância de discutir e experi-
ço se buscava construir era uma escola mentar novas formas de gestão e de
que assumisse o vínculo com esta luta, trabalho coletivo, de exercitar a auto-
com a vida concreta de seus sujeitos, organização dos estudantes, o cultivo
e partilhasse dos seus objetivos for- da mística e de padrões de cultura e
mativos mais amplos. Estes objetivos convivência que respeitem os valores
não seriam apenas da escola, visto não de igualdade, justiça e solidariedade,
ser ela capaz de realizar sozinha um e o modo de aprender específico de
projeto educativo. Por essa razão, a es- cada tempo de desenvolvimento hu-
cola não deve ser pensada fechada em mano, de cada idade.
si mesma, mas nos vínculos que pode Integra o mesmo percurso a com-
ter com outras práticas educativas do preensão de que é preciso ampliar as
seu entorno. dimensões do trabalho educativo da
Desde a compreensão de sua ma- escola sem deixar de considerar a es-
terialidade específica, o MST passou pecificidade da sua tarefa em relação
a expressar (fundamentar-se em) e a ao conhecimento: os camponeses do
reafirmar uma concepção de educação MST começaram essa história sabendo
que vincula a produção da existência que não poderiam abrir mão da instru-
social à formação do ser humano, con- ção proporcionada pela escola como
siderando as contradições como mo- ferramenta necessária à compreen-
tor, não apenas das transformações da são da realidade que lutam para co-
realidade social, mas da própria inten- letivamente transformar. Porém logo
cionalidade educativa, na direção de entenderam que o conhecimento de
um determinado projeto de sociedade e que necessitam somente se produz na
de humanidade. relação entre teoria e prática, pelo vín-
Por isso, costuma dizer-se que a culo do estudo com o trabalho, com
reflexão pedagógica do MST come- as questões da vida real. E aprendem
çou dentro da escola, mas precisou aos poucos a defender uma concep-
sair dela, ocupando-se da totalida- ção de conhecimento que dê conta de
de formativa em que se constituiu o compreender a realidade como tota-
movimento, para a ela retornar, a par- lidade, nas suas contradições, em seu
tir, então, de uma visão bem mais alar- movimento histórico.
gada de educação e de escola. Vincular a escola a essa concepção
Foi assim que, aos poucos, o MST de educação e de conhecimento implica
foi consolidando sua convicção de fazer transformações na forma escolar
que a escola deve ser tratada como atual, construída historicamente com
lugar de formação humana, e que uma outras finalidades sociais e a partir
proposta de escola vinculada ao movi- de outra matriz formativa. E uma
mento não pode ficar restrita às ques- transformação mais radical da esco-
tões do ensino, devendo se ocupar de la somente acontecerá como parte de
todas as dimensões que constituem transformações mais amplas na própria
seu ambiente educativo. A escola in- sociedade que a instituiu com uma ló-
teira deve ser pensada para educar: em gica apartada da vida, exatamente para
seus tempos, espaços e em suas rela- que suas contradições não possam ser
508
MST e Educação
compreendidas pela classe que pode sujeitos como centro das discussões
pretender enfrentá-las. de mudança. O trabalho de educa-
Há, no entanto, movimentos de ção do MST tem buscado construir
transformação que podem e vêm sen- referências teóricas e práticas da di-
do desencadeados à medida que se reção a seguir quando o movimento
consegue ter uma capacidade coleti- de construção de uma escola aberta
va de análise das condições presentes à vida, em todas as suas dimensões,
em cada escola concreta e se colocam e vinculada aos objetivos sociais dos
os objetivos de formação dos seus trabalhadores torna-se possível.
509
O
Ocupações de terra
Marcelo Carvalho Rosa
511
Dicionário da Educação do Campo
512
Ocupações de Terra
serviu para que milhares de outras ras, com a formação da União Demo-
famílias na mesma situação formas- crática Ruralista (UDR), que organizou
sem o acampamento da Encruzilhada os latifundiários de diversas partes do
Natalino, sobre uma pequena extensão país para o embate político que se deu
de terras de um agricultor que havia na Assembleia Nacional Constituinte
sido assentado no Macali I. e que acabou por limitar as intenções
previstas no PNRA (ver Organizações
da Classe Dominante no Campo).
As ocupações do Movimento
A relação das ocupações com o di-
dos Trabalhadores Rurais
reito constitucional fica clara quando
Sem Terra percebemos que os números desse tipo
de mobilização cresceram exponencial-
Podemos afirmar que o uso do ter-
mente no Brasil após a regulamentação
mo ocupação de terras no seu sentido
dos dispositivos constitucionais rela-
contemporâneo foi cunhado pelo Mo-
tivos à Reforma Agrária, previstos no
vimento dos Trabalhadores Rurais Sem
capítulo III, título VII, da Constitui-
Terra (MST). O uso do termo ocupa-
ção Federal. Aprovada em 1993, a lei
ção foi estratégico na formulação das
nº 8.629 define critérios de produtivi-
bases de justificação e legitimação
dade e de uso do solo em propriedades
do MST e na demanda pela realiza-
rurais para que elas sejam consideradas
ção da Reforma Agrária no Brasil.
produtivas. A mesma lei também define
Se o termo invasão, utilizado ao as formas de desapropriação e dis-
longo dos anos 1960 e 1970, trazia tribuição das terras consideradas im-
consigo tons pejorativos e denotava produtivas ou que não cumprem sua
prática considerada ilegal no que diz função social.
respeito ao direito de propriedade, o
uso do substantivo ocupação indica ou-
Outro marco constitucional vincula-
do às ocupações é a medida provisória
O
tro cenário. Ao usar o termo ocupação,
nº 2.183-56, de 24 de agosto de 2001,
o MST se refere ao direito constitucio-
editada no Governo Fernando Henrique
nal de todo cidadão brasileiro de ter
Cardoso, período em que o Brasil regis-
acesso à terra, conforme o Estatuto da
trou o maior número de ocupações de
Terra (lei nº 4.504, de 30 de novembro
terra, até os dias atuais. Essa medida pro-
de 1964), que, em seu artigo 2º, assegu-
visória reviu pontos cruciais do Estatuto
ra “a todos a oportunidade de acesso
da Terra e da lei nº 8.629. Além de excluir
à propriedade da terra, condicionada todas as terras ocupadas do PNRA, ela
pela sua função social” (Brasil, 1964). impede o acesso aos recursos públicos
As ocupações de terra realizadas de qualquer movimento ou grupo orga-
no início da década de 1980 no Rio nizado que promova ocupações de terra.
Grande do Sul e no Rio de Janeiro con- Essa política de criminalização da ação
tribuíram significativamente para que o dos movimentos sociais contribuiu para
primeiro governo não militar em qua- a retomada dos acampamentos em áreas
renta anos lançasse, em 1985, o Plano externas a propriedades que não cum-
Nacional de Reforma Agrária (PNRA). priam a sua função social, quando não
Nesse mesmo ano, em resposta às ocu- havia regulamentação dos critérios para
pações, surgiram reações conservado- desapropriação previstos no Estatuto.
513
Dicionário da Educação do Campo
Desde a sua fundação, o MST ocu- priadas pelo governo, a ocupação assi-
pa e realiza acampamentos para reivin- nala as terras em que as famílias dese-
dicar o uso socialmente justo de pro- jam ser assentadas. Nas ocupações, ao
priedades públicas e privadas que não fazerem a denúncia simultânea de um
cumpram a sua função social, seja em direito que lhes é negado e das ilegali-
relação aos níveis de produtividade, dades perpetradas pelos latifundiários,
seja no que diz respeito à conserva- e durante séculos acobertadas pelos
ção dos recursos naturais, ou, ainda, em governos de nosso país, as famílias
termos de relações justas entre traba- que desejam ter acesso à terra passam
lhadores rurais e patrões. a integrar as listas de possíveis bene-
Nesse sentido, as ocupações de ter- ficiários de projetos de assentamento
ra têm servido ao menos para dois fins: rural. Depois desses primeiros árduos
a) promover o direito do acesso à terra passos, a espera tem sido longa, como
para quem deseje fazer um uso social bem o sabem os acampados que vivem
justo de sua propriedade; b) estabelecer hoje embaixo de uma lona, aguardando
limites ao direito de propriedade em o seu assentamento.
casos de uso meramente especulativo Para além da luta pela Reforma
do solo brasileiro, de cultivos ilegais Agrária, atualmente as ocupações são
e da exploração ilegal de trabalhadores parte do repertório de ação política
(trabalho escravo). de diversos movimentos sociais, ru-
Outra faceta importante das ocu- rais e urbanos. Desde os anos 1990,
pações de terra no Brasil é a demons- foi possível perceber que as lutas por
tração do protagonismo dos movimen- moradia, por créditos para a pequena
tos sociais na criação de agendas para o produção, contra a construção de bar-
Estado. Apesar dos diversos planos de ragens e a remoção de famílias têm se
Reforma Agrária criados pelos gover- valido desse modo de reivindicar para
nos estaduais e nacional ao longo dos chamar atenção do Estado. Quando as
últimos quarenta anos, as ocupações ocupações de terras e terrenos não sur-
foram e continuam sendo, na prática, tem os efeitos desejados, os movimen-
a única forma de o Estado identificar tos sociais têm recorrentemente ocu-
que uma terra não cumpre sua função pado também prédios públicos como
social. Em meio ao vasto conjunto de forma de estabelecer negociações com di-
fazendas que deveriam ser desapro- versos governos.
514
Orçamento da Educação e Superávit
515
Dicionário da Educação do Campo
obtidas por meio de tributos, impos- mento da dívida, tornando o país “con-
tos e taxas, tornaram possível promover fiável” do ponto de vista dos credores
e garantir, para todos, a oferta de servi- nacionais e internacionais.
ços e de bens públicos, como os referi- Esta ideia está viva, como compro-
dos anteriormente. va o caso brasileiro, pois, na consulta
Os Estados, além disso, tinham ou- ao sítio da Agência Câmara de Notí-
tros gastos vistos como prioritários, os cias em busca das expressões legislati-
quais, de modo corriqueiro, implicavam vas da Câmara Federal, lê-se que con-
pedir empréstimos para saldá-los. O en- tingenciamento significa o bloqueio
dividamento do Estado pode ser reco- de despesas previstas no Orçamento
nhecido como a marca mais caracte- Geral da União.1 Esse procedimento
rística da própria existência do Estado é empregado pela administração fede-
republicano liberal, burguês e capitalis- ral para assegurar o equilíbrio entre a
ta. Assim, atender o endividamento pas- execução das despesas e a disponibili-
sou a ser prioritário ora por razões de dade efetiva de recursos. As despesas
guerra religiosa ou ideológica, ora por são bloqueadas a critério do governo,
causa das frequentes crises econômicas que as libera ou não, dependendo da
e outros conflitos. O século XX está ca- sua conveniência. Essa conveniência
racterizado fundamentalmente por um tornou-se lei. Desde 1999, este pro-
conjunto histórico que tornou os inte- cedimento vem sendo aplicado respei-
resses, as necessidades e os problemas tando a Lei de Responsabilidade Fiscal,
populares secundários em relação às que afirma claramente a necessidade
prioridades da nação em conflito. de garantir que as contas públicas pro-
“Uma vez que a dívida pública duzam um índice chamado superávit pri-
do Estado tem o seu suporte nas re- mário do setor público, ou seja, sinaliza
ceitas do Estado, que tem que cobrir o quanto a receita da União, dos estados e
os pagamentos anuais por juros etc., municípios e das empresas estatais deve
o sistema de impostos moderno foi o ser maior do que as suas despesas, o que,
complemento necessário do sistema por sua vez, representa uma garantia do
de empréstimo nacional” (Marx, 1983, pagamento dos juros da dívida pública.
p. 150). A formulação desta ideia há qua- Dito de outra forma, entende-se por
se cento e cinquenta anos ainda escla- superávit primário uma relação entre a
rece os dias atuais. Marx, ao reconhecer receita e as despesas públicas na qual
no endividamento público um dos pro- o total da receita do governo é maior do
cessos históricos da acumulação primi- que os seus gastos não financeiros, ex-
tiva, explicitou o mecanismo de sua rea- cluídos os gastos financeiros destinados
lização: o “sistema de impostos” está a ao atendimento do pagamento de juros
serviço da cobertura dos pagamentos e encargos com a dívida pública. Este ín-
da dívida pública. Assim, a população dice, sendo positivo (superávit), sinaliza
mantinha um sistema de impostos para aos que emprestam ao Estado a capaci-
viabilizar um conjunto de bens e servi- dade que ele tem de pagar a sua dívida,
ços públicos, muitas vezes em estado tanto o valor principal quanto os juros
precário ou de extrema inoperância, e que incidem sobre o estoque da dívida.
destinava grande parte do orçamento Toda vez que este índice corre o ris-
público, prioritariamente, para o paga- co de ser negativo (déficit), passando os
516
Orçamento da Educação e Superávit
517
Dicionário da Educação do Campo
518
Orçamento da Educação e Superávit
Notas
1
Ver http://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/73423.html.
519
Dicionário da Educação do Campo
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Organizações da Classe Dominante no Campo
521
Dicionário da Educação do Campo
por uma reforma agrária e à reivindi- tantes. Assim, nas cadeias produtivas,
cação do movimento quilombola pelo muitas vezes o lucro de um setor re-
direito ao território. A prática da mul- presenta o prejuízo de outro, e as con-
tiorganização em muito contribui para dições de acumulação dos grupos são
neutralizar a segmentação de interesses diferenciadas tanto à jusante quanto à
e para a construção do consenso. montante, ou quando situadas dentro
da porteira da fazenda. Além disso, de
Representação direta outra perspectiva, sempre foi intensa a
disputa pela primazia da representação
Quase sempre são os proprietários de classe.
de terras e empresários rurais e do Entretanto, quando se sentem
agronegócio que se fazem diretamente ameaçados em seus privilégios e in-
representar quer no Congresso Nacio- teresses comuns, como é o caso da
nal e em agências do Estado, ocupando defesa da concentração de terras, to-
postos federais, quer na sociedade civil. dos se unem, pois sabem que a união
Com frequência, são os melhores qua-
é condição primeira da reprodução
dros políticos que assumem o papel de
social e do exercício da dominação e
porta-vozes dos interesses patronais.
da exploração. Por essa razão, na dis-
Dentre os exemplos mais expres- puta política e nas divergências eco-
sivos, temos Roberto Rodrigues, pro- nômicas estão contidos os acordos e
prietário de terras, empresário rural e as alianças. E em nenhum momento
ex-ministro da Agricultura e Pecuária da história brasileira ouvimos falar de
(2003-2006), e Luiz Fernando Furlan, interesses conflitantes e divergências
empresário brasileiro, acionista e neto do sobrepondo-se à união de todos.
fundador do grupo Sadia, e ex-ministro
do Desenvolvimento, Indústria e Co-
mércio Exterior (2003-2007). A Banca- Por um Estado tutelar e
da Ruralista no Congresso Nacional é protetor dos interesses
outro exemplo de representação direta
em que se destacam o médico agrope-
patronais
cuarista Ronaldo Caiado (DEM/GO), Mais mercado e menos Estado,
o agropecuarista e empresário rural reivindicam os porta-vozes do patro-
Abelardo Lupion (DEM/PR), o rura- nato rural, para quem a livre inicia-
lista convicto e dono de terras Moacir tiva é a garantia para a construção
Micheletto (PMDB/PR), o arrozeiro de uma nova institucionalidade. En-
Paulo César Quartiero (DEM/RR) e a pro-
tretanto, ainda prevalece, como ele-
prietária de terras, empresária pecuarista e
mento norteador da prática patronal,
senadora Kátia Abreu (DEM/TO).
a defesa de um Estado tutelar, protetor
e provedor, assim como a cultura do fa-
União acima das vor, as relações oficiosas e a valorização
divergências de cada dos velhos recursos de patronagem –
fração, grupo ou setor em grande medida realimentados pelo
próprio Estado – convivendo lado a
As classes dominantes do campo – lado com relações legais e oficiais.
diversificadas e heterogêneas – frequen- Ademais, na visão do patronato ru-
temente apresentam interesses confli- ral, o Estado seria o único culpado pela
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Organizações da Classe Dominante no Campo
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Dicionário da Educação do Campo
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Organizações da Classe Dominante no Campo
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Organizações da Classe Dominante no Campo
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Dicionário da Educação do Campo
no cenário político nacional como re- em comissões que tratam dos mais va-
ferência de uma prática caracterizada riados temas, nos acordos sobre o per-
pelo enfrentamento aberto e a defesa fil da mesa da Câmara dos Deputados e
explícita da violência contra os traba- na troca de favores intraclasses.
lhadores rurais e os sem-terras. Des- A rede de sociabilidade política
ponta também como sinônimo de mo- é seguramente a mais expressiva. Ela
bilização patronal e do corporativismo compreende, sobretudo, as atividades
e como símbolo da defesa absoluta do político-partidárias, sindicais, corpo-
monopólio fundiário. rativas e os cargos públicos. Diz res-
peito, por exemplo, à participação dos
A Bancada Ruralista deputados ruralistas nas diversas co-
missões parlamentares e à sua presen-
A Bancada Ruralista despontou nos ça nos grupos e frentes parlamentares
anos 1980, em meio ao debate sobre a e nas missões oficiais de representação
Assembleia Nacional Constituinte, como política. Diz respeito, também, às ati-
um dos desdobramentos da mobilização vidades sindicais e representativas de
patronal de grandes proprietários de terra classe. Já a rede de sociabilidade pro-
e empresários rurais durante o governo fissional, como o próprio nome enun-
da Nova República, e tem se apresentado cia, abrange as atividades profissionais
como importante espaço de representa- dos parlamentares – agricultores, pe-
ção dos interesses patronais rurais. cuaristas, empresários, cafeicultores,
A inserção dos parlamentares ru- empreiteiros, “donos” de universida-
ralistas nas inúmeras redes de socia- des e colégios, advogados, médicos
bilidade política, econômica, religiosa, etc. E, finalmente, a rede societal, que
cultural e social existentes tanto no compreende basicamente as atividades
Congresso Nacional quanto fora dele associativas e a participação dos depu-
não apenas contribui para a construção tados em agremiações sociais e religio-
de determinada concepção de mundo, sas, como a participação no Lions Club
fundamento de uma identidade rura- e na maçonaria (Bruno, 2009).
lista e do poder patronal, como tam-
bém garante o êxito de suas demandas,
além de contribuir para a criação de Grupos de defesa da
laços sociais com outros grupos não propriedade da terra
necessariamente ligados à agricultura.
Ou seja, há um entrelaçamento entre Nos momentos de intensificação
vários campos, instâncias, estruturas de conflitos fundiários e de demanda
e atores que realimenta pleitos e inte- pela Reforma Agrária, como ocorreu
resses os mais diferenciados. Sob essa durante a Nova República, costumam
perspectiva, a garantia de manutenção despontar vários grupos de defesa da
do monopólio e da concentração fun- propriedade da terra, em geral compos-
diários, a renegociação das dívidas e, tos por grandes proprietários de terra
recentemente, a aprovação do Código e pecuaristas, em especial nas regiões
Florestal contemplando várias reivindi- de conflito de terra e de concentração
cações ruralistas também são negocia- fundiária. Dentre os mais expressivos,
das nas inúmeras viagens em missões temos o Pacto de Unidade e Resposta
oficiais, na atuação dos parlamentares Rural (PUR), criado originalmente em
528
Organizações da Classe Dominante no Campo
529
Dicionário da Educação do Campo
Notas
1
Ver http://www.sna.agr.br.
2
Ver http://www.srb.org.br.
3
Mais do que um conceito com o qual o núcleo dirigente do empresariado rural nomeia
atividades e agentes ligados à agricultura sob a representação de um Sistema, o referido
vocábulo é empregado para nomear um movimento de articulação do aludido grupo no
sentido de institucionalizar seus interesses tendo como estratégia o uso da marca agronegócio
brasileiro na construção de uma identidade organizadora da multiplicidade de interesses que
530
Organizações da Classe Dominante no Campo
busca congregar. Atenção para o uso do adjetivo pátrio como meio de legitimação e de
reconhecimento social, com o qual o intenso processo de desnacionalização sofrido pelos
negócios em torno da agricultura brasileira acaba sendo ocultado. Para distinguir “Agrone-
gócio” enquanto movimento político-ideológico, de “Agronegócio” enquanto ferramenta
de análise econômica cuja leitura pela figura de um Sistema permitiria o aperfeiçoamento das
partes pela visão do todo – como divulgado por representantes do empresariado rural –, o
termo será destacado em itálico ou será substituído pela palavra Sistema quando empregado
no sentido patronal. Ver Lacerda, 2009.
4
“O conceito de think tank faz referência a uma instituição dedicada a produzir e difundir
conhecimentos e estratégias sobre assuntos vitais – sejam eles políticos, econômicos ou
científicos. Assuntos sobre os quais, nas suas instâncias habituais de elaboração (Estados,
associações de classe, empresas ou universidades), os cidadãos não encontram facilmente
insumos para pensar a realidade de forma inovadora” (http://www.imil.org.br).
531
Dicionário da Educação do Campo
532
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533
P
Pedagogia das Competências
Marise Ramos
535
Dicionário da Educação do Campo
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Pedagogia das Competências
537
Dicionário da Educação do Campo
inclusão social se pautam pela compe- jetivas que os indivíduos extraem do seu
tência individual. mundo experiencial. O conhecimento
A competência, inicialmente um ficaria limitado aos modelos viáveis de
aspecto de diferenciação individual, inteiração com o meio material e social,
é tomada como fator econômico e se não tendo qualquer pretensão de ser re-
reverte em benefício do consenso so- conhecido como representação da reali-
cial, envolvendo todos os trabalhado- dade objetiva ou como verdadeiro.
res supostamente numa única classe, a A validade do conhecimento assim
capitalista; ao mesmo tempo, forma-se compreendido é julgada, portanto, por
um consenso em torno do capitalismo sua viabilidade ou por sua utilidade. Pre-
como o único modo de produção capaz domina, então, uma conotação utilitá-
de manter o equilíbrio e a justiça social. ria e pragmática do conhecimento. Sua
Em síntese, a questão da luta de classes viabilidade e utilidade, muito além de
é resolvida pelo desenvolvimento e pelo serem consideradas históricas, são tidas
aproveitamento adequado das compe- como contingentes. Ou seja, não existe
tências individuais, de modo que a pos- qualquer critério de objetividade, de tota-
sibilidade de inclusão social subordina- lidade ou de universalidade para se julgar
se à capacidade de adaptação natural às se um conhecimento, ou um modelo re-
relações contemporâneas. A flexibili- presentacional, é válido, viável ou útil.
dade econômica vem acompanhada da Com isto, o caráter histórico-ontoló-
psicologização da questão social. gico do conhecimento é substituído pelo
A noção de competência situa-se, caráter experiencial. Essa concepção
então, no plano de convergência entre de conhecimento, às vezes chamada de
a teoria integracionista da formação epistemologia experiencial ou epistemo-
do indivíduo e a teoria funcionalista da logia socialmente construtivista, é, na ver-
estrutura social. A primeira demonstra dade, uma epistemologia adaptativa, visto
que a competência torna-se uma carac- que seu fundamento axiológico vincula-
terística psicológico-subjetiva de adap- se a essa função. As categorias de objeti-
tação do trabalhador à vida contempo- vo e subjetivo se fundem indistintamente
rânea. A segunda situa a competência no processo de inteiração, superando
como fator de consenso necessário à proposições de certeza e de universali-
manutenção do equilíbrio da estrutura dade em beneficio da particularidade, da
social, na medida em que o funciona- indeterminação e da contingência do co-
mento desta última ocorre muito mais nhecimento. Em outras palavras, o sen-
por fragmentos do que por uma sequ- tido e o valor de qualquer representação
ência de fatos previsíveis. do real dependeria do ponto a partir do
qual se vê o real (relativismo) e de quem
O processo de construção do co-
o vê (subjetivismo). Isto implica romper
nhecimento pelo indivíduo, por sua
com a epistemologia moderna em favor
vez, seria o próprio processo de adap-
de uma epistemologia que compõe o uni-
tação ao meio material e social. Nesses
verso ideológico pós-moderno.
termos, o conhecimento não resultaria
de um esforço social e historicamente A pedagogia das competências re-
determinado de compreensão da rea- configura, então, o papel da escola.
lidade para, então, transformá-la, mas Se a escola moderna comprometeu-se
sim, das percepções e concepções sub- com a sustentação do núcleo básico
538
Pedagogia das Competências
539
Dicionário da Educação do Campo
Pedagogia do Capital
André Silva Martins
Lúcia Maria Wanderley Neves
540
Pedagogia do Capital
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Dicionário da Educação do Campo
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Pedagogia do Capital
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Dicionário da Educação do Campo
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Pedagogia do Capital
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Dicionário da Educação do Campo
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Pedagogia do Capital
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Dicionário da Educação do Campo
Pedagogia do Movimento
Roseli Salete Caldart
548
Pedagogia do Movimento
organizadas especificamente para edu- dos, mas como sujeito coletivo, como
cá-las ou aos seus descendentes. classe. Esse processo é educativo, e
Trata-se de uma intencionalidade seu motor é justamente uma coletividade
formativa produzida na dinâmica de em movimento que passa a produzir uma
uma luta social (pela terra, pelo traba- referência de objetivos para cada ação
lho, de classe), e de uma organização do cotidiano das pessoas concretas que
coletiva de trabalhadores camponeses, a integram.
que pode ser pensada como um pro- A materialidade da luta e das rela-
cesso educativo. Sua lógica ensina so- ções sociais construídas e transforma-
bre como fazer a formação humana em das para sua sustentação são as “cir-
outras situações, mesmo institucionais, cunstâncias educadas” para conduzir
mas também pode ajudar a intenciona- a formação de um determinado tipo
lizar as próprias ações da luta na dire- de ser humano. E como educador das
ção de objetivos mais amplos: pensar circunstâncias e sujeito de práxis, o
como cada ação – seja uma ocupa- movimento social se constitui como
ção, uma marcha, uma forma de pro- sujeito pedagógico, pois põe em movi-
dução de alimentos – pode ajudar no mento diferentes matrizes de formação
processo de formação de seus sujeitos: humana, entre as quais, e com centra-
como Sem Terra, como camponês, como lidade, a matriz formadora combinada
trabalhador, como classe trabalhadora, da luta social e da organização coletiva, em
como ser humano; que valores propõe, sua articulação necessária com as ma-
nega ou reforça; que postura estimula trizes do trabalho, da cultura e da história
diante da luta, da sociedade, da vida; (Caldart, 2004). Por isso, temos afirmado
e que desafios de superação coloca à que o MST não cria uma nova pedago-
sua humanidade. gia, mas, sim, recupera e mobiliza de um
Esta é a Pedagogia do Movimento Sem jeito específico, pela historicidade
Terra, cujo sujeito educador principal de suas ações, matrizes pedagógicas
construídas ao longo da história de
é o próprio movimento, não apenas
quando trabalha no campo específico formação da humanidade. E é este mo- P
da educação, mas fundamentalmente vimento pedagógico que está na base
quando sua dinâmica de luta e de or- de construção da concepção de educa-
ganização intencionaliza um projeto ção e também de escola do MST, desde
de formação humana. Há um processo os fundamentos, pois, que a projetam
formativo que começa com o enraiza- para além dele.
mento dos sem-terra (condição de tra- Na formulação inicial do conceito
balhador da terra desprovido dela) em mais amplo de Pedagogia do Movimen-
uma coletividade, que não nega o seu to, já na entrada do século XXI, esteve
passado e sinaliza um futuro que po- o desafio assumido pelo MST de cons-
derão ajudar a construir, e que conti- truir, junto com outros movimentos
nua no movimento contraditório, des- sociais camponeses, o projeto político-
contínuo, conflituoso de produção de pedagógico da Educação do Campo,
uma identidade coletiva que vai mos- capaz de envolver o conjunto dos su-
trando a esses trabalhadores que o jeitos trabalhadores do campo. Enten-
protagonismo de construção do futuro deu-se que a reflexão da Pedagogia do
não será deles como indivíduos isola- Movimento, embora construída desde
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Pedagogia do Movimento
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Dicionário da Educação do Campo
Afirmar que o ser humano se for- Dizer que a luta social educa as pes-
ma na luta social é reafirmar que ele se soas significa afirmar que o ser huma-
constitui como humano na práxis, que no se forma não apenas por processos
se educa na dialética entre transforma- de conformação social, mas, ao contrá-
ção das circunstâncias e autotransfor- rio, que há traços de sua humanidade
mação. É a atividade que forma o ser construídos nas atitudes de inconfor-
humano; mas a atividade que huma- mismo e contestação social, e na busca
niza mais radicalmente é aquela que da transformação do “atual estado de
exige a autotransformação que pas- coisas”. E ela nos ensina, pela própria
sa pela compreensão teórica da rea- materialidade que a constitui, que essa
lidade. E, para Marx, esta atividade é, busca não pode ser do indivíduo, mas
originária e centralmente, o trabalho, também não se realiza sem ele. Neces-
como atividade humana criadora, ain- sita, portanto, da recuperação da dia-
da que não se esgote nele, projetando- lética entre indivíduo e coletividade
se como práxis revolucionária. ou, como trata Marx, da reintegração
Assumindo o vínculo essencial entre de individualidade e sociabilidade na
educação e práxis, a Pedagogia do Mo- realidade humana concreta do indivíduo
vimento destaca a especificidade forma- social (apud Mészáros, 2006, p. 246).
dora da luta social não para absolutizar A luta social não tem um objetivo em
sua dimensão educativa (ou relativizar si mesma: não se luta por lutar ou porque
a força formadora do trabalho, reafir- lutar eduque. Luta-se porque há situações
mado como princípio educativo), mas por que estão impedindo a vida humana ou a
considerar que ela ainda não foi suficien- sua plenitude. E nesta atitude de enfrentar
temente levada em conta, como matriz, ou de resistir contra o que desumaniza
pelas pedagogias inspiradas na tradição está o principal potencial formador da
teórica que vincula a educação à eman- luta, exatamente porque constrói condi-
cipação social e humana, e, nem mes- ções objetivas para a formação dos sujei-
mo, na compreensão da constituição da tos de uma práxis revolucionária (ainda
práxis. E também porque não tem sido que não a garanta).
refletida/trabalhada nestes termos pe- Afirmar o movimento social como
los próprios militantes das organizações sujeito pedagógico e a luta, e a sua orga-
de trabalhadores. nização, como matrizes formadoras não
Este destaque se torna ainda mais im- significa considerar que são pura positi-
portante hoje, quando o imaginário ins- vidade. Do mesmo modo que se afirma
tituído da sociedade é hegemonizado a dimensão formativa do trabalho e, ao
pelo “culto do indivíduo” (Mészáros, mesmo tempo, se analisa a contradição
2006) e pela visão de que tentar trans- presente nas formas históricas de traba-
formar o mundo, ou pensar em re- lho (a alienação do trabalho assalariado
voluções sociais, é algo ultrapassado, capitalista, por exemplo), pode-se ana-
anacrônico, da mesma forma que se lisar o caráter deformador (em nossa
associam (direta ou simbolicamente) concepção de formação) de formas de
organização e coletivos a formas tota- organização da luta social encontradas
litárias e autoritárias de pensar a socie- em alguns movimentos sociais, ou em
dade. A Pedagogia do Movimento quer determinadas situações dos próprios
ajudar a confrontar essa hegemonia. movimentos, que servem de base à com-
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Pedagogia do Oprimido
luta social como matriz pedagógica que a totalidade formadora na qual dife-
integra a sua concepção de educação, rentes práticas educativas se põem e
compreendendo o campo (suas rela- contrapõem na constituição prática de
ções sociais, suas contradições) como determinado ser humano.
Pedagogia do Oprimido
Miguel G. Arroyo
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do Oprimido teve sua origem na orga- opressões históricas e lutam por sua
nização dos trabalhadores do campo libertação. Além disso, na formação e
em Ligas Camponesas, em sindicatos. na ação pedagógica dos educadores
Os novos movimentos urbanos e do e das educadoras do campo, indígenas e
campo, ao radicalizarem suas ações, quilombolas, deve-se dar centralida-
sua organização e suas estratégias de de aos processos de opressão: como
resistência e de libertação, radicalizam se manifesta a diversidade de formas de
os pressupostos e as dimensões da Pe- opressão desses coletivos? Como essas
dagogia do Oprimido. formas se concretizam nos processos
Esses movimentos não apenas de negação da escola e de precariza-
mostram a terra, o espaço, o território ção de suas vidas desde crianças? Como
como fronteira de expropriação – sem- trazem a opressão em suas vidas pre-
teto, sem-terra, sem-território –, mas carizadas para as salas de aula? Como
se afirmam como sujeitos coletivos, formar professores(as) que entendam
políticos, de políticas de outro projeto essas formas históricas de opressão
de campo e de cidade, de outro pro- das comunidades e dos povos do cam-
jeto de sociedade. Como movimentos, po com os quais trabalham? Impossí-
constroem outras pedagogias: outra re- vel construir outra escola do campo
flexão e teorização sobre suas práticas sem entender e trabalhar os processos
formadoras, e se afirmam como sujei- históricos de opressão da diversidade
tos de ação-reflexão-teorização peda- de povos do campo.
gógica (Caldart, 2000).
Ocupar o território-escola
A Pedagogia do Oprimido
e a escola do campo, A Pedagogia do Oprimido encontra
sua afirmação nos processos educativos
indígena e quilombola
extraescolares, sobretudo, mas também
A Pedagogia do Oprimido tem de
vencer resistências para ser assumida
inspira outra escola, outras práticas edu-
cativas escolares. O traço mais radical:
P
pela pedagogia escolar. Os movimen- ocupar o território-escola. Os movi-
tos sociais e coletivos de docentes- mentos sociais, ao lutarem por terra, es-
educadores tentam incorporá-la, mas paço e território, articulam as lutas pela
a pedagogia escolar resiste a deixar-se educação, pela escola – como território,
interrogar pela radicalidade teórica e espaço de educação – às lutas por direi-
política da Pedagogia do Oprimido. tos a territórios. Mostram a articulação
Entretanto, os movimentos so- entre todos os processos históricos de
ciais repolitizam a pedagogia esco- opressão, segregação e desumanização,
lar do campo, indígena, quilombola, e reagem, lutando em todas as fronteiras
inter-racial, das comunidades campo- articuladas de libertação. Escola é mais
nesas, negras... Que dimensões me- do que escola na pedagogia dos movi-
recem destaque? Primeiro, é preciso mentos. Ocupemos o latifúndio do co-
partir do reconhecimento de que os nhecimento como mais uma das terras,
sujeitos da ação educativa, educado- como mais um dos territórios negados.
res e educandos(as), desde crianças, e A escola, a universidade e os cursos
suas famílias e comunidades, padecem de formação de professores do cam-
561
Dicionário da Educação do Campo
po, indígenas, quilombolas são mais tam o território dos currículos nas esco-
outros territórios de luta e de ocupa- las do campo e nos cursos de formação e
ção por direitos. A negação, a precari- de licenciatura.
zação da escola, é equacionada como
uma expressão da segregação-opressão
histórica da relação entre classes. Já a
Disputar a presença
escola repolitizada é mais um territó- dos sujeitos
rio de luta e ocupação, de libertação da
Não apenas as experiências da
opressão. A Pedagogia do Oprimido é
opressão-libertação estão ausentes nos
radicalizada na pedagogia escolar pelas
currículos, mas, sobretudo, os seus su-
lutas dos movimentos por educação do
jeitos. Destacamos que a Pedagogia do
campo no campo, por escola do campo Oprimido é uma pedagogia de sujeitos,
no campo. de coletivos e de suas vivências so-
ciais, políticas, culturais, humanizado-
Disputar os currículos ras. Os sujeitos têm estado ausentes
nos processos de educação escolar ou
É impor tante dar centralidade, são vistos como passivos, contas ban-
nos currículos das escolas do campo, cárias. Como reconhecê-los ativos, re-
às experiências de opressão e, sobre- sistentes sujeitos de formação? Os mo-
tudo, de resistência que professores e vimentos sociais apontam a direção.
educandos carregam para as escolas; Desconstroem a representação social
trazer as experiências sociais, coletivas, dos povos do campo como passivos,
assim como dar centralidade à história acomodados, pacientes, e os afirmam
de expropriação dos territórios, das resistentes, construtores de outro pro-
teorias, da destruição da agricultura jeto de sociedade e de campo, e de ou-
camponesa; trazer para os currículos as tros saberes e valores desde crianças e
persistentes formas de resistência, de porque participando em ações coletivas
afirmação e de libertação dos povos e em movimentos de libertação.
do campo de que os próprios edu- Que a escola e o conjunto de ações
cadores e educandos participam – formadoras privilegiem o direito dos
experiências de formação-humaniza- oprimidos a saberem-se sujeitos de li-
ção, de recuperação da humanidade bertação da opressão e de recuperação
roubada, ausentes nos currículos oficiais de sua humanidade roubada, a sabe-
e no material didático, mas que dispu- rem-se sujeitos de humanização.
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Pedagogia Socialista
Pedagogia Socialista
Maria Ciavatta
Roberta Lobo
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Reclus, Sébastien Faure, Puig Elias. A dos, reconhecendo que eles não per-
construção do socialismo na liberdade, tencem ao Estado, a Deus, à família ou
a atitude ativa e livre em espaços libera- às organizações políticas, mas apenas a
dos de coações, um modo educativo na si mesmos.2
liberdade das paixões e dos desejos, o Aliado ao princípio de uma educa-
fazer-se livre, a educação pela liberdade e ção antiautoritária, encontra-se o prin-
a liberdade pela educação são as bases cípio da integralidade, também comum
do processo formativo do ser humano aos marxistas e aos liberais progressis-
segundo esta tradição. Sendo o pro- tas. Tal princípio estava associado a três
cesso educativo na liberdade um per- dimensões: a dimensão do desenvolvi-
manente pôr-se em ato, não há uma
mento pleno da criança; a dimensão da
crença no método como garantia infalí-
divisão social do trabalho com base na
vel, daí seu caráter experimental confor-
autogestão e da negação da reprodu-
me as circunstâncias sociais e o contexto
ção do domínio das classes sociais por
histórico. Neste sentido, as teorizações
possuem como referência práticas edu- meio da separação entre trabalho manual
cativas difusas, ricas e contraditórias, e intelectual; e a dimensão da integra-
como base nos princípios de um ensino ção da vida social nas atividades e re-
antiautoritário, integral, solidário e au- flexões dos educandos. Como base dos
togestionário (Moriyón, 1989a). princípios e das relações libertárias, es-
tão a solidariedade e o apoio mútuo, que
Uma educação antiautoritária, con-
fortalecem não apenas um projeto de
tudo, não está isenta de dilemas no que
educação, mas um projeto societário.
diz respeito à relação existente entre
liberdade e autoridade na formação No caso da Espanha, o educar na li-
das crianças e jovens. Deve-se deixar berdade estava mais marcado pelo edu-
a criança desenvolver seus interesses car no espírito da ciência, libertando
próprios e suas opções sociais sem in- as crianças do dogmatismo da Igreja
terferência ou incentivar nela o espírito Católica e dos preconceitos que anulam
de rebelião, de crítica ao mundo social- o real desenvolvimento da criatividade
mente injusto? Deixar a própria crian- e da autonomia do pensar e do agir no
ça escolher seus horários, bem como o mundo. Francisco Ferrer i Guardia foi
estudo de conteúdos ou intervir deter- o primeiro pedagogo que de fato en-
minando minimamente os conteúdos a frentou o domínio da Igreja Católica na
partir da experiência social e de uma Espanha, baseando-se na seguinte con-
autogestão escolar? Não há como for- cepção: formar individualidades livres
çar ninguém a ser confiante em suas capazes de dispensar líderes, padres,
escolhas ou ser solidário e amável com leis, a força da Igreja, do governo e do
os outros. Resolver os problemas da poder do Estado; educação artística,
educação através de coações resulta intelectual e moral, conhecimento de
no ocultamento dos mesmos, bem como tudo que nos rodeia, conhecimento
num processo repetitivo de submissão das ciências e das artes, sentimento do
incondicional dos educandos, acos- belo, do verdadeiro e do real, desenvol-
tumando-os a serem constantemente vimento e compreensão sem esforço e
persuadidos. É preciso, então, deixar por iniciativa própria (Moriyón, 1989b,
que a organização escolar surja espon- p. 20). Em outubro de 1901, fundou
taneamente dos interesses dos educan- em Barcelona a Escola Moderna, tendo
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Pedagogia Socialista
como anseio a busca de uma educação anos de 1910 e 1930, são fundadas de-
livre, cooperativa, solidária, uma expe- zenas de escolas modernas no Brasil,
riência de crítica radical da organização assim como universidades populares,
educativa estatal. centros de estudos sociais e biblio-
tecas sociais tendo como referência
os princípios da educação libertária
A influência da pedagogia divulgada pela experiência do educa-
libertária no Brasil dor espanhol.
No Brasil, a formação das escolas Cumpre ressaltar que o movimento
operárias adere à concepção da es- da educação libertária vai ganhar intensa
cola moderna. No ano de 1903, cria- força social no contexto da Guerra Civil
se, no Rio Grande do Sul, a Escola Espanhola. A própria Confederação
Libertária Germinal, que seguia o mé- Nacional do Trabalho (CNT) espanho-
todo da Escola Moderna de Barcelona. la estimulou, a partir das coletivizações
No mesmo ano, em Campinas, a Liga libertárias, a criação de centros de liber-
Operária funda a Escola Livre para os tação profissional agrícola e industrial,
filhos dos trabalhadores. No ano de e de escolas de agricultores como meio
1904, em Santos, a União dos Operá- para se organizar a renovación campesina.
rios Alfaiates funda a Escola Socieda- Como expressão desta concepção, a Fe-
de Internacional. No Rio de Janeiro, deração Nacional de Coletividades pro-
no mesmo ano, nasce a Universidade jetou a criação de escolas de formação
Popular, organizada por um grupo de agrária e a Federação Regional de Cam-
intelectuais e militantes anarquistas, poneses de Levante fundou a Universi-
dentre eles, o médico Fábio Luz. Com dade Agrícola, voltada para estudos da
o fuzilamento de Ferrer i Guardia vida do campo (Bernal, 2006).
em 1909, nasce em São Paulo e no Podemos afirmar que no Brasil há
Rio de Janeiro a Comissão Pró-Escola uma lacuna no que diz respeito ao co-
Moderna. As escolas operárias já eram
uma realidade quando da notícia do
nhecimento acerca das experiências de
educação libertária. Existe um movi- P
fuzilamento de Ferrer, mas tal crime mento recente nas áreas da filosofia e
imprimiu maior velocidade à fundação da educação em busca da socialização
de novas escolas. Em 1910, funda-se deste conhecimento, mas ainda é ne-
em Santos a Liga do Livre Pensamen- cessário ampliar a pesquisa, bem como
to e, em São Paulo, o Círculo de Estu- socializar estes conhecimentos no cam-
dos Sociais Francisco Ferrer. Entre os po da militância social.
Notas
1
Protágoras (século V a.C.) “é um dos filósofos [gregos] preocupado não com as cosmo-
gonias e sistemas, mas com a introdução de um certo humanismo na filosofia” (Japiassú e
Marcondes, 1996, p. 223).
2
Em diferentes momentos da história da educação esta problemática é abordada. Na Es-
cola Rural de Yasnaia Poliana, criada por Tolstoi em 1859 (apesar de não ser anarquis-
ta, seus conceitos coincidiam com a tradição pedagógica anarquista), nada era obrigató-
rio, nem horários, nem assistência às aulas, nem programas, nem normas disciplinares.
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Dicionário da Educação do Campo
Outra referência neste sentido foi o movimento pedagógico das comunidades escolares de
Hamburgo durante a República de Weimar (1919-1933). Esta polêmica também foi intensa
na Espanha da primeira década do século XX, expressa nas personalidades de Francisco
Ferrer i Guàrdia e Ricardo Mella.
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Política Educacional e Educação do Campo
P
P
Política Educacional
e Educação do Campo
Celi Zulke Tafarel
Mônica Castagna Molina
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Política Educacional e Educação do Campo
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Política Educacional e Educação do Campo
negócio, da mídia capitalista e de seto- jetivos das elites dominantes e suas po-
res do Estado, com suas medidas contra líticas de Estado e de governos que ex-
os trabalhadores rurais e seus proje- ploram e alienam a classe trabalhadora da
tos no interior dos poderes Judiciário cidade e do campo. Como afirma Marx:
(tribunais de contas, ministérios pú-
blicos), Legislativo e Executivo, sejam Do ponto de vista político, Es-
eles municipais, estaduais ou federal. tado e organização da sociedade
Ao produzir alianças com setores não são duas coisas distintas. O
que defendem os interesses imediatos, Estado é a organização da socie-
mediatos e históricos da classe traba- dade. Donde concluímos que,
lhadora, como, por exemplo, setores para mudar o Estado, é preciso
das universidades públicas brasileiras, alterar as leis que regem a so-
para sua execução, estas três políticas, o ciedade. E estas leis não são na-
Pronera, a Residência Agrária e a Li- turais, mas sim, sócio-históricas,
cenciatura em Educação do Campo, ou seja, produzidas pelos seres
tornam-se ainda mais incômodas, pois, humanos, em especial a clas-
além da força dos movimentos sociais se trabalhadora, a quem cabe a
de luta no campo que a protagonizam, função de revolucionar a socie-
o envolvimento, de forma mais perma- dade e o Estado. (2010, p. 38)
nente, da juventude estudantil e de pro-
fessores e pesquisadores – intelectuais A luta dos trabalhadores do campo
orgânicos da classe trabalhadora, mili- em defesa de uma Educação do Campo
tantes culturais – com os camponeses e de uma política educacional emancipa-
permite alianças que alteram a correla- tória para o campo brasileiro é uma indi-
ção de forças. E esta combinação pode cação deste processo que está em curso –
produzir efeitos indesejáveis para os ob- com fluxos e refluxos, mas em curso.
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Dicionário da Educação do Campo
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Políticas Educacionais Neoliberais e Educação do Campo
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Políticas Educacionais Neoliberais e Educação do Campo
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Políticas Educacionais Neoliberais e Educação do Campo
317 (ditas) sem fins lucrativos e 1.125 e organizações de direito privado sem
particulares (com fins lucrativos). Em fins lucrativos, voltadas para atividades
2008, último ano do Censo Inep em de pesquisa. A propriedade intelectual
que foi feita a discriminação entre pri- sobre os resultados obtidos pertence-
vadas sem fins lucrativos e com fins rá às instituições detentoras do capital
lucrativos, o total de instituições tinha social e não às universidades. Ademais,
subido para 2.252, sendo 236 públicas, os professores universitários podem se
437 (ditas) sem fins lucrativos e 1.579 dedicar às atividades empresariais, des-
particulares (com fins lucrativos) (Ins- vinculando-se de suas obrigações de
tituto Nacional de Estudos e Pesquisas ensino e pesquisa públicos, mas man-
Educacionais, 2009). tendo seus salários pelo Estado.
Porém a mercantilização não se es- Os editais que definem as áreas
gota no suporte financeiro e legal do prioritárias de atuação da universidade
Estado ao setor privado-mercantil; al- são definidos com relevante presença
cança, inclusive, o cerne da educação empresarial. Com isso, o que é dado a
superior: as prioridades de pesquisa, o pensar na universidade é parcialmente
teor do currículo, as formas de avalia- estabelecido pela representação direta
ção e a carreira docente. O principal do capital. Desse modo, as corpora-
ordenamento do Estado que permite ções podem definir linhas de pesquisa
ao capital influenciar diretamente o e prioridades do fazer acadêmico, em
conhecimento produzido ou em circu- detrimento da função social das uni-
lação na universidade é a Lei de Inova- versidades de problematizar as teorias
ção Tecnológica (lei nº 10.973/2004), científicas e de se engajarem na solu-
que estabelece medidas de incentivo à ção dos problemas atuais e futuros dos
inovação e à pesquisa científica e tec- povos. No agronegócio, a presença
nológica no ambiente produtivo, por das corporações difunde, no seio mes-
meio do apoio à constituição de alian- mo da atividade universitária, o modelo
dos transgênicos e, mais genericamen-
ças estratégicas e ao desenvolvimento
de projetos de cooperação envolvendo te, do agronegócio voltado para a ex- P
empresas nacionais, universidades e portação, em detrimento da soberania
centros públicos de pesquisa e funda- alimentar dos povos.
ções ditas de apoio privado nas uni- A admissão das corporações e das
versidades. As universidades podem, parcerias das universidades com as
mediante remuneração e por prazo empresas, por meio dos editais, altera
determinado, nos termos do contrato o lugar dos serviços no fazer universi-
ou convênio, compartilhar seus labo- tário, protegidos que estão dos espaços
ratórios, equipamentos, instrumentos, públicos da universidade em poderosas
materiais e demais instalações com mi- fundações, ditas de apoio, privadas;
croempresas e empresas de pequeno isso possibilita ao capitalismo acadê-
porte, em atividades voltadas à inova- mico assumir um lugar de prestígio e
ção tecnológica, e permitir a utilização de poder na hierarquia interna da uni-
de seus laboratórios, equipamentos, versidade, o que realimenta a força do
instrumentos, materiais e demais ins- referido capitalismo acadêmico.
talações existentes em suas próprias Se, sob o ponto de vista dos seto-
dependências por empresas nacionais res dominantes, não parecem restar
583
Dicionário da Educação do Campo
dúvidas sobre o fato de que eles em- tos, mas o conjunto dos trabalhadores,
preendem intensa luta de classes no como parte do processo de constitui-
campo educacional, sob o ponto de ção da classe nas lutas do presente.
vista dos trabalhadores tal questão está Dilemas estratégicos, contudo, estão
longe de integrar a estratégia de grande longe de terem sido equacionados. Al-
parte dos setores da esquerda socialista. guns movimentos preconizam que a
Com efeito, o objetivo político dos se- educação popular deve ser organizada
tores dominantes ao buscarem subme- fora do âmbito estatal; outros susten-
ter a educação à sua estratégia política tam que a educação deve estar assegu-
vem sendo combatido principalmente rada como dever do Estado, mas que
por movimentos sociais, notadamente não compete ao Estado educar – tarefa
pelos movimentos próximos ao Movi- dos educadores e do poder popular.
mento dos Trabalhadores Rurais Sem O tema é importante, pois confor-
Terra (MST), por sindicatos da educa- ma os arcos de forças das lutas pela
ção autônomos em relação aos gover- educação pública.
nos, pelo Fórum Nacional em Defesa Em relação à estratégia de luta pelo
da Escola Pública entre 1987 e 2005 público, as ações do MST em prol da
e, no caso da educação superior, por educação do campo são as mais mar-
setores minoritários das universidades, cantes do Brasil. Buscando dar um sen-
particularmente pela esquerda estu- tido ao público que recusa a tutela esta-
dantil e pelo movimento docente or- tal, o movimento sustenta um projeto
ganizado no Sindicato Nacional dos ético-político universal que contém as
Docentes das Instituições de Ensino principais marcas da pedagogia socialis-
Superior (Andes-SN). No âmbito latino- ta – como o sentido do trabalho na for-
americano, os mais relevantes movi- mação do ser social e, dialeticamente,
mentos sociais estão tomando para si como forma de alienação a ser superada
as tarefas de formação política de seus nas lutas sociais – sem perder de vista
militantes e de educar suas crianças a particularidade do campo, recusando as
e jovens. É o caso das experiências concepções arcaicas da educação rural
dos zapatistas, com os conselhos de e da educação para o campo.
bom governo (juntas de buen gobierno), Para derrotar a pedagogia pró-
e da Assembleia dos Povos de Oaxaca sistêmica encaminhada pelas diversas
(APPO) no México; da Coordena- expressões do capital, os movimentos
ção Nacional dos Povos Indígenas do que apostam na autoformação da clas-
Equador (Conaie); dos trabalhadores se e na luta pelo público têm amplia-
desempregados e das fábricas ocupa- do seus próprios espaços educativos
das, na Argentina, por meio dos bacha- nos moldes preconizados por Gramsci
relados populares; e do MST, no Brasil, (2000): o “partido” como educador
inscritas nesses processos. coletivo capaz de elevar a consciência
Para alterar a correlação de forças social para o momento ético-político.
com o capital, essas iniciativas de for- Nesse prisma, cada militante tem de es-
mação política e de educação popular tar preparado para ser um organizador
necessitam de um salto de qualidade, da atividade política, potencializando
visando construir processos que en- as ações diretas, a democracia protagô-
volvam não apenas alguns movimen- nica e o debate estratégico.
584
Políticas Educacionais Neoliberais e Educação do Campo
Notas P
1
O sistema voucher e o modelo de escola charter são mecanismos de repasse de fundos públi-
cos ao setor privado para a gestão de escolas públicas de ensino básico que vêm se generali-
zando nos sistemas educacionais do Chile e dos Estados Unidos, com algumas experiências
similares nas redes de ensino público brasileiro. Os vouchers são subsídios às famílias para
que elas paguem pela educação de seus filhos nas escolas de sua escolha. E as escolas char-
ters são um tipo de financiamento público de abertura de escolas por entidades privadas.
Representam a institucionalização do protagonismo do setor privado na educação pública
e a desresponsabilização do Estado pela educação básica, sob o signo da “autonomia” dos
pais na escolha da escola e da eficiência da gestão privada.
2
Em 1921, Walter Benjamin escreveu o ensaio Zur Kritik der Gewalt (Para uma crítica da
violência) no qual desenvolve, dialeticamente, uma reflexão sobre a violência, construída
com base na ambiguidade da palavra Gewalt, que em alemão designa tanto a violência quan-
to o poder legítimo. Dessa reflexão sobre a pura violência, Benjamin define que vivemos,
como regra geral, num “estado de exceção” (ver Benjamin, 1986 e 1987).
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Políticas Públicas
Políticas públicas
Mônica Castagna Molina
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Políticas Públicas
tão a destacar é que, para não perder o do Estado, aos sujeitos do campo.
seu potencial contra-hegemônico, con- Dissemos anteriormente que direitos
tribuindo com o desencadear de proces- são universais, que eles dizem respeito
sos de mudanças de fato estruturais, é a todos os cidadãos e que somente o
imprescindível a permanência do cam- Estado tem condições de instituí-los
po no centro dos processos formativos mediante suas ações, ou seja, por meio
desses sujeitos e na elaboração de polí- de políticas públicas. Porém importa-
ticas públicas de Educação do Campo, nos compreender como é possível
com todas as tensões, contradições e provocar essa ação. E aí precisamos
disputas de projeto que isso significa. recorrer a outra ideia fundamental
É também imprescindível garantir a sua para o entendimento da instituição
materialidade de origem, pois, ao per- das políticas públicas, intrinsecamente
der o vínculo com as lutas sociais do relacionada com a esfera da cultura na
campo que a produziram, ela deixará de sociedade, compreendendo-se cultura
ser Educação do Campo. Ou seja, para como o conjunto de valores, padrões
continuar sendo contra-hegemônica, e normas sociais vigentes em determi-
a Educação do Campo precisa manter nado tempo histórico.
o vínculo e o protagonismo dos sujei- Conforme Gramsci, é preciso re-
tos coletivos organizados, ser parte da cuperar a compreensão da indissocia-
luta da classe trabalhadora do campo bilidade da política e da cultura para
por um projeto de campo, educação melhor entendermos a importância do
e sociedade. avanço das consciências no acúmulo
Se política pública significa o Es- de forças para a conquista de políti-
tado em ação, promoção, pelo Estado, cas sociais. Ampliar o espectro social
de formas de executar aquilo que está a fim de que se reconheçam os sujeitos
no âmbito de seus deveres, como se do campo como sujeitos de direitos,
provoca essa ação? Quem/o quê o faz como iguais, é passo importante para
agir? Essa resposta vincula-se à com-
preensão que se tem do que é Estado.
a conquista das políticas públicas. Pois,
conforme ressalta Azevedo (1997) em
P
No verbete E stado , partindo-se da trabalho clássico sobre educação e po-
perspectiva marxista de Gramsci, líticas públicas, essas guardam intrínse-
afirma-se que o Estado “não é sujei- ca conexão com os valores culturais e
to nem objeto, mas sim uma relação simbólicos que a sociedade tem de si
social, ou melhor, a condensação das própria. A autora afirma que “as repre-
relações presentes numa dada socie- sentações sociais dominantes fornecem
dade”. E é exatamente o resultado das valores, normas e símbolos que estru-
forças presentes nessa condensação turam as relações sociais e, como tal, se
das relações sociais que faz o Estado fazem presentes no sistema de domi-
agir, ou seja, que o faz conceber e exe- nação, atribuindo significados à defini-
cutar essa ou aquela política pública. ção social da realidade, que vai orientar
Por isso, tem-se dado tanta ênfase, os processos de decisão, formulação e
na construção da Educação do Cam- implementação das políticas públicas”
po nos últimos anos, à importância de (ibid., p. 6). Nesse ponto reside uma
se debater com a sociedade a necessi- das principais forças que a Educação
dade da garantia do direito, pela ação do Campo acumulou nos últimos doze
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Dicionário da Educação do Campo
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Políticas Públicas
Nota
1
Todos esses conceitos são discutidos em diferentes verbetes deste Dicionário. Sua leitura
articulada reforça a compreensão das contradições e contrapontos a serem tratados aqui.
P
Para saber mais
A zevedo , J. L. A educação como política pública. 2. ed. Campinas: Autores
Associados, 1997.
Carvalho, A. M. P. A luta por direitos e a afirmação das políticas sociais no Brasil
contemporâneo. Revista de Ciências Sociais, v. 39, n. 1, p. 16-26, 2008.
Chauí, M. A sociedade democrática. In: Molina, M. C.; Souza Júnior; J. G.;
Tourinho, F. (org.). Introdução crítica ao direito agrário. Brasília: Editora UnB, 2003.
p. 332-340.
D uarte , C. S. A constitucionalidade do direito à educação dos povos do cam-
po. In: S antos , C. (org.). Campo–política pública–educação. Brasília: Nead, 2008.
p. 33-38.
Hofling, E. M. Estado e políticas (públicas) sociais. Cadernos Cedes, v. 21, n. 55,
p. 30-41, nov. 2001.
595
Dicionário da Educação do Campo
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Povos e Comunidades Tradicionais
597
Dicionário da Educação do Campo
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Povos indígenas
Marilda Teles Maracci
Povos indígenas é uma expressão gené- minar esses povos: autóctones, aborígines,
rica comumente utilizada para referir- nativos e originários. Nativos e originá-
se aos grupos humanos originários de rios, de modo mais específico, são ex-
determinado país, região ou localidade, pressões que nos remetem ao fato de
os quais, embora bastante diferentes essas populações serem preexistentes
entre si, guardam semelhanças funda- às invasões de seus territórios pelos
mentais que os une significativamente, colonizadores europeus. Por conta das
principalmente no que diz respeito ao diversas semelhanças que unem os po-
fato de cada qual se identificar como vos indígenas originários das Américas,
uma coletividade específica, distinta de há quem também se refira a eles
outras com as quais convive e, princi- como ameríndios.
palmente, do conjunto da sociedade na- Cabem aqui algumas considerações
cional na qual está inserida (Conselho a respeito do uso da palavra índio e suas
Indigenista Missionário, 2011a). derivações, enquanto noção, conceito
Além de indígenas, outras expres- ou categoria. O índio sempre foi defi-
sões também são utilizadas para deno- nido como uma construção da cultura
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Povos Indígenas
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Dicionário da Educação do Campo
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Povos Indígenas
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indígena nos processos nacionais e in- Os povos indígenas nas últimas déca-
ternacionais, chegando a efetivar o das, especialmente na América Latina,
início da construção dos Estados plu- fazem-se visíveis no cenário político
rinacionais e sociedades interculturais, internacional como identidade coleti-
como tem sido a experiência na Bolí- va que se constrói na organização po-
via, por exemplo. lítica, na reconstrução e afirmação de
Mesmo partilhando experiências suas identidades etnoculturais, na luta
históricas comuns nos confrontos por seus territórios, na explicitação das
às frentes civilizatórias de colonização e suas visões de mundo ou de seus mun-
ao capitalismo, dada a diversidade dos de viver, na promoção de significa-
epistêmica própria dos povos indígenas tivas mudanças constitucionais em al-
e a diversidade das suas experiências guns Estados nacionais, na eleição
históricas específicas, verificam-se no de alguns presidentes indígenas (Evo
movimento social indígena desde lu- Morales na Bolívia, Rafael Correa no
tas pontuais e isoladas, conforme os Equador e Hugo Chávez na Venezuela),
desafios imediatos dados pelas obje- na problematização profunda da racio-
tivações locais da racionalidade capi- nalidade dominante que produz a tec-
talista, limitadas à circunscrição do nonatureza contra a natureza. Os povos
seu território original, até propostas indígenas em luta ampliam o debate so-
anticapitalistas, antipatriarcais e anti- bre os problemas sociais, econômicos,
imperiais diversas. A grande maioria políticos e culturais gerados pelo capi-
das entidades indígenas mescla for- talismo e pela sua expressão neoliberal,
mas organizativas não índias com suas junto com outras lutas sociais do campo
formas tradicionais de organização. e da cidade, afirmando princípios de
Em termos de lutas de embates solidariedade, cooperação, complemen-
mais localizados, que podem ou não ser taridade, reciprocidade, parceria e auto-
ampliadas para projetos maiores de re- nomia dos povos. Assim, declaram: “So-
sistência, os indígenas se articulam em nhamos nosso passado e recordamos
diversas organizações locais, regionais nosso futuro”6 (Cumbre Continental
e na escala dos respectivos Estados- de Pueblos y Nacionalidades Indígenas de
nações que os envolvem. No que se Abya Yala, 2007).
refere às articulações continentais ou
mundiais dos povos indígenas, há ex- Povos indígenas no Brasil
pressões significativas. Assim, os po-
vos indígenas reunidos em Iximche No Brasil, a Constituição Federal de
(terras altas do oeste da Guatemala) 1988, em vigor, estabelece que os direi-
declararam a intenção de “consolidar tos dos índios sobre as terras que tra-
o processo de alianças entre os po- dicionalmente ocupam são de natureza
vos indígenas, dos povos indígenas e originária, ou seja, anteriores à formação
dos movimentos sociais do continente do Estado nacional brasileiro. Em seu
e do mundo, que permitam enfrentar artigo 231, a Constituição estabelece:
as políticas neoliberais e todas as for-
mas de opressão”5 (Cumbre Continen- Art. 231 – São reconhecidos
tal de Pueblos y Nacionalidades Indí- aos índios sua organização so-
genas de Abya Yala, 2007). cial, costumes, línguas, crenças
606
Povos Indígenas
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Dicionário da Educação do Campo
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Povos Indígenas
quando comparados com os do ano No que diz respeito aos povos indí-
de 2009), disseminação de bebida al- genas isolados e de pouco contato (mais de
coólica e outras drogas, desassistência 90 povos), que são os mais vulneráveis
na área de educação escolar indígena, pois não possuem nenhum instrumen-
desassistência geral (serviços básicos, to de luta contra o avanço do grande
infraestrutura básica nas aldeias, ha- capital, a realidade é desesperadora.
bitação, não assistência na produção O relatório do Cimi mostra que esses
agrícola, escassez de alimentos, desvio povos estão sob ameaça de massacres,
de verbas, falta de recursos etc.) (Con- genocídio e extinção como resultado
selho Indigenista Missionário, 2011a). das invasões e ocupações e da explora-
Nos estados do Sul do Brasil ção de seus territórios, em ações que se
(Paraná, Santa Catarina e Rio Grande associam à lógica predatória em curso
do Sul), a pesquisa do Cimi consta- e que atingem todas as populações in-
tou que existem populações indígenas dígenas: incursão ilegal de fazendeiros,
vivendo há anos na margem de estra- garimpeiros e madeireiros em terras
das e rodovias, com completa omissão indígenas (mesmo aquelas já demarca-
por parte das administrações estaduais. das); avanço da frente econômica do
Num conflito diário, elas sofrem pres- agronegócio, resultando em desma-
sões dos agricultores e do poder poli- tamento e em monoculturas de soja
cial, que causam “um número assusta- transgênica, cana-de-açúcar, eucalipto
dor de suicídios, de assassinatos e de e pinus ou, ainda, a criação de gado em
prisões de índios no Sul” (Conselho terras que estão em demarcação; as-
sentamentos do Instituto Nacional de
Indigenista Missionário, 2011a).
Colonização e Reforma Agrária (Incra)
A situação no Mato Grosso é gravís- e/ou projetos de colonização; ecotu-
sima, por ser “o estado que mais derru- rismo; abertura de novas rodovias e
ba áreas de floresta, com uma ‘explosão’ ferrovias, bem como pavimentação de
nos números referentes ao desmatamen- estradas que rasgam terras indígenas;
to ambiental, afetando 100 áreas indíge-
nas e 20 áreas de proteção” (Conselho
grilagem de terras; caçadores e pesca-
dores profissionais; contágio por doen-
P
Indigenista Missionário, 2011a). Além ças; políticas governamentais; grandes
disso, o número de vítimas do descaso projetos; empreendimentos com negli-
na área de saúde no Mato Grosso, com gência proposital por parte do governo
a falta de atendimento médico, é alar- federal em relação à presença de po-
mante: 15 mil indígenas. vos isolados,11 como os grandes proje-
No Maranhão, “quase não há mais tos de infraestrutura agora implantados
áreas de florestas, as únicas estão em bol- por meio da Iniciativa de Integração da
sões demarcados indígenas”, e são corri- Infraestrutura Regional Sul-Americana
queiros os conflitos por terras, madeiras (Iirsa) e pelo Programa de Aceleração
e recursos naturais (Conselho Indigenis- do Crescimento (PAC), com o propó-
ta Missionário, 2011b). Em “quase 100% sito de facilitar a exploração, o acesso e
das construções de hidrelétricas no a livre circulação de mercadorias (ma-
Brasil, as áreas alagadas ou alagáveis atin- deira, minérios, peixes, água e outros)
gem áreas de reservas indígenas”, sendo e o escoamento dos recursos natu-
o caso de Belo Monte, no Pará, o mais rais da região. Cabe ressaltar as conces-
emblemático, segundo o Cimi (ibid.). sões governamentais para a construção
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Dicionário da Educação do Campo
610
Povos Indígenas
Notas
1
Abya Yala é o nome dado ao continente americano pela etnia kuna, do Panamá e Colômbia,
antes da chegada de Cristóvão Colombo e dos europeus. O nome também foi adotado por
diferentes povos e nações indígenas, que insistem no seu uso, em vez de América, para
se referir ao continente americano. Abya Yala quer dizer terra madura, terra viva, terra em
florescimento. O uso do nome Abya Yala é assumido como posição política, argumentando-
se que o nome América ou a expressão Novo Mundo é própria dos colonizadores europeus
e não dos povos originários do continente. “Los gobiernos de Abya Yala son ancestrales y
los gobiernos de los Estados son coloniales […] nosotros no somos etnias, somos naciones,
pueblos, nacionalidades” (Encuentro Continental de Pueblos y Nacionalidades Indígenas
del Abya Yala, 2006).
2
“[...] ratificamos nuestros principios milenarios, complementariedad, reciprocidad y duali-
dad, y nuestra lucha por el derecho al territorio, la Madre Naturaleza, la autonomía y libre
determinación de los pueblos indígenas.”
3
“Vivimos siglos de colonización, y hoy la imposición de políticas neoliberales, llamadas de
globalización, que continúan llevando al despojo y saqueo de nuestros territorios, apoderán-
dose de todos los espacios y medios de vida de los pueblos indígenas, causando la degrada-
ción de la Madre Naturaleza, la pobreza y migración, por la sistemática intervención en la P
soberanía de los pueblos por empresas transnacionales en complicidad con los gobiernos.”
4
Ver a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas
(Organização das Nações Unidas, 2008) e a ratificação da Convenção 169, da Organização
Internacional do Trabalho (2011).
5
“Afianzar el proceso de alianzas entre los pueblos indígenas, de pueblos indígenas y los
movimientos sociales del continente y del mundo que permitan enfrentar las políticas
neoliberales y todas las formas de opresión.”
6
“Soñamos nuestro pasado y recordamos nuestro futuro.”
7
O Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, mais tarde
apenas Serviço de Proteção aos Índios (SPI), foi criado pelo decreto-lei nº 8.072, de 20
de junho de 1910. Em 1967, durante a ditadura militar, foi criada a Fundação Nacional do
Índio (Funai), em substituição ao SPI.
8
Terra indígena: o texto constitucional trata de forma destacada esse tema, apresentan-
do, no parágrafo 1º do artigo 231, o conceito de terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios, definidas como aquelas “por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas
para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
611
Dicionário da Educação do Campo
necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus
usos, costumes e tradições”. Terras que, segundo o inciso XI do artigo 20 da Constituição
Federal, “são bens da União”, sendo “inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas
imprescritíveis” (art. 231, parágrafo 4º). Os critérios para a identificação e a delimitação
de uma terra indígena, que devem ser realizadas por um grupo de técnicos especializados,
estão definidos no decreto nº 1.775/1996 e na portaria nº 14/MJ, de 9 de janeiro de 1996
(Brasil, s.d.).
9
“Segundo a Organização Mundial da Saúde, um índice de 12,5 mortes por 100 mil pessoas é
considerado muito alto; o índice de suicídio entre os guarani e kaiowá é de 32,5. Nos últimos anos,
aconteceram vários suicídios entre o povo karajá” (Conselho Indigenista Missionário, 2011a).
10
Ver tabela “Capítulo III – Violência por omissão do Poder Público” (Conselho Nacional
Indigenista, 2011a, p. 151).
11
Também chamados de povos livres, por terem optado por se manter afastados das so-
ciedades nacionais, não têm, como estratégia de sobrevivência, contato algum com elas.
Continuam, assim, fugindo das frentes colonizadoras de expansão nacional e dos grandes
projetos. No entanto, esses povos não se encontram livres da usurpação de seus territórios,
e estão, assim, seriamente ameaçados de extinção.
612
Povos Indígenas
cimi.org.br/pub/publicacoes/1309466437_Relatorio%20Violencia-com%20
capa%20-%20dados%202010%20%281%29.pdf. Acesso em: 8 nov. 2011.
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Declaración de Iximche. Tecpán, Guatemala, 26 a 30 de março de 2007. Dispo-
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Levy, M. S. F. Perspectivas do crescimento das populações indígenas e os di-
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Maracci, M. T. Progresso da morte, progresso da vida: a reterritorialização conjun-
ta dos povos tupiniquim e guarani em luta pela retomada de seus territórios
613
Dicionário da Educação do Campo
614
Produção Associada e Autogestão
cias das classes trabalhadoras. Ao con- dores, que o trabalho associado, “que
trário da heterogestão, os princípios, as maneja suas ferramentas com a mão
regras e as normas de convivência que re- hábil e entusiasmada, espírito alerta
gem o trabalho associativo e autoges- e coração alegre” (apud Bottomore,
tionário são criados e recriados pelos 1993, p. 20), representa a negação do
seus integrantes. No caso do Movi- trabalho assalariado.
mento dos Trabalhadores Rurais Sem Nessa perspectiva, a cooperação
Terra (MST), por exemplo, criado por pode ser entendida como uma “for-
aqueles que lutam pelo direito à terra ma de trabalho em que muitos traba-
em que trabalham, o objetivo é a reali- lham juntos, de acordo com um plano”
zação de um interesse de classe. (Marx, 1980, p. 374), objetivando a
A compreensão do termo requer reprodução ampliada da vida (e não do
sua decomposição em duas catego- capital). No entanto, Marx alerta que,
rias: “produção associada” e “autoges- enquanto as associações cooperativas
tão”. A primeira pode ser entendida: não se desenvolverem em nível nacional,
a) como trabalho associado, ou pro- representarão apenas “um estreito cír-
cesso em que os trabalhadores se asso- culo dos esforços casuais de grupos de
ciam na produção de bens e serviços; e trabalhadores” (apud Bottomore, 1993,
b) como a unidade básica da “sociedade p. 20), e condena a desvirtuação que fa-
dos produtores livres associados”. Im- zem os “porta-vozes e filantropos da
portante destacar que, na perspectiva burguesia” (ibid.), ao transformarem a
do materialismo histórico, a produção cooperativa em instrumento de valori-
diz respeito à totalidade dos proces- zação do capital. Para Marx, a derrota
sos de criação e recriação da realidade do capitalismo só será possível com o
humano-social mediados pelo traba- poder político nas mãos das classes tra-
lho, pelos quais o ser humano confe- balhadoras; no entanto, mesmo limita-
re humanidade às coisas da natureza e da na sociedade capitalista, ele acredita
humaniza-se com as criações e repre-
sentações que produz sobre o mundo.
que a produção associada seja a célula
da “sociedade dos produtores livres as- P
Para Karl Marx (1998), no horizonte sociados” (ibid.).
da emancipação humana, o “modo de No sentido restrito, autogestão é
produção de produtores associados” uma prática social que se circunscreve
seria fundado na propriedade e na ges- a uma ou mais unidades econômico-
tão coletivas dos meios de produção e sociais, educativas ou culturais, nas
na distribuição igualitária dos frutos do quais, em vez de se deixar a organiza-
trabalho. Referindo-se às formas que a ção do processo de trabalho aos capi-
produção associada pode apresentar na talistas e a seus representantes e/ou
sociedade capitalista, Marx utiliza os delegá-la a uma “gerência científica”,
termos trabalho associado, produção cole- trabalhadores e trabalhadoras tomam
tiva, sociedades cooperativas e associação para si, em diferentes níveis, o controle
cooperativa. Embora não tenha analisado dos meios de produção, do processo
as formas particulares dessas organiza- de trabalho e do produto do traba-
ções econômico-sociais e culturais, ele lho. No sentido político, econômico e
declara, em 1864, quando da criação da filosófico, as práticas sociais autoges-
Associação Internacional de Trabalha- tionárias carregam consigo o ideário da
615
Dicionário da Educação do Campo
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Produção Associada e Autogestão
nos quais estão em jogo a conquista do capital” (1990, p. 37). Assim, não
do Estado e a ruptura com o sistema se confundem com as práticas capita-
capital. Também merece destaque o listas de organização da produção em
fato de que, embora o modo de produ- equipes de “grupos autônomos”, “se-
ção capitalista seja hegemônico, persis- miautônomos”, “ilhas de produção” e
tem e subsistem outras formas de pro- outras inovações da organização capi-
duzir a vida social, por exemplo, nas talista que constituem novas tecnolo-
comunidades indígenas, quilombolas e gias de produção e gestão da força de
em outras comunidades tradicionais trabalho. É importante não esquecer
a cultura do trabalho não é pautada na que empresas familiares, cooperativas
valorização do capital. e outras organizações econômicas as-
As categorias produção associada e sociativas vêm sendo demandadas para
autogestão podem ser apreendidas fazerem valer a flexibilização das rela-
e problematizadas se consideradas as ções entre capital e trabalho, favore-
condições objetivas/subjetivas em que, cendo a criação das cadeias produtivas
nos diversos espaços/tempos histó- necessárias ao novo regime de acumu-
ricos, as classes trabalhadoras tomam lação. As cooperativas de trabalho e de
para si os meios de produção. Nos mo- produção que se organizam em torno
vimentos campesinos, há de se levar da agroindústria e do agronegócio são
em conta as artimanhas e imperativos exemplos disso.
do sistema capital, no interior do qual Se, como assinalava Marx, “o sabor
trabalhadores e trabalhadoras associa- do pão não revela quem plantou o tri-
dos constroem e reconstroem relações go” (1980, p. 208), o entendimento da
econômico-sociais e culturais, seja no produção associada e autogestionária
acampamento, no assentamento ou requer que nos debrucemos teórica e ati-
mesmo no seu lote. Há, ainda, que se vamente na análise das relações sociais
considerar a relação das associações de produção em que homens e mulhe-
camponesas com os demais movimen- res produzem o pão ou qualquer outro
tos sociais populares e com o próprio bem necessário para saciar a fome e, ao P
Estado, assim como os limites impos- mesmo tempo, criar e recriar a realidade
tos pela sociedade de classes às formas humano-social. Partindo do pressupos-
de organização da produção em que os to de que os movimentos sociais cam-
próprios trabalhadores (e não os pro- poneses têm se constituído como um
prietários privados da terra) decidem campo fértil do trabalho de produzir
o que, para que e como produzir a vida associativamente, as categorias
(Vendramini, 2008). produção associada e autogestão, por
As experiências associativas reve- serem abstratas, podem ganhar mate-
lam que, no embate contra a explora- rialidade histórica quando recuperada a
ção e a degradação do trabalho, não é essência dos processos de trabalho na
suficiente aos trabalhadores se apro- agricultura camponesa, incluindo muti-
priarem dos meios de produção. Como rões, puxirões e outras práticas culturais
sinaliza Lúcia Bruno, “práticas autoges- do trabalho de semear, plantar, colher,
tionárias têm que realizar uma altera- distribuir, consumir...
ção profunda nas relações de trabalho, Fundada na premissa do princípio
destruindo os processos de valorização educativo do trabalho, a unidade de
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Dicionário da Educação do Campo
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Produção Associada e Autogestão
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Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)
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Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)
dos os poderes públicos. Viena reco- minou as eleições livres, impôs censura
mendou também que a elaboração des- à imprensa e às manifestações artísticas,
se plano nacional contasse com ampla prendeu opositores e torturou, matou e
participação da sociedade civil, isto é, eliminou os corpos de militantes que se
organizações e movimentos sociais, sin- engajaram na resistência.
dicatos, ONGs, igrejas e universidades. Sendo prioritária, naquele período,
Essa recuperação de informações a luta pela democracia, entende-se por
históricas é necessária para se compreen- que a visão formada sobre os direitos
der melhor a história dos planos nacio- humanos se resumia quase inteiramente
nais de direitos humanos no Brasil e, aos direitos civis e políticos: liberda-
principalmente, a grande polêmica de- de. Antes de 1964 e durante a dita-
sencadeada, em 2010, em torno do lan- dura sempre ocor reram lutas por
çamento do terceiro Programa Nacional direitos econômicos e sociais. Predo-
de Direitos Humanos (PNDH-3)1 – minava, porém, a impressão de que
terceira versão do plano nacional de direitos humanos eram apenas os direi-
direitos humanos brasileiro – pelo pre- tos de participação política, expressão
sidente Luiz Inácio Lula da Silva. do pensamento, garantia de defesa num
processo justo, proteção contra prisões,
torturas e desaparecimentos por causa
PNDH-1 e PNDH-2 da militância política. Direitos econô-
Entre 1964 e 1985, o Brasil esteve micos e sociais, como posse da terra
submetido a uma ditadura militar-civil para viver e produzir, casa para morar,
cuja superação só se completou, de saúde, educação, transporte público e
fato, com a promulgação da Consti- trabalho decente, só pouca gente com-
tuição de outubro de 1988. Estudando preendia que também faziam parte dos
com atenção os livros, documentos e direitos humanos.
jornais sobre as lutas populares no A Constituição de 1988 marcou o
Brasil antes do período ditatorial, nota-
se que os temas dos direitos humanos
reencontro do país com a democracia
institucional plena, mas ficava claro P
raramente são abordados. As bandeiras que ainda seria longa a caminhada para
de justiça, igualdade, combate à explo- transformar o Brasil num país onde
ração e direitos dos pobres estão pre- os direitos humanos fossem satisfato-
sentes, mas quase nunca há a menção riamente respeitados. Nesse sentido, a
aos direitos humanos. É como se esti- Constituição, longe de ser o ponto fi-
véssemos na pré-história brasileira da nal de chegada, representava um ponto
afirmação desses direitos. de partida muito importante. Den-
Foi no enfrentamento da violação tro de sua moldura, estava desenhada
sistemática de direitos humanos pratica- a estrada para avançar, ano a ano, na
da pela ditadura que começou a nascer construção dos direitos ainda não asse-
e a se fortalecer uma nova consciência gurados. A democracia é uma reinven-
nacional a respeito da importância do ção permanente da política, explica a
assunto. O regime de 1964 reprimiu sin- filósofa Marilena Chauí (2001).
dicatos de trabalhadores e organizações Em 1989, Fernando Collor de Mello
estudantis, cassou mandatos parlamen- foi eleito presidente da República e
tares e obrigou milhares ao exílio, eli- teve seu mandato interrompido pela
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Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)
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tantes do Poder Judiciário, do Minis- ciais, por sua vez, se empenhou no sen-
tério Público e da Defensoria Pública. tido de que a redação final incorporasse,
Dentro do governo federal, as ativida- quanto fosse possível, aquilo que havia
des foram centralizadas pela Secretaria sido aprovado no debate democrático.
Especial dos Direitos Humanos, que Negociações desse tipo são difíceis,
Lula tinha promovido a ministério já muitas vezes envolvem momentos de
no início de seu governo. tensão e litígio, mas são fundamentais
Realizaram-se, então, conferências na convivência democrática. De modo
municipais, regionais e estaduais nos me- geral, as diferentes representações se
ses seguintes, além de 137 conferên- sentiram satisfeitas com o produto do
cias livres sobre diferentes temas, seu trabalho. Faltava, então, uma etapa
preparando a fase final que acontece- final, decorrente da decisão conjunta
ria em Brasília em dezembro daquele do Grupo de Trabalho Nacional de se
ano, com a presença do presidente da avançar mais um passo na comparação
República e vários ministros. Com o com as edições anteriores do PNDH:
lema “Democracia, desenvolvimento o decreto presidencial não seria pro-
e direitos humanos superando as de- posto apenas pela Secretaria de Direi-
sigualdades”, cerca de 14 mil pessoas tos Humanos e sim por todos os mi-
participaram diretamente desses deba- nistérios que aceitassem partilhá-lo e
tes em suas distintas fases, culminan- promovê-lo. Foram necessários, então,
do com a participação de 2 mil pes- muitos meses de debate interministe-
soas, entre as quais 1.200 delegados rial aparando arestas e promovendo ex-
escolhidos nas etapas estaduais, nes- plicações, convencimento e ajustes.
sa etapa conclusiva. O PNDH-3 foi lançado num grande
Foi aprovada então, nessa XI Con- evento público em 21 de dezembro
ferência Nacional dos Direitos Huma- de 2009. A grande imprensa, muito
nos, realizada nos dias 15 a 18 de de- despreparada para entender as questões
zembro de 2008, a espinha dorsal do envolvendo direitos humanos, preferiu
que viria a ser o decreto presidencial de destacar apenas o fato de que, pela
Lula, publicado em 21 de dezembro primeira vez, a ministra-chefe da Casa
de 2009, instituindo o PNDH-3. Esse Civil e candidata presidencial apoia-
intervalo de um ano foi consumido em da por Lula, Dilma Roussef, apareceu
vários meses de diálogo e negociação em público sem usar a peruca utilizada
entre representantes dos poderes pú- durante uma terapia para tratamento de
blicos e as representações da sociedade câncer. As fotos estamparam, quando
civil para sistematizar o texto a ser pro- muito, seu rosto em lágrimas ao entre-
posto ao presidente da República. gar o Prêmio Nacional de Direitos Hu-
A bancada governamental dessa manos a Inês Etienne Romeu, ex-presa
negociação era integrada por vários mi- política que Dilma conhecia desde a
nistérios e se preocupou em ajustar ou juventude e única sobrevivente da Casa
modificar propostas aprovadas na XI da Morte, que os torturadores do regi-
Conferência que pudessem conter even- me de 1964 montaram em Petrópolis
tuais problemas de constitucionalidade para eliminar opositores da resistência.
ou graves impedimentos orçamentários. Na apresentação do PNDH-3,
A representação dos movimentos so- Lula escreveu:
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Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)
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Nota
1
Essa versão pode ser lida na íntegra, e reproduzida, a partir do endereço da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República: http://www.direitoshumanos.gov.br/pndh.
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Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera)
P
P
PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO NA
REFORMA AGRÁRIA (PRONERA)
Clarice Aparecida dos Santos
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Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera)
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Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera)
da União (TCU). Houve três ações ci- e permanência na escola” (art. 3°,
vis públicas contra os cursos de Agro- I, da lei nº 9.394/1998). A não
nomia, Direito e Medicina Veterinária, ser que se pretenda conferir
em parceria com as universidades fe- caráter apenas retórico ao prin-
derais de Sergipe (UFS), Goiás (UFG) cípio de igualdade de condições para
e Pelotas (UFPel), respectivamente. o acesso e permanência na es-
Na base de todas as ações, a alegação cola, deve-se a esta assegurar a
de que os cursos, realizados para tur- possibilidade de buscar formas
mas específicas de assentados, aten- criativas de propiciar a natureza
tam contra o princípio constitucional igualitária do ensino.
da isonomia de acesso ao ensino su-
9. Políticas afirmativas, quando
perior, constituindo-se em privilégio
endereçadas a combater genuí-
aos assentados, condição de que não
nas situações fáticas incompa-
desfrutam os demais grupos sociais.
tíveis com os fundamentos e
Ações estas agravadas ainda mais pelo
princípios do Estado social, ou a
histórico preconceito de parte dos re-
estes dar consistência e eficácia,
presentantes dessas instituições do Es-
em nada lembram privilégios,
tado, ao afirmarem que os camponeses,
nem com eles se confundem.
pelo fato de viverem e trabalharem no
campo, não necessitam de ensino su- Em vez de funcionarem por
perior, mas apenas de conhecimentos exclusão de sujeitos de direitos,
técnicos básicos para o trabalho na estampam nos seus objetivos e
agricultura. No caso do curso de Di- métodos a marca da valorização
reito, foram movidas duas ações, sen- da inclusão, sobretudo daqueles
do que na primeira, a justificativa para aos quais se negam os benefí-
coibir a entrada dos camponeses num cios mais elementares do patri-
curso especial de Direito se baseava no mônio material e intelectual da
fato de esta ser uma área voltada para Nação. Frequentemente, para
o meio urbano. privilegiar basta a manutenção
do status quo, sob o argumento
P
Em todos os casos, recursos im-
petrados pelo Incra e pelas universi- de autoridade do estrito respei-
dades tiveram acolhida nas instâncias to ao princípio da igualdade.
do Poder Judiciário. O relatório do de- 10. Sob o nome e invocação
sembargador do Superior Tribunal de do mencionado princípio, pra-
Justiça (STJ) designado para oferecer
ticam-se ou justificam-se algu-
parecer no caso do curso de Medicina
mas das piores discriminações,
Veterinária, além de ter acatado as ra-
ao transformá-lo em biombo
zões apresentadas em defesa do curso,
retórico e elegante para ene-
constitui importante referência para a
voar ou disfarçar comporta-
afirmação do direito dos camponeses
mentos e práticas que negam
à universidade:
aos sujeitos vulneráveis direi-
8. Entre os princípios que vincu- tos básicos outorgados a todos
lam a educação escolar básica e pela Constituição e pelas leis.
superior no Brasil está a “igual- Em verdade, dessa fonte não
dade de condições para o acesso jorra o princípio da igualdade,
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Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera)
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Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera)
Rio Grande do Sul. Justiça Federal de Pelotas (4ª Região). Ação civil públi-
ca nº 2007.71.10.005035-8/RS. Sentença. Everson Guimarães Silva (Juiz Federal
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Santos, C. A. dos. Educação do Campo e políticas públicas no Brasil: a instituição de
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Q
Questão agrária
João Pedro Stedile
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Questão Agrária
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Questão Agrária
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Notas
1
O termo junker era usado no meio rural russo da época como sinônimo de fazendeiro rico;
é provável que tenha sido adotado por causa da proximidade da Rússia com a Alemanha.
2
Condições características de cada região, relacionadas com a fertilidade natural do solo, a
quantidade de água e sol, e as condições de clima para agricultura.
3
Para cada modelo de desenvolvimento capitalista na agricultura aqui expresso há farta
literatura, que já está disponível em português.
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Quilombolas
Quilombolas
Simone Raquel Batista Ferreira
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Quilombolas
“negros fugidos”, que deveriam ser na qual terra, natureza e gente eram
capturados pelas forças repressoras. transformadas em mercadoria.
Da significação de espaço de resistência, Com o fim do escravismo colonial,
o termo quilombo (e sua derivação qui- o termo quilombola foi adquirindo ou-
lombolas) adquiria novo significado na tros significados, que devem ser con-
linguagem do colonizador: espaço de textualizados historicamente.
“negros fugidos”.
Enquanto “negros fugidos” da es-
cravidão, os quilombolas foram objeto de
Da identidade étnica
busca e captura por parte dos senhores quilombola e seus
de terras, das autoridades políticas pro- sujeitos de direitos
vinciais e das forças policiais. Durante
todo o escravismo colonial, foi intensa A identidade étnica é uma forma de
a troca de correspondências entre esses organização estrategicamente elaborada
sujeitos dominantes da ordem estabe- pelos grupos sociais para afirmar suas
lecida, revelando as constantes fugas diferenças em relação ao “outro” (Barth,
e enfatizando a necessidade de sua re- 2000). Em cada contexto histórico e geo-
pressão e da captura dos fugitivos. gráfico, essa identidade é reformulada
No entanto, se por um lado essa tro- pelos grupos sociais, no intuito de ma-
ca de correspondências mostra as arti- nifestar suas especificidades.
culações do aparelho repressor colo- A construção da identidade quilom-
nial, por outro revela o grande temor bola sempre caminhou em contraste
provocado pelos “negros fugidos” com o sistema hegemônico. No caso
nos grupos sociais dominantes, não só dos africanos escravizados e forçosa-
porque suas fugas lhes traziam prejuí- mente trazidos como mercadoria para
zos de ordem material, mas também, o mundo colonial, a identidade negra foi
sobretudo, porque seu movimento de sendo tecida como instrumento de afir-
rebelião e ruptura em relação à situa- mação das próprias origens, de sua an-
ção de escravizado ameaçava a ordem cestralidade e de seus saberes. Quan-
estabelecida (Azevedo, 1987). do se rebelavam, fugiam e constituíam
Quilombolas eram os sujeitos e gru- os quilombos, organizavam-se enquanto Q
pos sociais que se libertavam da escra- quilombolas, identidade que passava a
vização imposta, negando a inferiori- representar os sujeitos da resistência ante
dade que lhes era atribuída pela ordem o sistema colonial escravista.
colonial (Quijano, 2005). E nos quilom- Com o fim do sistema escravocra-
bos, eles se organizavam pela ótica da ta, o primeiro retorno do termo qui-
campesinidade – modo de viver basea- lombolas ao discurso oficial do Estado
do no trabalho familiar sobre a terra, brasileiro ocorreu durante o processo
como patrimônio a ser transmitido às constituinte de 1988. Baseando-se
novas gerações (Woortmann, 1990). no significado da resistência e trazen-
Presente também em diversos outros do a questão da reparação dos danos
grupos sociais, esse modo de viver provocados pela escravidão negra, o
contrapunha-se à ordem latifundiária e movimento negro encaminhou a dis-
monocultora colonial, regida pela lógi- cussão referente à necessidade de se
ca da acumulação desigual de riquezas, reconhecerem direitos singulares aos
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Quilombolas
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Dicionário da Educação do Campo
Barth, F. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: ______. O guru, o iniciador. Rio
de Janeiro: Contracapa, 2000.
Brasil. Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003: regulamenta o procedi-
mento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação
das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que
trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial,
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Quilombos
Renato Emerson dos Santos
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Quilombos
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Quilombos
nâmica” (são práticos inertes), são re- a forma hegemônica das relações
funcionalizadas por novos processos capitalistas) e sua extensão ao cam-
espaciais que elas também influenciam. po, a chamada modernização (social)
A ressignificação do passado escravo- da agricultura.
crata, ao tomar em conta a dimensão A racialização das relações sociais
processual do fim da escravidão (em emerge, portanto, como mais uma
vez de operar com a ideia de que ela dimensão de dominação, exploração
foi extinta numa mesma data, em todo e dominação. No campo, a emer-
o território nacional), deve então in- gência dos quilombolas, enquanto
corporar seus legados e continuidades modalidade de “campesinato negro”
na transição para o trabalho livre, e (Gomes, F. S., 2006) que se enuncia
observar as formas de inserção das co- como sujeito coletivo, evidencia que
munidades negras na nova ordem. Nas a não consideração da racialidade nas
últimas décadas antes do ano de 1888, relações de espoliação é, na verdade,
data oficial da abolição da escravatura, um alisamento analítico do território
bem como nas décadas seguintes, o (Deleuze e Guattari, 1997), não con-
Brasil, a exemplo de outros países nas templando a gama de relações que
Américas, experimentou um projeto constituem as condições concretas
de branqueamento da população. Tal das experiências cotidianas de indi-
projeto, executado com descontinuida- víduos e grupos. Se ao nos remeter-
des no espaço e no tempo, teve como mos ao passado podemos pensar os
uma de suas dimensões constitutivas a quilombos como sendo a expressão
difusão de um ideário de superioridade da luta de classes entre senhores e
racial do branco sobre os não brancos, escravos, na contemporaneidade eles
o que ajudou a organizar os mercados aparecem como expressão da multipli-
de trabalho livre (assalariado ou não) cidade de hierarquias constitutivas do
segundo hierarquias raciais. Com isso, sistema capitalista – assim como o gê-
a assimilação inferiorizante de popu- nero, a cultura, a religiosidade e a clas-
lações negras (nos espaços agrários e se, entre outras (Grosfoguel, 2010).
urbanos) na sociedade de classes trou- A própria racialidade das relações
xe como marcas a discriminação, a des-
qualificação (de indivíduos, de grupos,
sociais no padrão brasileiro deve ser com-
preendida como um fenômeno multi-
Q
de patrimônios culturais, de formas dimensional. Raça é um fenômeno e
comportamentais etc.) e a segregação conceito social, não biológico (Quijano,
de base racial. 2007). Na condição de reguladora de
Tais processos engendraram e con- comportamentos e relações, a raça não
solidaram “comunidades negras”, ru- é uma variável social independente em
rais e urbanas, e grafagens espaciais dos absoluto, estando comumente associa-
padrões de relações raciais hierárquicos da a outras variáveis. É dessa forma que
da sociedade brasileira pós-abolição da o racismo se manifesta nas experiên-
escravatura. A ideologia do racismo cias concretas de indivíduos e grupos,
foi assim refuncionalizada no século em diferentes eixos de discriminação:
XX, seja dentro do projeto nacional pela cor/fenótipo corpóreo, pela cultu-
ag rarista-expor tador-imig rantista ra, pela religiosidade, por práticas cul-
(Vainer, 1990), seja no processo de turais, por saberes, entre outros. Isso
industrialização (compreendido como explica a pluralidade (de organizações
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Reforma Agrária
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Notas
1
Condições características de cada região relacionadas com a fertilidade natural do solo, a
quantidade de água e sol, e as condições de clima para agricultura.
2
O índice de Gini serve para medir desigualdades (de terra, de renda, de riqueza, de acesso
a bens etc.) e varia de 0 a 1, sendo que, quanto mais igualitária a distribuição, mais próximo
de 0 fica o índice, e quanto maior a desigualdade, mais próximo de 1 ele fica.
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Como a teoria nos explica, se o pre- que possuem dinheiro e não necessa-
ço médio das terras é determinado pela riamente têm interesse em produzir na
expectativa e possibilidades reais de lu- agricultura. Eles aplicam o dinheiro
cro a ser obtido dela, na vida real das so- comprando o direito de determinadas
ciedades capitalistas, cada vez que sobe áreas de terra; quando a taxa de lucro
a taxa de lucro na agricultura, sobem sobe, e portanto os preços das ter-
também os preços por hectare de ter- ras aumentam, eles as revendem para
ra. E cada vez que cai a taxa média de obter maiores margens de lucro nessa
lucro da agricultura, caem também os operação comercial-especulativa.
preços por hectare de terra. Há uma segunda forma de prática
de especulação sobre o preço das ter-
A especulação com os ras. Ela ocorre nas regiões de fronteira
agrícola, onde as terras ainda não es-
preços da terra
tão incorporadas à propriedade priva-
À medida que o capitalismo foi se da dos capitalistas. Em alguns países
desenvolvendo e hegemonizando as ou em algumas regiões dentro dos paí-
condições de produção na agricultura, ses – como, aqui no Brasil, é o caso da
os capitalistas perceberam que a terra região amazônica –, há ainda muitas
era uma mercadoria especial e finita, terras que não possuem proprietários.
pois o tamanho das terras é determina- Elas talvez sejam utilizadas de forma
do pela natureza. Não se pode aumen- comunitária, por populações locais e
tar seu tamanho, portanto seu acesso nativas, ou podem ser consideradas
estaria limitado a alguns proprietários. terras públicas, de domínio do Estado.
Com essa perspectiva, muitos capitalis- Nessas regiões, muitos capitalistas es-
tas que não estavam vinculados ao se- peculadores se apoderam das terras, to-
tor agrícola, nem tinham interesse em mando posse delas ou comprando-as,
produzir mercadorias agrícolas, passa- a preços simbólicos, das comunida-
ram a investir seu capital-dinheiro na des locais. Depois essas terras são cer-
compra do “direito” de ter terra, como cadas e registradas como propriedade
uma forma de reserva de valor para privada. Após o registro, seus compra-
seu capital-dinheiro. Por ser um direi- dores promovem o desmatamento e a
to, essa terra seria, ao mesmo tempo, melhoria do acesso a estradas, prepa-
facilmente negociável, quando os pre- ram as terras para o cultivo e revendem
ços oscilassem para acima do que foi a outros capitalistas por preços mais
pago. Formou-se então um mercado valorizados, obtendo assim altas taxas
de disputa das terras pelos capitalistas de lucro.
Nota
1
O conjunto das teorias de Marx sobre o funcionamento do capitalismo está reunido na
obra clássica O capital: crítica da economia política. Durante o século XX, outros pesquisadores
contemporâneos recuperaram escritos e anotações do Marx que revelam seu método de
trabalho, suas pesquisas e os comentários que fazia aos autores que o antecederam. As refle-
xões anotadas nos cadernos manuscritos de Marx foram editadas, como Grundrisse, Teorias
da mais-valia, Manuescritos de Marx e, ainda, no tomo IV de O capital.
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Repressão aos Movimentos Sociais (Campo e Cidade)
que não é nova em si mesma, mas tem crescentes e graves violações cometi-
adquirido dimensões assustadoras nas das pelo Estado contra seus direitos,
últimas décadas. bem como a militarização crescente de
Para entendermos a criminalização áreas pobres da cidade e do campo e
dos movimentos como ela ocorre hoje, do espaço público em geral – um conjun-
é preciso recapitular alguns aspectos to de ideias e práticas que se denomina
da evolução econômica, social e cul- hoje criminalização da pobreza, fenôme-
tural das sociedades capitalistas nos no que não é novo, mas tem adquirido
últimos trinta anos aproximadamente, grandes proporções atualmente.
principalmente na América Latina e no A criminalização da pobreza é acom-
Caribe. A depressão econômica mundial panhada da crescente importância da-
iniciada em meados dos anos 1970, e a da à segurança nas políticas públicas, e
adoção de políticas neoliberais cada vez também nas relações privadas. A segu-
mais generalizadas que se seguiu a ela, rança pública, mesmo quando chama-
gerou grande aumento do desemprego da “segurança cidadã”1 ou “segurança
estrutural, e intensificação da precariza- democrática”,2 passa a ser apresentada
ção do trabalho e da concentração do capital, como prioridade absoluta e acaba vin-
incluindo a concentração da propriedade culando-se a políticas internacionais de
da terra. Acompanhando o aprofunda- segurança, justificadas pelo “combate
mento da globalização capitalista, as redes ao terrorismo” ou pelo “combate ao
criminosas internacionais se expandiram, narcotráfico”, que começaram a ganhar
valendo-se tanto das facilidades de cir- corpo nas Américas em 1995, com a
culação internacional de capitais quan- elaboração da Doutrina da Coopera-
to da disponibilidade de “mão de obra” ção para a Segurança Hemisférica dos
para atividades criminosas, em decor- Estados Unidos da América, adotada
rência do desemprego e da precariza- pela Organização dos Estados Ameri-
ção (Ziegler, 2003). canos (OEA).3
Paralelamente, ideologias e culturas A “segurança pública” passa a ser,
individualistas e antissolidárias fortalece- assim, a sucessora das doutrinas de se-
ram-se, e mais ainda após o colapso gurança nacional da época das ditaduras
dos regimes de socialismo de Estado na civis-militares na América Latina, e ser-
antiga União das Repúblicas Socialistas ve de justificativa para a manutenção
Soviéticas (URSS) e no Leste Europeu,
fazendo ressurgir uma profunda reação
de diversos instrumentos e legislações
de exceção (Longo e Korol, 2008). R
ao fenômeno da criminalidade crescente Todo esse ambiente de exceção,
que não busca questionar suas causas suspensão de garantias e direitos e de
e conexões econômicas, políticas e so- militarização dos espaços e da vida pú-
ciais, mas que simplesmente se baseia blica em geral é utilizado para a crimi-
no medo e na exigência de repressão e nalização e a repressão aos movimentos
de endurecimento penal (Longo e Korol, sociais. Embora nenhum movimento
2008). Os indivíduos e comunidades contestador escape a esse cerco da
pobres, e em especial a juventude, e seus “segurança”, são os movimentos oriundos
locais de moradia e convivência passam dos setores mais pobres da cidade e do cam-
a ser vistos coletivamente como a fonte po seus alvos principais. E isso ocorre,
do crime e da violência; e isso justifica em primeiro lugar, como consequência
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Repressão aos Movimentos Sociais (Campo e Cidade)
cas e dos direitos garantidos pela lei, a utilização de formas brutais de vio-
os movimentos devem se restringir a lência. Trata-se, entretanto, de latifún-
reivindicações institucionais, como po- dios e grandes propriedades totalmente
líticas públicas, e utilizar para isso só ilegítimos, pois foram construídos com
os meios institucionais convencionais, base no despojo das terras indígenas,
como a representação parlamentar. no trabalho escravo e nas formas mais
Esse discurso acaba sendo absorvido e cruéis de exploração e esmagamento
reproduzido por aqueles setores insti- da resistência popular.
tucionalistas dos movimentos, que não Essa denúncia da perversidade e
compreendem o caráter irreconciliável das dos fundamentos ilegítimos da ordem
contradições de classe e creem na ilusão de econômica e social do capital faz parte
superar a desigualdade, a opressão e a do contínuo esforço que os movimen-
exploração sem transformar radical- tos sociais devem realizar para relegiti-
mente o regime econômico e social. mar suas organizações e suas lutas ante
Em relação a isso, é preciso reafir- as várias estratégias de criminalização.
mar que a conquista de liberdades, di- De maneira geral, isso significa reafir-
reitos formais e garantias constitucio- mar que a luta dos movimentos sociais
nais é muito importante, mas por si só busca no final das contas a construção
não altera a realidade socioeconômica de uma nova sociabilidade, igualitária,
desigual e perversa construída ao lon- solidária e livre, capaz de efetivar os
go de séculos de violências. Se, por um direitos fundamentais à vida, à saúde, à
lado, a “ordem constitucional” provê educação, à cultura e ao trabalho, que
direitos e garantias formais (na letra da sempre são prioritários e devem se so-
lei), por outro sanciona a concentração da brepor aos “direitos” ao lucro e à acu-
propriedade e do poder econômico nas mãos mulação do capital.
de uns poucos, o que foi construído ao A criminalização dos movimentos
longo de um doloroso processo de es- será enfraquecida, em primeiro lugar, se
poliação, totalmente ilegítimo, que na os próprios movimentos populares de-
América Latina incluiu o genocídio e senvolverem uma posição clara e uma
o roubo de terras dos povos originá- denúncia coerente da criminalização
rios (indígenas) e a escravização de da pobreza: é comum que os militan-
vários povos africanos. tes dos movimentos reajam à sua cri-
Dessa maneira, no Brasil, por
exemplo, embora a Constituição de
minalização, exigindo que “não sejam
tratados como bandidos”, como se os R
1988 seja muito avançada nos objeti- abusos e violações de direitos come-
vos colocados, nos princípios estabele- tidos em nome do suposto “combate
cidos e nos direitos e garantias defini- à criminalidade” fossem de alguma
dos, estabelecendo inclusive restrições maneira justificáveis. Admitir a viola-
ao direito de propriedade na definição ção de direitos fundamentais em nome
de sua função social, o Brasil continua da “segurança pública” fragiliza os
sendo, na prática, um dos países com movimentos e abre campo para a sua
maior concentração da propriedade da própria criminalização. É preciso ter
terra (rural e urbana) em todo o mun- uma compreensão clara do fenômeno
do, e a legislação ordinária permite a da criminalidade, suas origens e cone-
proteção dessas propriedades mediante xões, e de como só a luta anticapitalista
679
Dicionário da Educação do Campo
e pela vigência dos direitos humanos Por fim, fica evidente a necessi-
fundamentais permite um efetivo en- dade de ampliar o conhecimento dos
frentamento das redes criminosas. militantes dos movimentos sobre
Por outra parte, para fazer frente direitos humanos – seus fundamentos,
aos meios de comunicação corporati- sua história, e inclusive suas con-
vos e à sua atividade de desinformação tradições, suas formas de defesa e
e distorção, é necessário construir uma aplicação –, bem como de construir
ampla rede de comunicação popular alter- redes de advogados, juristas e defen-
nativa, utilizando tecnologias não só sores de direitos que apoiem os mo-
tradicionais, mas também mais atuais. vimentos contra violações.
Notas
1
Expressão utilizada em países como Argentina e Chile, por exemplo.
2
Expressão utilizada na Colômbia e na América Central, por exemplo.
3
Documentos, resoluções e outras informações sobre a doutrina podem ser consultados
na página da Comissão de Segurança Hemisférica, do Conselho Permanente da OEA. Ver
http://www.oas.org/csh/portuguese/default.asp.
680
Residência Agrária
Residência Agrária
Fernando Michelotti
681
Dicionário da Educação do Campo
da relação com a natureza. Assim, es- ou que virão a atuar nos processos de
ses profissionais têm dificuldade para assistência técnica numa perspectiva
romper com a matriz tecnológica na que rompa com essa concepção he-
qual se formaram, mesmo que ela não gemônica. Para tanto, seus conteúdos
se mostre a mais adequada para a so- concentram-se em três grandes grupos
lução dos problemas ecológicos e pro- de questões: questão agrária/questão
dutivos camponeses, inclusive pela au- camponesa; agroecologia/sistemas fa-
sência de produção de conhecimentos miliares de produção; e extensão rural/
no interior das instituições superiores Educação do Campo. Busca-se, dessa
vinculados a esse tipo de demanda. forma, ampliar as reflexões teóricas
A hegemonia do agronegócio no dos profissionais de assistência técnica,
ensino superior em Ciências Agrárias de modo a descortinar o projeto hege-
no Brasil mostra-se especialmente mônico de desenvolvimento do campo
problemática para o Movimento pela e a reconhecer a existência do campe-
Educação do Campo, em especial para sinato e suas especificidades.
o Pronera, por dois motivos. Em pri- A abordagem da questão agrária
meiro lugar, pelo reconhecimento que nesses cursos pretende provocar nos
esse programa tem da universidade pú- educandos uma reflexão sobre o proje-
blica como um espaço institucional de to hegemônico de desenvolvimento do
produção do conhecimento técnico- campo na formação econômica e social
científico indispensável à formação brasileira, estudando suas raízes histó-
acadêmica articulada à Reforma Agrá- ricas em articulação com as dinâmicas
ria e ao desenvolvimento rural (Sá, mais gerais de expansão do capital, a
2009, p. 373). Em segundo lugar, pela atuação do Estado e das políticas pú-
perspectiva de indissociabilidade, na blicas na sua indução e as tendências de
Educação do Campo, da tríade campo– destruição ou subordinação do campe-
política pública–educação (Caldart, sinato. Ao mesmo tempo, objetiva uma
2008), na qual o conceito de campo leitura das lutas camponesas, em suas
evidencia a disputa por certo projeto diversas expressões, como processos
de desenvolvimento do campo que tem de resistência à destruição ou subordi-
na produção camponesa a sua centrali- nação, mas também como possibilidade
dade. Portanto, em última instância, a de construção de projetos contra-
intencionalidade principal do Progra- hegemônicos e emancipatórios. Dessa
ma Residência Agrária é constituir-se forma, problematiza-se a temática do
em política capaz de estimular a pro- desenvolvimento do campo para além
dução de conhecimento sobre e para o da visão unilateral predominante na
campesinato, no âmbito das Ciências formação em Ciências Agrárias.
Agrárias, nas universidades públicas, Com a temática da agroecologia
com base na pesquisa e extensão em nesses cursos espera-se não apenas uma
áreas de Reforma Agrária (Molina, ruptura com a matriz tecnológica in-
2009, p. 19). dustrialista aplicada à agricultura, co-
Nessa perspectiva, os cursos de es- nhecida como matriz da Revolução
pecialização do Programa Residência Verde, mas, sobretudo, romper com o
Agrária objetivam contribuir com a próprio paradigma científico que a sus-
formação dos profissionais que atuam tenta. Nessa perspectiva, a ciência mo-
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Residência Agrária
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Dicionário da Educação do Campo
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Residência Agrária
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Dicionário da Educação do Campo
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Revolução Verde
Revolução Verde
Mônica Cox de Britto Pereira
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Dicionário da Educação do Campo
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Revolução Verde
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Dicionário da Educação do Campo
As variedades nativas não são pro- riqueza nutricional foram sendo subs-
duzidas somente para o mercado: são tituídas por alimentos homogêneos
cultivadas para produzir comida, for- que não oferecem balanço nutricional
ragem para os animais e fertilizantes saudável. O que é produzido pelo pa-
orgânicos para o solo, e podem ser con- cote acaba por precisar ser enriqueci-
sideradas, sob vários aspectos, melho- do industrialmente, um paradoxo do
res do que as chamadas “melhoradas modelo da Revolução Verde. O arroz
cientificamente por seleção de certas irrigado, por exemplo, em decorrência
características que respondem bem ao da poluição gerada pelo uso crescente
pacote”. Por exemplo, uma variedade de agrotóxicos (inseticidas, herbicidas
antiga de trigo e uma variedade de alto etc.), extinguiu grande parte da fauna
rendimento produzem 1.000 kg de ma- dos rios, destruindo importante fonte
téria bruta. A variedade nativa produz local de proteína: o peixe.
300 kg de grãos e 700 kg de palha – A segurança alimentar das socie-
que tem vários usos no sistema agrí- dades em várias partes do mundo está
cola tradicional –, enquanto a de “alto ameaçada, assim como a soberania
rendimento” produz 500 kg de grãos e alimentar, visto que foi sendo impos-
500 kg de palha, priorizando a produ- to o mesmo pacote tecnológico para
ção como mercadoria para venda. os vários continentes, um pacote que
As monoculturas, que privilegiam utiliza grandes extensões de terras nos
algumas variedades apenas, acabam países em desenvolvimento e trabalho
por ameaçar a grande diversidade de precarizado, ameaçando o controle da
espécies nativas e seus usos múltiplos. agricultura pela diversidade de grupos
O pacote da Revolução Verde foi cria- camponeses por todo o mundo. Há
do para substituir a diversidade em um confronto entre diferentes modos
dois níveis: monoculturas de grãos, de fazer agricultura: uma agricultura do
que substituíram os cultivos mistos e a agronegócio, hegemônica e homogê-
rotação de culturas diversas, e base ge- nea em disputa com uma agricultura de
nética limitadíssima. Quando há subs- base camponesa.
tituição dos sistemas nativos diversifi- O saber local faz uso múltiplo da
cados por plantações com sementes do diversidade, as variedades locais dos
pacote da Revolução Verde, a diversi- sistemas agrícolas diversificados são
dade é ameaçada – e sua perda é irrepa- selecionadas para satisfazer esses usos
rável. Daí podermos ressaltar que está múltiplos. A destruição da diversidade
em curso uma erosão genética, com e a criação da uniformidade envolvem
perda de material genético de inúmeras simultaneamente a destruição da esta-
variedades nativas não aproveitadas, as bilidade e a criação da vulnerabilidade.
quais, se não forem plantadas, acabarão As variedades introduzidas pelo pacote
sendo extintas, levando à extinção de da Revolução Verde nas monoculturas
suas sementes. aumentam o uso de insumos externos
Podemos chamar atenção para as no ambiente e introduzem impactos
características diversas dessas sementes ecológicos graves e destrutivos. Adu-
“melhoradas”, destacando, por exem- bos químicos e agrotóxicos poluem os
plo, que a alimentação vem sendo trans- solos e águas. A irrigação e a redução
formada: a diversidade alimentar e a e escassez de biomassa vegetal levam a
690
Revolução Verde
691
S
Saúde no campo
Fernando Ferreira Carneiro
André Campos Búrigo
Alexandre Pessoa Dias
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Dicionário da Educação do Campo
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Saúde no Campo
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Dicionário da Educação do Campo
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Saúde no Campo
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Dicionário da Educação do Campo
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Sementes
Sementes
Eitel Dias Maicá
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Dicionário da Educação do Campo
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Sementes
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Dicionário da Educação do Campo
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Sementes
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Dicionário da Educação do Campo
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Sementes
Notas
1
Erosão genética é a perda de materiais genéticos decorrente da seleção de cultivares mais
produtivos, levando à redução do cultivo de espécies anteriormente cultivadas.
2
Seleção massal é um método de seleção de plantas feito por meio de similaridades feno-
típicas, como tamanho das plantas, cor das folhas etc.
3
Os laboratórios utilizam marcadores moleculares para a identificação de novos cultivares.
705
Dicionário da Educação do Campo
Sindicalismo rural
Leonilde Servolo de Medeiros
No Brasil, embora haja notícias de com suas famílias no interior das pro-
alguns sindicatos de trabalhadores ru- priedades e trabalhavam numa determi-
rais criados já na década de 1930, so- nada cultura comercial (cana-de-açúcar,
mente no início dos anos 1960 é regu- café etc.), mas tinham acesso à moradia
lamentado o direito à sindicalização da e a um pedaço de terra para plantio de
categoria, numa conjuntura em que eles víveres. Nesse caso, tratava-se de lutas
emergiam como atores na cena política. por melhor remuneração, mas que, em
Essa regulamentação tem sua origem algumas situações, envolviam também
quer nos conflitos que ocorriam em di- o acesso à terra.
versas locais no campo brasileiro, quer Ao longo dos anos 1950 e 1960,
na ação de diferentes agentes de me- esses segmentos se organizaram em
diação que impulsionaram a organiza- associações locais, reuniram-se em en-
ção dos trabalhadores e os apoiaram na contros regionais, estaduais e mesmo
criação de sindicatos. Entre eles, desta- nacionais, e começaram a consolidar
caram-se o Partido Comunista e a Igre- algumas bandeiras de luta: Reforma
ja Católica. As Ligas Camponesas, em- Agrária, direitos trabalhistas, regula-
bora inicialmente mostrando-se críticas mentação de contratos de parceria e
à organização sindical, endossaram- arrendamento e direito à sindicaliza-
na no momento em que se intensifi- ção. Em torno deste último ponto,
cou a criação de sindicatos, em especial havia grande disputa, uma vez que as
em Pernambuco. entidades patronais então existentes –
Os conflitos que então possuíam principalmente a Confederação Rural
maior visibilidade tinham diversas ver- Brasileira (CRB) e a Sociedade Rural
tentes: lutas pela posse da terra, envol- Brasileira (SRB) (ver Organizações da
vendo posseiros versus pretensos pro- Classe Dominante no Campo) – argu-
prietários; disputas em torno de prazos mentavam que havia uma unidade de
de contratos de arrendamento; tensões interesses entre todos os que viviam no
entre os trabalhadores que moravam campo, fossem patrões ou emprega-
706
Sindicalismo Rural
dos, e, portanto, bastava uma única or- dicatos reconhecidos (Medeiros, 1989;
ganização que os representasse. Assim, Novaes, 1987; Stein, 1991).
essas entidades reagiram fortemente à Fruto desse processo e expressando
ideia de que os trabalhadores pudes- determinado arranjo de forças, em final
sem se organizar em sindicatos, pois de 1963 foi fundada a Confederação
consideravam que, se criados, trariam Nacional dos Trabalhadores na Agricul-
para o meio rural tensões classistas que tura (Contag). Nela, o PCB ficou com a
até então, segundo eles, só existiam presidência (Lyndolpho Silva, que tam-
nas cidades. bém era presidente da União dos La-
Quando, no início dos anos 1960, vradores e Trabalhadores Agrícolas do
num contexto de ampliação e fortale- Brasil, criada em 1954, e que agregava
cimento das lutas, foi regulamentada associações de lavradores de diversos
pelo governo federal a sindicalização pontos do país) e a tesouraria (Nestor
dos trabalhadores rurais, foram tam- Veras), além da maioria dos cargos.
bém definidas quatro categorias de en- A AP ficou com a secretaria (Sebastião
quadramento: trabalhadores na lavou- Lourenço de Lima). Na composição ge-
ra, trabalhadores na produção extrativa ral, a Igreja Católica, que tivera impor-
rural, trabalhadores na pecuária e pro- tante papel na criação de sindicatos no
dutores autônomos (aqueles que exer- Nordeste e no Sul do país, ficou com
ciam a atividade rural sem empregados, dois cargos pouco importantes.
em regime de economia familiar). A
partir daí, houve um grande esforço de O sindicalismo rural
transformar as associações já existentes
em sindicatos e de criar essas entidades
durante o regime militar
onde não havia nenhuma organização A Confederação Nacional dos Traba-
prévia. Tratava-se de buscar condições lhadores na Agricultura foi reconhecida
legais para fundar federações estaduais em janeiro de 1964. Logo depois, so-
e, depois, uma confederação nacional. breveio o golpe militar e, com ele, uma
Como diversas forças políticas atua- forte repressão sobre as organizações
vam no campo tentando organizar os de trabalhadores. Diversas lideranças fo-
trabalhadores – Partido Comunista ram mortas ou tiveram de passar para a
Brasileiro (PCB), diferentes vertentes clandestinidade. No meio rural, muitos
da Igreja Católica, Ação Popular (AP), sindicatos recém-criados desapareceram,
Ligas Camponesas –, elas concorriam e houve intervenção do Ministério do
pelo controle dos sindicatos, de forma
S
Trabalho naqueles com maior enraiza-
a obter a direção das federações, e da mento social. O mesmo aconteceu em
confederação nacional que seria criada diversas federações e também na Contag.
posteriormente. Essa disputa permeava Não se tratava de eliminar os sindicatos,
o próprio Estado, uma vez que o Minis- mas sim o “perigo comunista”, e, por
tério do Trabalho tinha a prerrogativa meio de intervenções, dar uma nova di-
de reconhecer sindicatos, federações reção política às organizações existentes.
e a confederação. Assim, quem tinha Na maior parte dos casos, os intervento-
maior influência na Comissão Nacional res eram ligados à Igreja Católica.
de Sindicalização Rural também tinha No ano seguinte, as diferentes cate-
maior possibilidade de ter “seus” sin- gorias de enquadramento sindical foram
707
Dicionário da Educação do Campo
fundidas numa só. Por determinação do cal e pouco afeita a enfrentamentos. Com
Ministério do Trabalho, por meio da por- a aprovação do Fundo de Assistência ao
taria nº 71, de 2 de fevereiro de 1965, pas- Trabalhador Rural (Funrural) em 1971,
saram a existir no campo somente sindica- essa rede cresceu ainda mais em alguns
tos de trabalhadores rurais, envolvendo uma estados, pois os sindicatos tornaram-se
diversidade de situações: assalariados, mediação privilegiada para que os traba-
posseiros, arrendatários, parceiros, lhadores recebessem direitos previdenciá-
proprietários de terra que trabalhavam rios (aposentadoria, auxílio-doença, pen-
em regime de economia familiar etc. são), assistência médica e dentária. Muitos
As entidades patronais também tiveram prefeitos apressaram-se em criar sindica-
de se adequar à nova regulamentação: as tos onde eles não existiam, como tentativa
associações municipais preexistentes e que de ampliar sua clientela política.
constituíam a base das federações esta- Apesar dessas circunstâncias e da
duais e da Confederação Rural Brasileira heterogeneidade de suas bases, ao lon-
foram transformadas em sindicatos rurais. go dos anos 1970, a Contag difundiu,
A entidade nacional que os reunia passou por meio de seus boletins, cursos de
a se chamar Confederação Nacional da formação, encontros regionais e temá-
Agricultura (CNA). ticos, e da atuação de suas assessorias
Apesar da repressão e da interven- educacionais e jurídicas, noções tanto
ção generalizada nos sindicatos de tra- de direito à terra quanto de direitos tra-
balhadores, a memória das lutas e dos balhistas. O sistemático encaminhamento
direitos obtidos era muito forte em de relatórios de conflitos fundiários ao go-
alguns locais, e conflitos continuavam verno federal, acompanhados de pedidos
a ocorrer. Logo após o golpe, já come- de desapropriação de terras por interesse
çaram a ser articuladas ações para colo- social, nos termos do Estatuto da Terra,
car, na direção de algumas federações, não se desdobrava, no entanto, a não ser
trabalhadores que, ligados ao sindica- pontualmente, em formas de ação cole-
lismo cristão, eram comprometidos tiva que garantissem a permanência dos
com as principais bandeiras de luta do trabalhadores na terra. Foram raras as de-
período anterior. Como resultado, em sapropriações ocorridas, mas, apesar dessa
finais de 1967, articulou-se uma chapa condução “administrativa” dos conflitos e
de oposição para a direção da Contag, de sua pouca eficácia em termos de sustar
liderada por José Francisco da Silva, despejos e evitar a expulsão de trabalha-
proveniente da zona canavieira de dores do interior das propriedades, não
Pernambuco e formado pela Igreja Ca- se deve subestimar a capacidade que essas
tólica e pelo Movimento de Educação iniciativas tiveram de traduzir os confli-
de Base (MEB). Compondo-se com al- tos no campo na linguagem da Reforma
guns membros da direção proveniente Agrária, construindo a junção entre o de-
do período de intervenção, essa chapa sejo de acesso à terra e uma possibilidade
ganhou a eleição e assumiu a direção de política agrária, formatada por uma
da Contag. legislação aprovada pelo próprio regime
A Contag controlava extensa rede militar (o Estatuto da Terra). Em outros
sindical, difusa por diversos pontos do locais, a legislação trabalhista era a âncora
país, com orientações políticas diversas e, política para a luta por salários, por indeni-
em muitos casos, dominada pelo poder lo- zações em caso de expulsões das fazendas
708
Sindicalismo Rural
709
Dicionário da Educação do Campo
710
Sindicalismo Rural
711
Dicionário da Educação do Campo
mecanismos que não podem ser alterados mas não chegaram a ganhar as federa-
por simples ato de vontade. ções. Mesmo com a filiação da Contag
Para pensar nas dificuldades dos sin- à CUT, e a consequente extinção dos
dicatos, há que trazer ainda à discussão al- Departamentos Estaduais dos Traba-
guns aspectos do processo de formação de lhadores Rurais (DETRs), os sindica-
lideranças. Muitas vezes, a rápida ascensão tos cutistas da região mantiveram-se
de direções para o plano regional, esta- atuando em conjunto, e dessa articula-
dual ou nacional ou mesmo a sua conver- ção surgiu uma ruptura no interior do
são para a luta político-partidária deixam sindicalismo. Inicialmente, as difíceis
um vazio nas localidades. A formação de relações dos sindicatos cutistas com a
líderes é longa e tortuosa, não bastando Federação de Santa Catarina, acabaram
para isso sucessões de cursos e informa- gerando a criação, em 1997, da Federa-
ções. Por outra parte, há toda uma cultura ção dos Trabalhadores na Agricultura
centralizadora e pouco participativa (não Familiar do Estado de Santa Catarina
só no sindicalismo, mas como um traço (Fetrafesc). O não reconhecimento des-
da sociedade brasileira) que torna ainda sa federação pela Contag acabou por
maior a dificuldade de geração de novos fortalecer a articulação dos sindicatos
quadros, no ritmo que a reprodução sin- cutistas da região Sul que culminou com
dical exige. O resultado é a produção de a fundação, em 2001, da Federação dos
vazios políticos que desmobilizam os tra- Trabalhadores na Agricultura Familiar
balhadores e os afastam do sindicato. da Região Sul (Fetraf-Sul), abrangendo
Rio Grande do Sul, Santa Catarina e
A persistência de tensões foi acom-
Paraná. Essa federação inovava em re-
panhada de um grande esforço de equa-
lação à tradição sindical de diferentes
cionamento de questões e de tentativa
maneiras. Apoiava-se em sindicatos de
de unificação de diretrizes e concepções,
agricultores familiares, rompendo com
consolidado no Projeto CUT/Contag
a tradição unitária de representação
de Formação Sindical, iniciado em 1997,
que vinha desde os anos 1960. Além
e que resultou no esforço de produção de
disso, criava outra base federativa, que,
um Projeto Alternativo de Desenvolvi- em 2005, se organizou como confe-
mento Rural Sustentável e Solidário. Ao deração: a Fetraf Brasil. Em 2010, a
mesmo tempo, ocorriam grandes mobi- Fetraf Brasil tinha se firmado em qua-
lizações, como os Gritos da Terra e as se todos os estados do Brasil – exceto
Marchas das Margaridas, que consolida- no Rio de Janeiro e no Espírito Santo,
vam as bandeiras de luta dos anos 1970. na região Sudeste, e na maior parte dos
Essas iniciativas acabaram por colocar estados da região Norte (Acre, Amapá,
em destaque o lugar do que passou a se Amazonas, Rondônia e Roraima). E a
chamar de agricultores familiares. Contag tinha federações vinculadas
em todos. Dessa forma, os chamados
O aparecimento da “agricultores familiares” passaram a ter
Federação dos Trabalhadores duplicidade de representação tanto no
plano estadual quanto no plano nacio-
na Agricultura Familiar nal: a Contag e a Fetraf.
Nos estados do Sul do Brasil as Essa situação fez que, em 2009, a
oposições sindicais fortaleceram-se, Contag decidisse por se desfiliar da
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Sindicalismo Rural
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Dicionário da Educação do Campo
714
Sistemas de Avaliação e Controle
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Dicionário da Educação do Campo
Soberania alimentar
João Pedro Stedile
Horacio Martins de Carvalho
716
Soberania Alimentar
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Dicionário da Educação do Campo
718
Soberania Alimentar
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Dicionário da Educação do Campo
720
Soberania Alimentar
721
Dicionário da Educação do Campo
com o direito fundamental a não passar fome. alimentar significa que cada comunida-
No entanto, as organizações campone- de, município, região, povo têm o direi-
sas e, em especial, as delegadas mulhe- to e o dever de produzir seus próprios
res presentes no fórum paralelo à CMA alimentos. Por mais dificuldades natu-
foram críticas em relação aos termos rais que ocorram, em qualquer parte
utilizados na discussão dos governos, do nosso planeta, as pessoas podem
que, em sintonia com a hegemonia do sobreviver e se reproduzir dignamente.
neoliberalismo e com os princípios Já existe conhecimento científico acu-
defendidos pela OMC, ajustaram a mulado para enfrentar as dificuldades
definição de segurança alimentar, ten- naturais e garantir a produção de ali-
tando vincular o direito à alimentação à mentos suficientes para a reprodução
liberalização do comércio de alimentos, social dos seres humanos.
abrindo caminho para fazer da alimenta- E se a produção e a distribuição
ção um grande e lucrativo negócio para de alimentos fazem parte da soberania de
as empresas transnacionais, a indústria um povo, elas são inegociáveis e não
química e de fast-food, entre outros. podem depender de vontades políticas
As organizações camponesas con- ou práticas conjunturais de governos ou
trapuseram então ao conceito de segu- empresas de outros países. Como
rança alimentar o conceito de soberania advertia José Martí, já no início do sé-
alimentar. Partiram do principio de que culo XX, em relação à dependência da
o alimento não é uma mercadoria, é um direi- América Latina dos capitais estrangei-
to humano, e a produção e distribuição ros: um povo que não consegue produ-
dos alimentos é uma questão de so- zir seus próprios alimentos é um povo
brevivência dos seres humanos, sendo, escravo. Escravo e dependente do ou-
portanto, uma questão de soberania po- tro país que lhe fornece as condições
pular e nacional. Assim, soberania ali- de sobrevivência.
mentar significa que, além de terem Esse novo e transgressor concei-
acesso aos alimentos, as populações de to representa uma ruptura em relação
cada país têm o direito de produzi-los. à organização dos mercados agrícolas
E é isso que pode garantir a elas a so- imposta pelas empresas transnacio-
berania sobre suas existências. O con- nais e os governos neoliberais no seio
trole da produção dos seus próprios das negociações da OMC e da FAO,
alimentos é fundamental para que as cujas orientações políticas já tinham
populações tenham garantido o aces- violado as normas protecionistas para
so a eles em qualquer época do ano e a agricultura familiar e camponesa im-
para que a produção desses alimentos plantadas por alguns governos nacio-
seja adequada ao bioma onde vivem, nalistas e populares, mediante impos-
às suas necessidades nutricionais e aos tos sobre as importações baratas de
seus hábitos alimentares. O alimento alimentos, favorecendo o preço de ali-
é a energia de que necessitamos para mentos nacionais, outorgando faixas
a sobrevivência, de acordo com o meio de preços e mantendo os poderes dos
ambiente onde vivemos e nos reprodu- compradores públicos.
zimos socialmente. A utopia de uma soberania alimentar
A partir daí, o conceito evoluiu é fundamental para o fortalecimento de
para a compreensão de que soberania uma visão de mundo favorável a uma
722
Soberania Alimentar
723
Dicionário da Educação do Campo
Notas
1
Com instituições multilaterais de Bretton Woods nos referimos ao Banco Mundial e ao
Fundo Monetário Internacional. Essas instituições, assim como um sistema de regras e
procedimentos para regular a política econômica internacional, foram constituídas em ju-
lho de 1944, durante a Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, conhecida
posteriormente como as Conferências de Bretton Woods (cidade localizada no estado de
New Hampshire, nos Estados Unidos) ou o sistema de Bretton Woods. As Conferências
de Bretton Woods contaram com a presença de representações de 44 nações então aliadas,
como consequência da Segunda Guerra Mundial.
2
“[...] are often informal ‘experimental stations’ in which they transfer, encourage and
tend indigenous species, trying them out and adopting them for their specific – and
maybe varied – products. A recent study in Asia showed that 60 homegardens in one village
contained about 230 different plant species. Individual garden diversity ranged from 15 to
60 species.”
724
Soberania Alimentar
3
“In Indian agriculture women use 150 different species of plants for vegetables, fodder
and health care. In West Bengal 124 ‘weed’ species collected from rice fields have economic
importance for farmers. In the Expana region of Veracruz, Mexico, peasants utilise about
435 wild plant and animal species of which 229 are eaten.”
725
Dicionário da Educação do Campo
726
Sujeitos Coletivos de Direitos
727
Dicionário da Educação do Campo
728
Sujeitos Coletivos de Direitos
juiz afirma “o direito de cada uma das Ocupar todos os espaços de poder
partes do processo”, o conflito deve com ações de resistência representa o
ser compreendido como solucionado exercício necessário para a transforma-
e imediatamente é esquecido em um ção da realidade. Nesse sentido, o espaço
arquivo judicial, valendo e vinculan- do Poder Judiciário, longe de ser um
do apenas os indivíduos que partici- espaço privilegiado do movimento so-
param do conflito original, que res- cial, merece ser enfrentado com serie-
tará aprisionado definitivamente no dade, criando-se redes de apoio jurídico
processo judicial. à direção dos movimentos sociais –
Enquanto sujeito coletivo transfor- como já ocorre com o Poder Legislati-
mador, real e marcado pelas experiên- vo –, com a consciência de que as ações
cias de lutas, o movimento social é o não podem ser tomadas de forma iso-
único sujeito social capaz de desquali- lada, afastando-se as ações diretas, mas
ficar a atividade do Estado-juiz em sua devem se interligar para que produzam
ação de decidir o conflito como caso in- resultados positivos.
dividual. Para que tal desqualificação se Os movimentos sociais e militantes
produza, o conflito deve ser libertado de direitos humanos já utilizam o espa-
do processo judicial estático, com a ço do Poder Legislativo como espaço
proposição pelos movimentos sociais em disputa, buscando garantir que os
de ações externas ao Judiciário que re- direitos que protegem os trabalhadores
qualifiquem o conflito, devolvendo-o e excluídos sejam positivados, virem lei.
para a realidade, por meio de marchas, Vale destacar uma interessante obser-
manifestações de rua e vigílias durante vação sobre esse fenômeno de Carlos
os atos processuais. Miguel Herrera: “a codificação de di-
Os movimentos sociais, ao assu- reitos do homem em uma declaração,
mirem as ações coletivas de denúncia tal como aparece em fins do século
do processo judicial mediante ações XVIII, expressa a tentativa de consti-
de rua, disputam espaço na sociedade. tucionalizar um movimento insurrecio-
Como exemplo da requalificação de con- nal” (2008, p. 11).
flitos aprisionados no processo judi- Os movimentos sociais, com as
cial mediante a ação coletiva dos mo- experiências vitoriosas de suas lutas
vimentos sociais rurais, destaque-se concretas, devem assumir seu lugar de
as manifestações de rua em vigília a destaque na ação de transformar a rea-
julgamentos processuais, numa verda- lidade, contagiando, com suas ações
deira ação transformadora na esfera do coletivas, as disputas travadas nos de-
Poder Judiciário. mais espaços de poder. S
Para saber mais
Herrera, C. M. Estado, Constituição e direitos sociais. In: Souza Neto, C. P. de;
Sarmento, D. (org.). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais
em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 7-35.
Lanzellotti Baldez, M. Sobre o papel do direito na sociedade capitalista – ocupações
coletivas: direito insurgente. Petrópolis: Centro de Defesa dos Direitos Humanos,
1989.
729
Dicionário da Educação do Campo
Lyra Filho, R. Para um direito sem dogmas. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1980.
Saule Junior, N.; Libório, D.; Aurelli, A. I. (org.). Conflitos coletivos sobre a posse e
a propriedade de bens imóveis. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério
da Justiça, 2009. (Série Pensando o Direito, 7/2009).
Sousa Junior, J. G. de. Movimentos sociais e práticas instituintes de direito: perspectivas
para a pesquisa sociojurídica no Brasil. Coimbra: Coimbra Editora, 1999.
Sustentabilidade
Carlos Eduardo Mazzetto Silva
730
Sustentabilidade
731
Dicionário da Educação do Campo
732
Sustentabilidade
Nota
1
Ressalte-se que é o policultivo associado à criação animal que marca os sistemas campone-
ses de produção na Europa pré-modernização da agricultura.
S
Para saber mais
Carvalho, H. M. O campesinato no século XXI: possibilidades e condicionantes do
desenvolvimento do campesinato no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2005.
Chayanov, A. V. Sobre a teoria dos sistemas econômicos não capitalistas. In:
Graziano da Silva, J; Stolcke, V. (org.). A questão agrária. São Paulo: Brasiliense, 1981.
p. 133-166.
Diegues, A. C. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 1996.
733
Dicionário da Educação do Campo
734
T
Tempos humanos de formação
Miguel G. Arroyo
735
Dicionário da Educação do Campo
736
Tempos Humanos de Formação
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Dicionário da Educação do Campo
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Tempos Humanos de Formação
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Tempos Humanos de Formação
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Dicionário da Educação do Campo
Terra
Paulo Alentejano
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Terra
743
Dicionário da Educação do Campo
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Terra
Notas
1
O livro Homens livres na ordem escravocrata, de Maria Sylvia de Carvalho Franco, escrito em
1964, é um clássico da literatura brasileira do período.
2
A denominação “grilagem” vem da prática recorrente à época de colocar papéis novos em
gavetas com grilos para que as secreções desses animais amarelecessem o papel, dando aos
documentos a aparência de antigos.
3
Para melhor compreensão dessa polêmica, ver, entre outros, Martins, 1990 e Silva, 1996.
745
Dicionário da Educação do Campo
Território camponês
Bernardo Mançano Fernandes
746
Território Camponês
mercado capitalista; é ele que determi- mesmo que distante de sua re-
na os preços de modo a que as empre- gião de origem. É por isso que
sas capitalistas se apropriem de parte boa parte da história do campe-
da renda dos produtores familiares. sinato sob o capitalismo é uma
Nessa condição de subalternidade, a história de (e)migrações. (2007,
maioria absoluta do campesinato brasi- p. 11)
leiro entrega a riqueza produzida com
seu trabalho ao capital, vivendo em si- É importante enfatizar que a resis-
tuação de miséria. tência camponesa é responsável por
Essa miséria é gerada cotidiana- sua (re)criação no enfrentamento per-
mente pelas relações capitalistas, que, manente com o capitalismo. Criação
depois de se apropriarem da riqueza e recriação acontecem em diferentes
produzida pelo trabalho familiar cam- conjunturas. Um exemplo é a recriação
ponês, também se apropriam de seu camponesa no Paraguai, onde parte
território. Ao perder a propriedade, da população expulsa da terra segue
seu espaço de vida, seu sítio, sua ter- lutando para reconquistar seu territó-
ra e território, a família camponesa é rio (Kretschmer, 2011). Outro exem-
desterritorializada. Como reação a esse plo é a criação camponesa no Brasil,
processo, ocorrem a luta pela terra onde a maior parte da população que
e as ocupações, na tentativa de criação e ocupa terra vive na cidade há décadas
recriação da condição camponesa: cam- (Fernandes, 2000 e 2009). Entende-se
pesinato e território são indissociáveis, e como recriação a luta de uma popula-
a separação entre eles pode significar a ção camponesa para voltar à terra; já
destruição de ambos. a criação ocorre quando uma popula-
ção urbana se organiza, em diversos
A existência do campesinato sem
movimentos camponeses, na luta pela
território é muito conhecida em todo o
terra. Sem dúvida, o crescimento vege-
mundo, por meio das distintas formas
tativo da população camponesa é tanto
de luta pela terra. No Brasil, o Movi-
criação quanto recriação.
mento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) é uma das mais expres- Criação e recriação significam ter-
sivas referências da luta de resistência ritorialização e reterritorialização do
camponesa pela terra e por territórios campesinato, ao passo que a destruição
(Fabrini, 2002). Terra e território são significa a sua desterritorialização. É
espaços e recursos, condições e possi- na formação que acontece a territoria-
bilidades de criação ou recriação e de lização do campesinato. Desde as lu-
desenvolvimento da população campo- tas das Ligas Camponesas até as lutas
nesa (Paulino e Almeida, 2010; Moreira, do MST, por exemplo, pela conquista
2008). E, de acordo com Oliveira: de frações do território brasileiro que
denominamos de latifúndios, lutas nas T
O camponês deve ser visto quais algumas dessas frações são trans-
como um trabalhador que, mes- formadas em assentamentos, acontece
mo expulso da terra, com fre- a formação do território camponês.
quência a ela retorna, ainda que Simultaneamente a esse processo de
para isso tenha que (e)migrar. formação e territorialização do cam-
Dessa forma, ele retorna à terra pesinato, muitas famílias camponesas
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Dicionário da Educação do Campo
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Território Camponês
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Dicionário da Educação do Campo
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Trabalho como Princípio Educativo
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Trabalho como Princípio Educativo
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754
Trabalho como Princípio Educativo
755
Dicionário da Educação do Campo
Nota
1
As palavras trabalho, labor (inglês), travail (francês), Arbeit (alemão), ponos (grego) têm em
sua raiz o mesmo sentido de fadiga, pena, sofrimento e pobreza que ganham materialidade
nas fábricas-conventos, fábricas-prisões, fábricas sem salário. A transformação moderna do
significado da palavra deu-lhe o sentido de positividade, como argumentam John Locke,
que descobre o trabalho como fonte de propriedade; Adam Smith, que o defende como
fonte de riqueza; e Karl Marx, para quem o trabalho é fonte de toda a produtividade e
expressão da humanidade do ser humano (De Decca, 1985).
756
Trabalho no Campo
Trabalho no campo
Paulo Alentejano
757
Dicionário da Educação do Campo
758
Trabalho no Campo
Rural), bem como surgiu uma nova publicação anual de casos de escravi-
forma de trabalho no campo: o traba- dão contemporânea no Brasil, resultou
lho familiar integrado e subordinado às na criação do Grupo Móvel de Fisca-
agroindústrias. Trata-se, formalmente, lização do Ministério do Trabalho em
de pequenos proprietários que tra- 1995, primeiro reconhecimento por
balham a terra com base na força de parte do governo brasileiro da existên-
trabalho familiar, mas que estão sub- cia do problema. Posteriormente, em
metidos por contratos de integração a 2003, o Estado ampliou tal reconheci-
empresas agroindustriais, para as quais mento, através da lei nº 10.803, de 11
fornecem matérias-primas, que ditam o de dezembro de 2003, que modificou o
padrão produtivo e impõem preços e artigo 149 do Código Penal Brasileiro,
outras condições de produção que tor- definindo trabalho análogo à escravi-
nam esses trabalhadores subordinados dão da seguinte forma:
econômica e socialmente a elas.2 Essa
forma de trabalho predomina sobretu- Reduzir alguém a condição aná-
do nas atividades que oferecem maior loga à de escravo, quer subme-
risco ou que exigem trabalho intensivo, tendo-o a trabalhos forçados
tais como a criação de pequenos ani- ou a jornada exaustiva, quer
mais e o plantio de frutas, verduras, le- sujeitando-o a condições degra-
gumes, fumo etc., representando uma dantes de trabalho, quer restrin-
forma de as empresas transferirem os gindo, por qualquer meio, sua
riscos da produção para os produtores locomoção em razão de dívida
integrados ou evitarem gastos traba- contraída com o empregador ou
lhistas, como o pagamento de horas preposto: Pena – reclusão, de
extras ou adicionais noturnos. Porém, dois a oito anos, e multa, além
às vezes as grandes empresas agroin- da pena correspondente à vio-
dustriais recorrem à integração por lência. (Brasil, 2003)
razões não estritamente econômicas,
mas políticas. É o caso de algumas No mesmo ano, é criado Plano
grandes empresas de papel e celulose, Nacional de Erradicação do Trabalho
que, impedidas de expandirem cultivos Escravo e ampliadas substancialmen-
próprios, lançam mão do instrumento te as ações de fiscalização; entretan-
do fomento florestal para incentivar to, a principal ação defendida pelos
a integração de pequenos e médios que combatem o trabalho escravo no
produtores, ou das usinas de cana em Brasil – a expropriação e a destinação
regiões onde se multiplicaram assenta- para a Reforma Agrária das terras onde
mentos rurais com a falência de usinas for identificada a presença de trabalho
e que, diante da retomada da produção escravo – continua parada no Congres-
sucroalcooleira, recorrem à integração
de assentados.
so Nacional, em razão da pressão da
bancada ruralista.
T
Nas últimas décadas, desenvolveu- Da diversidade de relações de tra-
se no Brasil um intenso debate em tor- balho no campo resulta uma diversi-
no da existência do trabalho escravo dade ainda maior de trabalhadores do
contemporâneo. A denúncia sistemáti- campo, uma vez que, além das formas
ca que a Comissão Pastoral da Terra que assume o trabalho (assalariamento
(CPT) iniciou a partir de 1985, com a permanente ou temporário, semiassala-
759
Dicionário da Educação do Campo
riamento, trabalho familiar, coletivo e das margens dos rios por causa da ins-
semicoletivo etc.), há uma diversidade talação de barragens ou sofrido com a
de formas de apropriação da terra e de poluição das águas por grandes proje-
relações com a natureza, assim como tos industriais, minerais ou agrícolas
tradições culturais que resultam num que fazem diminuir substancialmente
sem-número de denominações dos tra- os peixes; faxinalenses – agricultores e
balhadores do campo brasileiro: serin- criadores das altas terras paranaen-
gueiros – os que trabalham com a extra- ses que têm sido ameaçados nas suas
ção do látex na Floresta Amazônica e práticas comunitárias tradicionais pelo
que construíram, a partir do Acre, uma avanço das monoculturas; vazanteiros –
importante luta que articulou a bandei- agricultores que se utilizam das terras
ra da Reforma Agrária com a preser- das várzeas do rio São Francisco e que
vação da floresta e resultou na criação têm sido afetados por obras de trans-
das reservas extrativistas; castanheiros – posição, barragens e outras que afetam
que seguiram a trilha aberta pelos o regime do rio; catingueiros – extrativis-
seringueiros e se transformaram, so- tas, agricultores e criadores do sertão
bretudo no Pará, em guardiões de uma nordestino que desenvolveram formas
das maiores árvores amazônicas amea- tradicionais de convivência com a seca
çadas pela sanha de madeireiras, pecua- e que vêm lutando contra o desmata-
ristas e agronegociantes em geral; que- mento da caatinga para a produção de
bradeiras de coco – mulheres que extraem carvão; caiçaras – agricultores e pesca-
o coco do babaçu e a ele dão inúmeras dores do litoral sul e sudeste que vêm
destinações e que se notabilizaram por sendo sistematicamente impedidos de
defender o livre acesso aos babaçuais cultivar suas roças em meio à Mata
cada vez mais cercados por grileiros e Atlântica e que são expulsos, pela es-
fazendeiros no Pará, Tocantins, Mara-
peculação imobiliária, das praias que
nhão e Piauí; cerradeiros – extrativistas,
tradicionalmente ocupam. E esses são
agricultores e criadores das chapadas
apenas alguns exemplos dessa imensa
do Centro-Oeste e Nordeste que vêm
diversidade socioambiental que carac-
lutando contra a expansão desenfreada
teriza o campo brasileiro.
das monoculturas de soja, milho, cana e
algodão; geraizeiros – extrativistas, agri- Porém, o que confere unidade a
cultores e criadores das chapadas do essa enorme diversidade de trabalha-
norte de Minas, que lutam sobretudo dores do campo é o fato de, por di-
contra os estragos provocados pela mi- ferentes formas e mecanismos, todos
neração e a monocultura do eucalipto; eles estarem submetidos ao contro-
retireiros – agricultores e criadores das le e à exploração do capital, estando
várzeas dos rios amazônicos que se sujeitos à expropriação pelo avanço
utilizam das terras alternadamente para da concentração fundiária resultante da
cultivo e criação e têm sido expropria- expansão da dominação capitalista, o
dos pelo avanço do latifúndio sobre as que nos permite dizer que são parte
áreas temporariamente alagadas; ribei- da classe trabalhadora, em confronto
rinhos – agricultores e pescadores que aberto ou latente com as classes domi-
têm sistematicamente sido desalojados nantes do campo.
760
Transgênicos
Notas
1
Fazemos aqui referência ao título de um clássico da literatura brasileira acerca do período
colonial: Homens livres na ordem escravocrata, de Maria Sylvia de Carvalho Franco (1997).
2
Há na literatura econômica, sociológica e geográfica vasta polêmica acerca da definição
teórica atribuída a esses trabalhadores: alguns os classificam como agricultores familiares;
outros os consideram assalariados disfarçados, semiproletários.
Transgênicos
Lia Giraldo da Silva Augusto
761
Dicionário da Educação do Campo
762
Transgênicos
763
Dicionário da Educação do Campo
764
Transgênicos
Nota
1
O princípio da precaução implica que, na ausência de certeza científica formal acerca de
um impacto negativo sério ou irreversível no ambiente ou na saúde decorrente de uma
ação humana, sejam implementadas medidas de prevenção do dano, independentemente da
prova científica de relação de causalidade.
765
Dicionário da Educação do Campo
Traavik, T. Too Early May Be Too Late: Ecological Risks Associated With the
Use of Naked DNA as Biological Tool for Research, Production and Therapy.
(Research Report for DN 1999-1.) Trondheim, Noruega: Directorate for Nature
Management, 1999.
766
V
Via Campesina
Bernardo Mançano Fernandes
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Dicionário da Educação do Campo
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Via Campesina
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VIOLÊNCIA SOCIAL
Felipe Brito
José Cláudio Alves
Roberta Lobo
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Violência Social
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Dicionário da Educação do Campo
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Violência Social
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Violência Social
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Dicionário da Educação do Campo
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Violência Social
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Autores
Autores
Ademar Bogo é militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST).
Adriana D’Agostini é doutora em Educação pela Universidade Federal da
Bahia (UFBA) e professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC).
Alexandre Pessoa Dias é mestre em Engenharia Ambiental pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor-pesquisador da Escola Politécnica
de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).
Ana Paula Soares da Silva é doutora em Psicologia pela Universidade de São
Paulo (USP), professora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Fi-
losofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLP-USP) e pesquisadora do
Centro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil
(Cindedi-USP).
Ana Rita de Lima Ferreira é mestranda em Educação do Campo pela Univer-
sidade de Brasília (UnB) e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB).
André Campos Búrigo é mestre em Educação Profissional em Saúde pela Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e professor-pesquisador
na mesma instituição.
André Silva Martins é doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense
(UFF) e docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF).
Antônio Canuto é secretário da Coordenação Nacional da Comissão Pastoral
da Terra (CPT).
Antonio Escrivão Filho é mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista
(Unesp) e assessor jurídico da organização de direitos humanos Terra de Direitos.
A parecida de Fátima Tiradentes dos S antos é doutora em Educação pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora adjunta da
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Bernardo Mançano Fernandes é doutor em Geografia Humana pela Universi-
dade de São Paulo (USP), professor dos cursos de graduação e pós-graduação em
Geografia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e coordenador do Núcleo
de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera) e da Cátedra Unesco
de Educação do Campo e Desenvolvimento Territorial.
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Dicionário da Educação do Campo
780
Autores
781
Dicionário da Educação do Campo
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Autores
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Este livro foi impresso pela Cromosete Gráfica e Editora, para
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz e
Editora Expressão Popular, em fevereiro de 2012. Utilizaram-se
as fontes Garamond e Humanst521 na composição, papel offset
75g/m2 para o miolo e cartão supremo 300 g/m2 para a capa.