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Título: A América do Capitão - a identidade cultural norte-americana através dos Quadrinhos do

Capitão América

Autor: Pedro Henrique Leal

Orientador: Prof. Ms. Dauto João da Silveira

Avaliadores: Profª Dra. Maria Elisa Máximo e Prof. Chico Lam

Data: 14/12/2011
PEDRO HENRIQUE LEAL

A América do Capitão - a identidade cultural norte-americana através dos


Quadrinhos do Capitão América

Monografia apresentada ao Curso de Comunicação


Social do Bom Jesus/Ielusc como pré-requisito para a
conclusão do grau de Bacharel em Jornalismo, sob a
orientação do professor Ms. Dauto João da Silveira.

Joinville
2011
PEDRO HENRIQUE LEAL

A América do Capitão - a identidade cultural norte-americana através dos


Quadrinhos do Capitão América

Esta monografia foi julgada adequada à obtenção


do título de Bacharel em Jornalismo e aprovada
em sua forma final pelo curso de Comunicação
Social com Habilitação em Jornalismo da
Associação Educacional Luterana Bom
Jesus/Ielusc.

Joinville, 14 de dezembro de 2011.

_____________________________________________________
Professor Ms. Dauto João da Silveira
Associação Educacional Luterana Bom Jesus/Ielusc

_____________________________________________________
Professora Dra. Maria Elisa Máximo
Associação Educacional Luterana Bom Jesus/Ielusc

_____________________________________________________
Professor Chico Lam
Universidade da Região de Joinville (Univille)
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, por tudo o que fizeram e tudo o que aguentaram.

A Stan Lee, Jack Kirby, Steve Ditko e Joe Simon, por todo o trabalho que tiveram
para fazer do que eram os restos da Timely e da Atlas no gigante que é a Marvel
hoje em dia – ignorando-se as políticas sujas.

A Chris Mountenay, por me dar acesso a sua conta do Marvel Digital.


“Acreditamos em heróis, porque no fundo, acreditamos em nós mesmos”.

Jack
Kirby
RESUMO

Análise do desenvolvimento da narrativa dos quadrinhos de Super-Heróis como


reflexo da sociedade americana e o caráter de identidade sócio cultural e de
ideologia política neles contido, tomando como base os quadrinhos do Capitão
América e os conceitos de identidade e liberdade, conforme estudados por Stuart
Hall e Hannah Arendt.

Palavras chave: Identidade; Quadrinhos; Liberdade; Sociologia; Ideologia; Narrativa


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 8
1.1 JUSTIFICATIVA DO TEMA ..................................................................... 9
1.2 OBJETIVOS ............................................................................................ 12
1.3 METODOLOGIA ..................................................................................... 12

2 LIBERDADE E IDENTIDADE AMERICANA ...................................................... 13


2.1 O CONCEITO DE IDENTIDADE............................................................. 13
2.2 O CONCEITO DE LIBERDADE .............................................................. 15
2.2.1 A liberdade política .................................................................... 15
2.2.2 A liberdade individual ................................................................ 16
2.3 AMÉRICA: MÚLTIPLAS IDENTIDADES ................................................. 17
2.4 A IDENTIDADE COSMOPOLITA............................................................ 20
2.5 A DIFUSÃO DA IDENTIDADE AMERICANA .......................................... 21
2.5.1 A identidade americana fora dos EUA ...................................... 22
2.6 O PARADOXO DA LIBERDADE IMPOSTA ........................................... 23

3 A NARRATIVA DOS QUADRINHOS DE SUPER-HERÓIS ................................ 26


3.1 CONCEITOS .......................................................................................... 27
3.1.1 O Conceito de Quadrinhos ........................................................ 28
3.1.2 O Conceito de Super-Heróis ..................................................... 29
3.2 A ERA DE OURO E OS PRIMEIROS SUPER-HERÓIS ........................ 29
3.2.1 O declínio no pós-guerra ........................................................... 32
3.3 A SEDUÇÃO DOS INOCENTES E A ERA DE PRATA .......................... 34
3.3.1 Stan Lee e a “casa das ideias” .................................................. 37
3.4 O FIM DA INOCÊNCIA: A MORTE DE GWEN STACY E A ERA
BRONZE ....................................................................................................... 42
3.4.1 A retomada do Pulp e do horror ................................................ 45
3.4.2 Os heróis das minorias .............................................................. 47
3.4.3 Alan Moore e fim da era bronze ................................................ 50
3.5 A IDADE DAS TREVAS DOS QUADRINHOS ........................................ 53
3.6 MASSACRE E REINO DO AMANHÃ: OS QUADRINHOS
COMTEMPORÂNEOS.................................................................................. 56
3.6.1 Quadrinhos em crise .................................................................. 59

4. A AMÉRICA REPRESENTADA NO CAPITÃO AMÉRICA ................................ 61


4.1 O CAPITÃO NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL .................................. 63
4.2 NOS VINGADORES ............................................................................... 65
4.3 LEALDADE APENAS AO SONHO: NÔMADE EM BUSCA DA
IDENTIDADE AMERICANA .......................................................................... 67
4.4 “AMÉRICA NÃO MAIS”: O CAPITÃO CONTRA A CORRUPÇÃO, O
EXTREMISMO E O PRECONCEITO ........................................................... 70
4.5 GUERRA AO TERROR E A CULPA DOS EUA ..................................... 72
4.6 GUERRA CIVIL, BUSH E A MORTE DO SONHO ................................. 74
4.7 OUTROS CAPITÃES, OUTRAS AMÉRICAS ......................................... 77
4.7.1 Agente americano: meu país certo ou errado ........................... 78
4.7.2 Cidadão V: totalitarismo e polícia do mundo ............................. 80
4.7.3 Buck Barnes: o idealismo cede espaço ao pragmatismo ......... 83
4.7.4 Michael Burnside: a paranóia anti-comunista e a xenofobia ..... 84
4.8 O CAVEIRA VERMELHA ........................................................................ 86

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 89

6 REFERÊNCIAS ................................................................................................... 91
LISTA DE FIGURAS

Figura 1. A primeira aparição do Super Homem - Actions Comics #1 ............. 29


Figura 2. Capitão Marvel - Whiz Comics #2 ..................................................... 30
Figura 3. Quadrinhos de crime - True Crime #2 ............................................... 32
Figura 4. O início da Era de Prata - Showcase #4 ........................................... 34
Figura 5. A estreia do Homem-aranha - Amazing Fantasy #15........................ 37
Figura 6. A estreia dos Vingadores - Marvel Comics, 1964 ............................. 39
Figura 7. O Spirit e Ebony White - The Spirit #10............................................. 40
Figura 8. Questão das drogas - Greew Lantern, Green Arrow #85 ................. 41
Figura 9. A morte de Gwen Spacy - SpiderMen #122 ...................................... 43
Figura 10. Motoqueiro fantasma, anos 70 - Ghostrider #1 ............................... 46
Figura 11. Questão racial - Green Lantern, Green Arrow #76 .......................... 48
Figura 12. Capa de Spawn #1, 1992, Image Comics. ..................................... 53
Figura 13 . Magog demonstra remorso em Kingdom Come #2 ........................ 56
Figura 14. Capa de Captain America #1 .......................................................... 61
Figura 15. A estreia de Nomade - Captain America #180 ................................ 67
Figura 16. O discurso antinacionalista do Capitão América ............................ 68
Figura 17. O Super Patriota - Captain America # 323 ...................................... 77
Figura 18. O cidadão Thunderbolts #1- Marvel Comics, 1997 ........................ 80
1 INTRODUÇÃO

A escolha do tema, o desenvolvimento da figura narrativa do “Super Herói”, já


vem de longa data. Meu interesse por quadrinhos e por construção de padrões
narrativos convergiram de maneira muito proveitosa, mas o tema sofreu algumas
alterações ao longo do percurso.

Embora tenha surgido como uma forma de entretenimento rápida no final do


século XIX, ao longo dos anos a indústria de quadrinhos se expandiu além das
histórias de humor e das histórias de Super Heróis, contemplando temas que vão da
filosofia até a política internacional e a biologia. Por ser uma mídia de alto impacto
com o público jovem, tem grande serventia para campanhas de educação social e
ambiental, como ocorre, por exemplo, com o projeto Menino Caranguejo, do
professor Chico Lam.

Mas o segmento que me interessa é o dos super-heróis: desde a publicação


da primeira história do Super Homem, em 1936, este tem sido o gênero mais
popular de histórias em quadrinhos, e ao mesmo tempo, tem sido desprezado como
uma forma de literatura inferior. Não somente isto, mas as histórias de super-heróis
conseguem ser de uma só vez um dos gêneros mais globais e mais localizados de
narrativa em quadrinhos: embora sejam populares em todo o globo, são
indiscutivelmente fruto por primazia da indústria cultural americana.
No primeiro capítulo, lido com as definições de liberdade, democracia e
identidade segundo Arendt e Hall, assim como com as particularidades da
identidade cultural e política americana, e o discurso de liberdade muitas vezes
paradoxal de um país que várias vezes impos a liberdade em outras nações. No
segundo capítulo, é feito um resgate histórico do desenvolvimento da narrativa em
quadrinhos de super-heróis ao longo do século XX, suas crises e alterações, peça
importante para compreender a construção de qualquer personagem atual no
gênero. Por último, no terceiro capítulo trato do Capitão América e seu
desenvolvimento propriamente dito, ao longo de seus 70 anos de publicação.
Estabeleço aqui um ponto de corte básico no final do evento Guerra Civil (2007),
para fins de análise, embora aborde algumas questões posteriores.
9

1.1 Justificativa do tema

Inicialmente, minha intenção era estudar as mudanças no padrão dos


quadrinhos de super-herói na chamada “Idade das Trevas” dos quadrinhos, na
década de 90, quando o idealismo cedeu espaço para a violência e o cinismo, super
“heróis” matavam “a torto e a direito”, os “poderes” muitas vezes eram “ter laminas”
ou “ter uma arma muito grande”, e super-heróis clássicos morriam para dar lugar a
substitutos mais “atuais”, ou seja, mais durões, cínicos e violentos.

Porém, esse aspecto passou a ser secundário quando se levou em conta um


aspecto importante: o papel dos quadrinhos como uma forma de discurso político e
ideológico, e como a narrativa do super herói poderia ser mais do que meramente
um entretenimento barato – haveria ,portanto, alguma mensagem por trás das
revistas de super-heróis?

Em vista desse problema, meu objeto de estudo passa a ser o


desenvolvimento da narrativa dos quadrinhos do Capitão América. Escolho o
personagem por dois motivos: o primeiro é por um senso de familiaridade com o
herói, cujas histórias leio há muitos anos. O segundo, e mais relevante, é pelo
caráter político-ideológico e simbólico do Capitão. Criado durante a segunda guerra
mundial como um ícone patriótico dos EUA, ao longo dos anos o Capitão se
posicionou politicamente várias vezes, indo da defesa cega do governo nos anos 50
(período “apagado” do personagem, que dentro da continuidade de suas histórias foi
protagonizado por um impostor), - à oposição aberta com a identidade de “Nômade”
e “Capitão”, quando recusou-se a servir um governo que não remetia aos ideais que
jurou proteger, durante os governos Nixon e Reagan.

Ao longo dos anos, o Capitão América foi um dos personagens mais


utilizados pela Marvel Comics para fazer afirmações políticas e, junto ao Homem de
Ferro (magnata da indústria bélica, que combate o crime e a espionagem industrial
dentre de uma armadura super poderosa), protagonizou a minissérie “Guerra Civil”,
de 2007, trama em que a “comunidade super heróica”, após um desastre causado
pela ação de um grupo inexperiente, se viu dividida entre servir ao governo, em
troca de dar uma garantia de segurança à população, e manter-se na
clandestinidade combatendo o crime “como sempre fizeram”. Neste embate, o
Capitão escolheu se virar contra o governo, no temor de que as informações do
10

registro caíssem em mãos erradas ou que o governo passasse a usar os “super


heróis” como soldados glorificados.

Neste sentido, existem dois processos distintos e correlatos a serem


estudados: o primeiro é a humanização do herói, a passagem de “Clark Kent” e
“Bruce Wayne”, cidadãos modelo, belos, fortes, virtuosos e bem sucedidos, a “Peter
Parker”, que luta para pagar o aluguel e sustentar a tia idosa, se atrasa para as
aulas e apanha de valentões na escola, e “Tony Stark”, que, embora seja belo e rico,
é um alcoólatra, hedonista e tem em seu hedonismo seu maior inimigo. Aonde isso
começou, além de seus marcos mais fortes, e como se deu esse processo? Esse
processo, mais do que uma desconstrução, pode ser visto como uma metamorfose
do padrão do super herói, frente a um paradigma social que, em vista de Watergate
e a guerra do Vietnã, não se dispunha a aceitar a figura de um herói perfeito e
incorruptível.

O segundo processo é a quebra do super-herói como uma versão moderna


do “Cavaleiro de armadura brilhante” ou “Escoteiro”, figura de heroísmo puro, sem
segundas intenções e dedicada unicamente ao “bem comum”, e o aumento da
presença do “vigilante”, interessado em “fazer justiça com as próprias mãos”, e sem
grandes interesses pela vontade popular. Processo que faz com que o herói
patriótico, ao estilo do Capitão América, deixa de ser o ícone da virtude, para ser
uma representação do “mal necessário”, e o Super-Herói passa a ser uma
manifestação de uma forma de violência justificada.

Esses dois processos distintos se dão no caso estudo de uma forma mais
clara devido à relação íntima do personagem com a própria figura dos Estados
Unidos: como seu próprio nome já afirma, ele é o Capitão América, e sua identidade
está ligada diretamente ao país. Porém a maneira como essa relação se dá merecia
um estudo mais aprofundado.

Com base nestas colocações, a minha análise se segue com base em dois
conceitos principais: o conceito de identidade cultural, conforme estudado por Stuart
Hall1, e o conceito de Liberdade Individual conforme estudado por Hannah Arendt2.

1
Hall, Stuart – teórico cultural anglo-jamaicano fundador da Escola de Birmingham de Estudos
Culturais, analisando o texto cultural sob a ótica de reciprocidade e avaliando a identidade social e
cultural como fruto das relações, e não um valor fixo.
11

Dentro desse paradigma de estudo, o objetivo principal é claro: estudar o


processo de construção e desconstrução da figura do super-herói, com base na
trajetória do Capitão América e nas relações ideológicas do personagem e seus
inimigos e aliados. Dentro desse objetivo mais amplo, haviam alguns detalhes a
serem priorizado: a relação dos ‘discursos’ do Capitão América com o quadro sócio-
político americano e global; a relação de crítica ou de defesa da posição americana
manifesto nas histórias do Capitão América; e até que ponto o personagem pode ser
considerado como uma “figura publicitária” do governo americano, e se há em
qualquer ponto uma ruptura deste paradigma.

Junto ao rol de Hall e Arendt a obra “Nossos Deuses são Super Heróis”, de
Christopher Knowles3 (2008): Knowles trabalha com a figura do super-herói não
como um mero entretenimento, mas como a mitologia moderna, e de certa forma, o
Capitão América pode ser tratado como a manifestação do ideário popular
americano – ou como uma manifestação do descontentamento com as posições do
país.

Nesse sentido, o caso específico do Capitão América pode ser lido não
meramente como um herói patriótico, mas como o equivalente americano para
heróis nacionais como o Rei Arthur inglês, as versões poetizadas do imperador
Carlos Magno, na França, e o Odisseu grego: uma representação exagerada e
“maior do que a vida” dos ideais que o país deveria representar – e de uma maneira
talvez até mais intensa do que esse discurso é encarnado na figura dos pais
fundadores dos EUA.

Embora aparente ser um assunto de pouca relevância, há de se levar em


conta a imensa popularidade das histórias em quadrinhos, desde o período de
formação da narrativa dos super-heróis, na década de 30, até os dias atuais, em que
cada vez mais personagens transcendem os limites do papel e são traduzidos para
o ambiente do cinema e da televisão – e como o discurso contido nas histórias de
super-heróis exerce uma influência indireta sobre a sociedade como um todo,
principalmente por ser dirigido a um público mais jovem.

2
Arendt, Hannah – Cientista Política alemã rejeitava o título de filósofa. Seu trabalho se centra
primariamente na natureza do poder, as relações políticas e o desenvolvimento do autoritarismo e
totalitarismo. De uma família judia, Arendt migrou para os EUA em 1941, fugindo do holocausto
nazista.
3
Knowles, Cristopher – roteirista e ilustrador inglês, editor da revista Comic Book Artist, publicação
vencedora de cinco prêmios Eisner.
12

1.2 Objetivos

Estudar a representação da identidade americana na figura do super-herói,


com base na trajetória do Capitão América e nas relações ideológicas do
personagem e seus inimigos e aliados. E partir disto analisar a relação do “discurso”
do Capitão América com os discursos políticos e sociais dos EUA, dentro do
contexto histórico em que foram publicados, em que pontos a construção do Capitão
América pode ser vista como a construção de uma “figura heróica” como
representação da identidade dos EUA, e que identidade é esta e os aspectos
críticos, acríticos e ufanistas do personagem, e qual a sua relação com a cultura
americana e com o mundo.

1.3 Metodologia

Com base em Hall, realizei um estudo aprofundado do processo de


construção da narrativa do Capitão América, com base em pontos chave da
trajetória do personagem e de várias intermediações entre estes pontos. A partir dos
aspectos críticos e discursivos da caracterização do herói, busquei uma definição
viável para a identidade americana representada pelo personagem, fazendo o
mesmo com outros personagens que se propuseram a tomar o lugar do original.
Como base neste primeiro trabalho e da noção de Knowles do super-herói
como mitologia moderna, estabelecer a partir destas identidades o conceito para o
qual o Capitão América é uma representação mítica, seguindo o mesmo caminho
com o seu arqui-inimigo, o Caveira Vermelha.

Através disto, busco encontrar qual é a ideologia personificada pelo


personagem do Capitão América Steve Rogers, e o desenvolvimento dessa imagem
simbólica do “sonho americano e o discurso que pode ser inferido nas ações e
palavras do herói, através tanto da publicação geral do personagem, como de suas
ações dentro dos grandes eventos da Marvel.

Devido ao caráter visual das histórias em quadrinhos, são inclusas


reproduções de algumas revistas, para facilitar a compreensão. Ao longo de todo o
processo me foi de grande ajuda o serviço Marvel Digital, repositório on-line dos
quadrinhos da editora.
2. Liberdade e identidade Americana

2.1 O Conceito de Identidade

Para se entender a relação da narrativa do Super Heróis com a identidade


cultural e política dos EUA, antes temos que definir o conceito de Identidade - em
particular, a identidade cultural pós-moderna, que conforme coloca Hall (2003), não
é uma identidade fixa, mas sim um fluxo de identidade cultural. Enquanto a
identidade de uma sociedade pode ser definida a partir de um certo padrão, a
identidade do individuo é um caso a parte - e não é o caso que pretendo estudar
aqui - moldando-se conforme o meio em que o individuo está inserido.
Por causa disso, a idéia de um “eu” coerente como identidade seria uma
fantasia, e cada indivíduo é composto por um número de identidades muitas vezes
contraditórias - e que se multiplicam conforme somos apresentados a novos
sistemas de significação e representação cultural.
Segundo Hall, não é viável falar em, por exemplo, uma manifestação da
identidade indiana para , quando elementos de culturas distintas podem ser
facilmente encontrados em qualquer cidade do mundo, e esse “problema” é
particularmente notável quando se fala da identidade Americana. Devido à posição
central dos EUA no mundo globalizado, da mesma maneira que a cultura americana
exerce grande influência sobre o resto do mundo, também é profundamente afetada
por elementos culturais do resto do mundo.
Hall afirma que a questão da identidade cultural está relacionada
profundamente ao processo de globalização, principalmente se tratando de
sociedades modernas - caso claro na sociedade americana, vendo que o país tem
sido a principal força modernizadora desde a segunda metade do século XX - por
bem ou por mal. “As sociedades modernas são, portanto, por definição, sociedade
de mudança constante, rápida e permanente. Esta é a principal distinção entre as
sociedades “tradicionais” e as “modernas.”(HALL, 2003, p.14).
As identidades sociais modernas são caracterizadas pela diferença - a
unidade da sociedade não seria então baseada na harmonia social, mas sim em
diferentes “posições de sujeito” para os indivíduos que a compõe. A sociedade, por
tanto, não se mantém por ausência de conflito, mas por que seus elementos podem
14

agir em conjunto sob certas circunstâncias - mas apenas parcialmente, pois a


estrutura de identidade sempre permanece em aberto.
Para se trabalhar a questão da identidade cultural nas histórias em
quadrinhos, é preciso se levar em conta essa “maleabilidade” da própria noção da
identidade americana e global, e da maneira como elas se entrelaçam. Embora seja
difícil no cenário atual falar em uma manifestação cultural americana, devido ao
relacionamento quase “promíscuo” entre diferentes culturas, a figura do Super-Herói
é por excelência um ícone cultural americano: essa imagem, explicada em detalhes
no capítulo II, tem equivalentes fora da indústria cultural americana - tendo, por
exemplo, muita força no entretenimento japonês - mas o Super-Herói em si é para a
cultura americana o que o herói épico é para a Grécia antiga: uma forma narrativa
típica daquele meio, e em si a versão “Made in USA” do herói mítico.
E segundo Hall, um dos resultados desta mescla de elementos e identidades
culturais é, paradoxalmente, o retorno das identidades purificadas. (HALL, 2003).
Esse tipo de movimento se dá na forma de movimentos nacionalistas,
fundamentalismo religioso, e as idéias de pureza racial. Hall toma como exemplo a
situação da Europa Oriental, onde em resposta a crescente integração entre as
nações e a dissolução da soberania nacional após o colapso da União Soviética
levou a movimentos separatistas e tentativas de construir estados homogêneos
étnica e religiosamente. É importante frisar que Hall escreveu isso em 1992 - quando
o colapso da antiga União Soviética ainda era um fator recente - mas esse
fenômeno de fortalecimento de identidades “puras” em resposta a miscigenação
cultural ainda é uma questão muito real, principalmente com a economia global em
crise.
Ao mesmo tempo, as identidades se tornam cada vez menos ligadas aos
espaços, tempos e tradições específicos: Em um mundo globalizado, temos
identidades igualmente globalizadas, que parecem “flutuar livremente”. Dentro do
status quo consumista global, se tem uma gama de identidades para se escolher, e
o próprio conceito de “eu” parece seguir uma lógica de mercado. As diferenças
culturais, então, não são mais distinções de identidade, mas sim uma “língua franca”
cultural. E no centro dessa “homogeneização cultural” está aquela que é a
identidade central do mundo globalizado: a Identidade Americana.
15

2.2 O conceito de Liberdade

Quando se fala em conceito de liberdade, há duas questões diferentes a


serem levadas em conta: o conceito de liberdade política, e o conceito de liberdade
individual - ambos são de extrema importância para a identidade americana.

2.2.1 A liberdade política

O conceito de liberdade política é o aspecto mais importante de uma


sociedade democrática - e como tal, o ponto central de todo o debate político
americano. Segundo a cientista política Hannah Arendt, o conceito de liberdade
política surge na "Polis" grega, onde a questão era inseparável da ação política
(1993). De acordo com Arendt, liberdade não estava associada a questões
individuais até por volta do século V depois de cristo, quando o termo passou a ser
representativo do conceito cristão de livre arbítrio, e a liberdade como ação pública -
embora fosse a razão de ser da política - passa a ser negligenciada. Segundo
Arendt, a liberdade não existe como um valor inerente no convívio social, mas sim
como uma construção das relações sociais, onde cada indivíduo pode contribuir com
sua própria natureza.
Durante a maior parte da história humana, o conceito de liberdade política não
era de importância, tanto para os governos quanto para o povo. Isso devido à
predominância de regimes monárquicos, teocráticos e feudais ao longo da história,
onde a liberdade política significaria uma ameaça ao poder vigente - e para o povo,
se preocupar com se suas vontades políticas eram ouvidas não tinha muita
relevância em sociedades em que o povo comum não era treinado para pensar
nestas questões.
De uma maneira muito simplificada, a liberdade política pode ser definida
como uma relação social livre de opressão, exclusão e condições incapacitantes
para um determinado grupo. Devido a essa situação ser efetivamente inalcançável
em sociedades de grande porte - sem que para isso haja uma grande massa
desprovida de liberdade - a liberdade política é um Ideal das sociedades
democráticas, que buscam garantir a liberdade política para a maior parcela possível
da população.
16

Enquanto em sistemas capitalistas a escassez de recursos e a concentração


de riqueza tornam inevitável a falta de liberdade política para uma parcela explorada
da população, nos regimes socialistas e comunistas já tentados, se faz presente um
grau variado de opressão - justamente para evitar a exploração - o que restringe, ou
em certos casos elimina, a liberdade política. É importante ressaltar que a opressão
também ocorre nas democracias capitalistas, também com um grau variado de
restrição da liberdade política.

2.2.2 A Liberdade individual

A liberdade individual, por outro lado, tem relação com a capacidade de ação
pessoal, livre da interferência do restante da sociedade. Como tal, a total liberdade
individual é um ideal inalcançável. Segundo Arendt, a liberdade está no agir -
homens são livres contanto que atuem, e não deixem que seja atuado em seu lugar.
A liberdade individual é um dos valores primordiais da sociedade americana,
estabelecido pela carta de direitos e pela declaração da independência americana.
Ainda assim, durante boa parte de sua história, essa liberdade era aplicada
exclusivamente para alguns setores da sociedade. Até meados da década de 50 e o
ínicio da década de 60, afro descendentes tinham suas liberdades individuais
cerceadas, sendo restritos a estabelecimentos “para negros”, assentos “para negros”
nos ônibus, e em geral excluídos do convívio com os brancos.
A vida em sociedade exige a restrição de algumas liberdades individuais - a
mera existência de leis implica nessa restrição – porém, por virtude da presunção de
que a democracia representa a vontade da maioria, as liberdades de grupos sociais
de maior peso tende a ser respeitada mais freqüentemente do que a de grupos
minoritários - mesmo quando estas não interfeririam nos direitos da maioria.
Arendt afirma que as ações de liberdade individual e política não podem ser
julgadas em si: a realidade da ação é que o mero agir é um ato social, e que só pode
ser julgado dentro do seu contexto.

Action, the only activity that goes on directly between men…corresponds to


the human condition of plurality, to the fact that men, not Man, live on the
earth and inhabit the world. While all aspects of the human condition are
somehow related to politics, this plurality is specifically the condition – not
17

only theconditio sine qua non, but the conditio per quam – of all political life.
(ARENDT, 1958. p. 7)

Em essência, a liberdade individual seria um aspecto menor para o


estabelecimento da liberdade política: a liberdade deve favorecer a pluralidade, pois
esta é a condição por trás de toda vida política. Sendo esta coletividade a totalidade
da sociedade, e não os conjuntos que a compõe; favorecer a liberdade de um grupo
sobre outros significa abrir portas para a privação de liberdade e o totalitarismo -
muitas vezes sob a máscara de preservação da liberdade.

2.3 América: múltiplas identidades

Quando se fala em identidade americana, um número de clichês facilmente


vem em mente - o mais comum deles é a idéia perniciosa de que os americanos
como um todo tem um pensamento acrítico, incapazes de olhar para qualquer coisa
além do seu próprio umbigo; esse discurso surge com facilidade quando os EUA
aparecem na imprensa internacional, ou quase qualquer questão de política global.
Porém, a relação social americana é mais complexa do que isso - e qualquer
país que se tente resumir a questão cultural ocorrerá o mesmo. De uma maneira
simplória, as identidades socioculturais americanas são marcadas por uma questão
paradoxal que também permeia as políticas internas e externas do país - cada
segmento da sociedade americana é extremamente crítico de todos os outros, mas
ao mesmo tempo, carece de crítica a si mesmo. Isso é notável nos discursos
políticos, e de forma geral, no humor americano.
Caso notável dessa relação crítica-acrítica é o desenho Family Guy, de Seth
McFarland4. Uma das produções do canal Fox, a grande maioria dos roteiros de
Family Guy criticam duramente a direita republicana - mas faz muito pouco para
julgar as falhas que também ocorrem entre os democratas. O mesmo ocorre com o
mais popular The Simpsons, de Matt Groening5.

4
McFarland, Seth – cartunista americano, sua obra incluí séries como American Dad e Family Guy,
com um senso de humor transgressivo e politicamente incorreto. A obra de McFarland foca sua crítica
na direita americana, retratada muitas vezes em seus desenhos como sendo mentalmente debilitada.
5
Groening, Matt – cartunista americano, sua principal obra, The Simpsons, é um retrato crítico do
“cidadão comum” americano. Vários episódios da série lidam com a família visitando outros países,
retratando e criticando a visão simplificada que os EUA têm do resto do mundo.
18

Para olhos estrangeiros, esses conflitos culturais internos nos EUA podem ser
difíceis de perceber, especialmente quando relacionado à política: o debate político
americano é extremamente polarizado ao redor dos partidos Democrata - que oscila
entre a direita moderada e a centro esquerdo - e Republicano - entre a direita
moderada e a extrema direita - enquanto todos os outros partidos ficam em segundo
plano, esquecidos. Isso resulta no clichê errôneo de que nos EUA existem apenas
dois partidos6 - e esse clichê resulta em uma visão ainda mais simplificada e caricata
do cenário cultural do país. O jogo político americano teve uma leve alteração nos
últimos anos com o Tea Party – movimento “apartidário” de extrema direita, que vê o
país sob ameaça socialista, o Tea Party está diretamente associado à direita cristã,
e entre suas bandeiras está o fim do ensino da evolução nas escolas, e o fim das
campanhas de vacinação – bandeiras defendidas pela ala mais conservadora do
partido republicano.
Essa simplificação do discurso estrangeiro não ocorre unicamente em relação
aos EUA, assim como não são somente os americanos que tem uma visão
“patriocentrica” do mundo. Se for possível dizer que existe uma identidade
“americana” central, esta se baseia em cima dos conceitos de democracia e
liberdade - mas não há concordância sobre o que estes conceitos significam -
enquanto para a comunidade mormon7 de Utah e para os rednecks8 do Alabama e
do Tenessee democracia significa a imposição de sua moral sobre o restante do
estado, pois é a maioria, para a comunidade gay de San Francisco, na Califórnia,
democracia significa ter o mesmo respaldo que as comunidades majoritárias
recebem.
A identidade americana pode ser simplificada de maneira grosseira na
identidade republicana - contra a intervenção estatal na economia, mas a favor da
mesma no comportamento. Em geral conservadora e privilegiando a
regulamentação religiosa sobre a lei secular - e a identidade democrata - favorável a
ação do governo para proteger direitos civis e as minorias, em geral vanguardista

6
Curiosamente, um amigo meu nos EUA me pergunto se o Brasil tinha apenas três partidos - PMDB,
PSDB e PT - pois eram só estes três que apareciam na imprensa estrangeira (nota do autor)
7
Termo coloquial para designar os membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias,
denominação predominante no estado de Utah. De maneira geral, a igreja tem várias posições
conservadoras, e entre outras questões polêmicas, só aceitou o sacerdócio de negros em 1973.
8
Termo derrogatório para a população rural do sul dos EUA, em geral vista como ignorante e
intelectualmente deficiente. Ao mesmo tempo, a população “redneck” enxerga o restante do país
como intelectuais “que desconhecem o mundo real”. A comunidade redneck é um dos maiores
agrupamentos da direita cristã americana.
19

em termos de liberdade social, mas economicamente conservadora e favorável a


intervenção política na economia. Porém estas são simplificações grotescas de uma
infinidade de discursos. Essas duas identidades “centrais” também são diferentes
quanto à questão ambiental - enquanto os democratas tendem serem “verdes”, os
republicanos ainda negam as evidências do aquecimento global - quanto a
intervenções no exterior - embora os regimes destes partidos não diferenciem na
prática neste sentido, o discurso democrata é mais voltado para a não intervenção e
uma ação reativa, enquanto o discurso republicano é muito mais proativo e voltado
para “atacar antes de sermos atacados”. Essa questão é especialmente notável
durante o governo de George W. Bush. O discurso republicano é muito mais
polarizado, chegando ao extremo no mandato Bush de “ou você está conosco, ou
está contra nós.
Essa duplicidade de identidade é especialmente perceptível quando se
analisa os comentaristas políticos na televisão americana. Os chamados pundits9
cobrem todo o espectro político, mas em poucos casos é possível dizer que não é
uma opinião “legitimamente americana. O discurso de um direitista10 como Bill
O’Reilly11 - notório pela aversão total pela ciência, incluindo a constante afirmação
de que o resultado de pesquisas é “apenas a sua opinião” - é tão representativo da
identidade americana quanto o de um comentarista de centro esquerda como Jon
Stewart12, o de um comentarista de extrema direita como Glenn Beck13, ou de um
satirista como Stephen Colbert14 - e ainda assim, nenhum deles representa a
totalidade do país.

9
Comentaristas especializados, pagos pelas suas opiniões sobre vários temas.
10
No caso específico de O’Reilly, o direitista se refere a posição clara a favor de um discurso
socialmente conservador, contrário aos movimentos sociais, e economicamente liberal, contrário a
intervenção estatal na economia.
11
O’Reilly, Bill – comentarista político da Fox News, O’Reilly se diz a partidário, mas várias de suas
posições são favoráveis as alas mais radicais do partido republicano, principalmente nas áreas de
ciência e religião.
12
Leibowitz, Jonathan Stuart – humorista e comentarista político americano, apresentador do Daily
Show, noticiário de humor da Comedy Central. Stewart mantém uma posição firme contra os
discursos da direita americana, e é abertamente crítico do que vê como passividade do mainstream
do jornalismo americano e o culto as celebridades. Embora seja um programa humorístico, o Daily
Show já recebeu prêmios jornalísticos.
13
Beck, Glenn – radialista e comentarista conservador, acredita em uma conspiração progressista
para transformar a América em uma ditadura socialista, e foi um dos responsáveis por propagar os
boatos de que o presidente Barack Hussein Obama não nasceu nos EUA.
14
Colbert, Stephen – humorista americano, apresentador do Colbert Report, onde satiriza a direita
americana com uma versão exagerada do discurso conservador. Colbert criou o neologismo
“Truthiness” - a verdade que vem do 'estomago', não dos fatos - para definir a argumentação da
extrema direita.
20

2.4 A identidade cosmopolita

Neste sentido, a identidade americana é uma identidade cosmopolita:


enquanto as identidades especificas dentro da sociedade americana muitas vezes
se fecham no nacionalismo e no ufanismo, a identidade americana como um todo se
baseou na absorção de conceitos e elementos culturais de outros países. Isso já dá
as caras pouco após a independência americana: enquanto os primeiros imigrantes
foram ao “novo mundo” para preservar o estilo de vida puritano - alvo de
perseguições religiosas na Inglaterra - as levas de imigração pós independência
vinham de passados e culturas diferentes, e pedaços dessas culturas permearam o
desenvolvimento americano.
Ao mesmo tempo, apesar da absorção rápida de certos traços culturais, essa
visão cosmopolita se aplica apenas em certos sentidos - mesmo com a “miríade de
identidades” americana, isso não impediu a formação de guetos ou a intensa
discriminação étnica, racial e religiosa contra negros, asiáticos, irlandeses e vários
outros grupos - no mundo pós 11 de setembro, o bode expiatório padrão passaram a
serem os árabes, embora muitos deles já vivessem no país a gerações.
Este é mais um dos pontos paradoxais da identidade americana: enquanto o
coletivo americano é extremamente rápido em absorver aspectos de outras culturas,
também é igualmente disposto a excluir aquilo que é “diferente”. Um exemplo forte é
a cultura negra: enquanto elementos da musica negra serviram de base para boa
parte dos gêneros musicais americanos, e o Rap - um estilo musical típico da
população negra e pobre - passou a liderança nos billboards de música nos EUA, a
pessoa do negro continua sendo alvo de forte discriminação em boa parte do país -
e este paradoxo é ainda mais desconcertante quando se leva em consideração que
o atual presidente é negro - mais incongruente com a descriminação, é um negro
mestiço de nome árabe.
Na indústria de entretenimento esse comportamento é bastante comum - e
auto referencial - principalmente no cinema e nos quadrinhos. O cinema americano
teve uma forte influência ao redor do mundo, mas muitos filmes hollywoodianos são
adaptações de obras estrangeiras - e que perdem a aura do local de origem no
processo - exemplo este de vários westerns, como “Sete homens e um destino”,
21

adaptação de “Sete Samurais”, do japonês Akira Kurosawa 15, e que trocou o Japão
Feudal pelo meio oeste americano. Na indústria de quadrinhos, a linguagem visual
dos quadrinhos japoneses e o ar filosófico dos quadrinhos europeus foram
absorvidos pelas grandes editoras - conforme detalhado mais a frente no capitulo II.

2.5 A difusão da identidade americana

Embora não haja uma noção concisa de identidade americana - e sim várias
sub-identidades - o discurso padrão americano, de “verdade, justiça e o estilo
americano”, tem suas várias facetas facilmente reproduzidas pelo globo. Em suas
múltiplas variantes, o discurso se faz presente constantemente na indústria do
entretenimento. O “vilão padrão” do cinema de ação hollywoodiano, por exemplo, é
inevitavelmente uma representação dos temores americanos da época - durante o
auge da guerra fria, o inimigo eram sempre os comunistas, enquanto no final dos
anos 80 e inicio da década de 90, tomavam a forma de traficantes e guerrilheiros,
resultado do financiamento americano indevido para combater a “ameaça vermelha”,
e que agora se voltavam contra seus “tratadores”.
Mesmo nas histórias de ficção científica, o “mal” era uma metáfora para o
inimigo da vez: no clássico do gênero “Tropas Estelares”, de Robert Heinlein 16, os
insetos, com sua sociedade altamente hierárquica e sem possibilidades de
crescimento social, eram apenas uma repetição de clichês sobre os comunistas. Sua
outra obra de destaque, “Um estranho numa terra estranha”, de 1961, atacava outro
inimigo: o conformismo, condizente com o meio em que Heinlein estava quando
escreveu a obra - seu envolvimento com o ainda pequeno movimento hippie.
Essa tendência de representação do status quo na ficção não é, novamente,
exclusividade dos EUA. Porém, devido ao nível de produção da indústria cultural
americana, e a capacidade que esta tem de alcançar o público, a influência que tem
sobre a imagem e os padrões culturais é muito mais intensa do que quando o
mesmo ocorre, por exemplo, com um autor brasileiro.

15
Kurosawa, Akira – diretor de cinema japonês, muito da obra de Kurosawa é composta por
adaptações de Shakespeare. Afirmava ser o contato com outras culturas o segredo por trás dos seus
filmes.
16
Heinlein, Robert A. – escritor de ficção científica, colocado ao lado de Arthur C. Clarke e Isaac
Asimov como um dos três grandes nomes da era de ouro da Ficção Científica.
22

2.5.1 A identidade americana fora dos EUA

Devido à influência econômica, política e cultural dos EUA, a maneira como a


identidade americana é representada ou imaginada fora do país é, como
praticamente tudo que a cerca, uma questão paradoxal: os EUA são
simultaneamente odiados e amados, desprezados e admirados, muitas vezes pelas
mesmas pessoas e no mesmo lugar.
Ao mesmo tempo em que o imperialismo americano é alvo de críticas
constantes, predominam nos cinemas, livrarias e televisões por assinatura os frutos
da indústria cultural americana. Se por um lado o discurso de rejeição ou até de ódio
aos EUA é extremamente comum, também é comum o discurso constante de
admiração pela pop culture americana: apesar de ser um discurso de senso comum,
não é raro ouvir que “todos odeiam os EUA, mas querem ir a Disneylândia”.
Esta disparidade discursiva é agravada pela internalizarão do discurso de
identidade americana, muito comum na indústria do entretenimento. Como o padrão
americano é divulgado por todo o mundo, formas literárias, musicais e narrativas
“tipicamente americanas” se tornam globais - e por isso é difícil afirmar que algo é de
fato “americano”.
Um exemplo da internalização deste discurso americano ocorre no gênero
aqui estudado: a narrativa super-heróica é fortemente ligada à identidade americana
em sua origem, mas tem manifestações em várias culturas diferentes. Um exemplo
disto sãos os quadrinhos japoneses, os mangás. Além de envolverem vários
elementos típicos da cultura japonesa, o gênero de super-heróis não apenas é
comum entre os mangás - que durante muitos anos reproduziam os heróis
americanos, apenas com uma roupagem nipônica - mas um dos gêneros de maior
destaque são os Super Robôs17 - a narrativa do super-herói repassada a um meio
super tecnológico, onde o super-herói cede lugar ao piloto de um robô gigante - que
exerce o papel de herói.
Não que a absorção dos gêneros americanos seja necessariamente negativa:
a questão é, como levantada por Hall em seu discurso sobre a identidade pós

17
Um detalhe interessante quanto à relação do gênero com o discurso americano é a predominância
do padrão Azul-Vermelho-Branco na coloração dos robôs, assim como a temática constante de
combate a tirania em defesa da liberdade.
23

moderna, a perda de coesão, com uma identidade contraditória, que defende e


ataca a posição dos EUA simultaneamente.
Tanto a posição amigável aos EUA quanto a posição hostil são perfeitamente
compreensíveis. Vendo o histórico de imposição político-ideológica, e de controle de
mercado que o país manteve em sua história, não é de se admirar que os EUA
sejam alvo de desdém. Ao mesmo tempo, a posição americana também é
responsável pelo sustento de várias sociedades que são ao mesmo tempo
prejudicadas e beneficiadas pelos americanos: exemplo este do Oriente Médio, cuja
economia depende dos EUA, mas é “aleijada” pelo mesmo, para simplificar
grosseiramente a situação.
Neste caso específico, a incongruência entre a fascinação com a cultura
americana e o ódio a identidade política americana se resolve através da
“purificação” da identidade cultural: o problema deixa de “existir” aos olhos públicos
quando a cultura “ofensiva” passa a ser proscrita e seus aderentes punidos. Porém a
pureza nacional leva, de maneira inerente, aquilo que a identidade americana afirma
ser seu completo contraponto: o fascismo. Isso por que o processo de
homogeneização cultural é uma questão inerente as relações interculturais, e
embora a cultura de maior “peso” - ou influência - tenda a predominar no longo
prazo, a única forma de se evitar essa miscigenação cultural é através do controle
rigoroso da sociedade - eliminando as influências “nocivas”, por força se necessário.

2.6 O paradoxo da liberdade imposta

A relação da política internacional americana resulta em mais um ponto


paradoxal: Enquanto o discurso americano se baseia no ideal de liberdade, a ação
dos EUA no restante do mundo parte do principio que liberdade e democracia
devem ser defendidas a qualquer custo - e durante tanto a guerra fria quanto o
governo de George W. Bush, a defesa da liberdade valia o sacrifício da liberdade.
Esse ponto é o causador mais intenso de incoerência na identidade
americana: em nome da liberdade, direitos foram cerceados com o “Patriot Act”, e na
24

defesa da democracia a e a liberdade americana, o senador Joseph McCarthy 18


violou os direitos civis de centenas de americanos na década de 50. Medidas que
restringiam os direitos e a liberdade de parcelas da população - como as leis
segregacionistas vigentes até os anos 60 - eram justificadas como defesa da
liberdade.
Não é sem razão que o discurso americano é muitas vezes visto como
hipócrita: é completamente contraditório que o país que promoveu golpes de estado
na America Latina e deu apoio logístico e financeiro para ditadores na África e no
Oriente Médio se posicione como o baluarte de liberdade - e ao mesmo tempo, o
discurso de liberdade dos EUA é completamente sincero. Isso é novamente um
estranho resultado da constante dualidade do discurso de identidade: ao promover
um governo ditatorial favorável aos EUA - representando aqui a liberdade - do ponto
de vista da identidade, esta ação está em defesa da liberdade contra o inimigo - seja
ele qual for dependendo do ponto na história. Isso não quer dizer que as críticas a
esse discurso sejam invalidas - apenas que ao contrário do que a incongruência
entre os atos e os discursos não representam desonestidade.
Um exemplo clássico dentro da mídia de quadrinhos desta incongruência é a
Graphic Novel 300 - adaptada para o cinema por Zack Snyder19 em 2006.
Retratando a batalha das Termopilas, 300 reescrevem os espartanos - militaristas e
escravocratas - como defensores da liberdade e democracia, enquanto os persas -
com uma sociedade muito mais igualitária, embora ainda díspar para os padrões
modernos - como uma horda monstruosa liderada por um tirano com mania de
grandeza. A obra foi profundamente criticada pelo Irã, que via no filme uma peça de
propaganda americana contra o país situado na região da antiga Pérsia.
Essa relação conflitante entre “combater a opressão” e “impor a liberdade a
força” é abordada pelo escritor George Orwell20 no seu romance 1984, de 1948. No
livro, a sociedade da Oceania vive sob um regime de opressão mantido pela ilusão

18
McCarthy, Joseph – Senador júnior do Wisconsin dirigiu o subcomitê especial do senado para
atividades antiamericanas, iniciando uma “caça as bruxas” dentro do governo americano em busca de
“espiões comunistas”. McCarthy também foi responsável pela inclusão das palavras “Under God” (sob
Deus) no juramento a bandeira, por achar que a falta de religião era uma atitude comunista.
19
Snyder, Zack – diretor de cinema americano, Snyder também dirigiu a adaptação do clássico das
HQs Watchmen, discutido no segundo capítulo.
20
Blair, Eric Arthur – conhecido pelo nome artístico de George Orwell – escritor inglês, socialista
democrata, Orwell escreveu muito sobre regimes autoritários e as falhas inerentes das ditaduras,
assim como sobre as injustiças sociais. Juntos, suas obras “A revolução dos Bichos” e “1984” fizeram
dele um dos autores mais vendidos do século XX.
25

de defesa da liberdade - um caso muito mais extremo do que a situação americana,


e que tem paralelos com quase todas as ditaduras, pró ou anti EUA. O discurso do
IngSoc (Socialismo Inglês, a fictícia ideologia do livro) é o do duplipensar: Guerra é
Paz, Mentira é Verdade, e como ocorre muitas vezes no discurso geopolítico
internacional, opressão é libertação, invasões são pacificação e perda de direitos
são sacrifícios em nome da liberdade.
Dentro deste contexto social é que surge com maior intensidade a narrativa
dos Super heróis, como um reflexo do cenário cultural e social americano. Como tal,
não é viável estudar os quadrinhos como um ponto isolado no tempo – apenas como
um processo de fluxo, da mesma maneira que a definição de identidade cultural é
dependente de inter-relações que não ocorrem isoladamente, mas apenas como
parte de um processo. Por isso, o próximo capitulo irá detalhar o processo de
desenvolvimento da narrativa super heróica.
3 A narrativa dos quadrinhos de super-heróis

3.1 Conceitos

3.1.1 O conceito de Quadrinhos

Segundo Kanno, o conceito de “história em quadrinhos” pode ser definido no


título de um dos livros do americano Will Eisner21 - um dos grandes nomes no
gênero -, “Arte Seqüencial”. Como exemplificado por este título, o conceito de
quadrinhos é uma arte com sequência. A estrutura de quadrinhos tem muito em
comum com a da animação, mas onde cada imagem da sequência é sobreposta e o
elemento narrativo é o tempo na animação, em quadrinhos a arte é disposta
sequencialmente no espaço (KANNO, 2006). Segundo McCloud22 (2005), o espaço
é para os quadrinhos o que o tempo é para um filme.

Embora seja padrão no formato a combinação de signos pictóricos e textuais,


o uso de texto não é necessário para a narrativa de quadrinhos, pois esta pode ser
dada exclusivamente através da imagem. É importante ressaltar que o quadrinho se
diferencial da charge por seu aspecto seqüencial - por maiores que possam ser as
similaridades, a própria idéia de história em quadrinhos depende de existirem
múltiplos quadros, ao contrário de uma charge, que pode ser composta por uma
única imagem.

O próprio Will Eisner ressalta a questão narrativa da história em quadrinhos


no livro “Narrativas Gráficas”, onde nota que embora hajam outras formas de arte
seqüencial no meio impresso, apenas aquelas que se destinam à narrativa podem
ser chamadas de “histórias em quadrinhos”.

A forma padrão do quadrinho é desenhada ou pintada, mas segundo McCloud


a arte pode se der também através de fotografias, nas chamadas foto novelas. A
21
Eisner, Will - Quadrinhista e empresário norte americano, conhecido por inovar na narrativa de
quadrinhos, criando o conceito de Graphic Novel e sendo pioneiro no uso de HQs como mídia
instrutiva. O principal prêmio na indústria de quadrinhos foi batizado em sua homenagem
22
McCloud, Scott - cartunista e teórico de quadrinhos americano, em 1990 McCloud criou o
“quadrinho de 24 horas”, um conceito de HQ escrita, desenhada e publicada em 24 por um único
artista, como um desafio ao cartunista Steve Bissette.
27

base da arte seqüencial já estava presente na arte primitiva, como nos pictogramas
de povos pré-históricos. Segundo McCloud (2005), a tumba do escriba egípcio
Menna (século 14 A.C), que apresenta uma série de ilustrações sem texto
ordenando os acontecimentos da vida do escriba, é um exemplo clássico da arte
sequencial. O mesmo exemplo é usado também por Kanno (2006).

Ao longo dos anos, o formato de história em quadrinhos serviu como base


para vários gêneros distintos - desde as tirinhas de jornal, em geral de teor cômico, a
histórias de terror, suspense e romance. Porém são duas as vertentes de maior
destaque no formato - as Graphic Novels, conforme estabelecidas por Eisner - obras
mais volumosas, e que se propõe como literatura ilustrada - e os quadrinhos de
super-heróis, que compõe até hoje a maior parcela do mercado.

3.1.2 O Conceito de Super Herói

Antes de compreender a figura do “Super-Herói”, há de se definir o conceito


de herói. A narrativa heróica clássica, conforme estudada e categorizada por
Campbell23 (CAMPBELL, 1977), se centra no conceito do herói como mito - e a
narrativa heróica como jornada. O herói clássico, diz Campbell, só consegue
encontrar seu lugar no mundo ao distanciar-se do lar - e ao fazê-lo, não pertence
mais a sociedade da qual veio.

O primeiro “modelo” de herói é o herói épico, e seu maior exemplo é Odisseu,


ou Ulisses, de A Odisséia, do poeta grego Homero. Embora a síntese da história de
Odisseu seja bastante simples - a jornada de volta para seu lar na ilha de Itaca - os
detalhes dados por Homero tornam-o “acima do comum” - e por tanto, heróico.
Odisseu enfrenta deuses e monstros, atravessa mares nunca antes desbravados e
até o próprio Hades - o submundo - em sua jornada de volta para casa. Porém o
mais antigo exemplo de herói épico é o mito sumério de Gilgamesh - o monarca
semideus que busca o segredo da imortalidade, apenas para descobrir que a única
maneira de se “viver para sempre” é na memória das pessoas.

23
Campbell, Joseph – escritor americano dedicou sua carreira ao estudo do mito e ao estudo
comparativo da religião. Seu conceito mais famoso é o do Monomito – ou a jornada do herói – que
propõe que toda narrativa mítica é na verdade uma variação de uma única trama básica.
28

A figura do herói passou por uma grande série de variações ao longo dos
anos, mas é na literatura pulp que o “super” herói começa a tomar forma. Publicadas
em revistas feitas de polpa barata - por isso o nome Pulp - as histórias mais
populares do gênero eram contos de aventura, suspense e ficção cientifica. Nas
revistas Pulp é que surgem e se popularizam personagens como o misterioso
vigilante Zorro, o “rei dos macacos” Tarzan, e mais importante para o surgimento dos
super heróis, os “homens de mistério”.

Esses vigilantes misteriosos envolviam várias das figuras de linguagem e dos


recursos estilísticos e narrativos que definiriam seus “sucessores”, como a
identidade secreta, as origens misteriosas, e a “grandiosidade” do herói. Porém,
enquanto o “Super-Herói” volta suas ações para o combate ao crime, esses
“Homens de Mistério”, como o Sombra e Fantomas, tinham motivações não tão
nobres, e embora tivessem seus “dons misteriosos”, raros eram os que de fato
tinham super poderes.

Outra figura do “Pulp” que teve grande influência sobre a industria de


quadrinhos foi John Carter - herói das “crônicas de Barsoom” de Edgar Rice
Burroughs24 - Publicado pela primeira vez em 1912, John Carter era um ex
combatente da guerra civil americana que subtamente se viu transportado para o
planeta Marte - ou Barsoom, como era chamado pelos nativos. Lá, era dotado de
grande força e agilidade por ter crescido na gravidade terrestre. Jerry Siegel e Joe
Shuster criaram o Super-homem como um John Carter as avessas - ao invés de ter
poderes ampliados fora da terra, o herói era superpoderoso na Terra por ter nascido
em um mundo de gravidade ampliada.

Essa relação de poder que cerca o personagem de John Carter é uma versão
extremada de uma questão que cercava boa parte da ficção científica no final do
século XIX e início do século XX. Muitos dos heróis desta época eram homens
brancos civilizados inseridos em um contexto de primitivismo e selvageria, no qual
eram intelectualmente, moralmente e fisicamente superiores aos seus pares
“incultos”. Esse fenômeno se dá como uma defesa ou internalização do discurso

24
Burroughs, Edgar Rice - Escritor americano de ficção cientifica famoso por personagens como
Tarzan, o rei dos macacos, John Carter, o senhor da guerra de Marte, e a série Pellucidar.
29

colonialista, e o elemento “espacial” de Barsoom é uma versão ainda mais distante


do fascínio por terras e povos distantes.

Levando em conta a noção do herói como um indivíduo que “transpõe” seus


limites no cumprimento do dever ou na busca por seus objetivos - o herói clássico,
“acima dos homens comuns”, o super-herói, por ser dotado de super poderes,
deveria se tornar inerentemente menos heróico - afinal, não há superação ou
sacrifício quando um homem invulnerável detém um assalto. Mas segundo o
roteirista Jeph Loeb25 e o filósofo Tom Morris26, o “herói” em super-herói é uma
pessoa admirável por seus feitos e qualidades nobres - não envolvendo aqui a
noção de superação de seus limites, embora a narrativa heróica frenquentemente
leve até o mais poderoso herói a patamares antes inalcançados. Ao invés disso, o
heroismo, segundo Loeb e Morris, envolve transcender seu próprio interesse,
colocando os interesses dos outros em primeiro lugar. (LOEB, MORRIS, 2005, p.
25).

Durante a maior parte de sua existência como figura narrativa, o “super-herói”


é marcado pela sua dedicação ao “bem”, seja este definido como for, pois está
sujeito a interpretações do que é “bem” e “mal” tanto por parte do autor quanto do
leitor, e as normas do gênero ditam que o herói não mata, salvo em situações
especiais, e estes casos são tratados como falhas graves. Porém essa regra do “não
matar, jamais” é um elemento que surge ao longo do processo de construção do
Super Herói - e que a partir dos anos 80, começa a perder sua força.

3.2 A Era de Ouro e os primeiros Super-Heróis

Embora as histórias em quadrinhos já tivessem se estabelecido como mídia


por volta do final do século XIX, primariamente na forma de tiras de jornal e revistas

25
Loeb, Jeph - Roteirista americano, vencedor de quatro prêmios Eisner. Desde 2010, Loeb é o
diretor criativo da Marvel Comics na área de televisão. Entre seus trabalhos se destacam Superman:
Quatro Estações (1999), Batman: O Longo dia das Bruxas (1999) e Captain América: Fallen Son.
Loeb perdeu o filho Sam para o câncer em 2005, e muito do trabalho dele desde então lida com a
perda.
26
Morris, Thomas V. - professor da Universidade de Notre Dame, Indiana e fundador do Instituto
Morris de valores Humanos. Morris produziu muito em termos de estudo filosófico da fé cristã, assim
como o estudo filosófico da “Pop culture”.
30

de humor, assim como as “Tijuana Bibles” – pequenas histórias pornográficas, em


geral sobre celebridades - e a narrativa heróica date dos tempos da mitologia, o
super-herói dos quadrinhos surge em 1938, com a revista Action Comics #1, da
National Comics - Atual DC Comics. Como muitas revistas da época, a Action
Comics era uma coletânea de histórias de ação, centradas em “homens de mistério”.
O grande destaque da revista - e que ilustrava a capa - era a história “Superman”, de
Jerry Siegel27 e Joe Shuster28.

Figura 1. A primeira aparição do


super homem Actions Comics #1,
National Comics, 1938, arte de Joe
Shuster.

Encontrado em uma cápsula misteriosa por um casal de agricultores, o herói,


até hoje o principal nome em termos de super-heróis, passava seus dias disfarçado
como o tímido repórter Clark Kent, mas quando a situação exigia, vestia o uniforme
do Super Homem. Enquanto a caracterização atual do herói é jocosamente referida
por alguns fãs como um “escoteiro gigante”, em suas primeiras histórias o
personagem agia essencialmente como um vigilante - na Action Comics #1, invade a
27
Siegel, Jerry - Escritor de Ficção Cientifica norte americano, Siegel usou o nome Superman pela
primeira vez em 1932, onde o título pertencia a um vilão telepático em um conto na revista pulp
Science Fiction #3. Em 1946, Siegel processou a National Comics pelos royalties do Super-Homem.
Imigrante judeu, muito da caracterização do herói está relacionada à busca por integração em um
novo país – ou planeta no caso do Super Homem.
28
Shuster, Joe - desenhista e escritor canadense, Shuster teve pouco sucesso na indústria após
perder os direitos do Super Homem em 1946, e por volta de 1970 Shuster abandonou o ramo devido
à cegueira parcial. Em 1992 Shuster e Siegel foram homenageados com o prêmio Eisner, e em 2005,
a associação canadense de artistas de quadrinhos criou os prêmios Joe Shuster.
31

casa do governador de Nova York exigindo a libertação de uma prisioneira no


corredor da morte, força a confissão da verdadeira criminosa, intervém
violentamente em um caso de abuso doméstico, e para expor um caso de corrupção
em Washington, abduz e ameaça eletrocutar um lobista.

Além do Superman, a DC Comics foi responsável por outros dois precursores


do gênero: Batman, de Bob Kane29, em 1939, e a Mulher Maravilha, de William
Moulton Marston30, em 1941.

Figura 2. Capitão Marvel – Whiz Comics #2,


Fawcett Comics, 1940. Arte de C. C Beck

O estopim inicial do Super-Homem gerou toda uma indústria de combatentes


do crime fantasiados - enquanto em 1936 Super-Homem era o único super-herói em
publicação, apenas quatro anos mais tarde, o número de títulos do gênero nas
bancas americanas havia passado dos 400. Estes iam desde imitações claras do
precursos, como o Capitão Marvel, da Fawcett Comics - o jovem repórter Billy
Batson, que ao gritar a palavra Mágica Shazam se tornava o poderoso Capitão

29
Kane, Robert - Escritor e desenhista americano, Kane teve pouco destaque na indústria de
quadrinhos além do Batman, obra que lhe concedeu o status de celebridade menor.
30
Marston, William Moulton - Psicólogo e teórico feminista americano além de desenhista e roteirista
de quadrinhos, Marston foi um dos inventores do polígrafo – o popular detector de mentiras – e
publicou em 1928 “Emotions of the Normal People”, um tratado sobre comportamento social a partir
das noções de passividade e atividade.
32

Marvel - a “homens de mistério” como Sandman, Homem Hora, e o maior sucesso


neste estilo, o Batman, além de mistícos como Doutor Destino e o mágico Zatara.

Com a iminente entrada dos EUA na segunda guerra mundial, as histórias


de super herói passaram a participar ativamente do esforço de guerra - não eram
raros os personagens criados explicitamente como instrumentos propagandisticos,
como o Capitão América, Combatente Americano, U.S Agent e o Patriota 31, mas
mesmo aqueles heróis que não surgiram com este fim faziam parte das
propagandas governamentais pedindo suporte as tropas, assim como de programas
governamentais e não governamentais. De títulos de guerra a coleta de sucata, não
havia um ramo do chamado “serviço patriótico” que não fosse avidamente
propagandeado pelos “outros homens de uniforme”.

Para quem está acostumado com os quadrinhos atuais, as versões iniciais de


clássicos como o Super Homem e o Batman são bastante dissonantes - enquanto o
Super Homem se tornou o “grande escoteiro” que é atualmente por volta do ínicio
dos anos quarenta, sua versão original, nas mãos de Shuster e Siegel, era um feroz
inimigo da corrupção, não vendo problema em usar da violência, de chantagem e de
ameaças contra criminosos, politicos sujos e lobistas. Da mesma maneira, o Batman
moderno é conhecido por sua total aversão a armas de fogo, fruto de sua história de
origem (O jovem Bruce Wayne perde os pais em um assalto, e adulto decide tornar-
se o terror do crime em Gotham), durante a “era de ouro” o herói não apenas usava
com frequência uma pistola, mas a arma em questão era a mesma arma que matou
seus pais.

3.2.1 O declínio no pós-guerra

Durante a Segunda Guerra mundial, os quadrinhos de Super Herói estavam


em seu auge - 90% dos títulos publicados pela DC Comics eram revistas de super
heróis, e metade da população americana lia revistas em quadrinhos, segundo

31
É relevante notar que a grande maioria destes heróis patrióticos eram super soldados frutos de
experimentos científicos, cujos poderes se resumiam a uma força e agilidade “nos limites da
capacidade humana”, da mesma maneira que o primeiro do gênero, o Capitão América. Da mesma
maneira, Combatente Americano, U.S. Agente, Patriota e o Guardião, da DC Comics, todos usavam
como arma um escudo de arremesso.
33

pesquisas. Entre os militares, as revistas de super-heróis vendiam dez vezes mais


do que a soma do Saturday Evening Post e o Reader’s Digest32 (KNOWLES, 2008
p.156).

Figura 3. Quadrinhos de crime dominavam o


Mercado após o fim da segunda guerra mundial.
True Crime #2, Magazine Village 1947, arte de
Jack Cole.

Porém, com o fim da guerra, as vendas entraram em queda - sem um “vilão”


óbvio, e sem uma ameaça constante, o publico não tinha mais interesse em
combatentes do crime uniformizados, e em seu lugar, as editoras passaram a
priorizar histórias de crime, horror e mistério. Em 1948, 20% dos comics tratavam de
crime (BENTON, 1991, p 9).

E de acordo com Wright, esses quadrinhos tratavam da violência num grau


que não era visto antes em revistas ou em outros veículos de entretenimento de

32
Duas das mais populares revistas de coletâneas dos EUA, com contos, artigos, piadas e
reportagens de várias fontes. Durante a segunda guerra mundial eram publicadas semanalmente –
atualmente, o Saturday Evening Post é uma revista bimestral, enquanto o Reader’s Digest é
publicado mensalmente.
34

massa, o que causava preocupação social, sob a égide de “proteger as crianças de


más influências. (WRIGHT, 2001)

Durante esse período de queda do super heroísmo, a DC Comics e sua maior


concorrente, a Timely Comics (atual Marvel) perderam o mercado para a
Entertainment Comics33, de William Gaines e Al Feldstein. Especializada em
histórias de terror e ficção científica, os quadrinhos da EC eram marcadas por um
senso de humor “sagaz e bem elaborado” (KNOWLES, 2008, p. 156). A “era de
ouro” dos quadrinhos lentamente definhava, conforme mais e mais títulos de super
heróis eram cancelados ano a ano - em um dos casos mais chamativos, o Capitão
América foi cancelado sem aviso em 1948, sem nem ao menos aparecer na capa de
sua então ultima revista.

3.3 A Sedução dos inocentes e a Era de Prata

Em 1954, no auge da publicação dos quadrinhos da EC, a publicação do


livro “A Sedução dos Inocentes”, do psiquiatra alemão Frederick Wertham 34, levou a
uma crise no mercado de quadrinhos - na obra, Wertham acusava as revistas em
quadrinhos de glorificarem a criminalidade e a imoralidade, e de explorarem de
forma gratuita a violência, o sexo e o uso de drogas. Wertham centrou sua obra nos
chamados quadrinhos do crime, mas também incluía em sua análise os quadrinhos
de super-heróis.

De acordo com Wertham, histórias em quadrinhos seriam a principal causa da


delinquência juvenil, e os personagens dos quadrinhos de super-heróis ocultavam
mensagens subversivas e “anti-americanas”. Entre outras declarações, inicialmente
ignoradas pela industria de quadrinhos, Wertham afirmava que a “dupla dinâmica”
Batman e Robin continha um forte subtexto homossexual e pedófilo, a Mulher
Maravilha seria uma lésbica envolvida com sado-masoquismo (Este último detalhe

33
A EC Comics deixou o mercado de revistas em quadrinhos em 1956, mudando o formato e
publicando artigos além das HQs para se tornar a MAD Magazine.
34
Wertham também era firmemente oposto ao cinema e a televisão, embora tenha se posicionado
favorável às histórias em quadrinhos durante a década de 70, quando publicou “The World of
Fanzines”, que se concentrava no aspecto criativo da fanbase de HQs. Wertham também foi um forte
critico das políticas de segregação racial.
35

tem fundamentação na realidade, pois o criador da Mulher Maravilha, William


Moulton Marston, era abertamente adepto da pratica sadomasoquista, que permeia
toda sua obra), e o Super-Homem tinha uma mensagem fascista e supremacista.

Figura 4. O novo flash e o início da Era de


Prata Showcase#4, DC Comics, 1956, arte
de Carmine Infantino.

Com a celebridade causada pelo livro, Wertham foi chamado a depor perante
ao Subcomitê do Senado para Delinquência Juvenil, sob a liderança do senador
Estes Kaufer. Lá, reafirmou os argumentos de “Sedução dos Inocentes” - embora o
Subcomitê tenha concluído que os quadrinhos não eram responsáveis pela
delinquência juvenil, o parecer final do Senado foi de que a industria estava
cometendo alguns excessos, e deveria amenizar o conteúdo voluntariamente.

Temendo a censura, as editoras formaram o Comics Code Authority (CCA,


aqui conhecido como o código de ética dos quadrinhos), não apenas regulando o
conteúdo, mas banindo conceitos e palavras inteiras da indústria - como histórias de
terror e de guerra - e estabelecendo que nenhuma história que não terminasse com
os criminosos sendo devidamente punidos poderia ser publicada com o selo do
código.
36

Com essas novas regras, não havia mais espaço para quadrinhos de ação
que não fossem versões “limpas” dos quadrinhos de super-heróis, mas salvo alguns
poucos títulos de destaque, os heróis não representavam uma parcela significativa
das vendas, e precisavam se adequar aos tempos. Com o avanço da guerra fria, o
início da Era Atômica e a corrida espacial, o foco agora era a “Ameaça Vermelha”,
os perigos da ciência nuclear e os mistérios do espaço sideral.

Os super-heróis estavam novamente liderando o mercado - por falta de


alternativas - e deixavam para trás os velhos personagens da “Era de Ouro”. A nova
“Era de Prata” se iniciava com a revista Showcase #4, em outubro de 1956, com a
estréia do segundo The Flash. Caía o “gênio da química” Jay Garrick, transmutado
acidentalmente em um “deus mercúrio reencarnado”, e entrava em seu lugar Barry
Allen - um químico foreense que teve seu metabolismo hiper acelerado por uma
fórmula experimental.

Outro personagem completamente reelaborado no início deste período foi o


Lanterna Verde. Enquanto durante a década de quarenta o título era estrelado pelo
engenheiro de rádio Alan Scott, que tirava incríveis poderes de uma lanterna feita de
um metal mágico tibetano, a revista Showcase # 22 traz a nova versão do herói - o
piloto de testes Hal Jordan, que recebe um anel superpoderoso de um alienígena
morinbundo, se tornando o primeiro membro terrestre da Corporação dos Lanternas
verdes, uma vasta “Polícia intergaláctica”.

Um dos precursores da “Era de Prata”, antes do que é considerado o ínicio


“oficial” deste período foi o Caçador de Marte35, que estréia na revista Detective
Comics # 225, em 1955. Embora ainda estivesse dentro do paradigma menos
“higienizado” da “Era de Ouro”, o misterioso marciano metamorfo já trazia sinais da
mudança de foco do homem de mistério e o misticismo para o científico e o
alienígena.

Como o código não permitia que fossem retratadas cenas de morte e


violência extrema, e fortemente desaconselhava o uso de mafiosos nas revistinhas,
o foco da ação dos bandidos das HQs passa de crimes comuns para esquemas

35
Em suas primeiras histórias, o personagem se centrava em trabalho de detetive, usando seus
poderes telepáticos para obter pistas, e sua forma marciana para intimidar criminosos.
Posteriormente, foi reescrito como um super-herói clássico.
37

mirabolantes. Vilões antes conhecidos por metodos engenhosos de execução


passam a cometer crimes com a intenção de ludibriar ou humilhar os heróis, a
exemplo do Coringa - reduzido de um ladrão e assassino em série dotado de um
senso de humor macabro para um legítimo “Palhaço do Crime”, focado em trotes
baratos.

Embora o período tenha sido marcado por histórias bobas, como o Batman ou
o Super-homem tendo que lidar com um novo - e em geral ridículo - poder, visitas de
delegações alienígenas, interesses romênticos gigantes, e outras tramas surreais, é
durante a Era de Prata que a arte dos quadrinhos começa a se profissionalizar. O
traço rebuscado e irregular, assim como a impressão grosseira dos anos anteriores
cedem espaço para desenhistas como Jack Kirby, John Romita Sr e Gil Kane, que
redefinem o visual das HQs, com linhas mais limpas, dinamismo na ação
(STRAUSSBAG, 2003).

3.3.1 Stan Lee36 e a “Casa das Idéias”

Enquanto a DC Comics tratava de revitalizar a figura do Super Herói, um


pequeno conjunto de artistas e roteiristas da antiga Timely Comics funda a Marvel
Comics, a partir das antigas propriedades das extintas Timely e Atlas Comics. Se
destacando nesse grupo estavam Stan Lee Jack Kirby37 e Joe Simon38. Embora
certamente houvesse uma grande variedade de heróis, a variedade de personagens
não era assim tão grande - com poucas excessões, a identidade civil do herói era
apenas um disfarce - nenhum dos heróis da DC tinha qualquer “defeito de caráter”, e
todas as fraquezas eram ligadas aos poderes. O mesmo problema ocorria com os

36
Lieberman, Stanley - ex-presidente executivo da Marvel Comics, Lee começou sua carreia na
indústria de quadrinhos como freelancer fazendo o texto das capas do Capitão América em 1941,
enquanto servia como oficial de comunicação do exército americano. Ao longo dos anos, Lee foi
responsável pela criação de centenas de personagens de sucesso, incluindo o Homem-Aranha,
Homem de Ferro, os X-Men e o Incrível Hulk.
37
Kutzberg, Jacob - desenhista e roteirista de quadrinhos. Kirby foi o co-autor de vários personagens
de Stan Lee – sem reconhecimento por seu trabalho, partiu da Marvel para a DC Comics em 1970.
Além dos personagens da era Lee/Kirby, também autorou séries como Kamandi nos fins da Terra e a
linha Quarto Mundo. Um dos seus personagens de maior sucesso fora dos quadrinhos foi o herói de
fantasia He-Man e os Mestres do Universo, levado a TV pela Filmation no inicio dos anos 80.
38
Simon, Joe - Roteirista de quadrinhos trabalhou como o primeiro editor chefe da Timely Comics,
onde junto com Kirby criou o Capitão América. No final da década de 40, junto com Kirby cria o
gênero de quadrinhos românticos, que teve grande sucesso durante a década de 50.
38

interesses românticos dos heróis - Barry Allen era noivo da reporter Iris West, que,
frustrada com a “vagarosidade” do químico, voltava o olhar para o velocíssimo Flash,
Hal Jordan amava Carol Ferris, interessada pelo Lanterna Verde, e Clark Kent tinha
sua Lois Lane, que só tinha olhos para o Super Homem. A Marvel, no entanto,
preferiu focar suas histórias em um elemento mais humano - heróis como Homem-
Aranha, Homem de Ferro e o Incrível Hulk não eram mais os “bons moços” da DC,
mas figuras falhas e inseguras (JACOBS,1985, p. 3-4). O alvo não era mais o
público infantil, mas também os adolescentes e jovens adultos que haviam crescido
com os quadrinhos da “Era de Ouro”.

Figura 5. Estreia do Homem- Aranha,


Amazing Fantasy #15, Marvel Comics, 1962,
arte de Steve Dikto.

Enquanto o drama pessoal do Super Homem se resumia a suas tentativas de


esconder seu segredo e conquistar o coração de Lois Lane, Peter Parker, o Homem-
Aranha, tinha que lidar com valentões na escola, provas, um emprego mal pago para
ajudar a sustentar a casa mantida pela tia idosa, e outros problemas que eram
comuns entre os jovens. Ao contrário dos antigos heróis, sem motivações claras
para combater o crime (salvo o Batman, movido por vingança), a razão de ser do
39

Homem-Aranha era o remorso - após ganhar seus incríveis poderes, decidiu ganhar
fortuna como lutador, e irritado por não ser pago, deixa um ladrão fugir com o
dinheiro das lutas, horas depois, o mesmo ladrão mata seu tio Ben, gravando no
jovem Parker a noção de que “Com grande poder deve vir grande responsabilidade”.

Talvez o personagem mais “diferente” da editora, o Incrível Hulk era aquele


que menos se encaixava na idéia de super herói. Exposto a uma rajada de radiação
gama, o irrascível cientista Bruce Banner se transformava em um monstro
extremamente forte - o Hulk - quando irritado. Embora combatesse super vilões, as
“boas ações” do Hulk eram em grande parte acidentais, e muitas vezes o monstro
causava mais estragos do que seus inimigos. A criatura Hulk não era bondosa, mas
também dificilmente era maligna; embora nas primeiras edições o Hulk tivesse um
profundo desprezo pelos “humanos fracos”, principalmente por seu alter ego Banner,
o personagem em ambas as personas era movido pelo simples desejo de ser
deixado em paz - e a incapacidade dos militares e de supervilões em garantirem isso
a Banner era a causa de boa parte dos seus problemas, embora muitas vezes a
transformação fosse causada por um evento banal.

Em 1960, a DC Comics criou a “Liga da Justiça”, unindo em um único título


vários de seus personagens mais populares, incluindo os “pesos pesados” Super
Homem e Batman. Em resposta, Stan Lee cria o “Quarteto Fantástico” - enquanto o
super grupo da DC era composto por velhos conhecidos dos leitores, a equipe da
Marvel apresentava quatro personagens completamente novos.

Em 1964, a Marvel cria um grupo a partir da mesma idéia da Liga da Justiça -


Os Vingadores, unindo em uma única revista cinco dos personagens mais populares
da editora - Hulk, Thor, Homem de Ferro, Homem Formiga e Vespa.
40

Figura 6. A estreia dos Vingadores, um dos


primeiros super grupos da Marvel, Marvel
Comics, 1964, arte de Jack Birby.

Enquanto os heróis da DC rapidamente se uniam para combater o mal, a


experiência dos Vingadores foi desde a edição número 1 marcada pela
desconfiança, e a formação original foi desfeita já na segunda edição, quando o Hulk
partiu da equipe após ser tratado como um monstro por seus “companheiros”, que
não foram capazes de perceber que seu corpo estava sobe controle do “Fantasma
do Espaço”. Essa tensão marcou toda a publicação dos “Vingadores”. Hank Pym, o
Homem Formiga, sofria com um complexo de inferioridade frente a equipe que lhe
levou, entre outras coisas, a criar o vilão Ultron, e a armar um ataque de monstro
contra a equipe de maneira a conquistar respeito. O deus nórdico Thor abertamente
desdenhava seus companheiros mortais, assim como o Homem de Ferro fazia
questão de frisar que todo o equipamento e o espaço da equipe era uma doação do
seu “Chefe” e alter-ego Tony Stark.

Nos anos finais da era de prata, começam a surgir os primeiros super-heróis


membros de minorias dentro do “Mainstream” dos quadrinhos. Até o surgimento do
Pantera Negra (o primeiro super herói africano na Marvel), em 1966, negros
estavam reduzidos a papéis coadjuvantes, quando não eram personagens de fundo.
E mesmo quando estavam em papéis centrais, eram caricaturas como o Ebony
41

White, o motorista do personagem “Spirit”, de Will Eisner. Com lábios grossos e


traços exagerados, Ebony White era uma representação exagerada dos clichês a
respeito da população negra - a ponto de beirar o racismo – como demonstra a
figura 7, Ebony nem ao menos parecia pertencer ao mesmo universo que o Spirit,
feito com traços mais realistas. Esse timido movimento de integração ganha força
nos anos seguintes.

Figura 7. O Spirit e o Ebony White, The Spirit #10,


1947,Quality Comics, arte de Reed Crandall.

Um outro destaque da Marvel era a relação de seus heróis com a sociedade


como um todo dentro de suas histórias - enquanto na DC e nas várias editoras
menores os super heróis eram bem vistos, a relação deles com o governo e a
imprensa era mais tumultuosa nos quadrinhos da casa das idéias. O Homem-Aranha
tinha a inimizade do editor chefe do Clarim Diário, J.J. Jameson, que estampava
manchetes como “Homem-Aranha: Perigo, ou Ameaça?”. O Hulk era perseguido
pelo exército e temido pelo povo, e as empresas Stark lidavam constantemente com
o assédio do governo para revelar os segredos da armadura do Homem de Ferro.
Como um todo, o universo Marvel era marcado por um tom muito forte de
42

desconfiança nesses misteriosos salvadores, e a pergunta constante era “o que eles


têm para esconder”.

3.4 O Fim da Inocência – a Morte de Gwen Stacy e o início da Era de Bronze

Nos últimos anos da chamada “Era de Prata”, graças a influência da Marvel,


os roteiros das histórias de super heróis passavam a abordar temas mais sérios.
Essa tendência atinge um ponto máximo com as histórias “Snowbirds don’t Fly”,
publicada nas revistasGreen Lantern/Green Arrow # 85 e 86, de outubro e novembro
de 1971, pela DC, e “The Night Gwen Stacy Died”, publicada na revista Amazing
Spider-man # 122 de julho de 1973, pela Marvel.

Figura 8. Quadrinhos abordam a questão


das drogas Green Lantern, Green Arrow # 85,
CD Comics, 1971, arte de Neal Adams e
Dick Giordano.

Violando em grandes partes o código de ética dos quadrinhos, a DC lidou de


frente com o tema das drogas - completamente proscrito pela CCA - revelando que o
jovem parceiro do Arqueiro Verde, Roy “Ricardito” Harper estava viciado em heroína,
e vendendo equipamentos do seu mentor para sustentar o vício. A história surgiu
43

inicialmente como uma resposta a minisérie “Green Goblin Reborn”, da Marvel, que
também lidava com o tema. A trama havia sido encomendada pelo Departamento de
Saúde, Educação e Bem Estar Social dos EUA como parte de uma campanha
antidrogas, mas foi bloqueada pela CCA. Preferindo manter a mensagem da trama,
o editor-chefe da Marvel, Stan Lee, ignorou o código, e lançou a revista sem o selo
de aprovação, levando a revisões na CCA.

Apesar de ter perdido a “novidade” para a Marvel, a trama da DC se


destacava por retratar os usuários como vítimas, e não como criminosos. Enquanto
a revista da Marvel não abordava o “porque” das drogas, “Snowbirds...” deixava
clara a carência afetiva que levou Harper ao uso de drogas, assim como os
problemas sociais que giravam em torno do tema. Em uma passagem, Harper rejeita
as súplicas do seu mentor e do lanterna verde, afirma não ter motivos para acreditar
no que os dois heróis - na casa dos 30 anos - tem a dizer sobre as drogas, pois a
geração deles foi a geração que mentiu sobre a segregação e sobre o Vietnã. Em
outra cena, dois viciados amigos de Harper - um negro e um asiático - alegam que o
vício foi uma maneira de fugir da discriminação. A oposição do roteirista Dennis
O’Neill39 ao uso de drogas é deixada clara com uma página inteira do sofrimento do
jovem lidando com uma crise de abstinência - mas ao mesmo tempo, O’Neill e o
desenhista Neal Adams reforçam que o uso de drogas não é uma questão de
delinquência juvenil, mas sim um grave problema social.

Na revista da Marvel, a namorada de Peter Parker, Gwen Stacy é


sequestrada pelo Duende Verde - que descobriu a identidade secreta do herói. Na
tentativa de resgata-lá quando o vilão a joga da ponte do Brooklyn, o Homem-
Aranha acaba causando a morte da garota devido a parada súbita - que quebrou o
seu pescoço. A ocasião marca a carreira do herói - já visto com desconfiança pela
população Nova Yorkina. No final da edição, o Aranha jura vigança contra o Duende
Verde. O duelo entre os dois vem na edição seguinte, na qual apesar da raiva, o
herói não consegue “descer ao nível” do Duende, e matá-lo. A trama termina com o
Duende Verde causando sua própria morte, empalado por seu próprio planador - e
Parker voltando para casa devastado, sendo consolado pela vizinha, Mary Jane

39
O’Neill, Dennis - Editor e roteirista americano, O’Neill explorou a capacidade artística da mídia em
quadrinhos com obras como Green Lantern/ Green Arrow e Batman. Atualmente é um dos diretores
da Ong de caridade The Hero Initiative.
44

Watson - que em edições futuras se tornaria sua namorada, e posteriormente


esposa.

Figura 9. A noite em que Gwen Spacy


Morreu, SpiderMen #122, Marvel Comics,
1973, arte de John Romita Sr.

Naquele ponto, a “inocência” das revistas em quadrinhos havia acabado


(BLUMBERG40, 2003). O que se seguia era um período de maturação, em que as
revistas de super-heróis começavam a lidar com temas adultos, como o uso de
drogas, corrupção política, fanatismo e o alcoolismo.

Enquanto na era de prata fora a Marvel que ficou na “vanguarda” dos


quadrinhos, agora a frente estava dividida com DC, e a demissão de Jack Kirby em
1970 teve muito a ver com isso. Kirby partiu da Marvel para a DC, onde foi
responsável pela linha “Fourth World”, onde estreearam vários personagens de
destaque da editora, como o vilão Darkseid41 e os novos Deuses. Kirby havia criado
um grupo parecido quando estava na Marvel, os Eternos. Sem ter garantido o direito
autoral na Marvel, Kirby levou suas idéias para a concorrente, autorando as séries
“Forever People”, “New Gods” e “Mister Miracle”. A trama do “Quarto Mundo” girava

40
Blumberg, Arnold T - historiador e critico de quadrinhos americano. Blumberg atua primariamente
no estudo da pop culture, e atuou como escritor na série britânica Doctor Who.
41
Embora tenha surgido como o vilão da linha Fourth World, o deus das trevas e ditador do planeta
Apokolips foi rapidamente inserido no restante do universo DC. Enquanto a maioria dos personagens
da linha mantém-se em papéis secundários, Darkseid virou o “vilão padrão” da DC para eventos
cósmicos, enfrentando com freqüência o Super Homem.
45

em torno de conceitos metafísicos e filosóficos, que antes não eram abordadas por
quadrinhos de super heróis. (RO, 2004).

3.4.1 A retomada do Pulp e do horror

Conforme o código de ética dos quadrinhos foi se tornando menos repressivo,


as editoras passam a retomar antigos personagens do Pulp, como Conan O
Bárbaro, O Sombra e Doc Savage, assim como histórias de horror e mistério. A
publicação deles havia sido interrompida devido as limitações do código, e tentativas
de reescrever-los dentro dos limites fracassaram; sem as restrições, anti-heróis e
vilões protagonistas podiam voltar as bancas, e as editoras foram extremamente
rápidas em reaproveitar todos os personagens que tinham os direitos mas não
podiam vender antes. Ainda assim, muitos, como o Conan, foram levemente
alterados para serem mais heróicos.

Sem ter que se voltar exclusivamente para o heroísmo “puro”, surgem


personagens como O Justiceiro, Vigilante, e o caçador de recompensas Jonah Hex -
anti-heróis duros e violentos contra o crime. Enquanto durante a era de prata a regra
geral era não matar, nunca, esses personagens raramente levavam suas “presas” a
justiça, e enquanto outros heróis evitavam usar armas, a especialidade de Frank
Castle, o Justiceiro, era justamente o seu impressionante arsenal contra os
bandidos.

Entre estes vigilantes se destaca o Senhor A, do co-criador do Homem-


Aranha, Steve Ditko42. Após se desligar da Marvel em 1966, Ditko trabalhou com a
pequena Charlton Comics, onde criou o misterioso vigilante mascarado em 1967 - O
idoneo jornalista Rex Graine, que durante as noites vaga pelas ruas em uma
mascara de expressão austera combatendo o crime. Escritas e Ilustradas por Ditko,
as histórias do Senhor A eram primariamente panfletagem do objetivismo da filósofa
Ayn Rand43. Como muitos heróis Pulp, A não tinha qualquer piedade por criminosos,

42
Ditko, Steve – Desenhista e escritor americano, Ditko foi responsável pela reestruturação de vários
personagens da era de ouro dos quadrinhos quando a publicação destes foi retomada nos anos 50 e
60.
43
Rand, Ayn - filosofa e escritora russo-americana, famosa pela filosofia objetivista, que rejeita todas
as formas de crença sobrenatural, assim como de altruísmo ético. Pelo ver de Rand, o egoísmo
46

e enquanto pequenos trangessores eram levados a justiça, assassinos e corruptores


eram deixados para morrer apesar de suas súplicas. Ao final de cada edição, A
verbalmente destruía todas as justificativas e motivações do criminoso, e muitas
vezes, as motivações eram dadas a cada painel da aventura. Ditko teve outras três
séries na mesma estrutura - O Questão, também da Charlton, e as séries H (de
Herói) e J (de Justiça), com personagens diferentes a cada edição, sempre dotados
de uma moral irredutível.

Junto com a retomada dos homens de mistério e as histórias de “Espada e


Feitiçaria”, como é o caso do Conan - publicado pela Marvel - e de Fahfrd e o Rato
Cinzento - da DC - as mudanças no código de ética propiciaram o retorno das
tramas de horror e suspense, assim como dos personagens com uma temática mais
“ocultista”. Em 1966, a Marvel passou a publicar os quadrinhos do Feiticeiro
Supremo, o Doutor Estranho; mas a partir de 1970, o mercado começa a ser tomado
de frente por tramas de horror, inicialmente baseadas em clássicos do gênero, como
é o caso de “A tumba de Drácula”, da Marvel. Com o sucesso de “Tumba...”, as
editoras começam a arriscar personagens originais no estilo, como o Motoqueiro
Fantasma (data) e Damien Hellstorm, o filho de Satã (data), ambos da Marvel, e
Etrigan, o demônio, da DC comics. Em todos os casos, eram anti-heróis cujos
poderes vinham diretamente “das trevas”, mas que os usavam para combater as
forças do mal - de maneiras pouco “amigáveis”.

racional é a única forma de virtude, e por isso Rand era uma firme defensora do capitalismo ultra-
liberal. Além do objetivismo, é conhecida pelos livros “The Fountainhead” e “A revolução de Atlas”,
defesas da razão objetivista.
47

Figura 10. Motoqueiro fantasma, um


dos heróis “demoníacos” surgidos em 70.
Ghostrider #1, Marvel Comics, 1973,
arte de Gil Kane.

3.4.2 Os heróis das minorias

Durante toda a era de ouro e durante boa parte da era de prata dos
quadrinhos, a representação de minorias nos “comics” era quase nula - quando
estavam presentes, eram como vilões, ou como personagens coadjuvantes, em sua
maioria extremamente caricatos, como é o caso do parceiro do Spirit, Ebony White,
com seus labios espessos e traços exagerados, ou de todos os “Japs” enfrentados
pelos heróis durante a segunda guerra - com olhos puxados ao extremo e dentes
protuberantes. O quadro tem uma leve mudança com a criação do Pantera Negra
em 1966, mas o herói ainda sofria com estereótipos, sendo um príncipe africano que
embebia de uma erva mágica para ganhar a força e a agilidade de uma pantera.

O primeiro super-herói afro-americano no “mainstream”, e também o primeiro


a escapar de ter a palavra “negro” encaixada no nome foi o Falcão, um dos muitos
heróis a agirem como parceiros do Capitão América, em 1969. Outros heróis afro-
descendentes do fim da era de prata e início da era de bronze incluem o Golias
Negro, da Marvel, o segundo lanterna verde moderno, John Stewart, da DC Comics
48

- por razões desconhecidas, não listado entre os Lanternas Verdes pela editora
(enquanto Hal Jordan é o Lanterna Verde I, Guy Gardner, que surigiu após Stewart é
o II, e Kyle Rayner é o terceiro, oficialmente) e o membro da legião dos super-heróis
Tyroc.

Este último foi um caso extremamente infortuno. De acordo com o ex-


roteirista de Legião dos Super Heróis, Jim Shooter44, havia a intenção de incluir um
negro do grupo de heróis do ano 3000 desde a década 60, mas havia sido impedido
repetidas vezes pela DC Comics. Quando a editora finalmente cedeu em 1970, o
personagem, ao invés de ser um legionário que por acaso era negro, se tratava de
um separatista racial, vindo de uma “ilha mágica isolada do mundo” (CADIGAN,
2003, p. 52, 63) - que segundo o então editor da DC Murray Baltinoff, era a
explicação para a completa ausência de negros nas histórias da legião (CADIGAN,
2003, p. 90). Em 1972, a Marvel cria o primeiro super herói asiático, Chang-Shi, o
Mestre do Kung-fu, novamente sofrendo de estereótipos étnicos - pois afinal, sendo
asiático, ele claramente tinha que ser um artista marcial. Ainda hoje são raros os
super-heróis de origem asiática cujos poderes não tem a ver com artes marciais,
dragões ou filosofia oriental, e entre os poucos que saem deste clichê, muitos, como
o mutante Fogo Solar caem em outros - no caso, ter “todo o poder do sol nascente”.

Com a proliferação dos movimentos sociais e a maior inclusão das minorias,


um dos supergrupos da Marvel Comics, os X-Men têm uma súbita “explosão” de
popularidade - a revista começou a ser publicada em 1966, mas foi cancelada em
1969 devido as baixas vendas. Usando os mutantes - excluídos da sociedade por
serem “diferentes” - como metafora para toda forma de grupo discriminado, o editor
e roteirista Chris Claremont45 revive a equipe em 1975, com “Giant Sized X-Men #1”
- e desde então, os X-Men tem sido um dos carros chefe da Marvel, com não menos
do que seis títulos planejados para publicação em 2012. O grupo também marcou
pelo foco em heróis adolescentes, que foi seguido pela DC em New Teen Titans, de
Marv Wolfman, iniciado em 1973.

44
Shooter, Jim - Editor roteirista e desenhista americano, Shooter foi responsável por reestruturar a
legião dos super-heróis no inicio da sua carreira. Posteriormente assumiu o cargo de editor chefe na
Marvel Comics, antes de fundar a Valiant Comics no final da década de 80 – a editora faliu em 1996.
45
Claremont, Chris - roteirista e novelista americano, Claremont autorou os quadrinhos dos X-Men
durante 17 anos, entre 1975 e 1991, criando vários dos personagens de destaque das linhas “X” da
Marvel. Segundo o Guinness, X-Men #1, de 1991, escrito por Claremont e Jim Lee, é a HQ mais
vendida da história, com mais de oito milhões de cópias vendidas somente nos EUA.
49

Ao mesmo tempo, a Marvel aproveita o abundante mercado de filmes de artes


marciais e cria o Punho de Ferro - que não representa nenhuma minoria - e o
mercado de “Blackspoitation”, filmes baratos voltados para a população negra, em
geral filmes sobre criminosos ou tiras durões acusados injustamente, e cria o
personagem Luke Cage, o Power Man. Com poucas vendas nos dois títulos, o negro
durão do Harlem e o bilionário artista marcial viram uma dupla em Heróis de Aluguel,
seguindo todos os clichês dos filmes policiais - porém em uma estética de super-
heróis.

Do outro lado do mercado, a DC encara os temas sociais mais diretamente


em “Green Lantern/Green Arrow”, série unindo os dois heróis “verdes”, após o
roteirista Dennis O’Neill alterar radicalmente Oliver Quinn, o Arqueiro Verde, ao fazer
ele perder toda sua fortuna e se conscientizar dos problemas sociais no número 75
de Justice League of America. Desta história em diante, enquanto Hal Jordan, o
lanterna verde, se preocupava com deter os criminosos, Quinn se importava mais
em lidar com as causas da criminalidade.

Figura 11. Lanterna verde é confrontado sobre a


questão racial Green Lantern/ Arrow #76, DC Comics
1969, arte de Neal Adams.
50

Além da significativa “Snowbirds don’t Fly”, a dupla teve outra história de


destaque com a edição que marcava o inicio da parceria, em Green Lantern # 76, de
1969, em que a ineficiência e descaso Lanterna Verde são escancaradas por um
senhor negro que lhe pergunta o porque dele dar tanta atenção para peles azuis,
peles verdes e peles rosas em outros planetas, enquanto ignora o sofrimento dos
peles escuras na Terra. O herói fica sem resposta, como demonstrado na figura 11.

Porém, uma minoria em particular não teve representatividade na era de


bronze - o primeiro herói homossexual nas “duas grandes” só foi oficializado em
1993, o Estrela Polar, da Tropa Alfa - um grupo de menor destaque - e durante anos
o personagem permaneceu solteiro, sua homossexualidade mencionada, mas não
focada. O tema foi melhor abordado na série Authority, na qual dois membros da
equipe, Apollo e Meia Noite, são um casal gay, e que se afasta da maioria dos
clichês sobre homossexualidade, sem serem afeminados, obcecados com
aparências ou promíscuos – de fato o par manteve um relacionamento estável
durante toda a publicação de Authority, entre 2003 e 2010.

3.4.3 Alan Moore46 e o fim da era de bronze

Durante a segunda metade dos anos 70, e a primeira metade dos anos 80, o
foco das histórias em quadrinhos de super-heróis estava caindo cada vez mais nos
dramas pessoais dos heróis, e nas consequências da presença de super-heróis no
“status quo”. Tramas como “Demon in the Bottle”, de 1979, lidavam com uma
abertura ainda maior com problemas de vício e o desequilibrio de poder
representado pelos “super humanos”. Na minissérie do Homem de Ferro, o grande
vilão não era o corrupto empresário Justin Hammer, que armou um complô para
descreditar o herói e roubar sua tecnologia, mas sim o alcoolismo de Tony Stark - a
tal ponto que a situação com Hammer é resolvida no meio da minissérie, enquanto o
problema de Stark com a bebida é um ponto chave do personagem até hoje.

46
Moore, Alan - Escritor inglês freqüentemente chamado de “o melhor escritor de quadrinhos do
mundo”. Moore começou a carreira em revistas independentes como 2.000 AD e Warrior, antes de
ser contratado pela DC no final dos anos 70. Muito do trabalho de Moore é marcado por um estilo
transgressivo, como em Lost Girls, de 2007, obra acusada de ser pornografia infantil, ou por
misticismo, como em Promethea, de 2005 em diante, uma introdução as visões filosóficas e
metafísicas de Moore.
51

Em 1978, Jim Shooter assume a posição de editor chefe da Marvel Comics,


onde estabelece um novo “código dos quadrinhos” ao estabelecer as diretrizes
editoriais da Marvel, em 1982. Ao contrário do antigo, que visava controlar o
conteúdo das revistas, Shooter visa orientar a qualidade das histórias. As normas
breves eram as seguintes:

○ Os personagens precisam ser introduzidos;


○ A situação precisa ser estabelecida;
○ O conflito deve ser introduzido;
○ O suspense deve ser construído;
○ Um clímax precisa ser alcançado e
○ Uma resolução tem que ser alcançada

Embora as normas pareçam óbvias, Shooter sentiu a necessidade de


explicitá-las, pois sentia que muitas vezes estes itens não eram tratados como
deveriam, e que muitos roteiristas não demonstravam saber o que estavam fazendo.
(SHOOTER, 1982).

Ao mesmo tempo, a DC tentava organizar o conjunto da editora com o


especial “Crisis on Infinite Earths”, que se propunha a reescrever todo o universo
DC, eliminando as confusões.

E dando o “tiro de largada” de “Crisis...” estava o especial do Super Homem,


“Whatever happened to the man of tomorrow” (1986), do inglês Alan Moore. Moore
já havia dado um tom mais pesado às histórias do Super Homem com “Para o
homem que tem tudo” (1985), onde o vilão Mongul “presenteia” o Super Homem
com uma planta alienígena que lhe prende em um mundo de sonhos – a trama
revela tanto o Super Homem quanto o Batman como figuras vulneráveis e que mais
do que qualquer coisa, desejavam recuperar a infância perdida. Em “Whatever
Happened...”, Moore eliminou os últimos traços da “inocência da era de prata”,
começando pelo comico ex-vilão Bizarro - antes uma versão “ao contrário” do Super
Homem, aqui a lógica bizarra chegava ao seu extremo quando o vilão destrói seu
planeta de Htrae, vem para a terra adulto, se torna temido e odiado, e por último
comete suícidio. Isso tudo por que sua contra parte veio a terra como um bebê após
seu planeta ser destruído, se tornou amado e idolatrado - e estava vivo.
52

Após “Crisis...”, Moore co-autorou a minissérie Watchmen, publicada através


do selo Vertigo, entre 1986 e 87. Na mesma época, Frank Miller47 produz uma
releitura cínica e distópica do Batman em “The Dark Knight Returns”, em que retrata
um Bruce Wayne idoso e desmotivado pela jeito que o mundo ficou, enquanto o
idealista Super Homem se torna um fantoche facilmente manipulável pelo governo.

Ambas lidavam com as consequências da ação de vigilantes mascarados, e


com o tipo de pessoa que se dispunha a vagar pela noite fantasiado “socando
bandidos”. Sem tanto idealismo, retratando o pior na sociedade, e com doses
elevadas de violência, sexo e drogas, Moore e Miller desconstruíram a figura do
super-herói.

Os personagens de “Watchmen” eram “improvisos” a partir dos heróis da


antiga Charlton Comics – Moore queria usar os heróis recém adquiridos pela DC
Comics, mas não obteve autorização – e levados ao extremo. O vigilante mascarado
Rorschach, que tomava o papel do Questão e age como o ponto central da
narrativa, levava o objetivismo randiano e a brutalidade do original de Ditko ao
extremo – Rorschach abertamente despreza a sociedade decadente, condenando
os “excessos morais” de todos, sem jamais ver qualquer coisa de errado com seus
métodos ultra violentos. Enquanto o Questão e seu “irmão” Senhor A eram durante o
dia jornalistas de sucesso, Walter Kovacs, a identidade civil de Rorschach, era um
mendigo que vagava pelas ruas com um cartas de “O fim está próximo”, e todas as
suas relações com outros personagens eram marcadas por sua intensa paranóia e
falta de trato social.

Doutor Manhattan, o único “super-herói” em Watchmen, não era o “guardião


carinhoso” que os primeiros super-heróis eram – ao contrário, era uma figura
distante, cuja percepção absoluta combinada com poder absoluto lhe impediam de
ter empatia pela humanidade. Manhattan é muito melhor definido como um deus do
que como um super-homem, e embora rejeite esse rótulo, ao final de Watchmen,
Manhattan parte para os confins do espaço para “criar vida em outro lugar”.

47
Miller, Frank - diretor e roteirista americano, famoso por obras violentas e cínicas como Sin City,
Ronin e 300. Miller entrou em declínio com o fracasso da minissérie “All Star Batman&Robin”, de
2005, marcada por atrasos e críticas negativas. Este ano publicou a graphic novel “Holy Terror”, em
que um vigilante enfrenta a Al Qaeda. A obra havia sido escrita com o Batman em mente, mas foi
barrada pela DC em 2009.
53

Watchmen também toca em um ponto muito crítico da própria temática de


super-heróis: a questão do bem maior e a idéia de moral absoluta. Confrontado com
a escolha entre deixar que o assassino de milhões escape sem julgamento, ou jogar
o mundo em um caos ainda maior após o ex-vigilante Ozimandias destruir parte de
Nova York em um falso ataque alienígena como forma de levar a paz mundial,
Rorschach, o único “herói” com uma mentalidade absolutista – como a que estava
no centro da era de prata e ainda tinha marcas fortes na era de bronze dos
quadrinhos – prefere ser morto pelo Doutor Manhattan a comprometer sua moral
absoluta.

Essa tendência de uma moral relativa no local de uma moral absoluta já fazia
parte da tendência geral nos quadrinhos durante os anos 80, mas passa a ser
exagerada com o sucesso de Watchmen. Nos anos seguintes, se tornam cada vez
mais comuns heróis tão violentos quanto seus inimigos – e cada vez menos tem
problemas em matar.

3.5 A idade das trevas dos quadrinhos

Nos últimos anos da década de 80, a indústria de quadrinhos, tentando seguir


o sucesso de “Dark Knight Returns” e “Watchmen”, começa a focar cada vez mais
em anti-heróis e histórias polêmicas. Como exemplo, na minissérie “Armor Wars”,
para proteger sua propriedade intelectual, o herói Homem de Ferro ataca vários
super-vilões, outros heróis e agentes do governo que usavam equipamentos com a
sua tecnologia – e não devido aos crimes cometidos por estes. Ao mesmo tempo,
vários dos heróis da era de prata dos quadrinhos são mortos ou substituídos ou
alterados após os eventos de “Crisis on Infinite Earths”, da DC Comics, que eliminou
o Flash Barry Allen, a Supergirl, e vários outros personagens de menor destaque.

Um dos aspectos principais deste período, chamado por Shawn O’Rourke 48


de “idade das trevas” dos quadrinhos foi a mudança para uma visão desconstrutiva e
distópica, re-imaginado personagens icônicos e o mundo em que vivem
(O’ROURKE, 2008).
48
O’Rourke, Shawn - Historiador americano e colunista do site PopMatters, de quadrinhos, seriados e
cultura pop.
54

Figura 12. Capa de Spawn #1, Image


Comics, 1992, arte de Tood MC Farlane.

Outro ponto crítico foi o surgimento de várias editoras alternativas, resultado


de artistas abandonando a DC e a Marvel para tentarem a sorte sozinhos. A maior
destas editoras foi a Image comics, fundada pelo desenhista e roteirista Todd
McFarlane49 em 1992. Esse “sangue novo” no mercado era marcado por uma falta
de controle sobre as idéias dos artistas – pois estes eram também os proprietários –
o que junto com o enfraquecimento do Código permitiu que vários limites fossem
superados em termos de violência e sexualidade, chegando perto dos padrões dos
quadrinhos ingleses da linha 2.000 A.D, como Judge Dredd – títulos distópicos onde
a violência extrema era a única solução para os problemas da sociedade.

Os quadrinhos da Image agregavam sozinhos varias das características


chave dos quadrinhos da década de 90: anti-heróis durões e violentos, uma
abundância de cenas de sexo, uma promessa constante de histórias “Xtremas” –
outra marca da época, a grafia ‘radical’ de termos e nomes – e uma linha tênue que
separava os vilões dos heróis. Em sua grande maioria, os “heróis” da Image eram
copias de personagens de sucesso da Marvel e da DC, com casos como o

49
McFarlane, Todd - Desenhista e escritor americano, um dos responsáveis pelo boom de editoras
no inicio dos anos 90. McFarlane ganhou fama com seu trabalho com o Homem-Aranha no final da
década de 80, onde criou o personagem Venom.
55

Combatente Americano, de Rob Liefeld50, uma imitação tão forte do Capitão América
a ponto de que várias páginas foram tracejadas do original; Gen 13, de Jim Lee51,
sobre um grupo de adolescentes perseguidos por terem superpoderes graças as
suas mutações genéticas, a mesma premissa dos X-Men; e os dois heróis de
Liefeld, o Supremo, uma versão brutal e cínica do Super Homem, e Glory, uma
versão mais violenta e erotizada da Mulher Maravilha.

Porém o maior destaque da editora era o personagem Spawn, de Todd


McFarlane, e que sozinho unia todos os elementos que definiram a época; Al
Simmons era um matador da CIA assassinado em uma operação mal fadada – e
sabotada. Enviado ao inferno, fazia um pacto com o demônio Malelbolgia para
retornar a vida como um Hellspawn, dotado de vastos poderes e um traje simbiótico
repleto de correntes e espinhos, como visto na figura 12 – ainda em sua primeira
edição, esses elementos seriam ampliados Ao longo da publicação. Ao longo de
seus até o momento 20 anos de publicação, Simmons não demonstrou qualquer
forma de piedade com seus inimigos, que incluíam assassinos em série, matadores
cibernéticos, anjos, demônios, políticos corruptos, estupradores e pedófilos – em
todos os casos, a punição que aguardava os malfeitores envolvia doses elevadas de
violência – no número 7 da revista, o “herói” mata o ciborgue Overtkill se
teleportando dentro do vilão, explodindo-o. Apesar dos super poderes, era mais
comum encontrar o Spawn usando armas de fogo - muitas vezes de tamanho
exagerado. Chamar ele de “herói”, ou até mesmo de anti-herói – aqui entendido pelo
padrão usado em quadrinhos, de um “herói não heróico”, ou um herói que não segue
a imagem de “cara bonzinho” padrão – é um tanto difícil, vendo que salvo raras
exceções, as atenções do personagem eram completamente egoístas – Simmons
aceita a oferta do demônio para ter sua esposa de volta, mesmo vendo que ela
conseguiu superar sua morte e levar a vida para frente, é a sua felicidade que
importa.

50
Liefeld, Rob - Desenhista americano, Rob Liefeld foi o nome mais bem pago da indústria de
quadrinhos no inicio dos anos 90, e seu traço dinâmico influenciou muito do estilo artístico da época.
Ao final da década, o traço exagerado de Liefeld não era mais bem visto pelo público, e atualmente
Liefeld é conhecido pelo auto declarado título de “O pior desenhista dos quadrinhos”. Além do
trabalho como ilustrador e pelo estilo da década, Liefeld é famoso por ter criado os personagens
Deadpool e Cable.
51
Lee, Jim - desenhista coreano, Lee foi um dos principais responsáveis pela fundação da Image
Comics em 1992, junto com McFarlane. Dentro da Image, Lee tinha seu próprio estúdio, a Wildstorm.
56

Outra coisa comum durante este período foram as sucessivas “reinvenções”


de personagens e grupos, juntamente com a renumeração de várias revistas, e o
lançamento de edições número zero e número um com capas alternativas ou
cromadas, visando o mercado de colecionadores. Em 1993, o Homem-Aranha Peter
Parker foi substituído pelo Aranha Escarlate Ben Reilly, um clone literal do
personagem, durante a “Saga do Clone”. No mesmo ano, o Super Homem é morto
em combate com o vilão Doomsday na série “A Morte do Super Homem” – em seu
lugar surgem quatro novos personagens : o jovem e “rebelde” Superboy, vestido a
moda punk, o Super Ciborgue, um anti-herói e posteriormente vilão cibernético, Aço,
um cidadão comum que inspirado pelo sacrifício do homem de aço passa a
combater o crime com uma armadura cibernética, e o Erradicador, um misterioso
alienígena com os mesmos poderes do “ultimo filho de Krypton”, e nenhuma piedade
com o crime. O Batman teve sua espinha quebrada pelo vilão Bane na minissérie
Knightfall, de 1994, e em seu lugar entrava Jean Paul Valley, o Azrael, um vigilante
sombrio armado com facas flamejantes e lança chamas. Nenhuma dessas – e várias
outras tentativas de “modernizar” os heróis – vingou; em 1994, o Batman e o Super-
Homem originais voltaram às histórias, e seus substitutos foram apagados,
reduzidos de importância ou mortos.

Vários títulos também tiveram séries derivadas, como Force Works, uma
versão “proativa” de tolerância zero dos Vingadores, X-Force, X-Calibur, X-Factor e
Novos Mutantes, grupos menores dos X-Men, e o Quarteto Fantástico deu origem a
Fantastic Force – a grande maioria destes títulos não duraram mais do que um ano.

3.6 Massacre e Reino do Amanhã – os quadrinhos contemporâneos

A tendência de vigilantismo, violência e pretensa maturidade dos quadrinhos


da era Image recebe uma resposta crítica em 1996 com a minissérie “Kingdom
Come”, aqui lançada como “Reino do Amanhã”, do desenhista Alex Ross 52. Usando
de quase todos os personagens da DC, Ross retrata um futuro sombrio onde a
permissividade com heróis que matam leva a uma situação caótica em que

52
Ross, Alex - pintor norte-americano, famoso pelo estilo foto-realista em que retrata os heróis das
HQs. Salvo raras exceções como Kingdom Come e Marvels, Ross trabalha primariamente com
capas, devido ao trabalho lento que seu estilo exige.
57

vigilantes super poderosos travam uma guerra contra o crime sem se importar com
“danos colaterais”. Na trama, o Super Homem se aposenta como super-herói depois
do anti-herói Magog ser inocentado de homicídio devido ao fato da vítima ter sido o
Coringa. No ver do mais antigo dos super heróis, a sociedade fez a sua escolha
entre o homem que se recusa a matar, independente de quem fosse o criminoso, e o
homem que mataria. Ao mesmo tempo em que lida com as conseqüências da ação
de anti-heróis, Kingdom Come é, segundo o autor, uma releitura do apocalipse
bíblico através da ótica dos super-heróis; passagens bíblicas são freqüentes na
narração, e durante o clímax da história, o Super Homem oferece ao Capitão Marvel
a escolha entre salvar os super-heróis de uma bomba nuclear lançada para matá-los
todos, e deixar que a guerra interna destrua o mundo – ou deixar a bomba cair e
deixar a humanidade sem ninguém para servir de protetor – e o herói toma uma
terceira opção, sacrificando sua vida para enfraquecer a bomba, poupando a vida de
alguns super-heróis e morrendo pela falha de todos.

Figura 13. Magog demonstra remorso


Kingdom Come #2, DC Comics,1996,
arte de Alex Ross.

Apesar de ser um pastiche dos anti-heróis dos anos 90, Magog se diferencia
em um ponto importante: enquanto os heróis durões da era da Image não viam
problemas nos seus métodos violentos, Magog demonstra remorso após suas ações
resultarem na morte de milhões no estado do Kansas, e prejudicando a produção de
alimento de todo os EUA. Magog lamenta que o Super homem (como visto na figura
58

13) tenha forçado a população a escolher entre o homem que mataria e aquele que
não mataria – e que por escolher aquele que mataria, agora estavam todos mortos.

No mesmo ano, a Marvel tenta limpar a confusão dos seus títulos com o
macro-evento Massacre, no mesmo molde que a DC seguiu em “Crisis on Infinite
Earths”, em 1985. Seguindo a “morte” da grande maioria dos personagens da
editora contra o nunca antes visto vilão, a Marvel tenta reinventar seus personagens
com a linha “Heróis Renascem”, com arte de Rob Liefeld, o conjunto de histórias
publicado entre 1996 e 1997 visava contar a nova origem dos heróis da editora, no
que iria ser o novo universo Marvel, porém em 1998, todos os personagens estavam
novamente na mesma continuidade de antes, com poucas – ou as vezes nenhuma
alteração.

Ainda como parte do ciclo do “Massacre”, a Marvel tem sua própria crítica aos
anti-heróis da década com a série “Thunderbolts: Justice Like Lightining”, de Kurt
Busiek53, em 1997 – enquanto o padrão dentro do mainstream de quadrinhos nos
anos anteriores havia sido colocar heróis em comportamentos nada heróicos – e as
vezes mais parecido com o dos vilões – Busiek inverteu o jogo ao colocar uma série
de super vilões, liderados pelo nazista Barão Zemo, para atuarem como heróis – e
gostando. Se o tema de séries como Force Works era que vilania tinha que ser
respondida com força extrema, o tema de Thunderbolts era a redenção – e como
esta estava ao alcance de todos, conforme o plano inicial de conseguir a confiança
do público e usar ela para controlar o país era deixado de lado para atos sinceros de
heroísmo.

O ponto máximo da virada para a era moderna dos super-heróis ocorre em


2000, com o ínicio da linha Marvel Ultimate – voltadas para um público que não tinha
tanta familiaridade com os heróis, a série reiniciava todas as histórias, mas ao
mesmo tempo, a editora se mantinha publicando a continuidade “clássica”, ao invés
de apelar para a renumeração e reestruturação que tentou com “Heróis Renascem”.
Enquanto no mainstream a Marvel voltava ao padrão mais maduro da era de bronze,
sem os excessos da década de 90, parte da linha Ultimate, como a série “Os

53
Busiek, Kurt - escritor americano, famoso por sua releitura “através de olhos comuns” do universo
Marvel com a minissérie Marvels, e pela série Astro City, publicada pelo selo Homage Comics da
Image em 1995.
59

Supremos”, de Mark Millar54, em 2003, seguiam o tom da década anterior, retratando


“heróis” de pouca virtude, em uma realidade cínica e sem lugar para idealismos,
enquanto “Ultimate Spider-Man” retomava a inocência da era de prata.

Em 2004, o inglês Warren Ellis55 leva a principal mudança na estrutura


narrativa dos quadrinhos de super-heróis durante essa transição. Com a série “The
Authority”, Ellis introduz um estilo dinâmico, com “tomadas” amplas e poucos
diálogos, ao mesmo tempo que reinventa a figura super-heróica, e parodia alguns
dos clássicos. Os personagens de Authority são definidos pelo próprio Ellis como um
grupo de vilões bem intencionados, que combatem vilões ainda piores, e o lema
inteiro da série é definido ao final do primeiro volume: “Dane-se tudo, eu quero um
mundo melhor”. Ellis não trabalha com a noção de que heroísmo exige métodos
radicais, mas sim que exige uma boa dose de comprometimento - e preparo para
assumir as conseqüências.

3.6.1 Quadrinhos em crise

Apesar da reestruturação bem sucedida, durante toda a primeira década do


século XXI, a palavra de ordem dentro do mercado de super-heróis foi a crise – as
vendas estão em queda constante desde meados da década de 90, e para tentar
recuperar o mercado perdido, a nova tendência era a realização de “mega-eventos”
que envolvessem o maior número possível de títulos. Contando apenas os eventos
“centrais”, a Marvel passou por Dinastia M, Dizimação, Guerra Civil, Hulk Contra o
Mundo, Invasão Secreta, e o atual Fear Itself, enquanto a DC Comics teve Zero
Hora, Crise Infinita, 52, Contagem Regressiva, Crise Final, a Noite Mais Densa e
agora o “Novo 52” – este último reiniciando todas as histórias da editora a partir do

54
Millar, Mark - Roteirista escocês, vencedor dos prêmios Stan Lee de 2007. Millar escreveu vários
títulos marcados por doses elevadas de violência, como Wanted, Kick-Ass e The Ultimates – releitura
dos vingadores para o universo Ultimate – assim como obras polêmicas como The Unfunnies, entre
2004 e 2007.
55
Ellis, Warren - escritor inglês de quadrinhos, televisão e ficção cientifica, famoso por temas
socioculturais e transhumanistas. Além de Authority, entre suas obras se destacam
Transmetropolitan, sobre um jornalista “gonzo” em uma versão distopica dos EUA, um dos mais bem
sucedidos títulos não heróicos da DC comics, durando entre 1995 e 2002, e a série em animação G.I
Joe Resolute, adaptação para a Web da linha de brinquedos dos anos 80 e 90.
60

ponto zero. Até mesmo a linha Marvel Ultimate – que se propunha a ser um
“recomeço” e uma tabula rasa passou por seu mega-evento, Ultimatum, em 2009.

Todos estes eventos seguem o mesmo padrão: um acontecimento em grande


escala que exige a atenção de toda a comunidade heróica, muitas vezes envolvendo
vilões ou ameaças nunca antes vistas, e uma forte conexão entre as várias revistas,
exigindo que para compreender as histórias de um herói completamente, fossem
lidas as revistas de vários outros. A promessa de “mudar o universo Marvel/DC” para
sempre esteve presente em todos os casos, mas com o ínicio de outro evento em
grande escala no ano seguinte, mal há tempo para o leitor se habituar com o novo
status quo.

E como ocorreu nos anos 90, vários desses eventos resultaram na morte de
personagens clássicos e sua substituição por novos – dois casos em particular
foram a morte do Batman durante a Crise Final, dando início a série a “A Batalha
pelo Capuz”, que terminou com o primeiro Robin assumindo o cargo, e a morte de
Peter Parker nos quadrinhos da linha Marvel Ultimate, que resultou no novo Homem-
Aranha Ultimate, o negro porto riquenho Miles Morales.

E enquanto as duas maiores editoras tentam levar os leitores a comprar


várias revistas diferentes de maneira a entender o que está acontecendo em cada
uma delas, as vendas continuam em queda. Dentro de todo este contexto, adiante
entro no objeto específico: o caso do Capitão América.
4. A América representada no Capitão América

Embora a grande maioria dos heróis da era de ouro dos quadrinhos sejam
claramente ‘ícones’ da identidade americana, são poucos que se destacam mais
claramente nessa função do que o Capitão América. Criado pelos então militares
Jack Kirby e Joe Simon em dezembro de 194057, sob o selo da editora Timely
Comics, o Capitão América é um exemplo do que Knowles chama de o herói
messiânico. No caso específico do Capitão América, esse messianismo se dá em
nome de uma idéia clara, o conceito da liberdade individual.

O Messias dos quadrinhos é um nobre herói que se sacrifica em nome do


altruísmo para salvar os outros. Naturalmente o Super-Homem é o primeiro
e mais evidente herói deste tipo; o Homem-Aranha é outro. O super-herói
messiânico torna-se muito popular porque lida com ansiedades
profundamente arraigadas na vida americana. Fascismo, corrupção
empresarial e crime organizado aumentaram tanto que, no final da década
de 1930, pareciam problemas insuperáveis e insolúveis. (KNOWLES, 2008,
p. 139)

Ao contrário de personagens como o Super-Homem e a Mulher Maravilha,


cuja dedicação a “verdade, justiça, e o caminho americano” surge como parte do
personagem, no caso do Capitão América, esse patriotismo declarado é, como o
próprio nome do herói demonstra, a sua essência. O Capitão América original é o
jovem Steve Rogers, um rapaz de saúde frágil repetidas vezes rejeitado para o
serviço militar. Embora não tenha condições de servir no exército americano, Rogers
quer ir para a linha de frente para combater o totalitarismo das potências do eixo 58 -
não porque odiasse os alemães, os italianos e os japoneses, mas porque, como a
adaptação cinematográfica do personagem, lançada este ano, define, porque “não
podia suportar valentões, não importa de que lado”.
Após ao menos cinco tentativas59 falhas de se alistar, Rogers é escolhido pela
sua persistência para participar de um projeto secreto do governo, o Projeto

57
Vale notar que os EUA só entrariam oficialmente na Segunda Guerra Mundial em dezembro de
1941, após o ataque a base naval de Pearl Harbor.
58
Alemanha, Itália e Japão.
59
O número de tentativas foi alterado várias vezes ao longo dos anos (nota do autor).
62

Renascer, guiado pelo cientista alemão refugiado Abraham Erskine60. Escolhido


dentre os voluntários para ser a primeira “cobaia” do soro do super-soldado devido a
retidão de caráter e pela disposição a se sacrificar pelo bem dos seus iguais, o
jovem passa do um rapaz raquítico61 para “o ápice da forma e a capacidade física do
ser humano”. Esse é um pequeno detalhe no qual o Capitão América se destaca:
enquanto os outros heróis da era de ouro ou tinham poderes inerentes, ou tiravam
seus poderes de algo que era produto de sua própria genialidade, Rogers ganhou
sua força e agilidade prodigiosa de um experimento do governo.
Rogers incorpora um discurso específico de identidade – embora seja o
Capitão América, o jovem era na realidade um imigrante irlandês. A “América”
representada aqui não era o patriotismo cego, do “meu país é o melhor”, mas sim a
oposição ao ideário nazista da “raça superior”. De certa forma, pode ser dito que
Rogers foi uma espécie de provocação aos nazistas – loiro, alto e de olhos azuis, o
Capitão América era a perfeita imagem do Ubermensch nazista. E estava contra
eles.

Figura 14. Capa de Captain America #1 mostra


o herói socando o rosto de Hitler. Timely Comics,
março de 1941. Arte de Jack Birby

60
Na edição original, de 1940, o nome do cientista era Josef Reinstein. Uso o nome atual para fins de
consistência.
61
Literalmente: a primeira edição do personagem afirma abertamente que Rogers sofre de
raquitismo.
63

O Capitão América também se destacava de seus “semelhantes” na indústria


de quadrinhos por outros detalhes. Ao contrário de cidadãos de classe média como
Clark Kent (o Super-Homem) ou milionários como Bruce Wayne (Batman), que
dominavam o rol de personagens das HQs na era de ouro, Rogers era um rapaz
pobre, de Lower East Side62, Manhattan. Enquanto outros heróis não tinham suas
famílias mencionadas, ou no caso do Batman, perderam os pais para o crime,
Rogers era órfão por um problema mais grave, e que não poderia ser combatido
“com os punhos” – a pobreza. O pai do herói faleceu em acidente de trabalho
quando o herói era uma criança, e na adolescência, Rogers perde a mãe, vítima de
pneumonia, não tratada por não terem como pagar63.
De acordo com o criador, Joe Simon, a resposta ao primeiro número – que
trazia o herói desferindo um soco no queixo de Hitler - do herói foi dividida: embora a
revista tenha sido recordista de vendas, com quase um milhão de cópias vendidas,
alguns leitores se opuseram a posição defendida pelo personagem 64, e a editora
recebeu várias cartas com queixas e ameaças. (WRIGHT, 2001).
Um detalhe que é interessante ressaltar sobre o Capitão América é que,
excluindo as histórias passadas na Segunda Guerra Mundial, ele não tem realmente
uma identidade secreta: o fato de que Steve Rogers é o Capitão América é um fato
aberto, e todas as ocasiões do herói “revelando sua identidade” não se tratam de
expor-se como Steve Rogers, mas sim dar um rosto por trás da máscara.

4.1 O Capitão na Segunda Guerra Mundial

Como fruto do clima político da época, durante a Segunda Guerra Mundial o


Capitão serviu como instrumento de propaganda tanto dentro quanto fora dos
quadrinhos. Enquanto no “mundo real” o personagem, como muitos nessa época,
protagonizava propagandas de recrutamento, dentro das suas histórias o herói era
também uma peça publicitária.
Isso devido a sua origem: pouco após o primeiro teste do soro do super-
soldado, o criador do soro, Abraham Erskine, é assassinado por um espião nazista,
62
À época, bairro de classe trabalhadora, habitado primariamente por imigrantes.
63
A história familiar do Capitão América foi detalhada na minissérie Adventures of Captain America:
Sentinel of Liberty, de 1991 e 1992, mas estes elementos já haviam sido mencionados durante os
anos da Timely.
64
Vale lembrar aqui que existiam segmentos da sociedade americana que achavam que o país
deveria ter se aliado aos nazistas.
64

e junto com o doutor, perde-se a formula. Para aproveitar o único super-soldado que
conseguiram, o governo americano cria uma identidade super-heróica para Rogers,
e ao mesmo tempo lhe instruem a se disfarçar como um recruta atrapalhado na base
militar de Camp Leigh. O engodo do Capitão América tinha uma finalidade dupla nos
quadrinhos. A primeira era ocultar a localização do verdadeiro Capitão América, ao
colocar múltiplos capitães como ícones publicitários, enquanto o verdadeiro
trabalhava na contra-inteligência, expondo e anulando operações nazistas. A
segunda era criar um “ícone de propaganda”, uma imagem pela qual tanto os EUA
quanto seus inimigos se identificassem.
Como todo herói da era de ouro dos quadrinhos, o Capitão América tinha seu
parceiro, o jovem James Buchanan “Bucky” Barnes, um jovem recruta que era quase
que uma “mascote” da base. Barnes descobriu o segredo de Rogers por acidente, e
para manter seu disfarce, o Capitão aceita treinar o jovem como parceiro. Na
adaptação cinematográfica do personagem, Bucky foi reescrito como um amigo mais
velho de Rogers, que já estava servindo no exército enquanto o futuro Capitão
América tentava ludibriar o recrutamento para servir.
Se a idéia por traz da identidade como Capitão América era servir como ícone
publicitário, na visão de Knowles o uniforme do herói – fruto dentro das revistas de
um desenho produzido por Rogers – remetia a mitologia.

Seu primeiro ato como Capitão América é vingar a morte de Erskine.


Depois, ele cria um traje que é uma colagem de elementos míticos: botas e
luvas de mosqueteiro, capuz decorados com asas de Mercúrio, cota de
malha do rei Arthur, calços atléticos do Super-Homem e um escudo da
guarda pretoriana. (KNOWLES, 2008, p.152)

Enquanto Rogers servia como o “ícone” dos EUA e por extensão, dos aliados,
dentro dos quadrinhos da Timely, na quarta edição de Captain America Comics os
leitores são introduzidos a sua contra parte nazista – o Caveira Vermelha. Enquanto
Rogers era uma espécie de avatar dos EUA, Johann Schmidt, o Caveira, era o
mesmo pelo autoritarismo nazista. Além de Schmidt, durante os anos da Segunda
Guerra Mundial o Capitão América enfrentou espiões alemães, italianos e
japoneses, assim como criminosos fantasiados dentro dos EUA.
65

Com o fim da guerra, as vendas do Capitão América caíram em ritmo


acelerado. Em 1948, a Timely tentou recuperar as vendas dando ao herói uma
glamorosa companhia feminina, a Mulher Dourada. Porém, sem interesse do público
pelo herói agora que seus inimigos haviam sido derrotados, as revistas do Capitão
América foram canceladas uma a uma, e em 1950, sua então ultima edição (Captain
America’s Weird Tales # 74) nem lhe mostrava na capa. O herói passou por um
breve retorno em 1953, que posteriormente foi reescrito como sendo um impostor –
esse período será detalhado mais a frente – e trazido de volta a “vida” em 1964, nos
quadrinhos dos Vingadores.
Após a “ressurreição” do personagem, a Marvel Comics publicou várias
histórias passadas na Segunda Guerra Mundial, e apagou de continuidade todas as
tramas pós 1945 – na nova continuidade do herói, o Capitão América foi congelado
nas águas do ártico em abril de 1945, em combate contra o barão Heinrich Zemo,
um cientista nazista que planejava bombardear os EUA com um avião experimental.
O discurso do Capitão América na era de ouro é bem simples: os EUA e os
países aliados são bons, e sempre estão certos; o eixo é mal, e sempre está errado;
qualquer membro de um país do eixo que seja bom quer se juntar aos aliados,
enquanto qualquer malfeitor entre os aliados é secretamente um espião do eixo.
Uma dicotomia bem e mal extremamente simplista, mas que marcava todo o
discurso político ao longo da Segunda Guerra Mundial.

4.2 Nos Vingadores

Em 1964, a Marvel Comics decide reviver o Capitão América na edição nº 4


de The Avengers. Na revista, o herói é encontrado congelado nos mares gélidos do
circulo ártico pelos super grupo composto por Thor, Homem de Ferro, Homem
Formiga e Vespa. Depois de perder quase 20 anos de sua vida, completamente
isolado do mundo, o Capitão aceita fazer parte dos Vingadores.
Durante a década de 60, a narrativa do Capitão América foi marcada em
iguais partes pela tentativa de se adaptar ao cenário social americano, e pela busca
por algo além do Capitão América na vida de Rogers; Com 20 anos perdidos, e uma
formação como ilustrador que não teve a chance de acompanhar as mudanças no
paradigma da arte, o Capitão América estava perdido tanto como herói como quanto
pessoa.
66

Enquanto na era de ouro dos quadrinhos a narrativa do Capitão era simples,


como ocorria com praticamente todos os super-heróis, agora o personagem assumia
os elementos sutis que antes eram apenas sugeridos. Como líder dos Vingadores, o
Capitão ajudou a derrubar governos ditatoriais na Ásia e no leste europeu. Porém,
ao contrário da atitude padrão da política externa americana – de implantar um
governo favorável ao país após a ‘intervenção’ – a ação dos Vingadores se limitava
a derrubar o opressor, e dar a população a chance de obter a liberdade. Isso seria
um ponto mais notável se não fosse a falta de repercussão dessas ações; raramente
o mesmo local era visitado pelos heróis duas vezes, deixando os leitores sem saber
se a intervenção do Capitão trouxe bons resultados.
Desde seu retorno em The Avengers # 4, outro elemento que foi adicionado
ao personagem foi o remorso: na missão que resultou em seu congelamento,
Rogers falhou em salvar a vida de Bucky, e por anos se culpou pela morte do rapaz.
Na liderança dos Vingadores, obteve outro parceiro no jovem Rick Jones 65, que por
um curto período assumiu a fantasia que antes era de Bucky Barnes. Rogers
também manteve contato com o comandante da organização secreta S.H.I.E.L.D.,
Nicholas Fury, com quem havia servido na Segunda Guerra Mundial – e para quem
tentou pedir emprego, antes de desistir de trabalhar com a S.H.I.E.L.D. após ver os
métodos da agência.
No final da década, após cortar o contato com Rick Jones, Rogers passa a ter
outro parceiro: Samuel Wilson66, o Falcão, o primeiro super herói afro-americano nos
quadrinhos da Marvel – e um dos poucos a não ter a palavra “negro” no nome. Ao
contrário do que ocorria com outros parceiros “étnicos” durante a era de prata 67, a
relação do Falcão e do Capitão América estava em pé de igualdade; sim, Rogers era
o mais importante e mais experiente dos dois, mas Wilson não era uma caricatura,
ou um alívio cômico, mas sim um herói competente e capaz de ‘se virar’.
Um outro aspecto que começa a ser explorado na década de 60 – e que era
irrelevante nos anos anteriores, quando o herói era alegremente um ícone de
propaganda – é a crescente alienação do herói com o resto dos EUA. Enquanto nos
anos 40 e sua curta publicação nos anos 50 o personagem se posicionava sempre a
favor do governo americano, agora ele começava a questionar se o país estava

65
Antes aliado do Incrível Hulk.
66
Wilson aparece pela primeira vez em Captain America # 117, de setembro de 1969.
67
A exemplo do esquimó “Tortinha”, ajudante do Lanterna Verde, alvo de piadas raciais por parte do
herói.
67

seguindo no caminho certo, refletindo a decepção que partes da população


americana tinham com o país. Essa insatisfação foi crescendo até estourar em
1974, pouco após a renuncia do presidente Nixon.
De uma maneira geral, essa crescente dúvida do herói quanto ao papel dos
EUA é um reflexo da situação social no país ao longo da década de 60, em
particular devido a guerra do Vietnã. O conflito que resultou em uma das primeiras
derrotas militares dos EUA foi duramente criticado dentro do país, particularmente
pelos movimentos estudantis. Ao mesmo tempo, o Falcão era um reflexo dos
movimentos pela igualdade de direitos raciais. Porém, ainda se mantinha a ilusão de
que EUA = bons, resto do mundo = inocentes ou vilões, tão comum na era de ouro.

4.3 Lealdade apenas ao sonho: Nômade em busca da Identidade Americana

Após a versão “universo Marvel” do escândalo de Watergate, Rogers perde


as esperanças no governo americano, e no papel que tem desempenhado no
mundo. Enquanto no mundo real o escândalo por si só já havia abalado a ilusão de
credibilidade do governo Nixon, e forçou a renuncia do presidente, nos quadrinhos
da Marvel, a situação foi um pouco pior: Pouco após a renuncia de Nixon, o Capitão
América descobre que um alto oficial do governo – possivelmente o presidente – era
o líder da organização terrorista Império Secreto, e membros da alta cúpula do
governo Nixon estavam planejando um golpe de estado. O Capitão confronta
diretamente o líder do grupo terrorista, que para evitar a captura, comete suicídio.
Desapontado com o país e com seu próprio fracasso em perceber a
corrupção que se alastrava, Rogers abandona a identidade de Capitão América. Se
o alto escalão do país era capaz de atrocidades como as cometidas pelo Império
Secreto – entre elas ataques nucleares falsos para iniciar uma guerra nuclear total
entre os EUA e a União Soviética, que seria seguida pelo Número 1 da organização
assumindo o poder global68 - então ele não queria ter nada a ver com os EUA.
Para manifestar essa decepção, mas manter-se no heroísmo, o personagem
assume uma nova identidade. Pelas mãos do romancista americano Steve
Englehart, Rogers assume o manto de Nômade – partindo do significado de alguém

68
Capitain America #175, julho de 1974.
68

que não tem pátria – e parte em uma jornada pelos EUA em busca de identidade.
Enquanto o uniforme do Capitão América era repleto de iconografia patriótica, o
uniforme de Rogers como o Nômade dispensava qualquer símbolo nacional,
optando por um traje azul escuro simples com uma capa, como visto na figura 15. A
nova identidade durou apenas cinco edições: ao final de Captain America # 184,
Rogers volta a ser o Capitão América, após conhecer o país e ver o verdadeiro
inimigo interno. Antes, o Capitão América representava a “América” como nação,
agora, era uma representação de algo diferente: aquilo que os EUA deveriam ser.

Figura 15. A estreia de Nomade,


Captain America #180, Marvel Comics,
em dezembro de 1974, arte de Gil Kane.

Talvez este seja o ponto de virada mais importante para o Capitão América: a
constatação de que a lealdade aos ideais de liberdade, igualdade e democracia que
ele julgava serem os ideais americanos não implicava em lealdade ao governo, a
bandeira ou sequer ao povo. Essa caracterização foi mantida desde então: anos
após retornar ao título, Rogers é interrogado por um general sobre se ele estava
contra os EUA ou do lado deles, Rogers responde de maneira sucinta: “I'm loyal to
nothing, General... except the Dream.” (Daredevil #233, 1986).
Essa lealdade aos ideais e não a bandeira ou ao governo seria explorada com
maior intensidade na revista What If? # 44, intitulada “What If Captain America were
revived today”, de 1984. Na trama escrita por Peter Gillis e passada em uma
continuidade alternativa, um falso Capitão América, a serviço do Império Secreto,
69

clama para o país voltar aos velhos tempos, em que se tinha um verdadeiro senso
de patriotismo e não se permitia que imigrantes, minorias e estudantes de esquerda
“queimassem a bandeira”. O falso Capitão pede pela destruição dos “inimigos da
liberdade” – incluindo todos aqueles que questionem o governo.
A ação do farsante leva a protestos, respondidos com um estado de sítio e
um golpe de Estado, até a hora que o verdadeiro capitão é reanimado. Após ter
noção da situação, Rogers invade o comício do farsante, e após derrotar o imitador,
destrói a sua argumentação:

Ouçam a mim – todos vocês! Lhes foi dito por esse homem - o seu herói -
que a America é o melhor país do mundo! Ele lhes disse que os americanos
eram o melhor dos povos – que a America podia ser refinada como prata,
podia ter suas impurezas marteladas para fora, e brilhar mais forte! Ele
discursou sobre como a America era preciosa – como vocês tinham que
garantir que ela continuasse grande! E ele lhes disse que qualquer coisa era
justificada para preservar aquele grande tesouro, aquela pérola valiosa que
é a America! Bem, eu lhes digo que a America é nada!! Sem seus ideais –
seu comprometimento com a liberdade de todos os homens, a America é
um pedaço de lixo! Uma nação não é nada! A bandeira não passa de um
pedaço de pano! Eu lutei contra Adolf Hitler não porque a America era
grande, mas porque era fragil! Eu sabia que a liberdade aqui poderia ser
apagada tão facilmente quanto na Alemanha nazista! Como pessoas, não
éramos diferente deles! Aí eu retornei, e vi que vocês quase tornaram a
América em um nada! E a única razão que vocês não são menos do que
nada – é porque ainda é possível para vocês devolveram a liberdade para a
América! (What If?, #44, 1984)

Figura 16. O discurso antinacionalista do Capitão América.


What If? # 44, Marvel Comics, 1984, arte de John Romita.
70

A América não é nada. Não é algo que se espera ouvir de um personagem


chamado Capitão América. Mas é por volta do início dos anos 70 que a narrativa do
Capitão América volta seus olhos para um problema mais grave do que qualquer
ameaça externa – a corrupção e a discriminação que fermentava dentro do povo
americano. Ironicamente, o personagem nascido como propaganda indireta do
Estado passava a ser um dos maiores opositores do Governo Americano dentro dos
quadrinhos da Marvel. Até o ponto em que ele abandona o ‘cargo’ de Capitão
América, a narrativa do herói era apenas mais uma narrativa de super-herói comum,
com uma roupagem patriótica. Ao abandonar a imagem patriótica, e posteriormente
retomar ela abertamente contra o governo, as histórias do Capitão América passam
a tomar uma posição no debate político: uma posição a favor das liberdades civis,
contra a discriminação, e contra o patriotismo cego. Enquanto todo o restante do
mainstream das HQs tomava a mesma posição, o Capitão América o fazia de
maneira assumida. Talvez a mais importante mudança nessa posição, e que é
escancarada com o What If? de 1984, é admitir que os EUA e a Alemanha Nazista
não eram diferentes: ambos poderiam ter percorrido o mesmo caminho, se as
condições fossem as mesmas.

4.4 “América não mais”: O Capitão contra a corrupção, o extremismo e o


preconceito

Seguindo o retorno ao cargo, o Capitão América passou a se dedicar ao


combate a corrupção doméstica e o preconceito. Enquanto outros heróis da Marvel
continuavam empenhados na retórica da Guerra Fria, o Capitão enfrentava os
inimigos internos – e esses inimigos não tomavam a forma de opositores políticos,
mas sim de nacionalistas radicais. O melhor exemplo desses “inimigos internos” era,
ele próprio, um dos muitos que assumiram o nome Capitão América enquanto
Rogers esteve congelado – Michael Burnside, o Grão Diretor, enfrentado antes do
curto período como o Nômade. O caso de Burnside está detalhado mais adiante.
No começo dos anos 80, o passado do Capitão passa a ser explorado com
maior profundidade, aproveitando pequenas deixas largadas pelos quadrinhos
antigos. Em Captain America # 250 (Junho de 1980), o herói cogita uma candidatura
71

a presidência dos EUA – mas desiste da corrida presidencial ao perceber que


embora pudesse combater os problemas sociais com maior facilidade no poder, não
poderia manter o combate a corrupção em um nível tão direto quanto podia como
herói.
Entre 1985 e 1995, o personagem passa a ser escrito por Mark Gruenwald,
no maior período que o personagem passou na mão de um único escritor.
Gruenwald já havia escrito várias tramas do herói no começo da década, mas em 85
passa a ser o único responsável pelos roteiros do personagem. Durante os anos
escrito por Gruenwald o personagem lida com o idealismo extremo, contra o
terrorista Esmaga-Bandeiras – enquanto Rogers a essa altura já estava
caracterizado como alguém que valoriza os ideais das nações, e não a nação em si,
Karl Morgenthau, o Esmaga-Bandeiras era da opinião que o próprio conceito de
nação propiciava a discriminação.
Para resolver o problema, Morgenthau funda o grupo terrorista ULTIMATUM,
e inicia uma campanha global de terror para unificar a humanidade em um estado
único. Embora Morgenthau fosse bem intencionado, seus métodos violentos e suas
tentativas de iniciar golpes de estado lhe renderam a inimizade de grande parte do
mundo. O vilão enfrentou com maior freqüência o sucessor de Rogers, John Walker.
Gruenwald também fez com que o Capitão América enfrentasse um dos
maiores problemas de discriminação social à época: a homofobia. Enquanto outros
escritores da Marvel evitavam sequer sugerir a existência de homossexuais, em
Captain America # 270(junho 1982) o problema não apenas é encarado de frente,
mas Gruenwald evita cair no clichê e expõe o problema da homofobia não através
de um personagem jovem, mas do amigo de infância de Rogers, Arnold Roth –
agora um senhor de idade. Roth e seu companheiro Michael são seqüestrados pelo
Caveira Vermelha e o Barão Zemo, que matam Michael, e controlam a mente de
Roth, que é humilhado forçado a se definir como um “rejeito social, uma abominação
incapaz de saber o que é amor de verdade”, uma doença e uma ameaça a
sociedade. Rogers livra Roth do controle mental dos nazistas com um breve – mas
claro – discurso contra a homofobia:

“You are as good and decente a man as I’ve ever known! They can’t corrupt
your love for Michael with their lies… They’re the pariahs! They are the
disesase!” (Captain America # 270, 1982)
72

Rogers novamente se desentende com o governo americano quando a


administração Reagan tenta comprar a lealdade dele com uma compensação pelos
19 anos de serviço não remunerados que passou congelado. Quando uma comissão
governamental o informa que ele deve lealdade total ao governo, novamente
abandona o cargo de Capitão América: se isso significa que ele tem que obedecer
ao governo, então é melhor que não haja mais um Capitão América. Enquanto
Rogers se torna somente “O Capitão”, John Walker, antes conhecido como Super-
Patriota, assume o cargo, jurando lealdade ao governo dos EUA – e somente ao
governo 69
Nos anos seguintes, o personagem volta primariamente a combater super
criminosos comuns. Embora Gruenwald tentasse encarar temas sérios a partir do
Capitão América, a qualidade dos roteiros não era páreo para a falta de interesse do
público, que no começo dos anos noventa tinha mais interesse em anti-heróis
violentos e sombrios do que um defensor altruísta das liberdades civis. Entre 1987 e
2000, o Capitão passou por uma série de mudanças temporárias, que incluíam uma
doença degenerativa causada pelo Soro do Super Soldado, uma transformação
temporária em um lobisomem, e um curto período de tempo usando uma armadura
robotizada.
A queda de vendas do Capitão América coincide com o fim da guerra fria:
sem um inimigo a ser enfrentado, o debate sobre o que é e o que deveria ser “A
América” perdeu seu sentido, e isso é perceptível também no cinema Hollywoodiano
desta época, cercado de heróis patrióticos invencíveis, que não gastam um único
segundo discutindo seu ponto de vista.

4.5 Guerra ao Terror e a culpa dos EUA

Após os atentados de 11 de setembro de 2001, o Capitão América volta a ter


um certo grau de destaque nos quadrinhos da Marvel. Enquanto o herói está
relutantemente envolvido na Guerra ao Terror, no arco de história “The New Deal”
(2003), a linha Marvel Ultimate traz uma outra versão do Capitão América no centro

69
Captain America # 332, agosto 1987
73

da série “Os Supremos”, de Mark Millar. Durante o conflito inicial com o terrorismo
islâmico, Rogers se vê forçado pelas circunstâncias a matar o líder terrorista Al
Tariq. O arco todo de história pós 11/9 foi altamente criticado pela maneira
complacente como o Capitão América lidou com o terrorista.
Enquanto o país como um todo estava envolto na reação – frequentemente
violenta – aos atentados, o Capitão estava mais ocupado com o papel dos EUA na
propagação da violência que levou aos atentados. Enquanto Al Tariq continua a
bombardear o Capitão com acusações de complacência com a violência cometida
pelos EUA, Rogers relembra a discriminação e o elitismo que levou a segunda
Guerra Mundial – e como a atitude dos EUA em relação aos islâmicos está seguindo
na mesma direção que a dos alemães sobre os judeus. Não é a toa que a revista
fora criticada, portanto: para quem ainda estava envolto na aura do atentado, era
fácil ver a questão como um simples problema de bem e mal – e ver a tentativa do
roteirista John Ney Rieber de quebrar essa simplificação como uma apologia aos
terroristas.
Após a morte de Al Tariq, Rogers revela sua identidade perante o mundo,
como forma de tentar dar um fim ao ciclo de violência. Ao dar um rosto ao
“assassino” de Al Tariq, Rogers assume a autoria da morte – fora Steve Rogers, e
somente Steve Rogers o culpado pela morte de Al Tariq, não o governo americano,
muito menos o povo. Não seria mais uma questão de dois países ou duas ideologias
em conflito, mas duas pessoas. O plano, infelizmente, falha.
Aqui temos mais um exemplo de como a caracterização do Capitão América
não a da defesa dos EUA, mas de um conjunto de ideais. Enquanto uma visão mais
afastada pode tranquilamente resultar na impressão de que é uma simples questão
de “terroristas malvados”, a visão do Capitão América é outra: os terroristas não são
o problema, mas sim o sintoma de uma doença que envolve profundamente os EUA.
Ao perceber isso, o herói conclui que o atentado contra as torres gêmeas não era
diferente do que os EUA e a Inglaterra fizeram com a cidade de Dresden na
segunda guerra mundial. “Dresden. You didn’t understand what we’d done here until
September the Eleventh. These people weren’t soldiers. They huddled in the dark.
Trapped” (Captain America: The new deal #4, 2003).

A trama de Rieber tem um aspecto especialmente forte: ela não entra em


justificativas para o terrorismo, ao invés disso suscita a discussão sobre o tema e
74

aponta para um problema muito mais complexo do que os limites de uma revista de
super-heróis poderia definir. Nesse aspecto, o Capitão América talvez seja o herói
mais anti-americano de todos: enquanto o restante das revistas ou ignoravam a
questão, ou se ocupavam em mostrar heróis bravamente derrotando terroristas, The
New Deal mostrava o Capitão América concluindo que a América era o verdadeiro
terrorista.

4.6 Guerra Civil, Bush, e a morte do sonho

A partir de 2004, o personagem passa a ser escrito por Ed Brubaker 70, que re-
introduz o Caveira Vermelha, e traz o antigo parceiro do Capitão América, Bucky
Barnes, de volta a vida como o espião russo Soldado Invernal. Durante o período de
autoria de Brubaker – que continua como principal roteirista do título – o
personagem volta a lidar com a corrupção política, e com o fanatismo.
Porém, o período de maior destaque do Capitão América na primeira década
do século XXI viria por outro escritor. Entre 2006 e 2007, o Capitão América foi um
dos dois personagens centrais da minissérie “Guerra Civil”, do inglês Mark Millar – o
grande “evento” dos quadrinhos da Marvel entre 2006 e 2007, e cuja trama abrangia
todos os títulos da editora.
Na série, uma explosão causada na cidade de Stanford, Connecticut, pela
ação irresponsável de um grupo de super-heróis resulta na morte de 600 civis entre
eles 60 crianças de uma escola primária vira a opinião pública contra os super-
heróis. Dentro do universo Marvel as tensões contra os super-humanos já estavam
elevadas como conseqüência de outras tramas de destaque da editora, que iam
desde um ataque do Hulk contra Las Vegas, até um golpe de estado contra a nação
européia da Latvéria71, envolvendo a participação de vários super-heróis de
destaque.
Frente à situação, o governo americano aprova o Super Human Registration
Act, que obriga todos os super-humanos a se registrarem junto ao governo, e a
escolherem entre serem funcionários públicos – ou serem presos na prisão extra-
70
Brubaker, Ed: roteirista de quadrinhos americano, trabalha primariamente com quadrinhos sobre o
crime, em tramas de baixo nível de fantasticidade. Brubaker recebeu três prêmios Eisner por seu
trabalho com o Capitão América, além de vários outros prêmios,
71
Governada pelo vilão Doutor Destino, o país fictício da Latvéria tem mais importância nos
quadrinhos do Quarteto Fantástico.
75

dimensional 42. O projeto em si divide os super-heróis, alguns receosos de para


que fins o governo vá usar essa informação, ou que os super-heróis passem a ser
um ‘recurso estratégico’ dos EUA.
Antes da aprovação da lei, o governo americano pede ao Capitão que ele
ajude a capturar os heróis que resistirem ao registro, mas contrariando suas
expectativas, Rogers rejeita a proposta, afirmando que não vai se meter nas
politicagens de Washington, e que no rumo em que estão seguindo, logo os políticos
vão passar a dizer não só quem são os heróis, mas também quem são os vilões 72. O
governo responde ordenando a prisão do Capitão América, antes mesmo da lei
entrar em validade.
Ao mesmo tempo, o Homem de Ferro oferece ao governo americano sua
ajuda para deter o Capitão América e garantir a devida aplicação da lei de registro.
O que se seguiu como o grande evento das histórias em quadrinhos de 2007 foi o
embate entre o lado pró-registro do Homem de Ferro, e o lado anti-registro do
Capitão América; de certa maneira, a trama fazia um paralelo claro com vários
elementos da administração Bush – em especial o polêmico Patriot Act, lei aprovada
em 2003 que permitia a violação de vários direitos civis quando dissesse respeit a
‘segurança nacional’, e a prisão de Guantanamo, onde até hoje são mantidos
suspeitos de terrorismo, muitas deles sem direito a julgamento. Dentro do universo
Marvel, esse era o destino dos heróis não registrados, trancados na 42 sem direito a
julgamento até que ‘escolhessem’ se registrar.
Enquanto em outras histórias o conflito era entre o crime e a justiça, ou entre
o bem e o mal, Guerra Civil traz um conflito muito mais complexo: a escolha entre
liberdade e segurança. Em essência, nenhum dos dois lados é mal intencionado,
mas as prioridades são diferentes. Enquanto para o lado do Homem de Ferro a
perda da autonomia e da liberdade dos super-heróis é um preço aceitável a ser pago
para garantir a população uma sensação de segurança, para o Capitão América e os
seus aliados, o sacrifício dessas liberdades não oferece segurança – ao contrário, é
apenas uma porta aberta para perder mais direitos, e lentamente fazer dos super-
heróis instrumentos do governo. Ao mesmo tempo, o Homem de ferro sabe que o
registro não é uma solução perfeita, mas deve ‘acalmar os ânimos’ da população,
abalada pela tragédia: “And I know registration won't stop every tragedy, but people

72
Civil War #1, 2006.
76

in our position need accountability. Someone who, if I'd killed those men, would have
thrown me in jail where I belonged.” (Iron Man Captain America Casualties of War
Vol 1 #1, fevereiro 2007).
Embora o Capitão já estivesse posicionado contra o governo desde seu curto
tempo como o Nômade, é em Guerra Civil que essa posição se torna mais
extremada: enquanto em outras histórias o personagem se desligava do governo, ou
tomava ações independentes contra os desejos da casa branca, aqui o personagem
passa a ativamente combater o governo e uma lei que vê como injusta. Essa
determinação de preservar os seus ideais, independente se eles têm apoio é
resumida em discurso com o Homem-Aranha – que neste ponto estava do lado do
Homem de Ferro:

“Doesn't matter what the press says. Doesn't matter what the politicians or
the mobs say. Doesn't matter if the whole country decides that something
wrong is something right. This nation was founded on one principle above all
else: the requirement that we stand up for what we believe, no matter the
odds or the consequences. When the mob and the press and the whole
world tell you to move, your job is to plant yourself like a tree beside the river
of truth, and tell the whole world - "No, you move."” (Amazing Spider-Man
#537, Janeiro 2007)

Um pequeno, mas importante detalhe da distribuição dos heróis durante a


Guerra Civil está na predominância de heróis “de rua”73 ao lado do Capitão,
enquanto a maioria dos “pesos-pesados” estão ao lado do governo. Em parte isso se
deve a própria natureza desses personagens: por lidarem diretamente com a
‘situação das ruas’ e com a corrupção policial, personagens como Luke Cage e o
Demolidor, ambos protetores de bairros pobres, naturalmente eram mais receosos
de trabalhar para o governo.
Conforme as tensões foram escalando entre os heróis, o conflito passa as
ruas, e o lado anti-registro perde o apoio popular. Ao final da trama, o Capitão
América se rende após ser detido por um policial, um bombeiro e um paramédico –
cidadãos comuns que arriscavam suas vidas todos os dias. Levado a julgamento
pelo conjunto de crimes cometidos pela resistência ao registro, o Capitão América é

73
Para referência: heróis de rua se refere aqueles personagens, em geral de baixo poder, cujas
tramas costumam envolver crimes comuns, como assaltos, tráfico de drogas e corrupção. Já o meu
uso de “pesos-pesados” se refere a heróis de maior nível de poder, que costumam enfrentar
alienígenas, super vilões e outras ameaças fantásticas.
77

assassinado em frente ao tribunal, e a lei de registro é posta em prática sem


nenhuma alteração. Interpretando o Capitão América como sendo um símbolo dos
ideais de liberdade dos EUA, a maneira como a guerra civil acaba tem uma
mensagem clara – os EUA mataram seus ideais em nome de uma sensação de
segurança.
Esse discurso de perda dos ideais ganha força ao levar em consideração
quem lidera o lado pró registro: o Homem de Ferro. Embora tradicionalmente sejam
aliados, o Capitão América e o Homem de Ferro são figuras quase completamente
opostas. Enquanto Rogers tem uma origem humilde, e tirou suas habilidades de um
trabalho coletivo do governo americano, Tony Stark, o Homem de Ferro, é um
milionário da indústria armamentista, cujo traje de combate prodigioso foi fruto
apenas do seu trabalho. Se Millar quis criticar essa perda de ideais ou se ele quis
criticar quem ainda defendia o idealismo não é claro: nas notas de produção de
Guerra Civil, Millar afirma que em seu ver o lado pró-registro sempre esteve certo, e
o Capitão América não passava de um terrorista mal informado, mas ao mesmo
tempo, o lado pró-registro é retratado pelo próprio Millar74 trancando pessoas
inocentes em algo que é essencialmente um campo de concentração. Rogers
retornou a vida na minissérie Captain America: Reborn, de 2009 e assume o cargo
novamente durante os eventos de Fear Itself, evento central da Marvel ao longo de
2011. Porém minha análise se atém até a morte simbólica do herói em 2007, para
fins de limitação do objeto estudado.

4.7 Outros Capitães, Outras Américas

Steve Rogers é apenas o principal e mais relevante detentor do título Capitão


América, mas ao longo dos anos outros personagens assumiram a sua identidade,
ou tentaram representar “a América” nos quadrinhos da Marvel, com discursos
diferentes do original. Enquanto Rogers representa um ideal de manutenção das
liberdades individuais, os outros Capitães América, assim por dizer, representam
ideologias diferentes. Os personagens que se seguem abaixo são apenas os mais

74
Por envolver todo o universo Marvel, eventos da Guerra Civil foram escritos por vários autores,
resultando em inconsistências, mas o caráter totalitário da prisão 42 veio das edições do próprio Mark
Millar.
78

populares substitutos de Rogers: ao longo dos 71 anos de existência do título


Capitão América, mais de 20 personagens já trajaram o uniforme vermelho azul e
branco.

4.7.1 Agente Americano: meu país certo ou errado

Quando Rogers abandonou a identidade do Capitão América na década de


80, o governo americano passou o cargo para John Walker. Criado em 1986 por
Mark Gruenwald, o personagem já havia se envolvido com o Capitão América antes
de assumir o papel em 1987. Em sua primeira aparição, em Captain America vol.1
#323, de novembro de 1986, Walker usava o título de “Super Patriota”.

Figura 17. O Super Patriota, Captain America #323,


Marvel Comics, novembro de 1986, arte de Paul Neary.

Irmão de um piloto de helicóptero falecido no Vietnã, Walker se alistou no


exército para honrar a memória do irmão. Dispensado com honras do serviço militar,
Walker buscou uma outra maneira de servir ao país através do grupo criminoso A
Corporação, que lhe deu força e agilidade sobre humanas. Endividado, Walker cria
uma identidade heróica como o Super Patriota, financiado por várias corporações, e
para crias uma imagem como o verdadeiro herói americano, organiza um comício
79

para criticar o Capitão América – que já estava posicionado contra o governo e as


políticas externas e internas dos EUA.
Durante o comício, Walker é atacado por um grupo de fãs do Capitão
América, auto intitulados Buckies – após derrotar os Buckies, o Super Patriota
desafiou Rogers, alegando que o povo americano tinha o direito de decidir quem
realmente representava a América. Em que ninguém além Walker soubesse, o
ataque dos Buckies havia sido uma fraude, armada para pintar o Super Patriota
como o verdadeiro herói, enquanto o Capitão pareceria um covarde incapaz de
aceitar críticas75. Quando Rogers abandonou o cargo, Walker foi indicado para servir
como o novo Capitão América pela Comissão de Assuntos Super Humanos. Sem
que Walker estivesse ciente, o presidente da comissão, e vários outros integrantes
da mesma, eram aliados ao Caveira Vermelha em um complô para sabotar a
imagem do Capitão América original, e para colocar alguém mais facilmente
manipulável no lugar. Embora Walker se esforçasse para seguir o modelo deixado
por Rogers, sua visão mais reacionária se refletia nos métodos mais violentos:
quando seus ex-colegas Right-Winger e Left-Winger foram capturados pelo
movimento ultraconservador dos Watchdogs, Walker matou vários membros do
movimento, e ao descobrir que os dois haviam sido responsáveis pelo vazamento de
sua identidade secreta, deixou os ex-companheiros para morrer em uma explosão76.
Durante todo o período de publicação do personagem – que ainda está ativo
nos quadrinhos, atualmente como coordenador do super-grup Thunderbolts –
Walker trabalhou ou para o governo americano ou para empresas. Apesar da
comissão ter sido exposta como agentes do Caveira Vermelha, Walker manteve-se
leal ao órgão do senado, mesmo sem garantias de que a nova comissão estava
livre de influências alheias.
Quando Rogers voltou a ser o Capitão América, Walker assumiu uma nova
identidade como o Agente Americano, que foi abandonada em Mighty Avengers #35,
de 2010, quando Walker ficou paraplégico após um confronto com o vilão Nuke.
Enquanto o Capitão América original é patriótico, porém crítico do seu país – e
muitas vezes posicionado abertamente contra – Walker representa uma outra forma
de patriotismo: o nacionalismo ufanista, desprovido de razão crítica. Ao longo de
seus 25 anos de publicação, Walker se recusou a cogitar a possibilidade do governo

75
Captain America, vol. 1 #323, novembro de 1986.
76
Captain America #347, 1988.
80

estar errado, e em suas primeiras histórias como o Capitão América, quase serviu
como um peão do Caveira Vermelha justamente por esta falta de senso crítico.
Porém esse caráter de crítica ao patriotismo cego foi atenuado quando passou a ser
escrito por outros autores além de Gruenwald.

4.7.2 Cidadão V: totalitarismo e a polícia do mundo

Em 1997, os quadrinhos da Marvel trouxeram outro herói patriótico, como um


substituto temporário do Capitão América: enquanto o herói original havia sido
‘apagado de continuidade’ com os eventos da série Massacre, a revista
Thunderbolts, de Kurt Busiek trazia um novo ‘herói símbolo dos EUA’ na forma do
Cidadão V. Com um visual mais militarista, portando uma espada, um capote
púrpura e ombreiras no padrão da bandeira Americana, o Cidadão V – na verdade o
quarto personagem a usar este título, mas o primeiro a ter alguma importância – era
uma identidade secreta do vilão nazista Barão Helmut Zemo, filho de um inimigo
anterior do Capitão América, o Barão Heinrich Zemo, morto em combate contra
Rogers.
Aproveitando o vácuo deixado pela aparente morte dos Vingadores e do
Quarteto Fantástico nos eventos de Massacre, Zemo reúne vários vilões menores da
Marvel em um plano engenhoso para ‘conquistar o mundo’: assumindo novas
identidades, iriam conquistar a confiança da população fingindo serem super-heróis,
e quando o mundo menos esperasse, assumiriam o controle77.

77
Thunderbolts Annual 1997
81

Figura 18. O cidadão Thunderbolts #1,


Marvel Comics, abril de 1997, arte de
Mark Bagley.

O plano foi frustrado por um fator inesperado: agindo como heróis e


conquistando o respeito da população, vários dos membros dos Thunderbolts
desistiram dos planos de conquista para serem ‘heróis de verdade’. Perto de
assumir o controle do globo, Zemo é detido pelos esforços conjuntos de sua própria
equipe e dos Vingadores, que haviam retornado de um curto exílio em uma Terra
alternativa.
Após o fracasso do plano de conquista global, Zemo abandona a identidade
como Cidadão V, mas continua na liderança dos Thunderbolts. Aparentemente
regenerado, Zemo tenta conquistar o mundo novamente na minissérie
Avengers/Thunderbolts, de 2004, movido por um senso distorcido de altruísmo:
enquanto antes o seu desejo de conquista era resultado de uma sede de poder,
agora Zemo acreditava que o mundo precisava de uma mão forte que o guiasse
para um futuro melhor. Ao final da trama, Zemo é horrivelmente desfigurado
salvando a vida do Capitão América.
Zemo volta a ter um papel central durante os eventos da Guerra Civil,
recrutando vários vilões para servirem temporariamente ao lado do Homem de
Ferro. Usando um par de artefatos alienígenas, cria uma ilusão do seu rosto antes
de ter salvo a vida do Capitão. Sem que o Homem de Ferro estivesse ciente, Zemo
82

entra em contato com o Capitão América, revelando o seu rosto desfigurado, e


pedindo o seu perdão, afirmando estar completamente regenerado78.
Criado na idéia de que os alemães eram a raça superior, Zemo conclui que os
ideais do seu pai estavam errados, e que apenas através da retidão de caráter
alguém pode dizer ser superior. Em mais uma tentativa de salvar o mundo ao
conquistar o mundo Zemo tenta usar o poder da ‘Fonte do Poder” para transformar o
mundo em uma Utopia, mas é traído pela companheira de equipe e namorada
Soprano, que já havia sido informada de sua traição pelo próprio Zemo.79
Entre 2008 e 2010, Zemo esteve fora dos quadrinhos da Marvel, sua ultima
aparição na minissérie “Zemo – Born Better”, de 2007, em que o anti-herói, trancado
no fluxo do tempo, revive toda a linhagem de ódio da família Zemo, e novamente
decide pelo heroísmo. Em agosto de 2010, Zemo retorna com um plano de vingança
contra o atual Capitão América, Bucky Barnes, por um fator simples: enquanto Zemo
havia se sacrificado pelo mundo repetidas vezes, e se esforçado ao máximo para
ser um homem melhor, e continuava a ser tratado como a escória da Terra, Barnes
foi perdoado por todos os crimes que cometeu como Soldado Invernal, e era tratado
como um herói por todos, sendo escolhido para suceder Rogers80.
Em grande parte o totalitarismo de Zemo reflete sua origem como um dos
múltiplos vilões nazistas enfrentados pelo Capitão América. Ao mesmo tempo, a
trama toda de Zemo desde a formação dos Thunderbolts é uma longa história de
redenção e queda, na qual até as motivações mais altruístas são distorcidas devido
à arrogância. De certa maneira, esse caráter das histórias do Cidadão V/ Barão
Zemo estão relacionadas com a posição dos EUA como polícia do mundo e o com o
paradoxo da liberdade imposta: Zemo acredita estar fazendo o melhor, e para isso
comete atos horríveis, da mesma maneira que os EUA impuseram governos
ditatoriais em nome da liberdade. Até a trama de vingança com Bucky pode ser
interpretada com um significado mais profundo em termos de identidade: não
importa quantas atrocidades sejam cometidas pelos EUA, a visão do país sobre si
mesmo continua a de que os EUA representam o bem, o certo e o justo – enquanto
a Alemanha, passados 66 anos da Segunda Guerra Mundial, continua a carregar a
mácula do Nazismo.

78
Thunderbolts # 105
79
Thunderbolts # 108
80
Captain America # 608, agosto 2010.
83

4.7.3 Bucky Barnes: o idealismo cede espaço ao pragmatismo

Após a morte de Rogers na conclusão da Guerra Civil, o título do Capitão


América passou por vários personagens. Por uma edição o cargo foi de Clint Barton,
o Gavião Arqueiro, ex-companheiro de equipe do Capitão América81. Ao longo de
2007, Frank Castle, o vigilante conhecido como Justiceiro, tentou assumir o papel do
Capitão América, trajando uma mistura do seu uniforme com o do Capitão. Porém, o
‘legitimo sucessor’ de Rogers terminou por ser Bucky Barnes.
Barnes recebe a oferta do cargo após roubar o escudo original do Capitão
América, que fora recolhido pela S.H.I.E.L.D. – Embora Barnes ainda estivesse sob
suspeita de estar trabalhando para os russos, o Homem de Ferro – que entre o final
da Guerra Civil e a conclusão do evento seguinte, Invasão Secreta (2008), assumiu
a diretoria do órgão – reconheceu que as intenções de Barnes não eram criminosas,
devido a uma carta deixada por Rogers pedindo que o cargo fosse repassado a
Barnes caso lhe acontecesse qualquer coisa82.
Assim como Rogers, Bucky exige total autonomia para atuar como o Capitão
América. Diferentemente do original, Bucky adiciona dois elementos a mais ao
equipamento do Capitão América: uma pistola e uma faca de combate, e troca o
traje clássico por uma roupa nova feita com malha de vibranium 83 por não se julgar
digno de portar o traje original. Desde o número seis da revista original do Capitão
América, o personagem dispensava armas de fogo, e é apenas com Bucky Barnes
que o herói volta a usar este tipo de equipamento em uma história convencional da
Marvel84. “I could NEVER wear Steve's uniform. I'm not him and I won't pretend I am.
... Just cause I'm not him doesn't mean I can't honor his memory” (Captain America
Volume 5 # 34, março 2008).
A primeira aventura com Barnes como o Capitão América retoma a temática
política do período em que foi escrito por Gruenwald, e coloca o herói e o Falcão
contra o Caveira Vermelha e um reanimado Michael Burnside, o Capitão América
dos anos 50. O Caveira Vermelha e o psiquiatra Doutor Faustus planejavam usar o
ingênuo e facilmente manipulável Burnside e a imagem do Capitão América para

81
Fallen Son: The Death of Captain America #3, Julho 2007.
82
Captain America Volume 5 #31 – 35 (Dezembro 2007 – março 2008).
83
Elemento fictício quase indestrutível, do qual é feito o escudo do Capitão América.
84
Versões de continuidades alternativas do Capitão América usaram armas de fogo por mais tempo.
84

alavancar a candidatura do senador Gordon Wright a presidência dos EUA. Além de


se opor ao Caveira Vermelha, Bucky também atua como opositor aos movimentos
reacionários de apoio a Wright. Devido aos paralelos de Wright com o Tea Party,
incluindo a oposição de seus partidários a cobrança de impostos, essa história
causou certa polêmica nos EUA, por mais uma vez demonstrar o Capitão América
assumindo uma posição política.
Barnes tem uma relação muito mais relutante com o título do que Rogers:
enquanto para o ‘original’ a identidade como Capitão América é natural, Barnes é
essencialmente obrigado a assumir o cargo, e devido à admiração pelo antigo
mentor, não se sente digno do cargo, e não se sente capaz de lidar com o fardo da
função.

I never asked -- never wanted -- to be Captain America. But that mask,


those stars and stripes, that shield...they change you. I can see now
the burden that Steve's always carried. And it feels strange to admit I want
that burden back... But underneath it all, what I really know is...I want
to deserve it...somehow. (Captain America #612, novembro 2010)

O retorno do uso de armas de fogo não corresponde a uma caracterização


mais violenta: embora tenha retomado o equipamento bélico abandonado por
Rogers, Barnes tenta seguir o exemplo deixado pelo original, e resolver as crises na
base da oratória – porém, ao contrário de Rogers, Barnes se mostra mais disposto a
resolver de maneira dura uma situação que não poderia ser solucionada no diálogo.
Se Rogers encarna todo o idealismo americano, Barnes é um caso a parte:
representa um idealismo forçado a medidas radicais e ao pragmatismo frente à
realidade – e possivelmente, a tentativa de conciliação entre o discurso diplomático
sugerido pelo partido Democrata, e o discurso belicista defendido pelo partido
Republicano.

4.7.4 Michael Burnside: a paranóia anti-comunista e a xenofobia

Enquanto nos anos 50 o Capitão América teve o subtítulo de “Esmagador de


Comunistas”, e seguindo a cartilha McCharthyista era dedicado ao extremo a
combater a “ameaça vermelha”, em 1972 o Capitão América de 1953 foi reescrito
85

como sendo não Steve Rogers, mas o professor de história Michael Burnside, um fã
do original que usou uma versão experimental do soro para assumir o cargo – e
enlouqueceu no processo. Burnside era tão fervoroso em sua tentativa de assumir o
papel de Steve Rogers que chegou a fazer cirurgias plásticas para se tornar idêntico
ao seu ídolo. Enquanto Rogers fora escolhido pelo exército para combater a ameaça
nazista, Burnside foi escolhido pelo FBI para combater os ‘inimigos internos’ dos
EUA.
Mesmo no curto período em que era considerado pelos editores como sendo
o Capitão América, Burnside era muito mais violento do que seu antecessor:
Enquanto na segunda Guerra Mundial o inimigo eram os agentes diretos dos
nazistas, agora o Capitão enfrentava simpatizantes do comunismo e uma versão
comunista do seu arqui inimigo, o Caveira Vermelha. Enquanto seu retorno nos anos
70 é claramente uma crítica a paranóia McCarthista e anti-movimentos sociais
vigente nos anos 50, a versão original é um tanto ambígua, podendo tanto ser uma
reprodução do discurso paranóico desta época, como uma sátira do mesmo
discurso, levado ao extremo até no subtítulo, “O Esmagador de Comunistas”.
Entre 1953 e seu retorno em 1974, dentro do universo Marvel o personagem
esteve mantido em animação suspensa. Em seu retorno, sob o controle mental do
Doutor Faustus – um dos agentes do Caveira Vermelha, Burnside assume o nome
de Grão Diretor, e começa uma campanha de terror contra os “inimigos da América”,
assumindo a liderança do grupo terrorista Força Nacional. Neste retorno do
personagem a Marvel escalou o radicalismo do Esmagador de Comunistas,
revelando que antes do FBI cancelar o projeto do segundo Capitão América,
Burnside e seu próprio Bucky, Jack Monroe estavam atacando civis nas ruas por
questões raciais, por manifestarem opiniões diferentes das deles e por não lhes
mostrarem ‘o devido respeito’.
Burnside aparentemente morre queimado em combate com o Capitão
América original, e seu corpo é levado em custódia pelo FBI. Anos depois, o vilão é
reanimado pelo Caveira Vermelha e hipnotziado pelo Doutor Faustus, em mais um
plano para usar a imagem do Capitão América para levar um político da extrema-
direita conservadora ao poder. Depois de revelado o engodo, Burnside passa pelo
mesmo processo de alienação passado por Rogers após perder 20 anos de sua vida
congelado. Mas enquanto Rogers se sente enojado com a corrupção, o discurso
supremacista e o imperialismo americano, Burnside se irrita com o multiculturalismo
86

e o abandono do Imperialismo85. Pela segunda vez, o Capitão América dos Anos 50


se une ao grupo terrorista Watchdogs – que buscava preservar a força a ‘moral
cristã e os bons costumes’, que em seu ver eram os verdadeiros patriotas, dispostos
a qualquer esforço para preservar a verdadeira América86. Enquanto no seu ver
Barnes era apenas mais um traidor, sujando o nome do Capitão America ao se aliar
com o Falcão – um negro.
Embora Rogers tenha enfrentado o Grão Diretor na sua primeira aparição 87,
quando Burnside ainda se julgava o Capitão América, os Watchdogs foram
confrontados exclusivamente por seus sucessores, John Walker e Bucky Barnes.
Enquanto a “América” de Rogers está centrada no ideal de liberdade
individual, a América representada por Burnside é pautada no conceito de pureza. O
“Esmagador de Comunistas” não vê mal no sacrifício de direitos, contando que esse
sacrifício sirva para manter a moral e o sangue dos EUA em um estado de ‘pureza’.
Além disso, o Esmagador de Comunistas se centra em uma ideologia de que esta
“América pura” é incapaz de estar errada, e que qualquer discordância significa
traição – um discurso que naturalmente leva ao totalitarismo.

4.8 O Caveira Vermelha

Enquanto o Capitão América – ou mais especificamente, Steve Rogers –


encarna dentro da narrativa dos quadrinhos da Marvel o ideal de liberdade, sendo
tanto um símbolo americano quanto um símbolo da liberdade, seu arqui-inimigo
representa o seu completo oposto: o totalitarismo e a opressão dada forma.
Como muitos outros vilões de quadrinhos, o Caveira Vermelha é uma perfeita
contraparte para o Capitão América; enquanto Rogers encarnava a propaganda
patriótica, durante a Segunda Guerra Mundial, o Caveira incorporava os piores
conceitos a respeito da Alemanha Nazista. Assim como Rogers é escolhido para ser
o Capitão América por seu caráter, o menino de rua Johan Schmidt é escolhido
pessoalmente por Adolph Hitler para ser seu braço direito.

85
Captain America Volume 5 #42.
86
Captain América #602 – 604. Fevereiro a Abril de 2010 ( Burnside havia trabalhado junto ao grupo
em Captain America #335 (Nov 1987).
87
Captain America # 153, setembro de 1972.
87

Assim como Steve Rogers é virtuoso ao ponto de não ser um personagem


crível, elemento apontado dentro das histórias pelo Homem de Ferro88, Schmidt é
um completo psicopata. Ambos foram marcados por infâncias difíceis, perdendo os
pais durante a juventude, mas enquanto Rogers se volta para o bem maior, Schmidt
nutre um intenso ódio pelo mundo cruel. Na juventude trabalha para um comerciante
judeu e se apaixona por sua filha, Ester – rejeitado, mata a menina, e embora
chocado com a perda, se sente extasiado pelo prazer de matar. Anos depois,
trabalhando em um hotel, é usado como contra-exemplo por Adolph Hitler, que
afirma que o rapaz daria um nazista melhor do que os oficiais que ali estavam.
Impressionado com a crueldade e falta de empatia do jovem, Hitler decide tomá-lo
como braço direito.89 De Hitler o rapaz ganha uma horrenda mascara vermelha
representando um crânio humano, da qual recebe o seu nome como vilão.
Ao longo dos anos, o Caveira Vermelha passou de representar os vários
grupos indicados como inimigos nacionais para encarnar a própria idéia do
totalitarismo e da corrupção. Inicialmente representando os nazistas durante a
Segunda Guerra Mundial, na década de 50 o nome passa a um vilão comunista –
como muitos deste período, esquecido e ignorado pela Marvel. Na década de 60 o
vilão é trazido de volta a vida pelo grupo terrorista IMA 90, mas é na década de 80
que o Caveira Vermelha assume a sua posição simbólica como a representação do
totalitarismo.
Fechando os paralelos com o Capitão América, o Caveira Vermelha é trazido
de volta a vida pela segunda vez em 1984 em um corpo clonado do Capitão
América, desta vez se assumindo como reflexo perverso do herói. Vendo o nazismo
como uma tola idéia do passado e assumindo os ideais do nacionalismo americano,
Johann Schmidt muda o seu nome para John Smith91 e passa a operar não através
de grandes esquemas criminais, mas da corrupção política e econômica 92. Entre
outras medidas, assume o controle da Comissão Especial para Assuntos Super
Humanos e tenta obrigar o antigo inimigo a jurar total lealdade ao governo; financia
grupos de extrema direita, como os Watchdogs, para gerar instabilidade política; e
88
Iron Man Captain America Casualties of War Vol 1 #1, fevereiro 2007.
89
Captain America # 298, outubro de 1984.
90
Tales of Suspense # 79 – 81. Julho de 1966 – setembro 1966.
91
É interessante notar que John Smith não apenas é a versão americana de Johann Schmidt, mas
também um ‘nome genérico’, equivalente a algo como João da Silva no Brasil – desta maneira, o
nome do vilão remete ao fato de antes dele ser o Caveira Vermelha, ele era apenas um individuo
qualquer.
92
Captain America # 300, dezembro 1984.
88

com ajuda do psiquiatra Doutor Faustus, instala agentes dormentes dentro de


numerosos órgãos do governo.
Assim como a corrupção e o totalitarismo não podem ser eliminados com
medidas simples, o Caveira Vermelha retornou da morte repetidas vezes – como o
secretário de defesa Dell Rusk93 o vilão tentou deflagrar uma arma biológica sobre o
território americano para justificar a declaração de um estado de sitio – e sua própria
ascensão a presidência vitalícia94. Após mais uma morte, o vilão se torna de forma
literal um espírito do totalitarismo ao usar o poder de um cubo cósmico95 para
transferir sua mente para o corpo do empresário russo Alexander Lutkin. A partir do
corpo de Lutkin, iniciou um plano intricado para levar vários políticos fantoches – e
corpos em potencial – ao alto escalão do governo americano, desacreditando a
adminstração vigente com ataques falsos de agentes governamentais contra
manifestantes pacíficos, e guiando a candidatura do ‘independente’ Gordon Wright.
Indiretamente, o Caveira Vermelha é responsável por quase todas as crises
enfrentadas pelo Capitão América. Porém seu maior sucesso contra o herói foram
os eventos que levaram a morte do Capitão em 2007: a primeira bala a atingir
Rogers foi disparada pelo neo nazista Ossos Cruzados, a mando do Caveira,
enquanto os quatro tiros que o mataram foram disparados pela agente da
S.H.I.E.L.D Sharon Carter, namorada do herói, sob controle hipnótico do Caveira
Vermelha. Schmidt não é meramente a completa oposição a identidade e o conceito
encarnado pelo Capitão América: a morte do Capitão América pelas mãos indiretas
do Caveira Vermelha tem um forte ingrediente de crítica a posição americana
quando se leva em conta o Patriot Act: ao escolher uma lei que cerceava os direitos
individuais, em nome de uma sensação de segurança que se dava primariamente
pela Xenofobia, para os padrões do real o discurso vencedor era o do Caveira
Vermelha: a seu modo, o Caveira Vermelha é uma representação da identidade
americana tão, ou mais real do que o Capitão América.

93
Um anagrama de Red Skull – caveira vermelha em inglês.
94
The Avengers Volume 3 # 65, maio 2003.
95
Artefato alienígena recorrente na Marvel.
5 Considerações Finais

Embora tenha surgido como um ícone de patriotismo perante a ameaça de


uma guerra contra o Eixo, ao longo dos anos a figura do Capitão América se
converteu em um meio de crítica a realidade americana e defesa de um ideal do que
o país deveria ser. Por esta questão, julgo que seja inviável tratar a narrativa de
super heróis como sendo meramente um meio de entretenimento barato e inocente.
Sim, as histórias de super-heróis nasceram como um meio ingênuo e
maniqueísta, onde o discurso era claramente divido entre bem e mal, e os caras
bons sempre venciam no final. Porém, esta narrativa não se manteve estagnada
nesse maniqueísmo primordial, e a sua própria maneira, ganhou um grau
considerável de maturidade para uma forma narrativa que por definição lida com
indivíduos fantasiados combatendo criminosos igualmente fantasiados.
Este é apenas um estudo inicial: ainda há muito dentro da construção da
narrativa dos super-heróis que não pode ser analisado aqui, e que merece maiores
estudos, porém, já se mostram evidentes certas questões chave. Por mais óbvio que
possa parecer o posicionamento ideológico de um personagem ou de um título, a
realidade demonstra que mesmo as revistinhas de heróis tem uma profundidade que
vai além do simples discurso de patriotismo.
Ainda almejo continuar o estudo do caráter ideológico e simbólico do Capitão
América, em maior profundidade, e fazer o mesmo com outros heróis. Devido as
próprias peculiaridades do processo de recepção de um discurso e de uma
identidade, ao mesmo tempo que o Capitão América pode ser considerado como
uma representação crítica dos EUA, ao mostrar uma forma idealizada do que o país
deveria ser, a própria maneira em que ele faz esta crítica pode ser lida como uma
defesa do que os EUA são.
Porém, tramas como o “Nômade”, “América Não Mais”, “What If? Captain
America were revived today” e a Guerra Civil tornam evidente que a intenção não é
de defender o nacionalismo e o ufanismo, mas sim de expor o quão erradas estão
as manifestações de patriotismo nos EUA – e uma afirmação de como as
manifestações vistas como anti-americanas pelo discurso conservador americano
são mais patrióticas do que as ações “em nome da América”; Para fazer um paralelo
contemporâneo, a figura do Capitão América foi usada para criticar o movimento
90

conservador do Tea Party, e embora o movimento Ocupe Wall Street ainda não
tenha sido referenciado nas HQs do herói, a trajetória do personagem até aqui
parece indicar que se ocorrer essa menção, o personagem estaria apoiando, mas
resta esperar para ver.
Assim sendo, não são apenas as Graphic Novels que podem ser
consideradas literatura crítica dentro do meio de quadrinhos: embora essa
profundidade esteja escondida sob uma roupagem de “bem e mal”, a narrativa de
super-heróis também existe como comentário social e político, e seu
desenvolvimento se dá como reflexo – as vezes tardio, as vezes precoce – dos
problemas e das questões debatidas na sociedade americana, e por isso, a crítica e
a identidade representada pelos quadrinhos de super-heróis estaria intimamente
ligada ao Status Quo dos EUA. E como consequência da popularidade desta forma
narrativa, o discurso social e político americano se dissemina pelo globo, afetando e
homogeneizando as identidades globais começando pela população jovem. O
mesmo ocorre devido ao cinema, a música e a televisão. Ambas as questões – o
desenvolvimento da narrativa dos super heróis, e a influência desta narrativa na
identidade social global – merecem mais estudos, com enfoques talvez diferentes do
que foi dado neste.
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Captain America. Volume 1, vários números. Marvel Editora.


Captain America. Volume 5 - # 1 -36. Marvel Editora.
Thunderbolts. Volume 1, série completa. Marvel Editora.
The Avengers, volume 1, números 1 ao 18. Marvel Editora.
Civil War. Números 1 ao 7. Marvel Editora.
Civil War Frontlines. Série completa. Marvel Editora.
Captain America The New Deal. Série completa. Marvel Editora.
Secret War.Série completa. Marvel Editora.
Secret Wars #1 #2 e #3. Séries completas. Marvel Editora.
Young Men’s Captain America. Série completa. Atlas Comics.
Captain America Comics. Números 1 ao 20. Timely Comics.
Terra X. Série completa. Marvel Editora.
Universe X. Números 1 e 2. Marvel Editora.

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