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A tradução de cantos

indigenas

Cláudia Neiva de Matos

Para Joaquim Maná, Josimar Tuin e Noberto Tene Kaxinawá. E também para Daniel Werneck
Guimarães.

A tradução de cantos indígenas no Brasil ainda está por fazer. Trata-se de experiência mal e mal
encetada, que ensaia seus primeiros passos em território desconhecido e sem caminhos traça¬dos.
Antes de ser um fato a estudar, é uma questão em aberto. E, para que possa melhor ser
compreendida, confrontada e discutida essa questão que pretendo colocar na mesa, convém que ela
seja contextualizada no processo e circunstâncias em que surgiu no meu espaço de trabalho, me
convocou a persegui-la e resultou na versão para o português de dúzia e meia de cantos kaxinawá.

Tudo começou com minha participação no projeto peda-gógico da Comissão Pró-Índio do Acre, ONG
sediada em Rio Branco que há cerca de vinte anos dedica-se a formar professores indíge¬nas
bilíngües para escolas das aldeias do Acre e do Sudoeste do Amazonas. Atuando junto a uma dezena
de etnias autóctones (Kaxinawá, Yawanawá, Katukina, Manchineri, Apurinã, Ashaninka etc.), a CP-
I/Ac tem desenvolvido um trabalho inovador e eficaz, norteado por princípios de manutenção e
revitalização de idiomas e culturas nativas. Neste sentido, currículos e materiais didáticos
diferenciados e adequados aos vários grupos foram elaborados em parceria com os professores
indígenas.

Durante cinco anos desenvolvi e ministrei nos estágios de formação docente da CP-I/Ac os cursos de
Literatura, que inte¬gravam a área de Línguas (portuguesa e materna). Nãõ se tratava de transmitir
aos professores indígenas um conhecimento da literatura

"branca", mas sobretudo de abrir no processo de sua formação um espaço para a investigação e
reflexão sobre os usos diferenciais da comunicação verbal (oral e escrita), particularmente os que nós
"brancos" nos acostumamos a identificar como "literários". Esse cri-tério abarcava também, e
mesmo prioritariamente, corpora textuais oriundos das várias tradições comunitárias e idiomas
envolvidos.

Faço aqui economia de uma discussão — entretanto neces-sária — sobre a (in)consistência do termo
"literatura", quando aplicado a textualidades narrativas, líricas etc. das culturas indí¬genas
brasileiras. Se todavia não descartamos de saída o referido termo, importa pelo menos assegurar que
a noção a ele associada se mantenha o bastante aberta e flexível para ser justamente modi¬ficada,
reestruturada pela nova experiência poética de que podemos usufruir ao ser apresentados às artes
verbais indígenas. Ou talvez seja melhor principiar falando logo em "poesia" — esta noção que, para
Paul Zumthor, corresponde simplesmente a "uma arte da linguagem humana, independente de seus
modos de concretização e fundada sobre estruturas antropológicas profundas" (Zumthor, 1990: 13).
A "literatura" seria uma noção historicamente constituída nos três ou quatro últimos séculos da
civilização ocidental; já a "poesia" poderia ser entendida como "o que há de permanente no
fenômeno que, para nós, tomou a forma da 'literatura– (Ibidem: 49).

Sob tal ótica se podem considerar, no universo da comu-nicação verbal indígena, dois grandes
conjuntos de gêneros dis-cursivos que manifestam e geram sentidos e efeitos conjugada-mente
sociais e estéticos: as narrativas e os cantos, recobrindo o principal de sua arte verbal em prosa e
verso. Tanto uns como outras, e os cantos antes das narrativas, despertaram desde cedo o inte¬resse
de europeus aqui chegados, sem contudo merecer-lhes grande empenho de documentação e
pesquisa. Pouco foi o que se produziu a esse respeito nos tempos coloniais.

No período romântico, tal interesse foi reavivado pelo nacio¬nalismo atrelado às "origens" e pela
circulação literária de certo mito da poesia primitiva, configurado na obra de pensadores e escritores
como J.-J. Rousseau (Ensaio sobre a origem das línguas) e

nas idealizações estilizadas da literatura indianista. Já então começava a encorpar-se a


documentação escrita do repertório de narrativas tradicionais indígenas do Brasil, do qual parte
consi-derável foi anotada nos séculos XIX e XX por sertanistas, etnógrafos etc. Porém, esse registro,
além de padecer de todas as perdas de elementos significativos implicadas por qualquer
transposição do medium vocal ao escrito, foi durante muito tempo, tal como a documentação
folclórica em geral, comprometido pela impossi¬bilidade, antes dos meios de gravação mecânica do
som, de repro¬duzir fielmente a plenitude dos fatos narrativos, quanto aos aspectos de sua
realização vocal e gestual, mas também quanto à integridade de sua matéria propriamente
lingüística. À deficiência técnica acrescentava-se a negligência e/ou insensibilidade dos coletores face
às particularidades expressivas e estéticas desses discursos. O que se retinha da comunicação
narrativa, assim, eram apenas as linhas principais dos enredos, de modo abreviado e grosseiro, que
não contemplava os meandros, demoras e sutilezas da arte in-dígena de narrar.

Mais recentemente, alguns aspectos estéticos dos discursos narrativos indígenas começam a tornar-
se mais sensíveis para nós, seus distantes e ignorantes leitores, graças à possibilidade de gravá-los e
depois transcrevê-los em sua plenitude textual, e especial-mente graças à participação dos próprios
índios nesse processo. A arte da narrativa indígena conta na atualidade com novos tipos de registro,
nos quais se atenua, embora não desapareça, a atuação intermediária do homem branco: os
gravados da boca dos nar-radores tradicionais (geralmente os "velhos" da aldeia) e depois transcritos
para o papel, sempre em língua materna, geralmente por outros índios; os feitos diretamente por
escrito, em língua materna, por índios alfabetizados; traduções integrais, parciais ou sintetizadas dos
textos em língua original, realizadas por indígenas bilíngües; narrativas escritas diretamente em
português por índios bilíngües ou mesmo de nações que já perderam o uso do idioma ancestral, mas
conservam parte do acervo cultural da tradição. Exemplos desses repertórios encontram-se em
publicações como: Antes o mundo não existia: a mitologia heróica dos índios Desafia, de autoria

de Umúsin Panlõn Kumu e Tolamãn Kenhíri, com introdução de Berta Ribeirol Mantere Ma Kwé
Tinhin: histórias de maloca antiga-mente, de Pichuvy Cinta Larga (1988); Shenipabu Miyui (História
dos antigos), obra de narradores, escritores e ilustradores Kaxinawá publicada originalmente pela CP-
I/Ac (1995) e reeditada para o vestibular pela Editora UFMG (2000); coletâneas de narrativas
orga¬nizadas por Betty Mindlin, como Vozes da origem: estórias sem escrita (1996), Moqueca de
maridos: mitos eróticos (1997), Terra grávida (1999) etc. Boa parte dessas publicações têm suas
condições e objetivos de realização vinculados a projetos de educação escolar diferenciada de ONGs
como a Comissão Pró-Índio do Acre e o Ins¬tituto de Antropologia e Meio Ambiente (lamá) de
Rondônia, ou li¬gados a instituições religiosas como o Conselho Indigenista Mis¬sionário (Cimi).

Note-se que esse material narrativo recentemente dispo-nibilizado não recebeu ainda a devida
atenção de pesquisadores da área literária. Mas, agora, devo também deixá-lo de lado, pois minha
curiosidade está voltada para o outro repertório, ainda mais igno¬rado do que esse. O interesse
antropológico pela matéria mítica e, depois dele, as necessidades pedagógicas provocaram e
orientaram a documentação de relatos, histórias dos antepassados, lendas e mitos; mas a palavra
lírica das canções, embora idealizada no refinado português literário dos escritores indianistas,
permaneceu como uma floresta obscura e inexplorada. Trata-se, pois, de des¬bravar o vasto mundo
da poesia indígena brasileira, notadamente o modo como esta se materializou e materializa em toda
sorte de cantos — um repertório praticamente virgem de registro, tradução e análise.

Ao lado da nudez, da antropofagia e dos costumes guer-reiros, terá sido a aptidão para a expressão
poética — ou para o modo como ela costumeiramente se manifesta nas culturas ágrafas, isto é, o do
canto — uma das mais fortes impressões que os índios brasileiros causaram nos primeiros europeus
que os conheceram e descreveram. Ao lado da intensa visualidade que caracteriza as perspectivas
dos registros feitos por viajantes e missionários, ressoa neles surdamente, inefável, incompreensível,
intraduzível, a palavra

cantada da América selvagem. Suscita-lhes reações confusas e anta¬gônicas ora de curiosidade


enlevada, ora de repulsa escandalizada. Quase sempre se menciona a impossibilidade de
compreender o texto cantado. Fica de tudo apenas uma recordação de sensações confusas, numa
língua impossível em que se perdem os "cantos semibárbaros dos Piagas" imaginados e celebrados
por Gonçalves Dias. Assim se explica que, mais de 400 anos mais tarde, Câmara Cascudo não
estivesse errado em afirmar que a área de poesia foi aquela que registrou menor contribuição
indígena à cultura geral do Brasil (cf. Cascudo, 1984: 137). Esse segmento tão desconhecido de nossa
história poética constitui um território muito amplo e diversificado, onde é preciso mover-se sem
roteiros preconcebidos e prestando atenção em onde se põem os pés.

Primeiro cuidado: a poesia indígena não é um fato arqueo¬lógico — ela continua viva nas numerosas
línguas autóctones ainda faladas no Brasil. Manifesta-se de muitas maneiras e por muitas linguagens.
E, tal como costuma se dar nas culturas de tradição oral, formaliza-se principalmente, enquanto
energia metafórica da pala¬vra e feitio rítmico-vocal de verso, nos cantos. Vivos que estão na voz dos
cantores indígenas, estes representam uma poesia de antiqüíssima estirpe, que só recentemente
começou a se tornar acessível para nós. Alguma coisa de sua sonoridade já se encontra divulgada em
vinil ou CD documental, por exemplo: A arte vocal dos Suyá, realizado por A. Seeger (Museu
Nacional, Tacape, 1982); Cantos amazônicos em música popular do Norte, vol. IV (Marcus Pereira);
Xingu: cantos e ritmos (Philips/Phonogram); Nande Reko Arandu: memória viva guarani (Comunidade
Solidária); Wayãpi des Guianes: un visage sonore d'Amazonie (Col. Les Chants du Monde, Musée de
1'Homme, 1998); O canto das montanhas: 1° festival de dança e cultura indígena da Serra do Cipó
Krenak, Maxakali, Pataxó (Núcleo de Cultura Indígena, 1999); Homãpani Ashaninka (Fora do Eixo
Cooperativa de Cinema, 2000) etc.; ou em versão mais ou me¬nos estilizada, como a realizada por
Marlui Miranda com cantos de diferentes nações, no CD intitulado Ihu Todos os sons (Pau-Brasil,
1995), cujo material também foi divulgado em songbook (1996).

Já o acesso aos textos é mais complicado, defrontando-se com obstáculos que a tecnologia material
não basta para superar. O pouco que se tem de traduções foi empreendido de maneira
assis¬temática e visando a um conhecimento basicamente antropológico e/ou complementando
estudos etnomusicológicos. Como exemplos, podem apontar-se algumas pequenas peças recolhidas
por Couto de Magalhães em O selvagem (1 a edição em 1876); cantos Ariti ou Parici recolhidos e
traduzidos por Cândido Rondon e João Barbosa Faria em Esboço gramatical; vocabulário; lendas e
cânticos dos índios Ariti (Parici) (1948); alguns cantos cerimoniais Suyá em Os índios e nós, do
etnomusicólogo Anthony Seeger (1980); cantos xama¬nísticos Kadiwéu apresentados por Darcy
Ribeiro em Kadiwéu; ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza (1980); a edição brasileira
da coletânea organizada por Pierre Clastres A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios
Guarani (1990); um canto de pajé em Araweté; o povo do Ipixuna, de Eduardo Viveiros de Castro
(1992); A criação do mundo segundo os índios Ianomami, publicação portuguesa com organização,
prefácio, glossário e notas de Jorge Henrique Bastos (1994); algumas canções intercaladas nas
narra¬tivas suruí publicadas por Betty Mindlin em Vozes da origem (1996); cantos festivos Kuikúro
analisados por Bruna Franchetto no ensaio "Tolo Kuikúro: 'Diga cantando o que não pode ser dito
falando– (1997); trechos de cantos de cipó analisados por Cláudia N. de Matos em "A canção da
serpente: poesia dos índios kaxinawá" (1999) etc.

Em quadro de documentação tão escassa, destaca-se uma pequena coletânea de cantos tradicionais
kaxinawá, publicada em 1995 sob o título Nuku Mimawa (Nossa música). Os 39 textos que a
compõem foram gravados, transcritos e organizados para publi-cação — em idioma original
kaxinawá, segundo critérios orto-gráficos razoavelmente estabilizados — por alguns professores
bilín¬gües do projeto conduzido pela Comissão Pró-Índio do Acre. É interessante notar que a escrita,
bem como o toca-fitas, elementos integrantes do aparato de dominação cultural, tenham sido
justa¬mente o meio disponível para resistir a essa dominação, desen¬volvendo um trabalho cujo
sentido foi assumidamente o de revi¬talizar a tradição cultural nativa, preservando da degradação e
do

esquecimento um patrimônio cultural ameaçado pelas pressões culturais heterógenas no contato


com o mundo dos brancos. Joaquim Maná de Paula, principal organizador do trabalho, escreve na
Introdução:

Este livro de música kaxinawá foi um trabalho de alguns professores interessados em registrar sua
cultura no mo-mento em que a língua kaxinawá passou a ser dominada pela escrita. [...] Nosso
objetivo é que essas músicas façam parte da disciplina de línguas das escolas indígenas kaxi¬nawá,
onde os professores possam aprender e ensinar aos seus alunos. Não só aos alunos, mas todo o povo
da comu¬nidade envolvente. Para que eles possam se expressar, aprender e fortalecer a nossa língua
materna Hãtxa Kuin [língua verdadeira]. Em muitas comunidades kaxinawá, existem muitos velhos
que sabem mitos e muitas músicas. Mas, por má informação que os velhos sofrem, muitos de¬les
não gostam de ensinar para os outros, mesmo para os filhos e netos. Isso porque a sociedade branca
envolvente está muito forte nas sociedades indígenas. Em muitas co¬munidades indígenas, que
ficam próximas das cidades, já não praticam mais a sua cultura tradicional, preferem pra¬ticar a
cultura da sociedade branca: ouvir lambada, forró, dançando e usando alguns instrumentos, como
rádio, toca-fita, violão, pandeiro etc. Tudo isso é que deixa os velhos sem contato com os jovens. E
por não ter a infor¬mação prática da tradição cultural indígena, os jovens praticam a cultura da
sociedade branca.

A impressão das letras dos cantos visava, pois, em primeira instância suprir junto aos jovens
kaxinawá a falta de "informação prática da tradição cultural indígena". É importante notar que esse
objetivo tem sido alcançado, sendo o livrinho de cantos freqüen¬temente utilizado nas escolas das
aldeias. Ao mesmo tempo, porém, criaram-se ali as bases para abrir uma via de acesso à cultura Kaxi
por parte de outros grupos indígenas e dos próprios brancos. Para
completar essa conexão, faltava traduzir os textos, a exemplo do que já se fizera, ainda que de modo
deficiente, com muitas narrativas. Isso criou a oportunidade e despertou em mim o desejo e a idéia,
à primeira vista meio utópicos, de traduzir para o português os versos do Nuku Mimawa.

Minha curiosidade sobre aquela poesia era sem dúvida estimulada pelas inúmeras idealizações
estilizadas e muitas vezes esteticamente bem-sucedidas que a poeticidade indígena mereceu de
alguns bons escritores dos nossos (José de Alencar, Gonçalves Dias, Mário de Andrade); como
também por uma mítica da lin¬guagem poética que freqüentemente nos remete para a magia de
primitivas canções inspiradas por um gênio compartilhadamente divino e humano. Mas é importante
frisar que, tal como o registro de canções em língua materna pelos próprios kaxinawá sob o
patrocínio da CP-I/Ac, o projeto de traduzi-las era suscitado e via¬bilizado pela participação num
experimento pedagógico de caráter multilingüístico e multicultural que envolvia, além de brancos e
índios kaxinawá,2 várias outras línguas e nações indígenas. Sendo o português a língua comum a
todos, providenciar uma versão em português dos cantos significava antes de mais nada torná-los
com¬preensíveis para os outros grupos étnicos integrantes do projeto, ampliando o espaço de
intercâmbio cultural entre eles e possi¬velmente estimulando-os a também registrarem seus
próprios can¬cioneiros.

O organizador kaxinawá do livro de cantos, Joaquim Maná, que viria a ser meu principal parceiro na
tradução dos textos, ponderou certa vez numa conversa que travamos sobre o trabalho: "Essa
tradução... pelo que eu saiba, nunca foi traduzida uma música indígena."3 Apesar de não
corresponder totalmente à realidade, sua observação manifesta bem a dificuldade que cercava a
empresa, dificuldade percebida e experimentada pelos próprios falantes nati¬vos. Um índio bilíngüe,
falante de português, é capaz de contar nesta segunda língua as histórias de seus ancestrais, ou de
traduzir o registro de uma narrativa feita por outrem em língua materna — ainda que na tradução e
na segunda língua se perca uma parte considerável das práticas, formas e efeitos discursivos
originais. No

entanto, ele dificilmente será capaz de traduzir de maneira eficaz o texto de uma canção; em geral,
oferecerá dele apenas uma pará¬frase ou explicação redutora.

A língua das canções é ao mesmo tempo circunscrita e plena. As narrativas podem eventualmente já
apresentar alguns termos ligados à cultura ou ao idioma do branco. Não os cantos, que, conservados
mais rigorosamente em sua forma tradicional, consti¬tuem uma espécie de viveiro e cartilha da
língua materna em estado puro. A isso se refere Joaquim Maná, quando diz: "Pra você saber que está
falando bem sua língua, você tem de aprender várias letras." Essa mesma pureza lingüística seria
correlata a certo grau de intraduzibilidade: "Quando você canta, não entra uma palavra em
português. Nas traduções a gente vê que tem umas palavras que não dá pra traduzir."

Realmente, o traslado envolve barreiras de toda sorte, ofere¬cendo diversos e numerosos


problemas. Passo a considerar os que me parecem os mais importantes e generalizados,4 entre os
que tive de confrontar enquanto representante, no processo de tradução dos cantos, do universo
cultural e discursivo vinculado à língua-alvo; en¬quanto branca, letrada, falante de português e
profissional do cam¬po literário.

1 - Como já mencionei no início deste artigo, a tradução de poesia indígena no Brasil ainda está por
fazer. Ainda não dispomos de um verdadeiro acervo poético ao alcance de nossa compreensão. A
falta de documentação em quantidade apreciável e a freqüente negligência em dar conta, na
tradução, da dimensão estética dos textos originais, produzem um repertório exíguo e de
representa¬tividade escassa, de modo que o candidato a tradutor carece de um universo de
referências intertextuais, parâmetros que possam bali¬zar sua perspectiva sobre os casos singulares
que aborda.

2 - O quase vácuo intertextual se agrava pelo aspecto la-cunar e/ou rarefeito da perspectiva
contextual em que percebemos a obra, ou pelo menos o seu elemento textual. A enorme distância e
diferença entre nossa cultura e a indígena compromete nossa capacidade de apreender a dimensão
semântica ampla dos textos.

Isso gera a necessidade de pesquisa para contextualização etno-gráfica, tópico que recebeu muita
atenção de etnólogos, mas não se conjugou, no mais das vezes, com a disposição e/ou competência
para dar recepção e tratamento estéticos ao material.

A carência de universos intertextuais e contextuais ao al¬cance de nosso conhecimento responde


pela amplitude confu-samente polissêmica que a mensagem em língua original apresenta, e pela
dificuldade de transmiti-la sem submetê-la a uma expansão explicadora que poderia acabar por
comprometer seu potencial de efeito estético.

3 - A longa história de agressão, expoliação e destruição cultural perpetradas pelos brancos contra os
índios gerou um relacionamento atravessado de desconfiança, conflitos efetivos e potenciais. Grande
parte do repertório de cantos está vinculada a funções rituais, ao plano do sagrado, e é fundamental
na confi¬guração de uma identidade sócio-espiritual construída na intimi¬dade comunitária. Não
faltam aos índios bons motivos para recear que o desvelamento lingüístico dos cantos seja mais uma
porta aberta à devassa, banalização e dispersão dessa identidade; e tal receio pode comprometer
sua disposição para colaborar ou mesmo consentir na tradução. Essa é uma questão muito delicada,
que não pode em nenhum momento ser minimizada, e precisa ser subme¬tida a uma discussão
franca e respeitosa entre as partes envolvidas.

4 - Falta de repertórios referenciais, desconhecimento do contexto, desconfianças históricas, enfim,


ignorância lingüística propriamente dita. Esta se manifesta em termos quantitativos e qua-litativos.
Por um lado, das 1.300 línguas que, se supõe, existiam no território brasileiro à época dos primeiros
contatos de europeus com ameríndios, cerca de 180 ainda hoje são faladas, a maioria já objeto de
codificação gráfica. Mesmo uma pletora de etnolingüistas competentes e empenhados não basta
para dar conta da extensão do campo a cultivar. Cada uma dessas línguas tem a sua literatura
constituída e conservada na tradição oral. Não há especialistas disponíveis em todas essas línguas, e
dos que há poucos dominam as questões específicas da elocução poética. Por outro lado, mesmo

com idiomas já bem conhecidos — como é o caso do Kaxinawá, que já Capistrano de Abreu estudava
quase cem anos atrás5 —, o tra-dutor deve enfrentar a extrema diferença de estruturas lingüísticas;
por exemplo, o caráter aglutinante do léxico kaxinawá.

5 - À transferência lingüística vem sobrepor-se outro deslocamento, referente ao medium do texto:


este é extirpado de sua realização vocal e reduzido à forma escrita, estática e muda. Per¬dem-se de
saída a dinâmica e expressão rítmico-melódicas da mú¬sica. E, de modo crucial e em boa parte
incontornável, perde-se a voz do índio, e mais, toda a sua materialidade corporal, sua pró¬pria vida
explícita e presente. Pois, como já sublinhou bem Paul Zumthor, essa mobilização corporal, voz e
ouvido, gesto e visão, é um fundamento indescartável da poesia cantada e de seu efeito no receptor.
Com o apagamento da performance, é todo o núcleo vital da forma, mesmo da forma poética, que se
esvai, pois essa forma é exata e especificamente gerada e contida na própria performance. Daí
resulta um dilema em boa parte insolúvel que desde sempre acompanhou os registros das tradições
poéticas orais/vocais.

A diferença radical de estruturas lingüísticas e o empo-brecimento causado pela transposição do


medium vocal para o es¬crito também se verificam em outros casos de registro e tradução,
referentes sobretudo a antigas formas poéticas veiculadas pelo canto, abarcando, por exemplo, a
tragédia grega e grande parte da literatura medieval, acervos que todavia estão na base da formação
do universo literário ocidental. Mas no caso da poesia indígena o salto é muito maior, pois o texto é
retirado de um universo de ora¬lidade primária — nos termos de Paul Zumthor, um tipo de cultura
oral que se formou à distância de qualquer contato com a escrita.

6 - Enfim e em suma, trata-se de tradução de poesia: lin¬guagem poética em verso, marcada de rigor
e sistematicidade formais. Um tipo de estruturação discursiva diferencial que, embora apresentando
caracteres análogos em múltiplos idiomas e culturas (como a ocorrência de reiterações, paralelismos
e linguagem meta¬fórica), coloca inúmeras dificuldades complicadoras da representa¬ção
estritamente semântica: reprodução dos ritmos, expressividades

sonoras, associações metafóricas, rupturas sintáticas e desvios do padrão comunicacional. No caso


das textualidades indígenas, acrescentam-se peculiaridades relativas à significação e função desses
cantos, freqüentemente carregados de sentido ritual, jogando com simbolismos complexos,
exprimindo-se numa língua "antiga", elítica e estilizada, que aos próprios índios apresenta zonas de
obscuridade — não só quanto à interpretação dos sentidos, mas até na compreensão de alguns
termos, desusados ou pertencentes a repertórios especiais, que se encontram nessas canções de
longa tradição. Meus parceiros kaxinawá, na tradução dos cantos, defron-taram-se várias vezes com
dúvidas e desconhecimentos desse tipo. Darcy Ribeiro, que trabalhou em conjunto com um índio
Kadiwéu, observa sobre os textos que apresenta: "Estas versões dos cantos xamanísticos nos
merecem algumas reservas; sua transcrição e tradução foi feita com ajuda do 'capitão' Laureano que,
não sendo xamã, desconhecia certas particularidades do vocabulário usado nos cantos" (Ribeiro,
1980: 253).

Os problemas acima apontados têm peso desigual nas expe-riências de tradução de textualidades
poéticas indígenas, em proporções que também variam segundo o texto a traduzir. Ítalo Moriconi
caracterizou a tradução de poesia como "uma economia de perdas e ganhos" (Moriconi, 1996: 162).
De fato, a maioria das questões que levantei se apresenta, em outras medidas, em qualquer
tradução de poesia, e diferem muito os graus de possi-bilidade que temos de enfrentá-las com
relativo êxito; os resultados dependem não somente da competência do tradutor, mas em boa parte
das escolhas feitas por ele.

A tarefa do tradutor tem sido basicamente pensada e levada a cabo no âmbito da palavra escrita.
Mas a poesia é uma forma de linguagem que, mesmo quando se inscreve no papel e nele jaz,
encerrada nas páginas dos livros, conserva uma vocação ou reminiscência que dirige nosso espírito
para o mundo da canção. Ao oferecer-se à leitura a letra de uma canção, uma parte enorme de sua
fórça anímica é suprimida; também a poesia, mesmo a ori¬ginalmente escrita, quando traduzida
perde muito de sua alma, ao desprender-se do corpo sonoro do idioma original.

Como assegurar a manutenção ou recriação do efeito estético? Esse objetivo não deve ser perdido
de vista na tradução dos cantos, nos quais se procura, em larga e profunda medida, um reencontro
com o eterno frescor da linguagem poética. O im-portante pesquisador e tradutor de poesia indígena
norte-americana Jerome Rothenberg declarava que o interesse de seu trabalho era the [general]
exploration [of] the idea of poetry ["a exploração (geral) (da) idéia de poesia"] a fim de ultrapassar
the inherited view — no longer bearable [...] that one such idea of poetry, as developed in the West,
was sufficient for the total telling ["a visão herdada — não mais sus¬tentável — (...) de que uma certa
idéia de poesia, tal como desen¬volvida no Ocidente, era suficiente para o dizer total"]. (Rothenberg
apud E. Timm, in Mendoza, 1993: x).

Uma outra ordem de questões é de caráter mais histórico e diz respeito às relações e distâncias entre
os índios "primitivos" e os brancos "civilizados". Elas geram problemas específicos, como os
apontados nos itens 1 a 4. Aqui já se trata de demandas etnográficas e mesmo políticas, as quais
também se apresentam na tradução de outros textos de culturas e línguas muito apartadas, por
exemplo, do antigo japonês para o francês moderno. Porém, na versão de cantos indígenas para o
português do Brasil, cria-se uma situação ainda mais complexa, pois à qualidade radicalmente
estranha ou estran¬geira dessa cultura a nossos olhos, por exemplo, soma-se a vontade ou
sentimento, por parte dos brancos, de reconstruir uns laços de antiga e preciosa família no berço da
nacionalidade, esta "comu¬nidade imaginária" como a cunhou Benedict Anderson.

Observe-se que todas as dúvidas e caminhos colocados na construção do texto traduzido tinham
como referência e horizonte principal suas instâncias de recepção, tanto a que poderiam ter por
parte de possíveis futuros leitores como a que estavam suscitando na tradutora branca novata e nos
próprios índios que colaboravam com ela, eles mesmos sujeitos a desconhecerem e (re)descobrirem
algumas facetas dessa eternamente misteriosa linguagem poética.

Enfim, seria também possível organizar o conjunto de pro¬blemas da tradução em duas categorias: a
primeira concerne mais

diretamente ao campo propriamente lingüístico, e particularmente à linguagem poética, envolvendo


questões formais e estéticas e recolocando a noção de poesia enquanto exploração de estranha-
mentos e operações de uma techné do código; a segunda, embora estreitamente vinculada com a
primeira, tem sua ênfase deslocada para a diferença cultural entre as comunidades envolvidas,
bus¬cando promover uma praxis de aproximação entre elas e possi¬bilitar a socialização e o
compartilhamento de sentidos.

Problemas como esses colocam-se com maior ou menor intensidade em qualquer tradução de
poesia. Para se ter uma idéia de como eles têm sido experimentados e confrontados entre nós, vale a
pena considerar as propostas das duas principais vertentes da moderna tradução de poesia no Brasil,
conforme foram carac¬terizadas por Ítalo Moriconi.

Segundo o autor, a primeira vertente é representada pelo trabalho do grupo concretista: nos anos
50, associando cosmo-politismo e vanguardismo em prol de uma renovação da linguagem poética
brasileira, Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari etc. buscam em autores estrangeiros
"modelos de linguagem alter¬nativos aos postos em prática pelos poetas da geração modernista"
(Moriconi, 1996: 154), cuja pesquisa estética teria ao contrário passado preferencialmente por uma
"ampla escuta dos falares brasileiros" (Ibidem: 156).

Assinalando o momento em que se consuma e esgota o péri¬plo modernista, o movimento


concretista afirmou sua divergência em relação à geração de 45; e "o ato paradigmático dessa
estratégia de ruptura foi a tradução" (Ibidem: 155). Buscava-se traduzir o dife¬rente, o menos
obviamente traduzível e, nesse empenho, os desafios eram meditados de modo a funcionar como
meio de renovação da sensibilidade e da inteligência poéticas. Assim, os jovens poetas-tradutores
começaram pelos Cantares, de Ezra Pound, autor que encetara ele próprio traduções exóticas. Para
traduzir os "nõs" japo¬neses, Pound serviu-se de uma versão intermediária realizada pelo orientalista
Fenollosa, numa experiência que Haroldo de Campos considerou "caso-paradigma [do qual] decorre
toda uma didática"

(Campos, 1961: 23). Os concretistas inspiraram-se na teoria poundiana da tradução, unindo-a aos
princípios poéticos do forma¬lismo russo e radicalizando a "ênfase nas equivalências formais ou de
efeito em detrimento do ideal de transplantação dos conteúdos referenciais postos pelo texto de
origem (transposição literal)". (Moriconi, 1996: 156)

A segunda vertente considerada por Ítalo desenvolveu-se nas duas últimas décadas, quando se pôde
notar uma multiplicação de traduções de poesia no mercado brasileiro, ao mesmo passo que uma
"normalização dos circuitos culturais" caracterizada pelo "des¬prestígio das ideologias e práticas de
tipo transgressivo ou van¬guardista, em favor de uma nova preocupação com o caráter fun¬cional e
pedagógico (numa palavra: pragmático) das manifestações artísticas" (Ibidem: 157). Buscando
modelos de linguagem mais pró¬ximos do cânon modernista, a tradução de poesia revalorizou o
caráter informativo e de divulgação ampla dos autores, visando a um público maior e mais
diversificado.

Que lições tirar disso tudo? E que caminho tomar na tradu¬ção de cantos Kaxinawá? Por um lado,
pode-se reter da segunda proposta a relevância de divulgar os cantos para um público não
especializado, que inclui em primeiro plano os outros grupos indí¬genas. Por outro, o fascínio que
esses cantos provocam no recep¬tor/tradutor branco, ali confrontado ele próprio com uma
expe¬riência de estranhamento radical, mais do que qualquer vanguarda ocidental poderia oferecer,
imediatamente recoloca as questões mobilizadas pela vertente concretista de tradução. O princípio
de transcriação por ela operado parece particularmente adequado para enfrentar a diversidade de
configuração simbólica entre sistemas discursivos separados pela profunda heterogeneidade de suas
estru¬turas lingüísticas e/ou dos contextos referenciais de suas mensa¬gens. Tais casos, entre os
quais se situa a tradução de poesia indí¬gena, requerem do tradutor uma postura mais ativa, que
precisa ser alimentada por uma recepção também ativa, mobilizada por uma relação estreita com o
texto, que é então tratado como coisa viva — e ao qual se é impelido a oferecer, mais do que um
espelho, uma verdadeira resposta.

Veremos adiante como Mendoza enfatiza a instância recep¬tora na sua reflexão sobre a tradução de
poesia indígena norte-americana. E podemos considerar que semelhante perspectiva esteja
subjacente — embora o autor faça um encaminhamento diferente de proposições — na asserção de
Antonio Risério sobre sua tradução de orikis nagôs: "Ocorre que o que está em jogo não é igualar o
original, e sim responder ao seu desafio, numa partida de som-sentido. Diante do original, é preciso
fazer o máximo para empobrecer o mínimo." (Risério, 1996: 88)

Este autor opta, pois, pela primazia do efeito poético como objetivo da tradução, em detrimento da
transferência conteudística, declarando seu alinhamento com as inspirações dos Campos: "A
tradução poética tem que ser, ela mesma, um artesanato — e um artesanato que tente responder
diagramaticamente à configuração sígnica do objeto original" (Ibidem: 87).

Enfim, como para os primeiros modernistas, trata-se mais uma vez de redescobrir outros antigos e
novos brasis. Nesse pro¬cesso a linguagem poética é chamada a cumprir uma dupla função:
estranhamento e reconhecimento, desvio das rotas conhecidas e mapa da mina, vertigem das
distâncias e vislumbre de obscuras intimidades.

Finalmente, um obstáculo suplementar, e aparentemente o mais grave de todos, veio sobrepor-se


aos outros e acabou apon¬tando grande parte das soluções e caminhos a tomar. É simples: eu não
sei falar kaxinawá, nem língua indígena nenhuma. Para encetar um diálogo com a poesia Kaxi, eu
precisava antes de mais nada da ajuda de um intérprete, um mediador, alguém que conhecesse
muito bem o Hãtxa Kuin e fosse também bom falante de português. Quem havia de vir em meu
auxílio? Um etnolingüista? Tal contri¬buição não seria de desprezar, porém, havia, mais perto de
mim, parceiros mais eficazes e atraentes: os próprios índios kaxinawá.

Não é incomum que antropólogos e outros estudiosos con¬tem com a ajuda de falantes nativos
bilíngües para traduzir tex¬tualidades indígenas, mesmo quando possuem noções do idioma em
questão. Foi o caso de Capistrano de Abreu com as narrativas

kaxinawá, também o de Darcy Ribeiro com os Kadiwéu, de Berta Mindlin com os Suruí. Também
tradutores literários, às voltas com textos em idiomas pouco familiares, precisaram recorrer a
inter¬mediários. Foi o caso de Pound com os ideogramas japoneses e, a seu exemplo, o de Haroldo
de Campos, que se apoiou em versões espanhola e alemã para traduzir o russo Maiakóvski. Mas o
meu caso apresentava certas singularidades, a começar pelo desconhe¬cimento total do idioma-
fonte. À diferença dos antropólogos, eu visava fins basicamente estéticos. Ao contrário dos
tradutores lite¬rários, que costumam recorrer a versões já realizadas por outros tradutores, meus
intermediários não eram textos no papel nem profissionais das Letras, e sim indivíduos presentes e
falantes co¬muns. E, sobretudo, o que eu queria fazer não era simplesmente contar com a ajuda
informativa dos índios bilíngües, mas efetuar realmente um trabalho a quatro mãos, encetar uma
verdadeira parceria. Conjugavam-se ali atitudes e objetivos diversos, que en¬volviam o campo
etnográfico, político e pedagógico, mas resolviam-se globalmente em termos de uma experiência
estética que eu dese¬java vivenciar e compartilhar.

O acerto da mistura ficou de repente muito claro para mim: embora sem descartar que outros
métodos de trabalho possam também render bons frutos, a tradução de cancioneiro indígena no
Brasil, para se tornar uma prática significativa e conseqüente, era mesmo, acima de tudo, para ser
feita a quatro mãos: um falante indígena bilíngüe, com suficiente grau de competência nas duas
línguas e também provido de compreensão viva e profunda da cultura que se expressa naqueles
textos; e um falante de português, habituado à leitura e à escrita, conhecedor das sutilezas do
idioma-alvo e bem versado no trato com linguagens poéticas.

A ênfase na situação concreta da tradução — que, embora destinada a resultar num texto escrito,
era realizada mediante uma atividade basicamente oral — serve para distinguir minhas questões
prioritárias e opções de solução das colocadas por Kenneth Mendoza, autor de um dos raros textos
consagrados à discussão dos problemas específicos da tradução de poesia ameríndia. Com

referência ao cancioneiro de índios norte-americanos, ele considera que o principal desafio da


empresa de tradução está menos na transposição propriamente lingüística de um idioma para outro
(no caso, o inglês) do que em dar conta, mediante um texto escrito e destinado à leitura, dos
complexos efeitos estéticos logrados por uma poesia vocal, musicalizada e sobretudo construída num
amálgama expressivo que inclui a linguagem corporal, os gestos; enfim, a dificuldade de recriar no
texto escrito algo da imagem concreta, do apelo direto à reação do receptor que se encontra na
performance poética do "homem oral". Podem-se anotar no papel as palavras e mesmo a música,
enquanto melodia e ritmo. Mas como fazer ver os movimentos do corpo que dança, como fazer ouvir
a voz que canta?

Mendoza concentra-se na sinergia que a seu ver caracteriza a relação original entre artista/cantor e
público: tal laço interativo faria da poesia oral, mais que fato literário, um verdadeiro evento, um
"ato de vida" (Mendoza, 1993: 20). Para o autor, a chave do dile¬ma tradutório está, pois, na
recepção, sendo preciso oferecer ao leitor uma solicitação e um estímulo para que ele reaja ativa e
criativamente à obra. Nisso principalmente baseia-se sua crítica às versões que, procurando adequar
o discurso aos hábitos de com¬preensão lógica e "literária" do leitor ocidental, "preenchem" as
elipses semânticas do texto-fonte, explicitam os nexos sintáticos, eliminam redundâncias e
reiterações, enfim, imprimem ao texto um direcionamento lógico que exime o leitor de
envolvimento ativo na produção de sentido, suprimindo o estranhamento e o efeito perfor¬mático,
poético-cerimonial. Ao contrário, Mendoza prefere uma transposição mais literal do idioma indígena
para o inglês, uma tradução more concrete and effective in lexical aspects" (Ibidem: 60) ["mais
concreta e eficiente em aspectos léxicos"] cuidadosa na retaining the structure and compositional
components of the original poem (Ibidem: 63) ["retenção da estrutura e dos componentes
composicionais do poema original"]. Entre esses elementos estruturais, destacam-se as diversas
formas de repetição — a useful device for integrating words and thoughts into one rythmic whole
that [...] unifies larger units of perception (Ibidem: 64) ["um recurso útil

para a integração de palavras e pensamentos em um todo rítmico que (...) unifica unidades maiores
de percepção"] —, de cujos prin¬cípios e efeitos poéticos Mendoza oferece uma análise sensível.

Com tais procedimentos, o autor visa sobretudo induzir a uma leitura do texto em conformidade com
o seu caráter ori-ginalmente performático, solicitando do receptor uma postura mais de participante
que de espectador. Para apoiar e ilustrar sua pro¬posta, o autor recorre não à etnografia, mas às
propostas mais eru¬ditas da literatura anglo-americana contemporânea, no terreno da crítica — os
"fenomenologistas" como R. Ingarden, que discutiram o processo de leitura — e no da criação — os
modernistas ame¬ricanos que praticaram uma poesia "concreta". Estes últimos se caracterizaram
entre outras coisas por explorar as possibilidades visuais da poesia grafada, ao mesmo tempo que
rompiam com a sintaxe, com a norma gramatical e até com as convenções orto¬gráficas, criando
uma poesia de sentido fragmentado e incompleto, que convida o leitor a uma atitude de descoberta
e invenção, ao invés de oferecer-lhe pronto um "sentido" na bandeja da língua inglesa.

Curiosamente, a proposta de Mendoza estabelece ligação e correspondências entre domínios de


expressão cultural que, à pri¬meira vista, pareceriam opostos: a poesia mais primitiva e a mais culta
e vanguardista, o "apelo ao som" (Ibidem: 23) e a construção visual do texto. Tal convergência de
fatores sensoriais pretende promover a experiência viva e complexa da imagem, projetada para a
percepção à maneira do que T. E. Hulmes chamou de "acorde visual" (cf. Ibidem: 62), numa vertente
da poesia moderna tributária das idéias de Mallarmé.

A proposta de Mendoza é interessante porque, sem trair o caráter discursivo singular da poesia
indígena, consegue acolhê-la no sistema literário contemporâneo do Ocidente. Tudo porém aí se
resolve pela atividade exclusiva da consciência branca. Salva-se a poesia: preservam-se efeitos de
estranhamento que, além de contribuírem para a consciência geral sobre a importância da
diversidade ecocultural, revitalizam e aprofundam nossa própria
experiência poética. Porém, permite-se que permaneçam em silên¬cio os seus autores, dispensados
de comparecer à confraternização das Letras.

De modo que o caminho tomado por mim, embora apre-sente muitos pontos de contato com os de
Mendoza e Risério, foi outro. Foi ficando claro que, na soma complexa das demandas a enfrentar, a
possibilidade de soluções passava menos pela escolha, aquisição e manipulação de pressupostos
estéticos e de um aparato técnico que pelo estabelecimento de determinadas atitudes, situa¬ções,
consórcios. Era preciso recuperar o contato cultural e hu¬mano com as fontes daquela poesia: a
cultura "primitiva", a situação de comunicação vocal. Enfim, era preciso contornar o conflito
his¬tórico e simbólico pelo estabelecimento de um diálogo cooperativo, o que inclusive se
coadunava melhor com a experiência pedagógica que nos havia aproximado, aquilo que ali nós — eu
e meu parceiro kaxinawá podíamos aprender.

A idéia de traduzir a quatro mãos era sedutora pelas pers¬pectivas que apresentava de uma
interação cultural imediatamente produtiva, uma experiência que necessariamente transbordava da
compartimentação da atividade acadêmica e impunha surpresas, perplexidades, desvios de rumo e
fascinantes extravios, ao mesmo tempo que ensejava contatos frutuosos e insuspeitadas afinidades.

Foi assim que, em 1996-1997, encetamos a tradução de alguns textos contidos em Nuku Mimawa.
Foi concluída a tradução de dúzia e meia de cantos, abrangendo as modalidades básicas pre¬sentes
na coletânea: cantos de cipó6 (Huni Meka), de festa ou mariri (Katxa) e de trabalho (atividades
agrícolas, pescaria).

Trabalhei em parceria com Joaquim Paula Maná e também com o professor kaxinawá Josimar Tuin;
este também realizou algumas traduções com Daniel Werneck Guimarães, que viria a defender uma
dissertação de mestrado sobre o assunto ("Do que se faz um caminho: tradução e leitura de cantos
kaxinawá"- UFF, 2002), sob minha orientação. Outros participantes kaxinawá do projeto da CP-I/Ac
também deram contribuições eventuais, como Anastácio Maia Bane, Isaías Sales Ibã e Noberto Sales
Tene.

A maioria do trabalho foi realizado nos intervalos das ativi¬dades dos cursos de formação em Rio
Branco. Tudo feito com vagar e minúcia, curiosidade e prazer, sem preocupação de atingir rapi-
damente um resultado quantitativamente importante, enfim, res peitando o que se costuma chamar
de "tempo de índio".

O processo de tradução compreendia diversas etapas. Via de regra, começava-se pela gravação em
fita do texto cantado pelo parceiro kaxinawá. Em seguida, a versão para o português desen¬rolava-se
em três fases.

Primeiro, traduzia-se todo o texto palavra por palavra. Na segunda passagem, o parceiro kaxinawá ia
explicando e inter¬pretando cada verso, procurando dar conta de forma mais ampla do conteúdo,
estendendo-se em detalhes e ambivalências semânticas, sem nenhuma preocupação com a
formalização final. Daí resultava nor-malmente um conjunto informalmente agrupado de matéria
verbal muitíssimo mais extenso do que o texto original. Enquanto isso, eu ia anotando tudo, fazendo
perguntas sobre o sentido ou esmiuçando as estruturas lingüísticas, incentivando o
aprofunda¬mento da interpretação oferecida pelo parceiro.

Na terceira etapa, eu procurava compactar a expressão poé¬tica em formato sintético e elítico, de


maneira a recuperar, verso a verso, o feitio rítmico da redondilha maior, metro em que se
apre¬sentava praticamente a totalidade dos versos em Hãtxa Kuin, e que conservamos em
português. Nesse processo, tratava de manter-me o mais próximo possível do esquema morfo-lexical
do texto-fonte — como aconselha Mendoza —, apegada à configuração sígnica do original — como
propõe Risério. Discutindo cada passo com o tra¬dutor kaxinawá, tratava também de controlar e
reproduzir as pro-porções do universo vocabular, respeitar a ocorrência de reiterações etc. Sugeria
formatos e imagens, ajustava o ritmo e o jogo de sono¬ridades em português, oferecia opções de
tradução que eram ava¬liadas pelo parceiro.

O produto final organizado por mim com base em todos os dados e discussões era verificado e
aprovado ou aperfeiçoado pelo tradutor kaxinawá e, mais tarde, submetido também à leitura

avaliativa por parte de outros professores indígenas. A reação geral era de concordância, alegria e
certa surpresa. Um dos mais entu¬siasmados com os resultados do trabalho foi o tradutor Josimar
Tuin, que confessou que até então acreditara ser impossível a tra¬dução de tais cantos.

De modo geral, o registro lingüístico utilizado no texto-alvo foi o que se poderia chamar de
"português de índio", acessível ao público indígena de outras nações e com forte incidência de traços
regionais, fala popular acreana. Considerou-se secundária a neces¬sidade de clareza ou completude
do sentido, mesmo porque, como já ficou exposto, tratava-se de transpor uma linguagem estilizada
mesmo em relação à linguagem de comunicação indígena, na qual ocorrem termos desconhecidos
ou mal conhecidos, identificados pelos índios tradutores como arcaicos ou característicos de outros
grupos da nação Kaxi.

Finalmente, a fidelidade da transposição conteudística fi¬cava em segundo plano, face ao cuidado de


preservar ou recriar a magia da experiência poética. Essa postura permitia e suscitava gestos e
movimentos discursivos inusuais na tarefa tradutória, porém certamente familiares à atividade
criativa que desbrava o universo da linguagem humana: traduzir sem realmente "compre¬ender";
botar em cena o enigmático; "balbuciar" o texto, usando o português com os cuidados e
atrevimentos de quem aprende uma língua estrangeira.

Resta lembrar que tudo isso é apenas um começo, uma ten¬tativa incipiente entre as poucas outras
já encetadas na tradução de poesia indígena brasileira. No entanto, é preciso não tomá-las como
gestos gratuitos ou aleatórios em direção a um impossível e eterno retorno. Acredito que
experiências como esta possam e devam ensejar o assentamento de pressupostos teóricos e a
elaboração de métodos mais conseqüentes para avançar nesse caminho de mútua redescoberta.
Numerosos e densos são os materiais e problemas a explorar nesse terreno. Não ignorando a valia
do trabalho que enfatiza questões antropológicas ou lingüísticas, é todavia impe¬rioso e urgente que
a ótica literária ajude a conferir à tradução da

poesia indígena toda a relevância de sua dimensão propriamente estética.

Enfim, como ilustração do que pudemos aprender e fazer nesta parceria, apresento a seguir as
versões em português de dois Huni Meka (cantos de cipó) e dois Katxa (cantos de festa e/ou
trabalho) Kaxinawá, ao lado das letras no original Hãtxa Kuin. O segundo Huni Meka foi traduzido por
Daniel W. Guimarães e Josimar Tuin. Os outros textos, por mim e Joaquim Maná.

1. Huni Meka

E Ixã kapin kapin, e Ixã Kapin

Pae yabi Munui Munu ina kirãwe E bake yumetã Xinã nuitapaya
Xinã kayawa manu,

Haira haira, haira haira,e, e, e, e, e, e, e, e...

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e...

E Ixã kapin kapin, e Ixã Kapin

Pae yabi munui Munu ina kirãwe E bake yumetã Xinã nuitapaya Xinã kayawa manu Xinã kã i kirãwe

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e...

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e...

Uke nai yukea, Uke nai yukea, Yube isku nawã Yube isku nawã

Yube shubu merabi Nenu bima tsaushu Nawa huni yuã ki Pae yuã shunume,

Pae shaba tanime

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e.. Uke nai
yukea,

Uke nai yukea,

Yube isku nawã

Yube isku nawã

Yube shubu merabi

Nenu bima tsaushu

Nawa huni yuã ki

Yube yuã shunume,

Pae buakaya

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e.. Karu pesha
beneme

Karu pesha beneme,

Habu sã kã dakanu

Pae sã kã dakanu

Sã kã daka baini

Pae buakaya

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Uke nai
yukea

Nai uka daniri

Maya katã katã ki


Mi pae pã tea

Pae shaba tanime

Pae bua kaya

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Tete pei
tereni

Tereana paeme

Ha pae dibime

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Pae tereni

Tereana paeme

Ha pae dibime

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Uke nai
yukea

Uke nai yukea

Nai shete hewã ne

Nai shete yuxibu

Pera beke kawã ki

Mi pae atxima

Pae atxima nike

Pae buakaya

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Uke nai
yukea

Nai shete hewã ne

Pera beke kawã ki

Mi pae pã tea,

Pae shaba tanime

Pae buakaya

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Uke nai
yukea

Awa hena hewã ne

Nã ke maya mayaki

Mi pae pã tea

Pae buakaya
Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Uke manã
betsanu

Uke manã betsanu

Awe daki ikima

Bene yura putxini

Pae buakaya

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e...

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e...

Huni Meka

Anda, anda, meu Ixã

Dança na onda da força?

Dançando venha subindo

Venha crescendo, meu filho

Pobre idéia embaralhada

Vou endireitando a idéia

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Anda, anda,
meu Ixã

Dança na onda da força

Dançando venha subindo

Venha crescendo, meu filho

Pobre idéia embaralhada

Vou endireitando a idéia

Idéia nasce e já vem

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Lá em cima,
lá no céu

Lá em cima, lá no céu

Jibóia e povo Japó

Jibóia e povo Japó

A Jibóia na tocaia

Espera longe daqui

Eles estão fofocando


Fofocando para a força

Força que vai clareando

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Lá em cima,
lá no céu

Lá em cima, lá no céu

Jibóia e povo Japó

Jibóia e povo Japó

A Jibóia na tocaia

Espera longe daqui

Eles estão fofocando

Fofocando pra Jibóia

Dentro da força fechada

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... A lenha há
pouco partida

A lenha há pouco partida

Vai fazendo colorir

A força vai colorindo

Vai a cor se derramando

Dentro da força fechada

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Lá em cima,
lá no céu

Graúna solta poeira

Sempre sempre poeirando

Você avança na força

Força que vai clareando

Dentro da força fechada

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... O gavião
dobra a pena

Dobra mesmo e mais a força

Toda força que ele tem

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Dobrando
dobrando a força
Dobra mesmo e mais a força

Toda força que ele tem

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Lá em cima,
lá no céu

Lá em cima, lá no céu

Urubu do céu baixinho

Urubu céu encantado

Sob as asas envergadas

Você vai cobrindo a força

A força sempre cobrindo

Dentro da força fechada

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Lá em cima,
lá no céu

Borboletona baixinha

Deixando rastro de azul

Você avança na força

Força que vai clareando

Dentro da força fechada

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Lá em cima,
lá no céu

Borboletona baixinha

Azul na minha visão

Você avança na força

Dentro da força fechada

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e... Ao longe
outra terra firme

Ao longe outra terra firme

Ela segue comandando

No meio do corpo macho

Dentro da força fechada

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e...

Haira haira, haira haira, e, e, e, e, e, e, e, e...


2. Huni Meka

Nuku nawa tereni, e, kiri kiri, Nawa tubi sheani, e, kiri kiri, Shea nibu paerã, e, kiri kiri, Pae shea Mia,
e, kiri kiri,

Bari manã nabishu, e, kiri kiri, Baki buru makaxã e, kiri kiri, Pae naka xamei e, kiri kiri,

Baki buru natiri e, kiri kiri, Shea nibu paerã e, kiri kiri, Pae shea inia e, kiri kiri, Shea nibu paeni e, kiri
kiri, Pae tibi yuã ki e, kiri kiri,

Banu shuma deburã e, kiri kiri, Pae shuku namei e, kiri kiri, Shuma debu pukuma e, kiri kiri, Ha debua
peri e, kiri kiri, Shuma debua peri e, kiri kiri, Ha tame natxirã e, kiri kiri,

Pae natxi namei e, kiri kiri, Yube shubu naiski e, kiri kiri, Nai siã watana e, kiri kiri, Pae shea inia e, kiri
kiri,

Shea nibu paerã e, kiri kiri, E, nai dewerã e, kiri kiri, Nai dewe keneya e, kiri kiri,

Mia mane shuname e, kiri kiri, Nika ini birã we e, kiri kiri, Xinã besua ketã e, kiri kiri, Xinã kã i kirã we
e, kiri kiri...

Huni Meka

Antepassados presentes, pra mim, pra mim, Diferente dentro dançava, pra mim, pra mim, Dentro a
força bate forte, pra mim, pra mim, Suspende e voa a bebida, pra mim, pra mim, Do alto do céu puxa
o sol, pra mim, pra mim, Cupinzeiro no alto do toco, pra mim, pra mim, A força nos remoendo, pra
mim, pra mim, Fechei a volta no toco, pra mim, pra mim, Dentro a força bate forte, pra mim, pra
mim, Suspende e voa a bebida, pra mim, pra mim, Dentro a força bate viva, pra mim, pra mim,

A força corre as cantigas, pra mim, pra mim,

Na menina o seio aponta, pra mim, pra mim, Menina que desabrocha, pra mim, pra mim, Sonhei um
só: eu e o cipó, pra mim, pra mim, A força passando bem, pra mim, pra mim,

No fim passa a vibração, pra mim, pra mim, Ela estava bem por perto, pra mim, pra mim, Sonhou a
força por perto, pra mim, pra mim, A Jibóia da tocaia olha, pra mim, pra mim,

O arco-íris do céu descendo, pra mim, pra mim, A força que tomou subia, pra mim, pra mim, Dentro
a força bate forte, pra mim, pra mim,

Do céu vinham as cantigas, pra mim, pra mim, Do céu a voz desenhada, pra mim, pra mim, Pra mim
por dentro passar, pra mim, pra mim, Ouvia e subia assim, pra mim, pra mim, Pensamento dentro
voltava, pra mim, pra mim,

Pensamento vem chegando, pra mim, pra mim...

3. Katxa

Sheki hewã nã ibu namã hikitã

Ewã ika kã itã!

Sheki hewã tawei tawei Sheki hewã tawei tawei Sheki hewã yukirirã Sheki hewã yukirirã Neri eki
sheketã
Neri eki sheketã

Tama hewnã Ibu nama hikitã Ewã ika kã itã!

Neri eki sheketã

Neri eki sheketã

Sheki hewã yukirirã Sheki hewã yukirirã Sheki hewã tawei tawei Sheki hewã tawei tawei

Yubi newã nã ibu nama hikitã

Ewã ika kã itã! Neri eki sheketã Neri eki sheketã Mani hewã yukirirã

Mani hewã yukirirã Neri eki sheketã Neri eki sheketã

Atsa hewã nã ibu namã hikitã

Ewã ika kã itã! Neri eki sheketã Neri eki sheketã Atsa hewã tawei tawei

Atsa hewã tawei tawei

Mani hewã na ibu namã hikitã

Ewã ika kã itã!

He hehehehehehehehehehe

Katxa

Milho miúdo socou por debaixo do seu dono

A mãe fez ele nascer!

Milho miúdo tawei tawei Milho miúdo tawei tawei Despela o milho miúdo Despela o milho miúdo
Chegue pra perto de mim Chegue pra perto de mim

Mudubinzinho socou por debaixo do seu dono A mãe fez ele nascer!

Chegue pra perto de mim Chegue pra perto de mim Despela o milho miúdo Despela o milho miúdo
Milho miúdo tawei tawei Milho miúdo tawei tawei Taiobazinha socou por debaixo do seu dono

A mãe fez ela nascer!

Chegue pra perto de mim Chegue pra perto de mim Despela a bananazinha Despela a bananazinha
Chegue pra perto de mim Chegue pra perto de mim

Mandioquinha socou por debaixo do seu dono A mãe fez ela nascer!

Chegue pra perto de mim Chegue pra perto de mim Mandioquinha tawei tawei Mandioquinha tawei
tawei Bananazinha socou por debaixo do seu dono

A mãe fez ela nascer!

He hehehehehehehehehehe...

4. Katxa
Mais nawa berunã, e, benewa paini!

Mais nawa berunã, e, benewa paini!

Txere, txere txere txere! Txere, txere txere txere! E, txere bene, e, txere bene!

Txana paka pei bimi akiyuwe!

Txere, txere txere txere! Txere, txere txere txere! Txana paka pei bimi akiyuwe!

Mais nawa berunã, e, benewa paini!

Txere, txere txere txere! txere, txere txere txere! Hehehehehehe!

Katxa

Rapaz do povo formiga, bem queria me casar. Rapaz do povo formiga, bem queria me casar. Curica
curi curica! Curica curi curica!

Curica marido meu, curica marido meu, Vem beber água da flor da taboca japini. Curica curi curica!
Curica curi curica!

Vem beber água da flor da taboca japini. Rapaz do povo formiga, bem queria me casar. Curica curi
curica! Curica curi curica!

NOTAS

i Berta escreve na Introdução: "Na história da antropologia brasileira, esta é a primeira vez que
protagonistas indígenas escrevem e assinam sua mitologia. [...] Em primeiro lugar, isto confere
autenticidade incontestável ao conteúdo e forma narrativa, como expressão de fé e construção
literária. Em segundo lugar, documenta o resultado da simbiose entre o conservantismo cultural e o
uso de instrumento adquirido de nossa civilização para exprimi-lo: a linguagem escrita." (Kumu;
Kenhíri, 1980: 90)

2 Os Kaxinawá constituem o grupo mais numeroso de professores en¬volvidos no projeto da CP-I/Ac.


Trata-se de uma importante nação da Amazônia ocidental, contactada pelos brancos no final do
século pas¬sado. Atualmente, contam-se em aproximadamente 4.500 indivíduos, habitando o estado
do Acre e as vizinhanças peruanas.

3 Esta e algumas outras asserções de Joaquim Maná apresentadas neste artigo estão em discussões
que travamos sobre o trabalho, parte das quais tive o cuidado de gravar em fita.

4 Sob perspectiva e com ênfases ligeiramente diferentes, um elenco de dificuldades enfrentadas na


tradução de textos poéticos em versos entre línguas/culturas muito apartadas, porém
historicamente vinculadas (no caso, iorubá e português do Brasil), é também apresentado e
analisado por Antônio Risério em "Transcriando orikis" (Risério, 1996: 89-107).

5 Cf. Abreu. Rã-txa hu-ni-ku-i; gramática, textos e vocabulário Caxinauás.

6 Trata-se de cantos que acompanham a viagem do "cipó", bebida alucinógena também conhecida
como ayhauasca. Analisei a poética

ritual e performática desses cantos em "A canção da serpente: poesia dos índios kaxinawá".
7 Por motivos de ordem semântica, cultural e também fonética (é mais fácil lidar com um dissílabo
paroxítono, quando é preciso mover-se nos limites estreitos da redondilha), "força" foi a nossa opção
para traduzir o onipresente substantivo kaxinawá pae. O termo designa o efeito e o poder da bebida
alucinógena, feita de uma mistura de cipó e folhas, que afeta a sensorialidade, especialmente a
visão. Quando falam português, os índios costumam referir-se a isso nos termos de "sonho", "força",
"energia", "pressão" e também "miração", vocábulo de uso ligado à seita do Santo Daime, cujos
adeptos fazem uso ritual do ayhauasca.

BIBLIOGRAFIA

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