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SOCIOLOGIA DA GOVERNANÇA FRANCESA

DAS ÁGUAS*

Rodrigo Constante Martins

Introdução (Weber, 2000, p. 131). Sem embargo, o aponta-


mento sobre a relevância da dimensão econômica
No início do século XX, ao descrever a cons- na orientação das práticas sociais modernas feito
tituição do que chamou de espírito capitalista, Max pelo autor, bem como sua associação com o con-
Weber destacava que a moderna ordem econômi- sumo extremo dos recursos naturais, adquire signi-
ca determinaria “de maneira violenta o estilo de ficado particularmente interessante no caso do
vida de todo nascido sob este sistema, e não ape- moderno debate sobre a gestão das águas.
nas daqueles diretamente atingidos pela aquisição A temática do acesso aos recursos hídricos con-
econômica, e, quem sabe, o determinará até que a quistou grande abrangência científica e política no
última tonelada de combustível tiver sido gasta” decorrer das últimas três décadas. Publicações, con-
ferências científicas sobre o tema e encontros multi-
* Este artigo é parte do trabalho de pós-doutorado rea- laterais envolvendo técnicos e chefes de governo
lizado pelo autor na École des Hautes Études en revelam a consolidação da questão hídrica na agenda
Sciences Sociales, em Paris, de dezembro de 2005 a política internacional. Do ponto de vista simbólico,
agosto de 2006, com financiamento do Programme
Hermès da Maison des Sciences de l’Homme (MSH-
também têm sido recorrentes as iniciativas de re-
Paris). Agradeço a leitura atenta dos pareceristas anô- significação do recurso, associado, no mais das vezes,
nimos da RBCS, cujas sugestões permitiram o aprimo- à importância mercantil que lhe foi conferida nas
ramento da versão final do texto. últimas décadas do século XX. Classificada por
Artigo recebido em janeiro/2007 muitos como ouro azul ou mesmo petróleo do século
Aprovado em abril/2008 XXI, a água segue ganhando abrangência na agenda

RBCS Vol. 23 n.o 67 junho/2008


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política contemporânea, precisamente por sua im- esforço interpretativo revela-se importante por pelo
portância estratégica para a produção econômica. menos duas razões. Primeiro, pode contribuir, no
Essa re-significação do recurso também re- plano das ciências sociais, para a crítica de Fabiani
percute na construção de novas estruturas de ges- (1985, 1989), recorrendo a Habermas (1973), so-
tão social, voltadas fundamentalmente para o ideal bre o processo de “cientificização” da política, que
econômico da alocação eficiente dos fatores de se estrutura fundamentalmente na retórica do geren-
produção. Nesse sentido, em termos de práticas ciamento técnico dos conflitos socioambientais.
gestoras, a adoção dos chamados instrumentos econômi- Além disso, tal esforço pode revelar ainda que a reifi-
cos vem sendo apontada como solução eficaz para cação da retórica do gerenciamento científico dos recur-
o ajustamento do consumo social da água. Tais ins- sos naturais também supõe a composição de inte-
trumentos teriam o mérito maior de refletir, por resses sociais que recorrentemente articulam grupos
meio de mecanismos de preços, os níveis de escas- da ciência e da burocracia de Estado.
sez relativa do recurso, induzindo os agentes econô- Este artigo está dividido em quatro seções.
micos a adotarem condutas racionais de uso desse Na primeira são apresentadas as características ge-
recurso, que seria então um capital natural. rais da governança francesa das águas, com desta-
Tanto no concernente à implementação de que para seus principais instrumentos e instituições
instrumentos econômicos de gestão das águas como em gestoras. Também são destacados os marcos con-
relação à criação dos Comitês de Bacias Hidrográ- ceituais que nortearão a interpretação sociológica
ficas como instâncias de governança do recurso, o do processo de construção do sistema gestor. Na
caso francês é considerado uma importante refe- segunda seção são iniciadas as interpretações sobre
rência internacional. No Brasil, o sistema paulista a configuração de agentes, grupos e instituições que
de gestão de águas, criado em 1991, e o Sistema propiciou a constituição desse sistema. Neste âm-
Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, bito, buscar-se-á a interpretação do conteúdo do
de 1997, tiveram como principal referência a expe- sistema, com ênfase no perfil dos agentes sociais
riência francesa de gestão. Os principais méritos partícipes de sua formulação. Na terceira seção são
atribuídos a tal experiência dizem respeito ao seu abordados alguns temas esclarecedores de como,
caráter descentralizado e ao seu modelo técnico. para além de um simples modelo gestor, essa ex-
Ademais, no que se refere aos instrumentos de ges- periência francesa se constituiu em uma nova con-
tão, é comum nos debates sobre políticas ambien- cepção social dos recursos hídricos, que culminou,
tais e mesmo na literatura sobre gestão ambiental o conforme será abordado na quarta seção, em uma
destaque para a orientação do Princípio do Polui- nova problemática das águas, baseada sobrema-
dor Pagador no instrumento francês de cobrança neira nas relações que destacam a dimensão econô-
pelo uso da água (redevances).1 mica do uso do recurso. Por fim, nas considera-
Inscrito no campo da temática “sociedade e ções finais serão reafirmados os principais termos
recursos hídricos”, este trabalho pretende contex- das discussões empreendidas no curso do texto.
tualizar a abrangência do modelo francês de go- Convém destacar que este trabalho não se
vernança das águas a partir de sua interpretação propõe a analisar o caso específico de um comitê
sociológica.2 Ou seja, para além da imediaticidade de bacia francês, explorando a formação de redes
dos instrumentos e das técnicas de gestão, preten- de representação social nestas esferas de gestão das
de-se compreender interpretativamente a consti- águas. Propõe-se a interpretar as disputas sociais
tuição dessa experiência francesa, resgatando seus envolvidas no período de formação das normas
principais agentes, a participação dos grupos profis- gerais deste sistema gestor – disputas estas que con-
sionais na formulação do sistema gestor, a identifi- duziram à construção das possibilidades de trânsito
cação dos distintos interesses envolvidos e a recons- dos agentes e dos grupos sociais no sistema. Com
trução dos principais termos do debate sobre as efeito, espera-se que a interpretação desta experiên-
águas no país na década de 1960, período de cria- cia de construção das bases do sistema permita,
ção das inovações institucionais de governança do para os estudiosos da temática sociedade e recursos hí-
recurso. Isto é, buscar-se-á compreender os elemen- dricos, um diálogo profícuo com o caso brasileiro,
tos essenciais envolvidos na configuração que possi- sobretudo porque este sistema se encontra, em vá-
bilitou a emergência do referido sistema gestor. Esse rios estados, ainda em fase de gestação.
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A forma francesa de gestão das águas: não pelas autoridades governamentais, mas pelo
características gerais grupo técnico reunido para planejar o novo apara-
to gestor, significava um importante avanço sobre-
Na França, a gestão integrada dos recursos tudo para os agentes econômicos em ascensão no
hídricos sustentada pela autoridade do poder cen- pós-1945. Neste contexto, como reitera Picard
tral teve início no século XIX, com o Código Civil (1987), mesmo a expectativa da criação das rede-
de 1804. Até 1964 – ano que marca a criação legis- vances não despertou resistências imediatas, posto
lativa do atual modelo gestor – a administração do que as receitas delas provenientes seriam admi-
recurso era tratada por diferentes serviços ministe- nistradas (e porque não, também disputadas) nos
riais, que abrangiam a economia e as finanças, a or- contextos regionais.4
ganização do território, a agricultura e a alimenta- Para o processo de reforma, já em 1959 ha-
ção, a indústria e a energia, os serviços de navegação, via sido criada a Comissão da Água no âmbito do
os serviços de bem-estar social e as atividades de Comissariado Geral do IV Plano Econômico e
organização da pesquisa científica. A atuação de cada Social francês. Seu papel era construir, no corpo
uma das instâncias ministeriais comportava objeti- do Estado, uma visão integrada da questão hídrica,
vos específicos, relativos às prioridades setoriais e visando a compor uma síntese das necessidades dos
aos interesses dos distintos grupos da burocracia diferentes setores e assegurar a coerência geral dos
estatal (Haghe, 1998). investimentos previstos no quadro do planejamen-
De acordo com Cheret (1987) e Picard (1987), to nacional. Essa Comissão da Água também teve
agentes diretamente envolvidos na estruturação do como missão a elaboração de um novo projeto de
novo aparato gestor, a reforma de 1964 preten- gestão das águas, que se constituiu na lei de águas
deu, dentre outros, transformar a dinâmica de admi- de 16 de dezembro de 1964.
nistração do recurso, reforçando progressivamente Com a lei de 1964, a coordenação adminis-
a participação de distintos setores sociais nas novas trativa do sistema foi estabelecida por meio da cria-
instâncias gestoras. Entretanto, o processo de for- ção do Comitê Nacional de Águas, dos Comitês
mulação da nova dinâmica administrativa caracteri- de Bacias e das Agências Financeiras de Bacia, sen-
zou-se pela ausência de participação de grupos so- do estes dois últimos responsáveis pela gestão em
ciais que não aqueles já ligados à então tecnocracia nível local. Os Comitês de Bacia seriam compos-
envolvida na gestão do recurso. Ou seja, naquele tos pela representação paritária da administração
período histórico – década de 1960 – a questão central, das coletividades locais e de diferentes ca-
hídrica ainda não se constituía no interior da socie- tegorias de usuários. A rigor, esses comitês assumi-
dade francesa como tema de disputas capazes de riam no curso do tempo o status de pequeno parla-
transformar aspirações setoriais em pautas políticas mento das águas, cuja função primordial seria a
relevantes. Por essa razão, longe do espaço público, arbitragem dos conflitos no uso e no acesso à água,
no sentido consolidado por Habermas (2000),3 a tendo por base os termos da nova legislação nacio-
reforma de 1964 foi fundamentalmente o resultado nal sobre o domínio do recurso e os esforços para
da composição dos interesses e das interpretações combater sua poluição (Gleizes, 1987).
da tecnocracia já envolvida com a administração As Agências de Bacia, por sua vez, possui-
das águas. riam um papel técnico na realização das metas es-
Como resultado desta ausência de publicização do tabelecidas pelos Comitês de Bacia. Seriam com-
conteúdo das reformas, a atuação dos formulado- postas de corpos técnicos e de um conselho de
res do novo sistema gestor junto às autoridades le- administração, com metade dos membros indicada
gislativas francesas da época deu-se com base na pelo governo central e metade eleita pelo Comitê
legitimidade técnica da fala-perito destes agentes. O de Bacia. As Agências teriam como função realizar
diálogo com setores da sociedade civil – caracteri- estudos qualitativos e quantitativos relativos aos re-
zados por Cheret (1987) como absolutamente vago cursos hídricos, centralizando os estudos e os pro-
no período – restringia-se à promessa de descen- gramas de intervenção na escala da bacia. Contu-
tralização da gestão, com a participação futura dos do, seu papel central seria de ordem financeira, posto
usuários interessados. Em face do modelo centra- que estavam habilitadas por lei para a definição dos
lizado então em vigor, tal promessa, sustentada valores e para a cobrança das redevances. Elemento
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central do novo aparato gestor, as redevances consti- configuração estrutura-se como um jogo no inte-
tuir-se-iam em um valor monetário cobrado dos rior do qual existe a hierarquia de conjuntos de re-
usuários de água que refletiria tanto a escassez rela- lações do tipo “eu-eles” ou “nós-eles”. As interde-
tiva do recurso como os custos da degradação ge- pendências caracterizariam não apenas as relações
rada privadamente. entre agentes e ou grupos de agentes, mas também
Pouco mais de quarenta anos após sua criação, as relações entre níveis configuracionais. Isso porque
a atual estrutura francesa de governança das águas as configurações com alto nível de organização são
ocupa posição de destaque no debate internacional compostas freqüentemente de unidades parciais que
sobre modelos de gestão dos recursos naturais. formam, por seu turno, configurações localizadas
Agências multilaterais destacam os méritos da ex- e não menos estruturadas. Ou seja, as configura-
periência francesa, sobretudo no que se refere ao ções localizadas são dispostas sobre vários planos,
envolvimento de distintos grupos sociais na defi- apresentando em cada caso um equilíbrio específi-
nição das formas de regulação do acesso e uso da co de forças. Nelas os indivíduos engajados ocupam
água (OCDE, 2003; Dinar, 2000). Destacam tam- posições identificáveis, mantendo laços de interde-
bém a pertinência do enfoque fisiográfico da ges- pendência no plano configuracional. Esses cenários
tão, baseada na noção de bacia hidrográfica (Saleth localizados representariam, nos termos do autor,
e Dinar, 1999). A literatura especializada no tema da “configurações no interior de configurações, pro-
gestão ambiental, por sua vez, sublinha que gran- cessos no interior de processos, que podem consistir
de parte das virtudes do aparato francês de go- em múltiplos planos embricados, apresentando
vernança das águas deve-se às suas referências aos também, comparado uns aos outros, uma diversi-
fundamentos que anos mais tarde se constituiriam dade de forças e de capacidade de controle” (Elias,
no chamado Princípio do Poluidor Pagador da 1993, p. 44).
OCDE (Organização para a Cooperação e o A reconstrução da configuração sobre a qual
Desenvolvimento Econômico). Como é sabido, tal se construiu o atual modelo francês de gestão das
princípio norteou, desde meados dos anos de 1970, águas será feita com base em informações sobre a
a formulação dos instrumentos de valoração econô- composição das Comissões de Água dos Planos
mica da água, tal como sugerido pelos autores da Econômicos e Sociais da França no período de
chamada economia ambiental (Valiron, 1990; criação da nova legislação das águas no país. Den-
Merret, 1997). tre outros, buscar-se-á identificar os perfis de for-
Contudo, o enfoque fisiográfico do sistema mação dos membros dessas comissões (com des-
francês garantiria per si a certificação estritamente taque para a escolaridade e a origem de formação).
técnica atribuída a essa experiência gestora? Além A partir de tal identificação, lançaremos mão das
disso, estariam de fato em discussão no caso fran- concepções de Bourdieu (1989) sobre os quadros
cês as iniciativas próprias do Princípio do Poluidor sociais de percepção de grupos e classes distintas, bem
Pagador? O significado das redevances corresponde- como de suas análises sobre as relações das Gran-
ria efetivamente às pressuposições teóricas da no- des Escolas francesas e o campo do poder. Tam-
ção de valoração econômica da água presentes na bém serão reconstituídos, com base em informa-
economia ambiental? Senão, quais seriam as origens ções documentais do período, os termos gerais do
da crença, que envolve a literatura especializada em debate sobre o devir do novo sistema gestor. Esses
gestão ambiental e mesmo os movimentos ambien- termos serão, por fim, confrontados com as avalia-
talistas, de que o recorte fisiográfico e as redevances ções posteriores feitas pelos formuladores do sis-
indicariam um novo patamar de equilíbrio na ges- tema em relação ao seu desenvolvimento no curso
tão do uso e do acesso aos recursos hídricos? do tempo.
A fim de indicar caminhos para as repostas
de tais questões, desenvolveremos neste trabalho
uma interpretação da configuração de agentes, gru- O conteúdo do novo sistema gestor:
pos e instituições envolvidos na formulação dos grupos e configurações
marcos regulatórios do referido sistema gestor. Para
tanto, empregaremos a noção de configuração pro- Em estudo sobre o perfil da gestão integrada
posta por Elias (1991, 1993). Para o autor, uma das águas na França, Lewis (2001) reconstruiu a
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composição das Comissões de Água criadas nos sidentes, sendo três politécnicos, dois dos quais di-
quadros do quarto, do quinto e do sexto Plano plomados na École Polytechnique. A composição
Econômico e Social, desenrolados entre os anos da direção da Comissão de Água do quinto e do
de 1962 e 1975. Tal reconstrução revela, por exem- sexto Plano Econômico e Social revela, ainda, maior
plo, que na Comissão de Água do IV Plano Eco- concentração de poder nas mãos dos politécnicos,
nômico e Social (1962 a 1965) 86% dos membros detentores então de todas as vice-presidências das
eram politécnicos, portadores de diplomas da École respectivas comissões.
Polytechnique (53%), da École National de Ponts A despeito do discurso em relação à plurali-
et Chaussées (30%) e da École de Mines (14%). dade de olhares sobre a gestão de águas que o novo
No contexto da Comissão de Água do V Plano sistema pressupunha, por meio da descentralização
(1966 a 1970) – ou seja, período imediatamente administrativa e da participação de usuários e dis-
posterior à criação da nova lei das águas –, o per- tintos setores da sociedade civil nos Comitês de
centual de politécnicos cai para 51%, destes, 56% Bacia e nas Agências de Bacia, a participação efeti-
são portadores de diplomas da École Polytechni- va dos grupos sociais nas referidas instâncias de go-
que, 12%, diplomados da École National de Ponts vernança possuía limites preestabelecidos. Esses li-
et Chaussées e os demais têm diplomas de variadas mites referiam-se ao próprio quadro do sistema
escolas politécnicas (com destaque, além da École gestor, desenhado em grande medida pelos poli-
de Mines, também para a École National du Genie técnicos. Isso porque a atuação desse grupo de pro-
Rural, a École Superieur d’Electricité, o Institut fissionais na elaboração das novas normas de re-
National Agronomique, a École du Petróleo de gulação de uso e acesso à água também acarretou a
Strasbourg e o Institut Electrotechnique de Tou- criação de novos marcos para a questão hídrica no
louse). Por fim, no VI Plano Econômico e Social país. Com efeito, as inovações jurídicas envolvem
(1962 a 1965), pouco mais de 40% dos membros formas de nominação de experiências e expectati-
da Comissão de Água eram politécnicos, manten- vas sociais. Essas nominações, ao fornecerem bali-
do-se nessa fase o mesmo perfil de distribuição zas para o comportamento social, implicam tam-
dos diplomas verificado no contexto do V Plano. bém relações de poder. Nesses termos, desde a
A diminuição relativa do número de politéc- definição dos objetivos do novo aparato gestor até
nicos ao longo do período de formulação e im- a regulamentação dos instrumentos da política de
plementação da lei francesa das águas de 1964 foi águas, conjuntos distintos de hierarquias sustenta-
acompanhada pelo crescimento da participação de ram a nominação da atual problemática da água na
membros diplomados nas áreas de direito, letras e sociedade francesa.
geografia. Conforme nos mostra Lewis (2001), Nesse conjunto de hierarquias, uma das mais
nesses casos, a concentração dos diplomas reve- relevantes diz respeito ao que poderíamos chamar
lou-se mais fraca que aquela verificada na formação de dominação territorial dos saberes politécnicos.
dos politécnicos, sobretudo no curso do IV Plano Primeiro diretor da Agência de Bacia Seine-Nor-
Econômico e Social. As instituições com maior re- mandie, politécnico diplomado pela École Polyte-
corrência na concessão desses diplomas foram a chnique e pela École National de Ponts et Chaus-
Facultés des Lettres de Dijon, a Facultés des Let- sées e professor honorário desta última, Valiron
tres de Strasbourg, a Faculté des Lettres de Paris e (1987) destaca, em seu balanço dos primeiros vinte
a Faculté des Sciences et Droit de Paris. anos da criação das Agências de Bacia, a forma
Se partirmos desse cenário geral descrito por como os especialistas politécnicos disputaram a di-
Lewis e avançarmos para a análise do perfil da di- visão do território em bacias hidrográficas. Segun-
reção das Comissões de Água do quarto, do quinto do esse importante agente do novo sistema de ges-
e do sexto Plano Econômico e Social, a relevância tão, ao contrário do que às vezes se supõe, a divisão
do perfil dos diplomas para a construção de um do território francês em seis bacias hidrográficas
novo olhar administrativo sobre a gestão das águas não resultou de uma decisão eminentemente técni-
na França torna-se ainda mais evidente. A direção ca, com base em recortes de bacias perfeitas ou
da Comissão de Água do IV Plano, por exemplo, grupos de bacias delimitados por critérios estrita-
era constituída por um presidente, diplomado na mente fisiográficos. A rigor, havia essa intenção ini-
Faculté de Droit de Strasbourg, e quatro vice-pre- cial por parte dos membros das Comissões de Água,
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dividindo o território com base nos cursos dos tação de seu desenvolvimento exclusivamente ba-
grandes rios nacionais (Seine, Garonne, Loire e seadas em suas características técnicas mais eviden-
Rhône, sendo este último dividido em sua parte tes.5 Abstraída do conjunto de relações de poder
baixa, na costa do Mediterrâneo) e da cisão dos que lhe conferem sentido concreto, a gestão fran-
rios parcialmente franceses. Essa divisão correspon- cesa por bacias emerge como solução técnica apli-
deria à criação de oito bacias hidrográficas. Contudo, cada à necessidade de planejamento e uso sustentá-
as disputas dos três corpos de politécnicos no inte- vel das águas. E, desse modo, continua sendo
rior das comissões – a saber, os corpos de enge- apresentada como solução eminentemente técnica
nharia de minas, de engenharia de pontes e de en- para a gestão racional das águas. Essa forma apa-
genharia rural – conduziram a decisão sobre a rente do modelo de gestão contribui para a disse-
partilha do território em bacias hidrográficas para minação de um processo denominado por Haber-
o campo do equilíbrio relativo das forças profissio- mas (1973) “cientifização da política”, por meio
nais envolvidas. De acordo com Valiron, em razão do qual são difundidas na sociedade representa-
dessas disputas, o território que inicialmente seria ções “científicas” da natureza e de suas modalida-
repartido em oito bacias hidrográficas foi dividido des de uso social. A regulação do acesso aos recur-
em seis bacias, sendo equilibradamente distribuí- sos naturais, por meio dos instrumentos de gestão,
do entre os três corpos politécnicos – cada um as- é então consagrada como gerência científica da na-
sumindo a direção de duas Agências de Bacia. Nos tureza. A política, prevista para o comitê de bacia
termos de Valiron: (parlamento das águas), teria, portanto, um espaço
prévia e cientificamente demarcado para a sua rea-
O Secretariado Permanente tinha trabalhado um pou- lização, a saber, a própria bacia hidrográfica.6
co na direção de oito Agências. E depois viu que havia Essa modalidade de cientifização do proces-
um grande problema: quem ia assumir a direção das so político, ao abstrair as relações de poder envol-
Agências? Como havia três corpos técnicos que briga-
vam para ter seus profissionais em cada uma das Agên-
vidas no recorte das bacias hidrográficas, o que o
cias, e não sendo neste caso 8 um número igualmente torna uma fórmula aparentemente técnica, contri-
divisível, achou-se por bem chegar a um recorte de 6. E bui sobremaneira para a reafirmação de certos
o recorte foi feito desta maneira! (1987, p. 132). monopólios de competências. Assim, amparados
pela experiência técnica francesa, corpos politécni-
Segundo Levy-Lambert (1987), engenheiro de cos de outros países estruturam seus discursos em
minas e também um dos participantes à época torno da gestão racional das águas com base na
do debate sobre a partilha territorial, a atribuição da bacia hidrográfica como unidade física e na criação
direção das Agências de Bacias baseou-se no equilí- de bancos de informações técnicas de gerenciamen-
brio numérico destacado por Valiron e nos campos to.7 Também amparado por tal experiência, o saber
de interesse de cada grupo. Nesse sentido, o corpo técnico da água reiterou sua identidade na relação
de engenharia de minas assumiu a direção das Agên- “nós-eles”, opondo-se aos segmentos não-técnicos
cias de Bacias do norte e do leste, regiões mais in- cuja atuação deveria significar a democratização do
dustrializadas e com maior diversidade de recursos aparato gestor.8
minerais; o corpo de engenheiros de pontes assu- Ademais, também é notória a precedência das
miu as agências do Seine e do Rhône em razão de formas discursivas como estratégias de domina-
sua importância para a navegação e da localização ção no próprio momento da constituição da mo-
das grandes cidades; e o corpo de engenharia rural, dalidade de gestão. Destarte, é pertinente conside-
por sua vez, assumiu as agências das zonas agríco- rar, no âmbito desse processo, a formação de um
las de Loire e de Garonne. espaço gestor onde a denominação bacia hidrográfica
Na condição de referência internacional, prin- se estruturou concreta e simbolicamente por meio
cipalmente em razão da adoção da bacia hidrográ- de disputas discursivas entre técnicos e não-técni-
fica como unidade de planejamento e gestão, o cos e entre as distintas especialidades técnicas, cir-
modelo francês tem recebido reiteradamente leitu- cunstância que revela a complexidade das media-
ras abstratas quanto ao seu significado efetivo em ções lingüísticas envolvidas na consolidação do
termos de políticas públicas. O sentido dessa abs- monopólio das competências gestoras. Retoman-
tração reside justamente nas iniciativas de interpre- do Habermas (1997) no concernente à mediação
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lingüística das relações intersubjetivas, pode-se afir- ção, contudo, requer o avanço sobre certos aspec-
mar que, nesse processo, o agir comunicativo dos gru- tos cognitivos envolvidos também na formação da
pos e dos agentes no momento da publicização da identidade dos grupos profissionais que consolida-
“gestão por bacias” na França revela interações es- ram as estratégias de dominação na nova configu-
tratégicas sobre os modos de prevalência de for- ração de governança das águas. Para tanto, torna-se
mas de ação lingüística candidatas, naquele momento, pertinente a retomada do perfil de formação dos
a serem aceitas como enunciados legítimos das ino- agentes formuladores da lei de 1964, além da pró-
vações gestoras. Ou seja, a noção de bacia hidro- pria disposição desses agentes no contexto das re-
gráfica serviu, sob tais circunstâncias históricas, lações entre as chamadas Grandes Escolas France-
menos como critério de delimitação física da uni- sas e a burocracia de Estado no período.
dade de gestão do que como estratégia de persua- A presença hegemônica dos politécnicos nas
são social por meio do discurso supostamente téc- comissões de águas do quarto, do quinto e do sexto
nico e neutro. Plano Econômico e Social evidencia, em parte, o
Nesses termos, é possível apontar, ainda no tipo de preocupação que a burocracia de Estado
sentido habermasiano, a sujeição de distintos para- francesa possuía em relação à regulação do acesso
digmas culturais (entendidos como reservas de co- e uso das águas no país. A rigor, a composição dessas
nhecimento às quais os participantes na comunica- comissões não revela alterações no perfil dos pro-
ção vão buscar suas interpretações), distantes do fissionais historicamente atrelados à gestão cen-
campo científico, à objetivação da resolução técni- tralizada dos recursos hídricos. A preocupação prin-
co-burocrática. Isto é, ao aparentar-se como emi- cipal na reestruturação do sistema dizia respeito a
nentemente técnica, tal solução revela a real interdi- dois impasses intimamente imbricados: a crescente
ção do diálogo e da intersubjetividade através poluição dos corpos d’água e a necessidade de re-
justamente do lhe sustenta – a saber, o suposto pla- cursos financeiros para a recuperação das águas.
nejamento científico e racional do devir político. A descentralização da estrutura gestora e a
Essas circunstâncias forçam a elaboração de criação das Agências Financeiras de Bacia foram as
novas interpretações da nominação da experiência respostas produzidas, em configuração específica,
francesa. Interpretações que superem, dentre ou- por grupos profissionais que, dentre outros, parti-
tros, a leitura restrita da lei de águas de 1964, como lhavam de concepções muito próximas não pro-
resultado da progressão do conhecimento técnico priamente de gestão ambiental (campo técnico que
sobre recursos hídricos e gestão ambiental – pro- viria a se desenvolver na década de 1980), mas de
gressão que teria culminado na noção de bacia hi- gestão pública. Tal proximidade não resultava do aca-
drográfica. A lei francesa de 1964 também é pro- so. Sem embargo, o perfil de formação desses pro-
duto de uma configuração que envolveu grupos fissionais é uma variável relevante para a compreen-
profissionais, coordenados por sua maioria poli- são de uma visão relativamente coesa de gestão
técnica, portadores de interesses distintos – interes- pública. Como destacado anteriormente, grande
ses estes que se equilibraram a partir da disposição parte dos diplomas politécnicos dos membros das
dos grupos ante o mapa político das bacias hidro- comissões de águas dos Planos Econômicos e So-
gráficas.9 Ou seja, o próprio sistema de bacias hi- ciais era proveniente da École Polytechnique. Mes-
drográficas também resulta de hierarquias sociais, mo dentre os que possuíam formações mais espe-
de disputas políticas travadas no interior dos gru- cíficas nas chamadas escolas de aplicação – como
pos profissionais e das burocracias responsáveis pela as também tradicionais École de Mines ou a École
elaboração de um novo quadro de gerência das de Ponts et Chaussées –, a formação de base havia
águas no país. sido feita na Polytechnique.
Além dessa disposição dos interesses sociais Após sua criação, no início do século XIX, a
na divisão geográfica do novo sistema, outra hie- École Polytechnique logo se tornou referência no
rarquia relevante para a interpretação das atuais for- sistema de ensino francês, tanto em razão das carac-
mas de nominação da problemática da água na socie- terísticas de sua formação técnica e científica como
dade francesa diz respeito ao tipo de concepção pelo perfil dos egressos que a escola oferecia aos
hegemônica de relação sociedade-natureza que quadros do Estado.10 Conforme destaca Gilpin
ampara os instrumentos de gestão. Essa interpreta- (1970), a despeito da ênfase no ensino científico
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proporcionada pela Polytechnique (ênfase, aliás, sões reitera tal relação. Focando a interpretação para
prevista já nos primeiros debates sobre a criação a disputa interna entre as Grandes Escolas de enge-
da escola, ocorridos em meados da década de 1790, nharia, a divisão do território nacional em bacias
durante a revolução), raros eram os egressos que se hidrográficas revela, por sua vez, o equilíbrio flutuan-
envolviam em atividades de pesquisa científica. Tal te de tensões entre tais forças institucionais na esfera
ênfase científica foi historicamente desenvolvida no do poder. A rigor, a divisão dessas unidades fisio-
ensino da escola, tendo em vista antes a aplicação gráficas de gestão significou a partilha do território
prática das tecnologias do que propriamente a francês, ao menos no domínio das águas, entre os
produção de novos conhecimentos. Assim, a es- corpos das Grandes Escolas de aplicação. Ou seja,
cola consolidou-se no contexto do ensino francês por meio da “cientifização” do processo político,
como formadora não do engenheiro pesquisador, mas, sustentada neste caso pela suposta partilha técnica
sim, do engenheiro administrador, provido de conheci- do território para fins de gestão ambiental, foram
mentos científicos e de capacidade de planejamen- naturalizados não apenas os monopólios de com-
to e aplicação.11 petências sobre as águas, mas também os domínios
Voltada para o cenário da administração pú- que as instituições formadoras de espíritos para os
blica, a École Polytechnique ocupou posições de corpos do Estado poderiam exercer sobre o espa-
destaque no campo do poder na sociedade france- ço físico. Assim, a “cientifização” da política no sis-
sa ao longo do século XX. Em seu estudo sobre a tema de gestão de águas atua como um princípio de
relação de homologia estrutural entre o campo das legitimação de competências e de partilha do territó-
Grandes Escolas e o campo do poder na França, rio, servindo, portanto, como fundamento de do-
Bourdieu (1989) mostra como o diploma dessa minação social.
escola constituiu-se em um rito de instituição não Evidentemente, essa relação das escolas de po-
apenas para a reprodução das elites francesas, mas der com o espaço físico por meio da gestão das
também para a composição do campo burocráti- águas não se sustentou apenas sobre a partilha
co.12 Como demonstra o autor, no universo das dos territórios de atuação. Além disso, a produção
escolas de engenheiros, as três escolas de maior de visões sobre a natureza, com base na concepção
prestígio, abrindo as três grandes carreiras – École de gestão pública dos politécnicos, contribuiu so-
Polytechnique, École de Mines e École de Ponts et bremaneira para a formatação do sistema francês
Chaussées –, opõem-se às escolas mais técnicas, de gestão das águas. A seguir, abordaremos essa
preparando os alunos aos setores e carreiras bem produção de visões sobre os recursos da natureza
determinadas, comumente em declínio ou desva- por meio da formulação das redevances, o instru-
lorizadas. Assim, a organização do campo das ins- mento decisivo de gestão dos Comitês e das Agên-
tituições de ensino superior contribui para repro- cias de Bacias francesas.
duzir uma das oposições maiores da ordem social,
isto é, aquela que separa os quadros superiores dos
quadros médios, os agentes encarregados da con- A moderna construção social da água
cepção (ordens, planos, programas, instruções) e
os agentes encarregados da execução. Essa opo- A interpretação dos quadros da percepção
sição corresponderia, no nível da divisão do tra- do mundo social – e, neste caso, da percepção e da
balho, à oposição entre trabalho não-manual e construção da própria natureza – pode objetivar
trabalho manual, entre teoria e prática. não somente os quadros sociais da percepção, mas tam-
A presença dos politécnicos, diplomados na bém, como sugere Bourdieu (1989), o potencial de
École Polytechnique, na École de Mines e na École diferenciação que os distintos princípios de classifi-
de Ponts et Chaussées, nos quadros das Comis- cação possuem para construir o mundo social. Além
sões de Água dos planos econômicos e sociais das de pressupor a influência do perfil de formação
décadas de 1960 e 1970 é uma expressão impor- dos agentes do sistema de gestão das águas, torna-
tante dessa homologia estrutural, sinalizada por se também pertinente a busca do limite crítico dessa
Bourdieu, entre o campo das Grandes Escolas e a influência. Ou seja, em termos de interpretação
esfera do poder na França. O domínio desses diplo- sociológica, é relevante tanto o apontamento do
mados sobre as funções de direção dessas comis- potencial de diferenciação de um princípio de clas-
SOCIOLOGIA DA GOVERNANÇA FRANCESA DAS ÁGUAS 91

sificação, como seu limite, isto é, o ponto crítico a chamadas externalidades ambientais no cálculo das
partir do qual o mesmo torna-se contraditório ou condutas individuais (Baumol e Oates, 1988).13
tem seu potencial de influência diluído. Nesses O PPP é justamente uma tentativa de pro-
termos, considerando o perfil de formação dos moção da internalização das externalidades ambientais
politécnicos franceses como princípio de classifica- por parte dos agentes poluidores. Contudo, consi-
ção na constituição da questão hídrica a partir da derando esses pressupostos conceituais, seria rele-
década de 1960, também serão discutidas as con- vante indagar em que medida as noções ainda pre-
tradições que tal princípio traz ao próprio discurso liminares do poluidor-pagador basearam de fato a
de sustentabilidade ambiental que o atual modelo formulação da legislação francesa das águas de 1964,
gestor enseja. ou, ainda, até que ponto os integrantes das Comis-
Componentes importantes da visão dos po- sões de Águas dos Planos Econômicos e Sociais
litécnicos formuladores da lei de 1964 sobre a ad- do período tinham ciência das formulações em
ministração dos recursos hídricos nacionais podem economia das noções de externalidades e de interna-
ser revelados a partir da interpretação do processo lização das externalidades.
de formulação do principal instrumento de ges- Embora nenhum dos membros das Comis-
tão do novo sistema, a saber, a redevance. Conforme sões de Águas do período possuísse formação
já ressaltado, tal instrumento foi inicialmente con- institucionalizada em economia na França,14 parte
cebido no caso francês como alternativa para a ar- dos politécnicos envolvidos na criação das Agências
recadação dos recursos financeiros necessários às de Bacias, sobretudo os da área de minas, seguia
atividades de gestão. Contudo, os recursos discur- participando de freqüentes estágios de estudos em
sivos tomados como legítimos para a implementa- escolas de gerenciamento nos Estados Unidos (Bar-
ção das redevances ao longo do tempo não se basea- raqué, 1991). Tais estudos implicavam, dentre outros,
ram nessa necessidade de captação financeira. Após o contato dos engenheiros com os pressupostos
a criação das redevances na ordem jurídica francesa, a conceituais da microeconomia neoclássica. A fre-
retórica de validação que acompanhou sua imple- qüência desses estudos por parte dos engenheiros
mentação paulatina girou em torno da noção de de minas deveu-se, particularmente, à criação, no
penalização dos agentes poluidores. Esta noção, por sua início da década de 1950, da Communauté Euro-
vez, adquiriu nominação definitiva em 1972, por péenne du Charbon e de l’Acier, que promoveu
meio da proposição da OCDE do Princípio do tanto a ida de politécnicos europeus aos Estados
Poluidor-Pagador (PPP). Unidos como a vinda ao continente europeu de mis-
A base conceitual sobre a qual se sustenta o sões norte-americanas (Braudel e Labrousse, 1980).
PPP é o sistema lógico-dedutivo da economia am- Todavia, esse acesso dos profissionais fran-
biental neoclássica. Partindo das noções de equilíbrio ceses às escolas norte-americanas não significou
e utilidade de Pareto (1983) e Walras (1983), bem somente a incorporação das novas tecnologias de
como do conceito de externalidade de Pigou (1932), aplicação desenvolvidas no novo mundo. Como
a economia ambiental propõe a incorporação do esclarece Boltanski, esse acesso também significou
comportamento dos agentes econômicos poluido- a assimilação, por certos quadros da sociedade fran-
res na modelagem neoclássica de alocação eficiente dos recur- cesa, de uma nova filosofia de gerenciamento eco-
sos. Nesse modelo, a peculiaridade dos recursos nômico, que implicava novas modalidades de orga-
naturais seria justamente seu caráter público, não- nização do trabalho industrial e valores renovados
rival. Ao serem produzidas privadamente e gera- de planejamento econômico. Nos termos do au-
rem custos sociais (isto é, ao afetarem as funções tor, tratava-se de verdadeiras missões de produtividade,
de utilidade de outras firmas e/ou consumidores), que envolviam um savoir-faire para além dos conhe-
as externalidades resultantes das práticas individuais cimentos de engenharia; tratava-se de missões que
afetariam o bem-estar dos demais agentes econô- visavam a “antes de tudo transformar o ‘espírito’,
micos e interfeririam no equilíbrio das relações de as maneiras de ser e pensar dos agentes econômi-
oferta e demanda dos recursos naturais. No diag- cos” (Boltanski, 1981, p. 21).
nóstico da economia ambiental, a alternativa para Se, de um lado, essas inovações se referiam
o enfrentamento das práticas de poluição dos agen- mais nitidamente ao universo da economia industrial,
tes econômicos seria justamente a incorporação das de outro, é impossível desconsiderar sua influência
92 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 23 No. 67

na formulação de certas políticas estatais de gestão. entre receitas e despesas. Não é por outra razão
No caso das águas, uma das representações mais que, tal como destaca Barraqué (1991), os instru-
significativas é a noção de gestão racional. Tal como mentos de planejamento aprendidos nas escolas
também destaca Boltanski (1981), a incorporação norte-americanas de gerenciamento eram comu-
da noção de gestão racional da empresa pela sociedade mente pensados no âmbito dessas comissões não
francesa nesse período foi acompanhada da crença exclusivamente por meio dos casos empíricos das
na organização científica da gerência como um todo. iniciativas de gestão econômica das águas nos Esta-
Não coincidentemente o planejamento da organi- dos Unidos (com a criação, por exemplo, dos mer-
zação científica da gestão das águas pautar-se-ia em cados de água), mas também – e principalmente –
dados pluviométricos, informações sobre unidades por meio da experiência de cobrança pelo uso da
geológicas, balanço hídrico, classificação dos corpos água na bacia do rio Ruhr, na Alemanha.
d’água etc. A ordem racional da gestão, por sua Datada do início do século XX, a experiência
vez, partiria desde a organização dos dados técni- de cobrança pelo uso e pela poluição das águas do
cos até o enquadramento da racionalidade do usuá- rio Ruhr visava, em essência, à realização dos inves-
rio-poluidor por meio da aplicação das redevances. timentos necessários à bacia e de outras atividades
Também nesse sentido é importante o desta- ligadas à gestão. Em 1913, a cobrança já atingia
que dado por Haghe (2005) para as mudanças na todos os segmentos sociais, e seus valores eram
própria nominação do modo de administração das definidos com base no planejamento dos investi-
águas promovidas pelas inovações institucionais da mentos. Com efeito, foi justamente esse sentido
lei de 1964. A expressão simbólica mais significati- prático da cobrança na experiência alemã a base
va dessas mudanças seria, como sugere o autor, a por meio da qual as redevances francesas foram pen-
ruptura léxica no discurso técnico-administrativo sadas e implementadas. Ou seja, dentro do objeti-
por meio da substituição do termo aménagement (até vo de enfrentar a situação crítica da poluição das
então consolidado na administração francesa das águas no país, a iniciativa da cobrança esteve ligada
águas) pelo termo gestion. Ou seja, substitui-se a con- menos à previsão do comportamento microeco-
cepção de esforço político de aprimoramento da nômico dos agentes (tal como viria a supor poste-
partilha social dos recursos hídricos pela noção de riormente o PPP) do que à previsão orçamentária
gerência técnica, pretensamente distante das dispu- das atividades de gestão.
tas políticas e resultante do planejamento racional. Uma estratégia para compreender o distancia-
Tal mudança serviria, ainda, para a reafirmação dos mento das redevances de suas justificações conceitu-
discursos em prol do monopólio de competências, ais de internalização das externalidades ambientais
posto que a base informacional para as atividades é a reconstituição de sua composição financeira ao
de gestão, diferentemente do universo da política de longo do tempo. No âmbito do sistema gestor, o
planejamento, exigiria cada vez mais a especializa- valor integral das redevances é composto de duas fra-
ção técnica dos agentes responsáveis. ções: a relativa ao valor da água e a referente à po-
Contudo, se alguns desses novos conhecimen- luição praticada pelo usuário. Por meio de tal divi-
tos sobre técnicas de gerenciamento serviram de são, o usuário pagaria pelo valor da água em si, como
base conceitual para o novo sistema gestor, a im- capital natural, e pela poluição emitida em seu uso
plementação de seus pressupostos deu-se com base privado. A primeira fração da redevance correspon-
em formas específicas de conversão e reinterpreta- deria mais precisamente à valoração do nível de
ção. Mais especificamente, sua influência sobre o escassez relativa do recurso e a segunda, à aplica-
espírito dos novos gestores condicionou-se às preo- ção do PPP como estímulo ao seu uso racional.
cupações que demandaram a renovação das formas Todavia, a aplicação prática das redevances revela
de administração das águas no país. Nesse sentido, uma contradição central nos suportes teóricos do
se, de um lado, os pressupostos da microecono- referido fracionamento. Isso porque, desde 1976,
mia sugeriam a transformação das práticas polui- o valor da fração correspondente à aplicação do
doras por meio dos mecanismos de preços, de PPP é determinado previamente por lei, no âmbito
outro, o aspecto de maior interesse para os politéc- do governo central. Ademais, o valor aprovado
nicos das Comissões de Águas era justamente o por lei é único, sendo aplicado a todas as bacias hi-
planejamento da gestão em termos de equilíbrio drográficas. Isso significa que, a despeito da lógica
SOCIOLOGIA DA GOVERNANÇA FRANCESA DAS ÁGUAS 93

de internalização das externalidades ambientais previs- A economia da água como crença social
tas no PPP – que supõe, evidentemente, a distinção
entre os comportamentos individuais dos poluidores Considerando a não-aplicabilidade empírica
–, a fração de poluição das redevances é partilhada dos princípios econômicos que legitimam a exis-
entre os todos usuários de bacia, não havendo, por- tência das redevances como instrumento de racionali-
tanto, correspondência alguma entre poluição pri- zação do uso da água, faz-se necessário o exame
vada e internalização dos custos da poluição.15 da crença de seus fundamentos não-aplicados e
Após os primeiros vinte anos da criação das reiteradamente sustentados por grupos sociais en-
Agências de Bacia no país, esta característica emi- volvidos na gestão descentralizada e mesmo por
nentemente orçamentária das redevances era aponta- movimentos ambientalistas. Sem embargo, a noção
da pelos partícipes da formulação da lei de 1964 de racionalização do uso da água vinculada aos ins-
como o grande impasse do novo sistema gestor. trumentos econômicos de gestão é, no momento
Em publicação que marcou a referida data, muitos presente, um elemento central nas representações
agentes desse processo reportaram-se a esse dile- sociais em torno da sustentabilidade ambiental.
ma das redevances, que, em última instância, desfigu- Se a retórica em torno dos instrumentos eco-
raria o papel das próprias Agências de Bacia. A nômicos de gestão ambiental encontra-se abrigada
esse respeito, uma das avaliações mais incisivas foi no seio do ambientalismo, seus fundamentos re-
feita por Yves Martin, engenheiro de minas e pri- pousam não propriamente no campo do debate
meiro diretor da Agência de Bacia Artois-Picardie: socioambiental. A rigor, a tarefa mais relevante da
economia ambiental neoclássica no curso dos últi-
Um dos resultados mais aguardados era obrigar todo o mos trinta anos tem sido justamente disseminar em
poluidor a se interrogar sobre a quantidade de poluição vários níveis de sociabilidade certas crenças a res-
vertida e pesar a contribuição relativa de cada polui-
dor. [. . .] Mas hoje, nós assistimos cada vez mais a um peito do comportamento dos indivíduos em socie-
caminhamento das redevances para o âmbito das receitas dade. Neste empreendimento, as representações do
caracteristicamente fiscais. Eu sinto muito em obser- neoclassicismo em torno da racionalidade do homo
var finalmente um grande desejo de transformá-la em oeconomicus serviram de base à produção de uma
uma redevance uniforme, cobrada por metro cúbico uti- leitura da relação sociedade-natureza que, embora
lizado. Isto seria, a meus olhos, absolutamente desas-
específica, encontrou suportes em agentes e insti-
troso, porque a redevance perderia seu aspecto modula-
do em função dos efeitos reais das atividades do usuário tuições para se disseminar como realidade objeti-
sobre o meio natural (Martin, 1987, p. 103). va. Esses suportes relacionam-se, dentre outros, com
o modo de legitimação social da ciência econômi-
Se o planejamento orçamentário foi o com- ca e com as disposições estruturadas que a realida-
ponente mais relevante para a decisão em favor de proposta pela economia ambiental encontrou
das redevanes por parte dos formuladores do novo no contexto do moderno debate sobre regulação
sistema de gestão de águas, a retórica de legitimação ambiental.
da cobrança no curso do tempo foi progressiva- No concernente à legitimação social do saber
mente associada ao ajustamento dos comportamen- produzido pela ciência econômica, é notório o espa-
tos individuais dos usuários de águas – aproximan- ço ocupado pelos enunciados neoclássicos no conjun-
do-se, assim, dos pressupostos neoclássicos da to das explicações sobre a moderna economia de
alocação eficiente dos recursos. Posteriormente, as mercado. Essa hegemonia, contudo, expressa tanto
orientações de estímulo ao uso racional dos recur- as disputas internas à ciência econômica como aque-
sos naturais presentes na formulação do PPP contri- las relativas ao establishment científico em sentido lato.
buíram para sua associação às redevances e, ainda mais, No caso das disputas internas, um elemento de des-
para a associação destas últimas aos instrumentos taque diz respeito à hierarquia das ciências moder-
neoclássicos de gestão ambiental. Essas associações nas, com base em sua proximidade do modelo ideal
foram decisivas, no plano cognitivo, não apenas das matemáticas puras. Ou seja, conforme sugere
para a justificação das redevances na sociedade francesa, Caro (1983), a propósito da produção de conhe-
mas também para sua repercussão internacional cimento na ciência econômica entre duas modali-
como instrumento-modelo de gestão ambiental. dades de produção de um enunciado econômico,
a mais competitiva é aquela com maior potencial
94 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 23 No. 67

de matematização. Nesse contexto, a concorrência de meios formais e econômicos para sua própria
interna à ciência econômica tem levado seus agen- realização. É justamente nesse caso que se revela a
tes à crescente formalização de seus enunciados em fusão da crença gerencial e, mais especificamente,
busca de maior legitimidade acadêmica. No caso da financeira, pela qual o ganho monetário funciona
economia ambiental, essa formalização é a base como uma meta, dando a toda ação sentidos sub-
de suas formulações mais significativas, envolvendo jetivo e objetivo particulares – tal como supõem
os enunciados de valoração ambiental.16 os instrumentos de gestão baseados no PPP.
A legitimidade simbólica dos enunciados da Ou seja, tal como assinala Bourdieu (2000),
economia ambiental no conjunto das ciências dedi- as teorias econômicas exercem efeitos objetivos
cadas aos estudos ambientais também se assenta sobre as práticas sociais. Assim, enunciados econô-
em grande medida nesse processo de formalização. micos sobre gestão ambiental, ou a nominação eco-
Ingressando no establishment científico, a economia nômica da questão ambiental, podem permitir a
ambiental participa da administração dos argumen- promoção de decisões multilaterais (envolvendo
tos da moderna crise socioambiental, produzindo Estados nacionais e instituições de mediação) ou
representações simbólicas ou reproduzindo repre- mesmo a formulação de políticas com repercus-
sentações herdadas. Nesse sentido, tal como afir- sões imediatas sobre distintos grupos sociais. Os
ma Elias (1982) sobre os monopólios do establish- efeitos produzidos pelas teorias econômicas mais
ment científico, ao participar da administração dos “puras” supõem a produção do illusio, com a exis-
argumentos e da produção de conhecimentos sobre tência de um círculo de crentes bem mais amplo do
as interações sociedade-natureza, a economia am- que o mundo dos profissionais da economia.
biental também monopoliza saberes determinan- Desta feita, os instrumentos econômicos de
tes para a orientação das práticas sociais. gestão ambiental podem ser compreendidos como
No caso das disposições estruturadas que es- momento do processo de diferenciação e autono-
ses enunciados econômicos encontraram no âmbi- mização do próprio campo econômico. Do mesmo
to do moderno debate sobre regulação ambiental, modo que nesse processo as transações econômi-
é importante destacar que configurações distintas cas deixaram de ser dominantemente concebidas/
de agentes e grupos sociais envolvidos na regula- explicadas como trocas domésticas, comandadas
ção do uso dos recursos naturais respondem por então por obrigações familiares ou sociais, dando
parte das características dos instrumentos econô- lugar a um novo princípio de visão dominante volta-
micos de cada sistema gestor. Isto é, a despeito do do aos cálculos individuais de custo-benefício, as
espaço da ciência econômica e dos enunciados neo- concepções sobre as modalidades de relação socie-
clássicos no establishment científico, a criação dos ins- dade-natureza também acompanharam esse pro-
trumentos econômicos de gestão também revela cesso de conversão subjetiva e objetiva da realidade
modos particulares de disputas políticas entre go- social. Desse modo, cabe a descrição de Bourdieu,
vernos, burocracias de Estado e grupos organiza- em concordância com Max Weber, de que “a teo-
dos da sociedade civil. No caso francês, Lebaron ria da utilidade marginal é um fato histórico-cultu-
(2000) destaca que a própria economia neoclássica ral que manifesta este aspecto fundamental das
se impôs no país como uma ciência de Estado: foi sociedades contemporâneas que é a tendência à ra-
antes de tudo utilizada no quadro de uma econo- cionalização – formal –, notadamente correlata à
mia em parte planificada, justificando, notadamen- generalização das trocas monetárias” (2000, p. 19).
te, tarifações dos serviços públicos. Nesse sentido, Os instrumentos econômicos de gestão am-
o autor também destaca que o neoclassicismo foi biental em geral e os de gestão das águas em parti-
um importante instrumento para estratégias de mo- cular adquirem nova complexidade analítica para
dernização das disputas no campo burocrático da as ciências sociais quando interpretados nesse con-
sociedade francesa. texto de disputas sobre a construção de visões so-
Outra força do modelo neoclássico aponta- ciais da realidade. Justamente porque são nessas
da por Lebaron (2000) – e aqui não apenas no caso disputas que os agentes sociais transitam em redes,
francês – é a estreita correspondência entre a cren- em diferentes configurações e atuam efetivamente
ça política e a crença burocrática, em que a defini- na construção das visões de mundo. No caso da
ção de objetivos quantificáveis comanda a pesquisa experiência francesa sobre a nova problemática das
SOCIOLOGIA DA GOVERNANÇA FRANCESA DAS ÁGUAS 95

águas, um dos casos exemplares em relação ao trân- lico adquirido individualmente para a construção
sito dos agentes em diferentes contextos configu- de uma nova problemática da água, circunscritos
racionais é o de Ivan Chéret, então secretário das em configurações institucionais de reconhecida le-
Comissões de Água do IV, do V e do VI Plano gitimidade internacional. A retórica desenvolvida na
Econômico e Social. publicação contribui, assim, para a partilha de uma
Na função de secretário permanente das co- visão da relação sociedade-recursos hídricos em
missões, de acordo com os próprios partícipes do configurações distintas. Atua na esfera da nominação
processo, este reconhecido quadro de confiança do moderno desafio das águas, isto é, a argumen-
do Ministério do Meio Ambiente à época conquis- tação concorre na luta simbólica pela nominação
tou grande prestígio entre especialistas e membros legítima dos objetos e das relações no mundo social.
das recém-criadas Agências de Bacias em razão de
seu envolvimento com as várias dimensões que a
nova lei de águas pretendia se reportar. Posterior- Considerações finais
mente, o politécnico (diplomado da École Polyte-
chnique) ainda desempenhou papel fundamental na Este trabalho teve por objetivo principal uma
continuidade dos debates travados nas três comis- interpretação sociológica da constituição da mo-
sões ao longo dos dezesseis anos de maturação e derna experiência francesa de gestão das águas.
implementação do novo sistema gestor. Tornou- Nesta tarefa, realizou-se o resgate da configuração
se, desde a década de 1980, um importante consul- de parte das disputas entre grupos e instituições en-
tor do Banco Mundial para o tema da gestão das volvidos na elaboração e na implementação do re-
águas. Envolvido cada vez mais com os proble- ferido sistema gestor. Para tanto, recorreu-se a uma
mas da chamada nova economia da água, este agente estratégia de abordagem dedicada menos à des-
vem participando, desde 2000, de grupos de tra- crição dos instrumentos de gestão do que à expo-
balho sobre a questão hídrica junto à Organização sição da dinâmica dos interesses setoriais no qua-
das Nações Unidas. Dedica-se especialmente a in- dro de formulação dos novos marcos regulatórios
terpretações dos desafios de gestão das águas para da governança das águas no país.
o milênio, em estreita parceria com Michel Cam- O mapa político das bacias hidrográficas reve-
dessus, ex-diretor do Tesouro francês, ex-gover- lou-se como importante fundamento de crítica à tese
nador do Banque de France e ex-diretor geral do da partilha técnica do território para fins de gestão
Fundo Monetário Internacional. Atual conselheiro das águas. Conforme visto, as necessidades de con-
para o tema da água da Secretaria Geral das Na- formação dos interesses dos grupos politécnicos
ções Unidas, Camdessus fundou em 2002 o “Gru- no âmbito da gestão influíram decisivamente não
po de trabalho mundial sobre o financiamento das apenas na divisão da gerência das bacias entre os
infra-estruturas de água”, do qual Cheret é desde grupos profissionais, mas também serviram de base
então o secretário geral. à legitimidade entre os então agentes formuladores
No ano de 2004, em parceria com outros do marco regulatório para a definição do número
três especialistas na questão hídrica, Camdessus e de bacias a serem criadas. Nesse sentido, o que his-
Cheret publicaram um livro no qual reúnem dados toricamente apresentou-se como produto estrita-
e interpretações sobre os dilemas de acesso à água, mente técnico de uma modalidade de engenharia
da poluição e das dificuldades institucionais de ges- gestora – cujos maiores méritos residiriam justa-
tão do recurso em várias regiões do mundo (Cam- mente em sua neutralidade técnica –, tratou-se tam-
dessus et al., 2004). A obra desenvolve fundamen- bém de um processo de disputa entre grupos pro-
talmente a leitura econômica das possibilidades de fissionais e segmentos da burocracia de Estado.
escassez do recurso, atentando para a necessidade Esse fundamento crítico possui particular re-
de sua alocação eficiente. O sentido do texto asse- levância para a análise das iniciativas de “cientifiza-
melha-se ao conteúdo corrente dos documentos ção” da política como princípio de legitimação de
de instituições como a OCDE e o Banco Mundial, competências e de partilha do território. No caso
voltados para uma forma retórica de neutralidade da governança francesa das águas, é mister destacar
e pragmático no sentido das orientações tecnocrá- que a lei de 1964 não é o resultado da progressão
ticas.17 Na obra, os agentes engajam o capital simbó- do conhecimento técnico, que teria culminado com
96 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 23 No. 67

a noção de bacia hidrográfica, mas sim produto de gador. A produção do illusio por meio dos enuncia-
uma configuração que envolveu agentes (sobretu- dos econômicos da questão ambiental e do encon-
do politécnicos) e instituições com interesses distin- tro desses enunciados com disposições estrutura-
tos, interesses estes que se equilibraram (no sentido das em agentes e instituições, que dele se
do equilíbrio flutuante de tensões) a partir da disposição apropriaram como crença, mostrou-se como im-
das Agências de Bacias. No que concerne à cons- portante caminho para o esclarecimento das estra-
trução da identidade “nós-eles”, as relações de opo- tégias que recursivamente encerram os temas da
sição revelaram-se tanto em plano configuracional moderna crise socioambiental nos termos das aná-
mais amplo, com a polarização entre o saber técni- lises de custo-benefício. A definição dos instrumentos
co/perito e os demais segmentos sociais dispostos de gestão ambiental como instrumentos econômicos re-
a se envolver na governança descentralizada, como vela, dentre outros, a leitura hegemônica que a tec-
no interior da própria tecnocracia, com as identi- nociência segue construindo sobre o ambiente na-
dades dos três principais corpos politécnicos. tural e, em nível mais complexo, seu uso como
Um elemento não tratado neste estudo, mas instrumento de poder legítimo ante outros grupos
que requer ainda esforços analíticos, diz respeito ao sociais.
caso particular dos comitês de bacia. Destarte, a Dessas conclusões, emerge, portanto, a hipó-
análise da atuação das redes de representação social tese do que se pode desenhar como um mercado
nestas instâncias, bem como suas relações com os internacional de instrumentos de política ambiental,
quadros técnicos, não implicaria em um adicional a voltado para a gestão econômica dos recursos natu-
este artigo, mas sim em sua seqüência (tanto do rais. Os parlamentos das águas (gestão descentrali-
ponto de vista histórico como analítico). Neste caso, zada) e a valoração ambiental (apoiada no PPP)
caberia o emprego de certos instrumentos inter- são alguns dos bens com ampla circulação nesse
pretativos utilizados nas abordagens sociológicas das mercado. Por certo, o caso francês oferece-nos as-
práticas econômicas. Isto porque, atualmente, as pectos decisivos sobre a gênese desses bens no con-
relações entre as redes de representação e a tecnocra- texto das políticas de águas. Cumpre, portanto, a
cia vinculam-se em grande medida à aplicabilidade realização de novos esforços analíticos para a com-
(ou não) dos princípios econômicos da valoração preensão da circulação internacional desse modelo,
da água. Por certo, os comitês de bacia constituem- que segue como importante amparo, dentre ou-
se em espaços de disputas e, por conseguintes, de tros, para a recente experiência brasileira de gestão
interações sociais características, enquadrando-se no descentralizada dos recursos hídricos.
que Steiner (1999), por exemplo, categoriza como
rede social no escopo da sociologia econômica. O
emprego de tal suporte analítico, supõe-se, pode Notas
contribuir para evidenciar a dificuldade de cons-
trução de um padrão de relações/interações entre 1 No Brasil, a cobrança pelo uso da água encontra-se em
esta tecnocracia e os grupos sociais, posto que, como fase de implementação. No estado de São Paulo, a pro-
bem demonstra o presente artigo, tendo a domi- posta de cobrança foi aprovada como lei pela Assem-
nação social dos saberes politécnicos empreendido bléia Legislativa em dezembro de 2005. Sua implanta-
características muito peculiares aos destinos de cada ção será realizada pelos Comitês de Bacias Hidrográficas.
No plano federal, a cobrança também é prevista em lei
bacia hidrográfica, as redes na representação social e o Comitê Federal do Rio Paraíba do Sul vem prati-
dos comitês de bacia devem também revelar ca- cando-a desde janeiro de 2006.
racterísticas fortemente localizadas. Convém esclarecer que o emprego do termo governança
2
Por fim, é importante ainda destacar a eficá- não se circunscreve ao campo da construção de valores
cia ímpar da associação do modelo francês de ges- corporativos, tal como comumente vem sendo aplica-
tão das águas a certas crenças econômicas. Tal como do nos estudos de economia e administração. A despei-
se procurou demonstrar, várias relações continua- to da concordância com a suposição de Bourdieu (2000,
ram sendo implicadas na crença da auto-regulação pp. 22-23) quanto à visão moral específica revelada
por certos modos de aplicação do termo, este trabalho
promovida pela valoração dos recursos naturais, explorará o referido termo com base no contexto por
com destaque para sua forma institucional mais meio do qual o mesmo se circunscreveu no debate fran-
acabada, qual seja, a do Princípio do Poluidor-Pa- cês de gestão das águas. Nesse sentido, o termo gover-
SOCIOLOGIA DA GOVERNANÇA FRANCESA DAS ÁGUAS 97

nança será aqui utilizado em face do debate sobre a velam fortemente esta reafirmação do monopólio de
descentralização da gestão socioambiental por meio da competências.
promoção do princípio da subsidiaridade. Nas discussões 8 Esta oposição tornou-se bastante evidente nas décadas
sobre gestão e políticas públicas, tal princípio supõe seguintes à criação da referida lei, com a consolidação
que toda a ação que pode ser decidida e implementada dos comitês de bacia. Estudos como os de Fritsch
no âmbito da localidade não deve ser submetida à deci- (1998), sobre a atuação política das empresas de distri-
são de nível hierárquico superior, decorrendo daí uma buição de águas na França nos anos de 1980, e de
divisão funcional em termos de arranjos institucionais Lewis (2001), sobre as disputas políticas na bacia Loi-
e de envolvimento dos interesses sociais locais na cons- re-Bretagne, revelam a fragilização da participação dos
trução de políticas no – e não para o – território. Para o distintos setores sociais nos comitês justamente em ra-
detalhamento e a problematização deste princípio, ver zão do ornamento técnico do debate político. Ambos
Faure (1997). Para a relevância deste debate no campo os estudos apontam para a recorrência a este ornamen-
da governança socioambiental, ver os estudos de caso to por representantes governamentais e de grandes em-
de Howard (2006) e Boonstra (2006). presas nos momentos de maior impasse político dentro
3 Em Habermas (2000), o espaço público é concebido dos comitês – fato que sugere o sentido da formação de
como lugar onde as interpretações e as aspirações em novas redes tendo o saber técnico como um dos capi-
questão se manifestam e adquirem consistência ante os tais de sustentação.
distintos agentes e grupos sociais, interpenetrando-se, 9 A referência de equilíbrio aqui empregada baseia-se na
entrando em sinergia ou em conflito. Ressalta-se, as- definição de equilíbrio flutuante de tensões de Elias (1991).
sim, a importância da expressão pública das aspirações Na perspectiva deste autor, tal definição implica a re-
e dos processos de deliberação e/ou decisão. tomada da noção de poder em contexto relacional e
4 Em termos de atuação articulada da sociedade civil, o circunscrito a configurações definidas. As possibilida-
único grupo a desenhar alguma reação quanto aos ru- des de equilíbrio das tensões flutuantes seriam, em ter-
mos do debate sobre o novo sistema gestor no início mos analíticos, uma das particularidades estruturais de
dos anos de 1960 foi formado pelas associações de toda configuração.
pescadores de águas doces. Isto porque uma das pri- 10 Tal como destacou Walter Benjamin (2006) a propósi-
meiras versões do projeto de lei propunha a classifica- to da consolidação de Paris como capital do século
ção dos cursos d’água em quatro categorias, em função XIX, o conceito moderno de engenheiro na França,
de seu grau de poluição. Os pescadores, agentes pionei- cujas origens remontam às guerras da revolução, começa
ros nas denúncias sobre a poluição nos rios do país, a se impor cotidianamente por meio das rivalidades
alegavam que tal categorização significava aceitar a idéia entre o construtor/planejador e o decorador – o que
de que certos cursos d’água pudessem ser legalmente no espaço das grandes escolas correspondia à oposição
poluídos. Como solução para o impasse, foi mantido na entre a École Polytechnique e a École des Beaux-Arts,
lei um texto vago sobre a possibilidade de classificação sendo esta última a base erudita dos segmentos burgueses
dos rios, que seria eventualmente definida por decretos atrelados ao comércio e à indústria têxtil. Nessas riva-
do Conselho de Estado. lidades, entrariam em questão os próprios valores sociais
5 A análise de Nicolazo (1997) é um importante exemplo em torno das paisagens (sobretudo as urbanas), bem
da abstração da dimensão política na história da cria- como aqueles envolvidos com o universo das técnicas.
ção das agências de bacias francesas. A propósito da 11 Segundo Shinn (1980), esse perfil adequava-se perfei-
leitura do depoimento de Valiron sobre os vinte anos tamente ao próprio ideal nepoleônico de formação de
de criação das Agências de Bacia, este autor afirma que profissionais polivalentes para o corpo do Estado. Nes-
a relevância da experiência reside justamente na di- se sentido, o recrutamento dos alunos na Polytechni-
mensão técnica norteadora do debate. O relato das que seguiu progressivamente representando, ao menos
disputas políticas não teria tanta importância vis à vis a até o final da década de 1970, quase um recrutamento
relevância técnica adquirida pelas Agências de Bacia. de Estado, de tal sorte que os egressos da escola conta-
6 Este processo de “cientifização da política” no escopo vam com a certeza da ocupação de posições nos qua-
do moderno debate sobre desenvolvimento sustentável dros da administração pública.
possui vários campos de manifestação. Sua forma mais 12 Na perspectiva de Bourdieu (1989), os ritos de institui-
evidente talvez se refira à extensão do campo dos espe- ção assumiriam funções parecidas com aquelas dos ritos
cialistas em gestão de territórios e ecossistemas até o de nominação (batismo, circuncisão etc.). No caso das
exercício científico dos instrumentos de políticas públi- instituições de ensino superior, são atas de nominação
cas. A propósito das contradições desta modalidade de oficiais do sistema escolar nos termos da demarcação
relação entre conhecimento científico e ação política no do caminho percorrido. A apreciação desse caminho
debate sobre regulação ambiental, ver Fabiani (1985). funda-se na lógica dualista do pertencimento e da ex-
7 Notadamente, este também é o caso brasileiro. Os ma- clusão, fornecendo identidades sociais e, por conse-
nuais de gestão e gerenciamento dos recursos hídricos, guinte, distinções, marcadores sociais das diferenças
elaborados pelos “profissionais” das águas no país, re- (no caso francês, seria o “normalien”, o “polytechnicien”
98 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 23 No. 67

etc.). Nesse contexto, os índices de sucesso escolar não BENJAMIN, W. (2006), Passagens. Belo Horizon-
seriam levados em conta; a hierarquia dos indivíduos te/São Paulo, Editora da UFMG/Imprensa
corresponderia mais estreitamente ao valor de merca-
Oficial do Estado de São Paulo.
do dos títulos do que ao valor propriamente escolar de
seu desempenho. BERGER, C. & ROQUES, J. L. (2005), L’eau com-
13 Este trabalho não tem por objetivo desenvolver a crí- me fait social: transparence et opacité dans la gestion
tica conceitual dos princípios neoclássicos para a ques- locale de l’eau. Paris, L’Harmattan (col. Socio-
tão ambiental. Para tal crítica, ver Godard (1980) e logie et Environnement).
Leff (2003). Sobre a interpretação pormenorizada das
estratégias conceituais de problematização da gestão BOLTANSKI, L. (1981), “America, America… Le
das águas pelo neoclassicismo, ver Martins (2004). Plan Marshall et l’importation du ‘manage-
14 Conforme destaca Lebaron (2000), a designação econo- ment’”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales,
mista no país possui sentido polissêmico. Isso principal- 38, maio, p. 19-41.
mente em decorrência da ausência, até os anos de 1970,
de uma trajetória institucionalmente demarcada no BOONSTRA, W. J. (2006), “Policies in the Polder:
sistema de formação profissional. Os primeiros departa- how institutions mediate between norms and
mentos de economia nas instituições de ensino e pesqui- practices of rural governance”. Sociologia Ru-
sa do país datam do final da década de 1960, oferecen- ralis, 46 (4), out, p. 299-317.
do formação aplicada principalmente aos diplomados
das áreas politécnicas e de direito. BOURDIEU, P. (1989) La noblesse d’État: grandes
15 A propósito da internalização dos cursos de produção, écoles et esprit de corps. Paris, Les Éditons de
Berger e Roques (2005) destacam o fato de os agricul- Minuit.
tores não pagarem a redevance de poluição. A despeito
dos argumentos técnicos envolvidos nas características _________. (2000), Les structures sociales de l’économie.
de emissão difusa de poluição agrícola, tem sido notó- Paris, Seuil.
ria a atuação dos agricultores no sistema de governança
a fim de garantir a não penalização do setor. Segundo BRAUDEL, F. & LABROUSSE, E. (1980), Histoi-
os autores, este fato contribuiria para aquilo que deno- re économique et sociale de la France. Paris, PUF,
minam de opacidade na gestão francesa das águas. vol. 2.
16 A crescente formalização matemática das técnicas de CAMDESSUS, M. et al. (2004), Eau. Paris, Éditions
valoração bem como as inovações nos modelos de pre-
cificação podem ser acompanhadas nos trabalhos de
Robert Laffont.
Pearce (1995) e Goldar e Misra (2001). CARO, J. Y. (1983), Les économists distingués: logique
17 Este sentido geral de neutralidade nos enunciados tam- sociale d’un champ scientifique. Paris, Presses de la
bém é marcante no próprio documento do Princípio do Fondation Nationale des Sciences Politiques.
Poluidor Pagador da OCDE. A propósito desta modali-
dade de construção discursiva no campo econômico, bem CHERET, I. (1968), “Le probleme de l’eau et les
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SOCIOLOGIA DA GOVERNANÇA SOCIOLOGY OF WATER SOCIOLOGIE DE LA GOUVER-


FRANCESA DAS ÁGUAS GOVERNANCE IN FRANCE NANCE FRANÇAISE DES EAUX

Rodrigo Constante Martins Rodrigo Constante Martins Rodrigo Constante Martins

Palavras-chave: Sociedade e recursos Keywords: Society and water resources; Mots-clés: Société et ressources en eau;
hídricos; Burocracia e gestão ambiental; Bureaucracy and environmental manage- Bureaucratie et gestion environnemen-
Regulação ambiental; Gestão de águas. ment; Environmental regulation; Water tale; Régulation environnementale; Ges-
management. tion des eaux.

A temática do acesso aos recursos hídri- Access to water resources has gained Au cours des trente dernières années, le
cos conquistou grande abrangência cien- extensive scientific and political rele- sujet de l’accès aux ressources en eau a
tífica e política no decorrer das últimas vance over the last three decades. The conquis un espace important aussi bien
três décadas. A moderna experiência fran- French modern experience has become a dans le domaine scientifique que politi-
cesa tem se revelado como importante reference point for the institutionaliza- que. L’expérience française moderne s’est
referência na institucionalização de novas tion of new management practices. In révélée une référence importante pour
práticas gestoras. No Brasil, esta experiên- Brazil, this experience provided a basis l’institutionnalisation des nouvelles prati-
cia é a base não apenas da constituição for establishing not only new state mana- ques de gestion. Au Brésil, cette expérien-
dos novos aparatos gestores estaduais, gement apparatuses, but also the Water ce est à la base non seulement de la cons-
mas também da própria formulação da Resources National Policy itself. This titution de nouvelles entités gestionnaires
Política Nacional de Recursos Hídricos. article seeks to examine relevant social au niveau des États de la fédération, mais
O objetivo deste artigo é apresentar uma disputes concerning water management aussi de la Politique Nationale des Res-
interpretação sociológica sobre a constru- technocracy over the establishing period sources en Eau. L’objectif de cet article
ção do atual modelo francês de gover- of the new management apparatus. Thus, est de présenter une interprétation socio-
nança das águas. O autor busca reconsti- we have reviewed the sociopolitical net logique relative à la constitution de l’actuel
tuir as disputas sociais mais relevantes involving agents, groups, and social modèle français de gouvernance des eaux.
envolvidas na tecnocracia de adminis- institutions towards the definition of a L’auteur tente de reconstituer les enjeux
tração das águas no período de formula- new regulatory frame. This frame has sociaux les plus pertinents impliqués au
ção do novo aparato gestor. Para tanto, resulted in a symbolic re-designation of sein de la technocratie de l’administration
será resgatada a trama sociopolítica que the resource (reaching the category of des eaux, au moment de la formulation
envolveu agentes, grupos e instituições natural capital) and a ‘scientification’ of du nouveau système de gestion. Pour cela,
sociais na definição do novo marco regu- politics as a principle for legitimating il reconstitue la trame sociopolitique qui
latório. competence in water governance. a intégré des agents, des groupes et des
institutions sociales dans la définition des
nouvelles limites de la régulation.

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