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4 ilustríssima HHH Domingo, 1° DE março DE 2015 ab ab Domingo, 1° DE março DE 2015 HHH ilustríssima 5

literatura

Arquivos
de autores
relevantes
pertencem
aos EUA
escrever sobre os auto-
res do boom envolve uma
questão delicada: a expor-
tação dos arquivos dos mais
importantes autores latino-
americanos para universida-
des norte-americanas.
Carlos Fuentes reconheceu
essa dificuldade em carta en-
viada a Gabriel García Már-
quez em 29 de março de 1974:
“em fevereiro viajamos para
Washington com uma bolsa
do instituto Smithsonian e da
Biblioteca do Congresso para
utilizar o grande acervo his-
pano-americano da Bibliote-
ca, o melhor do mundo”.
Fuentes rematava a es-
crita de “terra Nostra” —o
mais ambicioso romance do
autor; publicado no ano se-
guinte, obteve o relevante
Prêmio rómulo Gallegos em
1977. a temporada em Wa-
shington ajudou a lastrear o
texto; afinal, nas palavras de
Fuentes, “sigo o preceito do
mestre Buñuel: não há ima-
ginação sem história”. esta,
o autor mexicano buscava
na Biblioteca do Congresso.
García Márquez antecipou
o dilema, imaginando uma
solução à altura da criativi-
dade de seus personagens.

Às vésperas da
em carta endereçada a Fuen-

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seu acervo —as de número 305 e franqueza crítica é a marca-d’água do nosso mundo”. “Alegra-me mais que era o sentido dos esforços dos pro- tes, em 2 de novembro de
306— somente poderiam ser aber- do núcleo duro do boom. além disso, inúmeros projetos tagonistas do boom. em janeiro 1968, acrescentou uma no-
tas dois anos após sua morte. O Foi assim que, em carta de 7 de foram articulados por meio dessa a América Latina de 1967, como se intuísse o êxito ta maliciosa: “o autor desta
conteúdo dessas caixas é decisivo setembro de 1958, Cortázar não troca de opiniões. se tenha convertido que aguardava “Cem anos de So- carta certifica que ela é apó-
para a reconstrução da pré-his- hesitou em criticar duramente a No âmbito do boom, muitos ro- subitamente em um lidão”, que seria lançado em maio crifa e por isso não é vendá-

grande explosão
tória do boom, pois guardam a estrutura do romance que lançou mances discutiram a figura do dita- do mesmo ano, García Márquez vel a Harvard”.
correspondência de Fuentes com internacionalmente o nome de dorlatino-americano.Porexemplo, dos grandes mercados escreveu a Fuentes. ironias à parte, recente-
Donoso, García Márquez e Julio Fuentes, “la región Más trans- MarioVargasllosalançou“Conver- de livros do mundo”, “O romance latino-americano mente os arquivos de García
Cortázar, além de incluir nomes parente”. No juízo do argentino, sanoCatedral”(1969);augustoroa bateu todos os recordes de venda Márquez foram adquiridos
como Octavio Paz, Guillermo Ca- que ainda não era o autor de “O Bastos produziu “eu, o Supremo” escreveu García no ano passado na Colômbia (...). pela universidade do texas,
brera infante, roberto Fernández Jogo da amarelinha” (1963), Fuen- (1974);alejoCarpentierescreveu“O Márquez em 1967 Os livros mais vendidos foram ‘a em austin. aliás, aí, o Centro
retamar e elena Poniatowska. tes “incorreu no magnífico pecado recurso do Método” (1974); Gabriel Cidade e os Cachorros’, ‘O Jogo da Harry ransom também abri-

Como escritores se articularam para criar


a leitura cruzada desse mate- do homem de talento que escreve García Márquez publicou “O Outo- amarelinha’ e ‘a Morte de artemio ga os arquivos de James Joy-
rial estimula novas abordagens do seu primeiro romance”, isto é, “co- no do Patriarca” (1975). Cruz’... também em primeiro lugar ce, Jorge luis Borges, William
boom: trata-se de combinar a relei- locou um mundo em 500 páginas, Simples coincidência? Ou teria ficaram ‘O Século das luzes’ [de Faulkner, compondo, assim,
tura dos romances com o estudo concedeu-se o prazer de combinar sido uma iniciativa comum? uma alejo Carpentier] e os meus. isto um repositório incontornável

o boom literário latino-americano detalhado da correspondência e da


recepção crítica —e vale recordar
que, entre muitos outros acervos, a
BibliotecaFirestonetambémabriga
o ataque com o gozo, a elegia com
o panfleto, a sátira com a narrativa
pura”. e seguia: “Não tenho o pre-
conceito dos ‘gêneros literários’:
missiva de Fuentes, enviada a Cor-
tázar em 6 de maio de 1967, permite
um esclarecimento definitivo:
“escrevo para você em acor-
quer dizer que nosso público está
respondendo muito bem.”
em breve, não apenas o público
latino-americano, mas, num dia-
na história da literatura da se-
gunda metade do século 20.

Brasileiros a Bibliote-
os arquivos de Vargas llosa, Dono- um romance sempre é um baú no do com Mario Vargas. Há pouco, pasão que surpreendeu a todos, ca Beinecke, da universidade
so, Jorge edwards e Sergio Pitol. qual colocamos um pouco de tu- em Paris, Mario e eu falamos com Macondo conquistaria o mundo. Yale, concentra alguns dos
Ora, Xavi ayén parece acreditar do. Porém, Carlos, a não ser para entusiasmo do ‘Patriotic Gore’ a tal ponto o projeto triunfou que, mais importantes arquivos
que uma sucessão de “acasos” te- os que conhecem como o senhor de edmund Wilson e pensamos em carta de 2 de dezembro de 1967, das vanguardas do século 20;
ria resultado em “algo que chama- o seu México, todo o princípio do que nossos países prestavam-se García Márquez pôde afirmar. por exemplo, os manuscritos
remos boom”. a correspondência livro (...) provoca muito cansaço”. muito a uma visão desse tipo. ela- “‘Cem anos’ continua vendendo de ezra Pound e Filippo tom-
em “aquellos años del Boom: nuançar a ideia de que o boom cidida de Jorge Herralde, editor da de Carlos Fuentes permite supor o Fuentes acatou as ressalvas, e borando a ideia, pensamos num consulta com entusiasmo. eis a como salsicha e já sai a quarta edi- maso Marinetti lá se encon-
resumo Livro lançado García márquez, vargas llosa y tenha surgido a partir de uma bem- anagrama. Contudo, recorde-se contrário, na medida em que su- suas palavras não foram protoco- volume coletivo que, com o título carta que remeteu a Fuentes em 5 ção. Claro que isso me alegra, po- tram. e são importantes para
por jornalista catalão reú- el Grupo de amigos que lo cam- sucedida estratégia de mercado, que “Cem anos de Solidão” saiu gere um esforço deliberado para lares. Pegue-se a carta enviada ao de ‘los Benefactores’, ‘los Padres de junho de 1967. rém me alegra mais que a américa os pesquisadores brasileiros,
ne informações sobre o biaron todo” [rBa, 26€, 880 liderada por uma agente literária inicialmente na argentina, pela a criação de um novo lugar para o argentino em 17 de maio de 1972: de la Patria’, ou algo similar, reu- “Mestre querido, a ideia é boa e latina se tenha convertido subi- pois, nos papéis de Pound, há
págs., r$ 31,15 em Kindle], de de dimensões míticas —Carmen editorial Sudamericana. autor latino-americano. “(...) aguilar começa a publicar nisse a crônica negra dos nossos é necessário levá-la adiante. acre- tamente em um dos grandes mer- cartas decisivas dos jovens
chamado boom da litera- 2014, Xavi ayén se propôs a um Balcells— e divulgada por podero- e não é tudo. todas as minhas obras; como se patriarcas inverossímeis: como diz dito, isso sim, que se deve escrever, cados de livros do mundo. Para poetas concretos, anuncian-
tura latino-americana, que exaustivo estudo, composto a par- sas editoras espanholas, destacan- O mexicano Carlos Fuentes intencional a melhor ma- trata do que os saxões chamam Mario, uma espécie de ‘vidas pa- sem exceção, sobre um tirano de mim, o famoso boom não é tanto do seu projeto estético.
teria tido lugar em Barce- tir de uma miríade de entrevistas do-se o empenho de Carlos Barral, (1928-2012), nome incontornável neira de entender essa dimensão ‘definitive edition’, desejo que con- ralelas’ grotescas”. seu próprio país. assim, se dispõe um boom de escritores, mas um O acervo de Marinetti dis-
lona, nos anos 1960 e 70. com personagens-chave da gera- da Seix Barral. na história do boom, nunca mo- consiste em acompanhar as ini- te com os melhores elementos crí- de maior autoridade, mais direito, boom de leitores. Que maravilha!” põe de uma coleção de livros
ção do boom —autores, editores, Sem dúvida, Barcelona, com rou em Barcelona; além disso, seu ciativas de Fuentes nesse sentido. ticos e, para isso, peço sua autori- projeto coletivo esta e há menos inconvenientes para de modernistas brasileiros
Arquivos guardados nos agentes e críticos literários. sua importante indústria edito- romance “la región Más transpa- a primeira carta trocada entre zação para incluir a maravilhosa carta é preciosa, já que permite chegar aonde se deve.” e o Brasil? em de maio de com dedicatórias eloquen-
EUA, contudo, mostram Ganhador do Prêmio Gaziel de rial, teve um papel catalisador, rente” foi lançado em 1958 —uma Fuentes e Julio Cortázar (1914-84) carta que você escreveu em 1958 acompanhar, passo a passo, os pri- No dia 12 de julho, o futuro autor 1970, Nélida Piñon disse tudo em tes. Na esfera pública, todos
que a troca de correspon- Biografias e Memórias 2013, o livro como continuaria tendo, inclusi- década antes do êxodo latino-ame- foi iniciativa do mexicano. em 16 (já se passaram 14 anos!) sobre ‘la mórdios da formação de um proje- de “O Outono do Patriarca” voltou carta a Mario Vargas llosa, de- procuravam se afastar do in-
de ayén, que se impõe como refe- ve na promoção do último grande ricano à cidade catalã. Sem negli- de novembro de 1955, convida o región Más transparente’. Você se to coletivo específico: o romance ao tema: “Sobretudo, que seja um finindo-se como “uma escritora cômodo italiano; no circuito
dência e a intensa articu- rência indispensável pela quan- fenômeno literário latino-ameri- genciar a energia de Balcells e a escritor argentino para um projeto recordará que é uma carta crítica do ditador. em sentido amplo, o ditador para cada país. enfim, o brasileira, deste país surpreenden- fechado das correspondên-
lação entre os autores da- tidade de informações reunidas, cano —o chileno roberto Bolaño rede transnacional proporcionada comum: “Suponho que já estará e, para mim, um supremo exemplo próprio boom pode ser relido nes- mais importante é que o projeto temente marginalizado do mara- cias, a cordialidade reinava.
tam já da década de 1950. deixa a desejar, porém, no quesito (1953-2003), cujo êxito internacio- pelas editoras espanholas, o boom em suas mãos o primeiro número do que deve ser o exercício crítico sa mesma chave. vai adquirindo uma forma estu- vilhoso processo de conquista a Biblioteca Firestone,
interpretativo, ao tentar oferecer a nal foi favorecido pela atuação de- possui uma arqueologia própria, da ‘revista Mexicana de literatu- em nossos países.” García Márquez respondeu a penda”. De fato, pois, se o livro internacional, que ora invade a da universidade de Prince-
narrativa definitiva acerca de uma que precisa ser reconstituída. ra’: nos honraria contar com a sua O circuito criado pelo intenso coletivo nunca veio à luz, em com- américa hispânica”. ton, segue uma estratégia
geração privilegiada como “uma Vejamos. colaboração para um dos futuros. carteio não apenas antecedeu ao pensação, uma série de romances a autora de “a república dos semelhante. Vale dizer, de-
bonita história” que se passou em todos conhecemos sua qualidade boom como também ajudou a de- fundamentais conheceu sua gêne- Sonhos” (1984) destacou-se pela senvolvem-se estratégias de
sua cidade —“vale dizer, Barcelo- arquivosMelhor:consultemos de escritor; por ema, sua qualida- toná-lo. antes de conquistar o pú- se nessa troca de cartas. criação de vínculos sólidos e per- aquisição de acervos aparen-
na”. essa é uma meia verdade que os arquivos de Fuentes, que se en- de de amigo. Contar com o senhor blico, os autores submeteram-se em 24 de novembro de 1970, di- manentes com o universo hispano- tados, permitindo o cruza-
mais obscurece do que ilumina. contramnacoleçãodemanuscritos renderia esta dupla colheita”. a uma crítica interna de grande rigindo-se a García Márquez, Fuen- americano. Por isso, em seu livro, mento de dados e o aprovei-
e livros raros da Biblioteca Firesto- apesar do cerimonioso empre- alcance. em cartas memoráveis, tes voltou à carga, imaginando ou- Xavi ayén principia o capítulo em tamento ideal do tempo de
meia verdade É certo que al- ne, da universidade de Princeton, go do pronome de tratamento “se- Fuentes e García Márquez discuti- tra tarefa coletiva. que fala das mulheres escritoras imersão no arquivo. No caso
guns dos mais destacados nomes nos estados unidos. a importância nhor” (no original espanhol referi- ram o processo de escrita de “Cem “acaba de passar por México em um grupo de homem dedican- da minha pesquisa, o êxito
do movimento fixaram residên- desse acervo pode ser avaliada pe- do pelo “usted”), que perduraria anos de Solidão”. No dia 15 de Jorge lavelli com uma proposta in- do cinco páginas à sua residência da iniciativa é evidente, pois
João Cezar de Castro roCha cia na cidade catalã. O colombia- Sem dúvida, Barcelona, las palavras de José Donoso (1924- por algum tempo, a colaboração abril de 1966, Fuentes não disfar- A correspondência decorosa (...). Produzir uma gran- em Barcelona. a história familiar a presença, no mesmo espa-
ilustração deCo farkas no Gabriel García Márquez (1927- 96), destacado autor chileno e res- começou de imediato e nunca foi çou seu encantamento: “Suas pri- de revista musical latino-america- da escritora ajuda a entender esse ço, dos arquivos de Carlos
2014) e o peruano Mario Vargas
com sua importante ponsável pelo primeiro relato sobre interrompida: Cortázar respondeu meiras 70 páginas de CeM aNOS se transformou num na, de conteúdo crítico e político laço, mas não explica a força de Fuentes, Mario Vargas llo-
llosa, porém, mudaram-se para indústria editorial, teve o movimento, “Historia Personal no dia 21 de dezembro, enviando De SOliDÃO são magistrais (...). laboratório de ideias, (...). Pensamos que a revista pode sua presença, construída por meio sa e José Donoso, Guillermo
Nas décadas de 1960 e 1970, um Barcelona depois de publicarem um papel catalisador, del Boom” (1972): “Carlos Fuentes um conto para publicação. e, a par- Que voo, mestre, que sabedoria, discussões literárias e, ser feita por meio de esquetes (...). de um intercâmbio sistemático e Cabrera infante e emir ro-
movimento reescreveu o lugar da obras que possibilitaram a emer- foi o primeiro agente ativo e cons- tir desse momento, a correspon- que humor! (...) a américa latina, e a melhor maneira de fazê-lo é produtivo com diversos autores dríguez Monegal —para fi-
literatura latino-americana no gência do boom, respectivamente, mas recorde-se que ciente da internacionalização do dência se transformou num labora- culturalmente, passou da utopia sobretudo, inaugurou recorrer a você, Mario, Julio, alejo dos países vizinhos. car apenas nesses nomes—
cenário internacional. amparado “Cem anos de Solidão” (1967) e “Cem Anos de Solidão” romance hispano-americano da tório de ideias, discussões literárias da fundação à epopeia da encarna- um espaço de leitura para a redação dos esquetes e as Não terá chegado a hora de torna o local uma referência
por dez anos de pesquisas, um jor- “a Cidade e os Cachorros” (1963). década de 1960”. e, sobretudo, inaugurou um espaço ção e desta ao mito do re-conheci- sugestões musicais.” emular esse gesto, inaugurando obrigatória para todo estu-
nalista espanhol quer reescrever esse simples dado cronológi- saiu inicialmente O autor mexicano morreu em 15 de leitura nada cordial da obra do mento, da re-conquista: suas pági- crítica nada cordial No fundo, desejava-se ampliar uma nova era de diálogo com as li- dioso interessado em rees-
sua história. co é importante porque ajuda a na Argentina de maio de 2012, e duas caixas de outro. esse ponto é fundamental: a nas são as três coisas, a totalidade da obra do outro ao máximo o público leitor: esse teraturas hispano-americanas? crever a história do boom.

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