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Giorgio Agamben

O que é o contemporåneo?
e outros ensaios
Traduqäo Vinicius Nicastro Honesko

ARGoS
editora da Unochapecö
Associaqäo Brasileira
das Editoras Universitårias
Chapec6, 2009
0 2008 nottctempo srl

Titulo original:
0 20()6
Che cos
nottetempo srl
il contemporaneo? Sumårio
Titulo original: Che cos'é un dispositivo?
0 20()7 nottetempo srl

Titulo original: L'amico


0 2009 da traduqäo brasileira: Editora Argos
Este livroou parte dele näo pode ser reproduzido por qualquer meio sem
autorizaqäo escrita do Editor.

UNOCHAPECj
UNIVERSIDADE REGIONAL DE CHAPECÖ

REITOR: Odilon Luiz Po i

VICE-REITOR DE PESQUISA, EXTENSÄO


E PÖS-GRADUAQÄO: Claudio Alcides Jacoski
VICE-REITOR DE ADMINISTRAQÄO: sady Mazzioni
VICE-REITORA DE GRADUAGÄO: Maria Luiza de Souza Lajfis

320.01
Apresentagäo 7
Agamben, Giorgio
A259q O que é o contemporåneo? e outros ensaios / Giorgio O que é um dispositivo? | 25
Agamben; [tradutor Vinicius Nicastro Honesko].
Chapec6, SC: Argos, 2009. O que é o contemporåneo? | 55
92 p.

O amigo | 77
Traduqäo de: Che cos'ö' il contemporaneo?
Che cos'& un dispositivo?
L' amico

l. Ciéncia politica - Filosofia. 2. Filosofia italiana.

1. Titulo.

CDD 320.01
ISBN. 978-85-7897-005-5 Catalogaqäo Daniele Lopes CRB 14/989
Biblioteca Central Unochapecö

ARG05
editora da Unochapecö

Conselho Editorial: Elison Antonio Paim (Presidente); Antonio Zanin;


Arlene Renk; Claudio Alcides Jacoski; Darlan Christiano Kroth; Edilane Bertelli;

Iöne Inés Pinsson Slongo; Jacir Dal Magro; Jaime Humberto Palacio Revello;
Leonardo Secchi; Maria dos Anjos Lopes Viella; Mauro Dall Agnoll;
Neusa Fernandes de Moura; Valdir Prigol; Paulo Roberto Innocente;
Ricardo Brisolla Ravanello; Rosana Badalotti

Coordenador: Valdir Prigol


Cumprindo mais uma exigéncia de sua pr6pria

obra, Giorgio Agamben aprofunda nestes ensaios, ora


reunidos, a investigaqäo sobre o problema do tempo.
Jå em Infåncia e histöria, seu terceiro livro langado,

de 1978,1 0 fi16sofo italiano sublinhava que uma au-

téntica revolugäo näo visa apenas a mudar o mundo,


mas, antes, a mudar a experiéncia do tempo.

A auténtica revoluqäo de que fala Agamben em


1978 näo é por ele esquecida, tampouco obliterada
de seu projeto filos6fico. Todo seu pensamento é, em

1 Cf. a tradugäo brasileira: AGAMBEN, Giorgio. Infåncia e Histöria. Des-


truiqäo da experiéncia e origem da hist6ria. Traduqäo Henrique Burigo.
Belo Horizonte: UFMG, 2005. p. 111.
maior ou menor medida, a tentativa reiterada de uma
a entrada forgada pela porta de um novo e eterno mun-
revolufäo. No entanto, näo se trata de um plano (pro- do (o mundo p6s-hist6rico), mas mantém as coisas
jeto) revolucionårio cujos fins sejam determinantes
exatamente como elas säo, apenas um pouco fora do
para as escolhas dos meios de consecuqäo da revo-
lugar. E justamente nessa ligeira diferenga, nesse mf-
lugäo, isso é, de um ajuste — que inclusive pode ser
nimo deslocamento das coisas entre o mundo profa-
violento — do mundo. Pelo contrårio, longe de de-
no e o mundo messiånico que Agamben pensa.
terminaqöes cronolögico-causais, a revolugäo que Os trés textos aqui reunidos säo também fruto
Agamben pretende pode ser entendida como a cons-
recente dessa tentativa revolucionåria de Agamben e
tante interrupqäo da cronologia por um tempo ou-
podem ser compreendidos por meio de um eixo, cujas
tro, que Walter Benjamin chamava, na esteira de Pau-
indagaqöes principais poderiam ser assim formuladas:
10, kairös,2 ou tempo messiånico. Ou seja, uma au-
como, nos nossos dias (na dita pös-histöria da huma-
téntica revoluqäo é sempre uma revolugäo messiånica,
nidade), suplantar os mecanismos gestionais-produti-
uma revoluqäo que como na paråbola sobre o reino
vos que capturam toda aqäo humana e marcam toda
messiånico contada por Scholem a Benjamin3— näo é
politica com a insignia da catåstrofe? Como pensar
uma nova aqäo e uma nova politica humanas para
além das dimensöes consensuais-democråticas que a
filosofia e o pensamento politico atuais parecem to-

2 Éde toda forma fundamental lembrar aquele que talvez seja o livro mais mar como finico e filtimo estågio evolucionårio da
importante de Agamben, II Tempo che resta, lanqado em 2000, no qual
humanidade? Ou, ainda, de modo liminar: como pa-
o filösofo desenvolve a tese de que Benjamin era um arguto leitor de
Paulo ap6stolo e, nesse sentido, participante de uma tradifäo messiånica — rar a måquina governamental em que parece ter se
note-se, um messianismo diverso daqueles desenvolvidos pelas grandes
instituiqöes das trés grandes religiöes monoteistas (e messiånicas) do transformado toda a politica, e ter acesso a uma nova
ocidente: judaismo, cristianismo e islamismo — da qual o fi16sofo italiano
também se considera herdeiro. politica, uma politica da amizade, calcada numa ou-
3 Cf. BENJAMIN, Walter apud AGAMBEN, Giorgio. A Comunidade que tra experiéncia do tempo e capaz de nos expor ås exi-
vem. Lisboa: Editorial Presenqa, 1993. p. 44. também, BENJAMIN,
e,

Walter. A Modernidade e os Modernos. Traduqäo Heidrun Krieger Men- géncias de compartilhamento da existéncia das quais
des Silva; Arlete de Brito; Tånia Jatobå. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo
Universitårio, 1975. p. 99-100.
näo podemos nos esquivar? É na tentativa de responder,

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ou ao menos de sondar, O que é
essas perguntas que dispositivos, Agamben trata de revelar como o dis-

o contemporåneo?, O que é um dispositivo? e O Ami- positivo atua naquilo que denomina processo de
go tragam, em menor ou maior medida, seus objeti- subjetivaqäo: "Chamo sujeito o que resulta da relaqäo
vos.
e, por assim dizer, do corpo a corpo entre os viventes
Em O que é um dispositivo?, por meio de um e os dispositivos."5

trabalho fi1016gico revelador, Agamben sucintamen- Como måquina que no contato com os viventes
te descreve todo o procedimento com o qual produz sujeitos, o dispositivo é também uma måquina
oikonomia — termo grego para gestäo do oikos, da de governo (os sujeitos, livres, säo sempre sujeitados
casa — passa a ser traduzido para o rispido latim dos a um poder). No entanto, diferentemente do que
padres da alta Idade Média como dispositio. A partir acontecia com os dispositivos ditos tradicionais (a
desse levantamento, Agamben propöe uma Chave de confissäo, a prisäo, as escolas etc.), isto é, um ciclo

leitura do termo dispositivo em Michel Foucault. completo de subjetivaqäo (um novo sujeito que se

Confessando-se tributårio de Foucault, Agamben, constitui a partir da negagäo de um velho), nos dis-

entretanto, toma o termo dispositivo do pensamento positivos hodiernos (a internet, os telefones celula-

do fi16sofo francés para ampliå-lo e elevå-lo å catego- res, a televisäo, as cåmeras de monitoramento urbano
ria fundamental para a compreensäo do mecanismo etc.), näo é mais possivel constatar a produqäo de um
politico contemporåneo. Dispositivo passa a ser "qual- sujeito real, mas uma reciproca indiferenciaqäo entre
quer coisa que tenha de algum modo a capacidade de subjetivaqäo e dessubjetivagäo, da qual näo surge se-

capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, näo um sujeito espectral. Eis que Agamben constata
controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniöes um paradoxo latente nessa situaqäo, capaz de expor
e os discursos dos seres viventes."4 Dividindo todo o entäo o irremediåvel eclipse pelo qual atualmente passa
existente em duas grandes categorias, os viventes e os a politica: quanto menos subjetividades säo forma-

4 Cf. p. 40 da presente edifäo.


5 Idem, p. 41.

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das no corpo a corpo dos indivfduos com os dispo- governo e a assunqäo de um ingovernåvel como ponto

sitivos tanto mais dispositivos säo criados como ten- de fuga e infcio de uma nova politica.
tativa inelutåvel de sujeifäo dos indivfduos ås dire- Podemos tomar como uma tentativa de compre-
trizes do poder. Ou seja, uma vez que para o funcio- ensäo e exposifäo desse ingovernåvel justamente o

namento do mecanismo operativo da politica seria ensaio O Amigo. A partir de trechos dos livros Oita-

necessåria a conflagragäo de sujeitos reais que nunca vo e nono da Ética a Nicömaco de Aristoteles, especial-

se configuram, a politica parece ser näo mais que uma mente 1170a 28 até 1171b 35, Agamben propöe uma
forma que gira no vazio (um mecanismo oikonomico leitura que assinala de modo premente o estatuto

de autorreproduqäo) e, desse modo, encaminha-se ä ont016gico e ao mesmo tempo politico da amizade.


catåstrofe. Ele anota que o texto aristotélico fala de equivaléncias,

Ainda que algumas correntes do pensamento por assim dizer, sensitivas entre ser e viver, entre um
contemporåneo postulem meios de reproduqäo e
sentir-se existir e sentir-se viver. Com uma leitura e

manutengäo do mecanismo polftico, sugerindo o aco- traduqäo muito pr6prias, Agamben diz: "Nessa sen-

lhimento dessa situagäo e aceitaqäo de uma humani- sagäo de existir insiste uma outra sensaqäo, especifica-

dade que näo encontra outras tarefas hist6ricas senäo mente humana, que tem a forma de um com-sentiF

na sua autogestäo (seja por meio dos ditos consensos (synaisthanesthai) a existéncia do amigo. A ami-

democråticos, ou, ainda que renegadas, pela via dos zade é a inståncia desse com-sentimento da existén-

novos fundamentalismos religiosos e pela violéncia cia do amigo no sentimento da existéncia pröpria.

ditatorial muitas vezes travestida), Agamben propöe Mas isso significa que a amizade temum estatuto
uma outra saida: a profanagä06 dos dispositivos de ont016gico e, ao mesmo tempo, politico. A sensagäo

6 No ensaio sobre o dispositivo, Agamben då algumas noqöes do conceito 7 Con-sentireem italiano. Agamben acaba por fazer umjogo nos significantes:
de profanaqäo por ele desenvolvido e aprofundado em Profanazioni, consentir e com-sentir, isto é, um dar consenso ou aprovaqäo e um sentircom
livro publicado na Itålia em 2005. A traduqäo brasileira foi publicada pela
o outro. Notamos também que, para marcar sua leitura, Agamben insiste na
Boitempo em 2007. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Profanagöes. Traduqäo
utilizaqäo do hffen, que preferimos manter na tradugäo.
Selvino Assmann. Säo Paulo: Boitempo, 2007.

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do ser é, de fato, jå sempre dividida e com-dividida, e lembrava Agamben jå em 1990 em livro homönimo
a amizade nomeia essa condivisäo. näo uma comunidade em cuja politica estå a divi-
é

A amizade näo estå atrelada å intersubjetividade; säo e a partilha de uma ou outra classe de fundagäo

näo uma relafäo entre sujeitos — capazes de contratar


é comunitåria (um local de nascimento, uma Ifngua,

entre si e, por meio disso, delimitar uma identidade e a uma cor etc.); tampouco uma comunidade que se
fundaqäo de uma societas—, mas é uma "des-subjetivaqäo paute pela simples auséncia genérica de condigöes de

no coraqäo mesmo da sensaqäo mais intima de Sl. sua fundaqäo (como uma comunidade negativa), mas
Isto é, mais do que um espaqo categorial, para o qual se uma comunidade do ser tal qual é (quodlibet), cuja

predicaria a qualidade de ser amigo, a amizade se atém finica divisäo e partilha seja puramente existencial, isto
ao pr6prio fato da existéncia. Porém, tal existir, ao é, uma comunidade em que a politica seja a amizade.

com-sentir a existéncia do amigo, é jå sempre prenhe E preciso frisar, no entanto, que quando Agamben
de uma poténcia politica: "a amizade é a condivisäo propöe uma comunidade que vem näo o faz como
que precede toda divisäo, porque aquilo que hå para projeto futuro, ou seja, como se o que vem estivesse

repartir é o proprio fato de existir, a pr6pria Vida. E é sempre atrelado a um futuro. Alias, como uma espécie
essa partilha sem objeto, esse com-sentir originårio de linha subterfugia dos procedimentos cronolögicos
10
que constitui a politica. da atual situaqäo politica, Agamben trata de abrir o que

Nesse sentido, uma comunidade humana na qual vem justamente nas sombras do presente, no kairös
a politica possa estar radicada nessa com-divisäo da inapreensfvel que nos é sempre o contemporåneo.
pr6pria existéncia — uma comunidade que vem, como Num procedimento que mantém conexöes com
o pensamento barroco, Agamben afirma que a entrada

8 Cf. p. 88-89 da presente edifäo. Lembremos também que condivisione,


em italiano, significa "o compartilhar". Preferimos manter condivisäo
e suas variantes no texto: condividir, condivisfvel, condividem (sempre
em itålico) — pois, ainda que seja um neologismo em portugués, esboqa II Cf. AGAMBEN, Giorgio. LaComunitå che viene. Torino: Bollati
melhor a leitura de Arist6teles feita aqui por Agamben. também a traduqäo portuguesa: AGAMBEN,
Boringhieri, 2001. Cf.

9 Idem, p. 89. Giorgio. A Comunidade que vem. Traduqäo Antönio Guerreiro. Lisboa:

10 Idem, p. 92. Editorial Presenga, 1993.

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na temporalidade do presente é uma caminhada em uma origem e, com isso, se aproxima da nogäo de po-

direqäo a uma arqueologia daquilo que no presente esia. Por isso, Agamben, em O que é o Contemporå-
näo podemos viver e, "restando näo vivido, é inces- neo?, recorre ao poema, de 1923, intitulado O século,
santemente relanqado para a origem, sem jamais po- do poeta russo Osip MandelXtam, para novamente
der alcanqå-la."12 Baltazar Graciån, talvez o mais enunciar sua tese de que a poesia define-se por ser re-

instigante pensador do mundo barroco, discorre so- torno. Diz-nos Agamben: "Näo apenas a época-fera tem

bre arte na sua relaqäo com os modos de Vida. Dessa as vértebras fraturadas, mas vek, o século recém-nascido,

maneira, a arte pode ser pensada como produtora de com um gesto impossfvel para quem tem o dorso que-

um saber pråtico que antes de mais nada é também brado quer virar-se para trås, contemplar as pr6prias
uma maneira de pensar as relaqöes de poder. Em pegadas e, desse modo, mostra o seu rosto demente."13 A
A agudeza e a arte do engenho, Graciån desenvolve poesia, portanto, é sempre retorno, mas um retorno que
sua nogäo de arte sutil como uma dobra da nogäo é adiamento, retengäo e näo nostalgia ou busca por
mesma de reserva. Uma arte sutil requer uma dilaqäo, uma origem; é um caminhar, mas näo é um simples

uma hesitaqäo e um atraso. O réten, a reserva, em to- marchar para frente, é um passo suspenso. Versura é o

das as matérias sempre foi uma grande regra do viver, termo latino que Agamben usou em outro estudo, O
sobretudo o do viver com éxito, o que era uma ques- fim do poema, para tratar do trago essencial do verso,

täo de extrema importåncia para o pensador barroco, o ponto no qual o arado faz a volta ao final do sulco.

e näo o deixa de ser, com suas variaØes, no caso da Dessa maneira, o poema se define no seu fim. Para

forga reflexiva do pensamento de Agamben. Para o Agamben a poesia é esse movimento do olhar para
fi16sofo italiano, o contemporåneo que se pode en- trås operado no poema e, portanto, um olhar para o
trever na temporalidade do presente é sempre retor- näo-vivido no que é vivido, tal como a Vida do con-
no que näo cessa de se repetir, portanto, nunca funda temporåneo. O voltar-se para trås, suspender o passo,
Ill

12 Cf. ensaio O que é o contemporåneo? p. 55 da presente edifäo. 13 Idem, p. 62.

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ver o escuro na luz, entrever um limiar inapreensivel mascaramento que sempre acompanhou toda iden
entre um ainda näo e um näo mais e compreender a tidade pessoal."14 Diante disso, näo nos resta outra
modernidade como imemorial e pré-hist6rica säo safda senäo pensar para além do sujeito, ou seja, nas
algumas das fraturas, das cisöes no tempo com as quais palavras de Agamben, pensar uma singularidade qual
o sujeito, o poeta, tem que Iidar.
quer (um quodlibet, uma forma-de-vida,15 uma rela-
Segundo Agamben, näo basta mais evocar a ca-
fäo de amizade). Do sujeito vacilante, espectral deve
tegoria da subjetividade, como o fazia a metafisica, emergir entäo um no entanto, o gesto; a agäo
para empreender essas aqöes em suspensäo, sem as uma suspensäo, o réten, a
a que se reduz esse sujeito é
quais näo hå um passo em direqäo å revoluqäo, a nova reserva, que em todas as matérias é uma grande regra
experiéncia do tempo. Jå ao ler o sujeito como resul- do viver com éxito.
tado de processos de subjetivaqäo, estes que säo um Assim, a filosofia de Agamben se desenvolve de
corpo a corpo entre vivente e dispositivo, Agamben um modo no qual ontologia, politica e poesia se en-
procura desativar a proposta metafisica que vé o su- contram tramadas pela estratégia do fi16sofo. Diz ele

jeito como uma esséncia (de certo modo, essa tam- que näo se pode falar em retorno ås condigöes perdi
bém é a ideia da filosofia moderna, de Descartes até
das na hist6ria, mas que somente nos é possfvel en-
Husserl). Como dissemos antes, å proliferaqäo dos trever em meio ås luzes do presente o escuro que lhe
dispositivos å qual assistimos na atual fase do capita- é inerente, uma origem que näo estå fora da hist6ria,
lismo näo correspondem processos de subjetivaqäo
cujos resultados sejam sujeitos reais, mas täo somen-
te espectros de sujeitos. A partir dessa compreensäo
14 Idem, p. 41-42.
espectral do sujeito, podemos ter a impressäo de que 1 5 Sobre a ideia de forma-de-vida em Agamben cf.: AGAMBEN, Giorgio.
"a categoria da subjetividade no nosso tempo vacila e Mezzi senza AGAMBEN,
Fine. Bollati Boringhieri, 1996. p. 13-19;
Giorgio. Homo Sacer. Opoder soberano e a Vida nua. I Traduqäo Henrique
perde consisténcia; mas se trata, para ser preciso, näo Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
1 6 Cf. ensaio sobre o gesto publicado por Agamben em: AGAMBEN, Giorgio.
de um cancelamento ou de uma superagäo, mas de Mezzi senza Fine. Bollati Boringhieri, 1996. p. 45-53. Hå uma traduqäo
do ensaio em: AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o Gesto. Tra-
brasileira
uma disseminaqäo que leva ao extremo o aspecto de
dugäo Vinicius Nicastro Honesko. Artefllosofia, n. 4, jan. 2008. Ouro
Preto: Tessitura, 2008, p. 9-13.

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mas que garante um olhar näo saudosista para o pas-
sado e um mirar o futuro sem esperanqas outras que

näo a pr6pria capacidade de repensar o presente. As-

sim, estes trés ensaios agora publicados em lingua por-

tuguesa däo uma mostra da estratégia de aqäo tragada


por Agamben: pensar uma pråxis indecidfvel de uma
teoria; pensar uma politica que recobre sua dimen-

säo ont016gica.

Susana Scramim
e Vinfcius Nicastro Honesko

22
O que é um dispositivo?l

1 GiorgioAgamben apresentou uma primeira versäo deste ensaio como


uma das conferéncias que realizou no Brasil em setembro de 2005; uma
dessas conferéncias foi proferida na Universidade Federal de Santa Catarina.
O autor cedeu o texto da conferéncia, que foi traduzido do original em
italiano por Nilcéia Vadati, para a edifäo do nümero 5 da Revista Outra
Travessia, cujo titulo é A exceqäo e o excesso. Agamben&Bataille, organi-
zado em comemoraqäo pela passagem do fi16sofo italiano por aquela
universidade.
As questöes termin016gicas säo importantes na
filosofia. Como disse uma vez um filösofo pelo qual
tenho o maior respeito, a terminologia é o momen-
to poético do pensamento. Isso näo significa que os
fi16sofos devam necessariamente a todo instante de-
finir os seus termos técnicos. Platäo nunca defi-

niu o mais importante dos seus termos: ideia. Ou-

tros, ao contrårio, como Spinoza e Leibniz, preferem


definir more geometrico as suas terminologias.

A hip6tese que pretendo propor-lhes é que a


palavra "dispositivo" seja um termo técnico decisivo
na estratégia do pensamento de Foucault. Ele o usa
com frequéncia, sobretudo a partir da metade dos

anos setenta, quando comeqa a se ocupar daquilo


que chamava de "governabilidade" ou de "governo Resumamos brevemente os tres pontos:

dos homens". Embora nunca tenha elaborado propria- a. E um conjunto heterogéneo, linguistico e
mente a definifäo, ele se aproxima de algo como uma näo-linguistico, que inclui virtualmente qualquer

definifäo numa entrevista de 1977: coisa no mesmo titulo: discursos, instituiqöes, edifi-

cios, leis, medidas de policia, proposiföes filos6ficas


Aquilo que procuro individualizar com este nome etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se esta-
é, antes de tudo, um conjunto absolutamente he-
belece entre esses elementos.
terogéneo que implica discursos, instituiföes, es-
truturas arquitetönicas, decisöes regulamentares, b. O dispositivo tem sempre uma fungäo estra-
leis, medidas administrativas, enunciados cientffi-
tégica concreta e se inscreve sempre numa relagäo de
cos, proposiföes filos6ficas, morais e filantr6picas,
em resumo: tanto o dito como o näo dito, eis os poder.
elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede c. Como tal, resulta do cruzamento de relaqöes
que se estabelece entre estes elementos [
de poder e de relaqöes de saber.
[...] com o termo dispositivo, compreendo uma
espécie — por assim dizer de formaqäo que num
certo momento hist6rico teve como fungäo essen-
Cial responder a uma urgéncia. O dispositivo tem, 2.
portanto, uma funqäo eminentemente estratégica
Gostaria agora de tentar tragar uma sumåria
Disse que o dispositivo tem natureza essencialmen genealogia deste termo, inicialmente no interior da
te estratégica, que se trata, como conseqüéncia, de
obra de Foucault e, posteriormente, num contexto
uma certa manipulaqäo de relaqöes de forga, de
uma intervenqäo racional e combinada das relaqöes hist6rico mais amplo.
de forga, seja para orientå-las em certa direqäo, seja No final dos anos sessenta, mais ou menos no
para bloqueå-las ou para fixå-las e utilizå-las. O
dispositivo eståsempre inscrito num jogo de po-
momento em que escreve A Arqueologia do saber, para
der e, ao mesmo tempo, sempre ligado aos limites definir o objeto de suas pesquisas Foucault näo usa o
do saber, que derivam desse e, na mesma medida,
termo dispositivo, mas o termo, etimologicamente
condicionam-no. Assim, o dispositivo é: um con-
junto de estratégias de relaqöes de forga que
pr6ximo, "positivité", também desta vez sem defini-lo.

condicionam certos tipos de saber e por ele säo Frequentemente me perguntei onde Foucault tinha
condicionados. (Dits et écrits, v. Ill, p. 299-300).
encontrado este termo, até o momento em que, näo

281 | 29
muitos meses atrås, reli o ensaio de Jean Hyppolite, indivfduos pelo exterior. "Uma religiäo positiva", es-

Introduction å La philosophie de l'histoire de Hegel. creve Hegel numa passagem que Hyppolite cita, "im-

Provavelmente os senhores conhecem a forte relaqäo plica sentimentos que vém impressos nas almas por

que ligava Foucault a Hyppolite, a quem ås vezes defi- meio de uma coergäo e comportamentos que säo o
ne como "o meu mestre» (Hyppolite foi efetivamente resultado de uma relagäo de comando e de obediéncia

seu professor durante a khågne no liceu Henri IV e de- e que säo cumpridos sem um interesse direto".2

pois na École Normale). Hyppolite mostra como a oposifäo entre natureza

O capitulo terceiro do ensaio de Hyppolite leva e positividade corresponde, nesse sentido, å dialética

o titulo: Raison et histoire. Les idées de positivité et entre liberdade e coerqäo e entre razäo e hist6ria. Numa
de destin (Razäo e hist6ria. As ideias de positividade passagem que näo pode näo ter suscitado a curiosidade

e de destino). Ele concentra aqui a sua anålise sobre de Foucault e que contém algo mais que um pressågio
duas obras hegelianas do assim chamado periodo de da nogäo de dispositivo, Hyppolite escreve:

Berna e Frankfurt (1795-1796): a primeira é "O espi-


Vé-se aqui o no problemåtico implicito no concei-
rito do cristianismo e o seu destino", e a segunda —
to de positividade e as tentativas sucessivas de Hegel
aquela da qual provém o termo que nos interessa — "A em unir dialeticamente — uma dialética que näo
positividade da religiäo cristä" (Die Positivität der tomou ainda consciéncia de si mesma — a pura ra-

zäo (te6rica e, sobretudo, pråtica) e a positividade,


christliche Religion). Segundo Hyppolite, "destino" e isto é, o elemento histörico. Num certo sentido, a

positividade" säo dois conceitos-chave do pensamen- positividade é considerada por Hegel como um
to hegeliano. Em particular, o termo "positividade" tem obståculo å liberdade humana, e como tal é con-
denada. Investigar os elementos positivos de uma
em Hegel o seu lugar pr6prio na oposifäo entre "reli-
religiäo, e se poderia jå acrescentar, de um estado
giäo natural" e "religiäo positiva". Enquanto a religiäo social, significa descobrir aquilo que nestes é impos-

natural diz respeito å imediata e geral relaqäo da razäo


to por meio de uma coerqäo aos homens, aquilo

humana com o divino, a religiäo positiva ou hist6rica

compreende o conjunto das crenqas, das regras e dos

ritos que numa determinada sociedade e num de- 2 J. Hyppolite, Introduction å La philosophie l'histoire de Hegel, Seuil,
Parigi 1983, p. 43 (1. ed. 1948).
terminado momento historico säo impostos aos

30 |
131
que torna opaca a pureza da razäo; mas, num ou- o de enfatizar o conflito entre esses. Trata-se para ele,
tro sentido, oque no curso do desenvolvimento
antes, de investigar os modos concretos em que as
do pensamento hegeliano acaba por prevalecer, a
positividade deve estar conciliada com a razäo, que positividades (ou os dispositivos) agem nas relaqöes,
perde entäo o seu caråter abstrato e se adapta å nos mecanismos e nos jogos" de poder.
riqueza concreta da Vida. Desta forma, compreen-
de-se como o conceito de positividade estå no cen-
tro das perspectivas hegelianas.3

3.

Se "positividade" é o nome que, segundo Hyppolite, Deveria agora estar Claro em que sentido propus
o jovem Hegel då ao elemento hist6rico, com toda sua como hip6tese que o termo "dispositivo" é um ter-

carga de regras, ritos e instituiföes impostas aos indivf- mo técnico essencial do pensamento de Foucault. Näo
duos por um poder externo, mas que se torna, por as- se trata de um termo particular, que se refere somente a

sim dizer, interiorizada nos sistemas das crenqas e dos esta ou åquela tecnologia do poder. É um termo geral,

sentimentos, entäo Foucault, tomando emprestado que tem a mesma amplitude que, segundo Hyppolite,
este termo (que se tornarå mais tarde "dispositivo"), "positividade" tem para o jovem Hegel e, na estraté-

toma posifäo em relaqäo a um problema decisivo, que gia de Foucault, vem ocupar o lugar daqueles que
este

é também o seu problema mais pr6prio: a relagäo entre ele define criticamente como 'os universais" (les
os individuos como seres viventes e o elemento hist6- universaux). Foucault, como sabem, sempre recusou
rico, entendendo com este termo o conjunto das insti- a se ocupar daquelas categorias gerais ou entes da ra-

tuiföes, dos processos de subjetivaqäo e das regras em zäo que chama de "os universals", como o Estado, a

que se concretizam as relaqöes de poder. O objetivo Soberania, a Lei, o Poder. Mas isso näo significa que
åltimo de Foucault näo é, em Hegel,
porém, como näo haja, no seu pensamento, conceitos operativos de

aquele de reconciliar os dois elementos. E nem mesmo caråter geral. Os dispositivos säo precisamente o que
na estratégia foucaultiana toma o lugar dos univer-
sais: näo simplesmente esta ou aquela medida de se-

guranqa, esta ou aquela tecnologia do poder, e nem


3 Ibidem, p. 46. mesmo uma maioria obtida por abstraqäo: antes, 1

133
321
como dizia na entrevista de 1977, "a rede (le réseau) pråticas e mecanismos (ao mesmo tempo linguisticos
que se estabelece entre estes elementos".
e näo-lingufsticos, jurfdicos, técnicos e militares) que
Se tentarmos agora examinar a definiqäo do ter- tém o objetivo de fazer frente a uma urgéncia e de
mo "dispositivo" que se encontra nos dicionårios fran- obter um efeito mais ou menos imediato. Mas em
ceses de uso comum, veremos que estes distinguem qual estratégia de pråxis ou de pensamento, em qual
trés significados para o termo: contexto hist6rico o termo moderno teve origem?

a. Um sentido juridico estrito: "o dispositivo é a


parte de um juizo que contém a decisäo separada-
mente da motivagäo". Isto é, a parte da sentenqa (ou 4.

de uma lei) que decide e dispöe. Nos ültimos trés anos, fui me envolvendo numa
b. Um significado tecn016gico: "O modo em que pesquisa cujo fim apenas agora comeqo a entrever e
estäo dispostas as partes de uma måquina ou de um que poderei definir, com alguma aproximaqäo, como
mecanismo e, por extensäo, o pr6prio mecanismo." uma genealogia te016gica da economia. Nos primeiros
c. Um significado militar: "O conjunto dos meios séculos da historia da Igreja — digamos, entre o segundo
dispostos em conformidade com um Plano." e o sexto séculos —, o termo grego oikonomia desempe-
Todos os trés significados estäo, de algum modo, nou na teologia uma fungäo decisiva. Oikonomia sig-
presentes no uso foucaultiano. Mas os dicionårios, nifica em grego a administrac,äo do oikos, da casa, e,

em particular aqueles que näo tém um caråter his- mais geralmente, gestäo, management. Trata-se, como
t6rico-etim016gico, operam dividindo e separando diz Aristoteles (POI. 1255 b 21), näo de um paradigma
os vårios significados de um termo. Essa fragmenta- epistémico, mas de uma pråxis, de uma atividade prå-
fäo, no entanto, corresponde em geral ao desenvolvi- tica que deve de quando em quando fazer frente a

mento e å articulaqäo hist6rica de um finico signifi- um problema e a uma situaqäo particular. Por que os
cado original, que é importante näo perder de vista. padres sentiram a necessidade de introduzir este ter-
Qual é, no caso do termo "dispositivo", este signifi- mo na teologia? Como se chegou a falar de uma "eco-
cado? Certamente o termo, no uso comum como nomia divina"?

no foucaultiano, parece remeter a um conjunto de

34 |

135
Tratava-se, com precisäo, de um problema extre- e da salvagäo (por isso, em algumas seitas gn6sticas,

mamente delicado e vital, talvez, da questäo decisiva Cristo acaba por se chamar "o homem da economia",
na historia da teologia cristä: a Trindade. Quando, no ho anthröpos tés oikonomias). Os te610gos se habi-

decorrer do segundo século, comeqou-se a discutir tuaram pouco a pouco a distinguir entre um "discur-
sobre uma Trindade de figuras divinas, o Pai, o Filho e so — ou logos — da teologia" e um "logos da econo-

o Espirito, houve, como era de se esperar, no interior mia", e a oikonomia torna-se assim o dispositivo me-

da Igreja uma fortissima resisténcia por parte dos seus diante o qual o dogma trinitårio e a ideia de um go-
mentores que pensavam com temor que, deste modo, verno divino providencial do mundo foram intro-

se arriscava a reintroduzir o politefsmo e o paganismo duzidos na fé cristä.

na fé cristä. Para convencer estes obstinados adverså- Mas, como frequentemente acontece, a fratura que

rios (que depois foram definidos "'monarquianos", isto os te610gos procuraram deste modo evitar e remover

é, partidårios do governo de um so), te610gos como em Deus sob o plano do ser reaparece na forma de uma
Tertuliano, Hip61ito, Irineu e muitos outros näo en- cesura que separa em Deus ser e aqäo, ontologia e pråxis.

contraram melhor maneira do que se serurem do ter- A aqäo (a economia, mas também a politica) näo tem
mo oikonomia. O argumento deste era mais ou me- nenhum fundamento no ser: esta é a esquizofrenia que

nos o seguinte: "Deus, quanto ao seu ser e å sua subs- a doutrina te016gica da oikonomia deixa como heran-

tåncia, é, certamente, uno; mas quanto å sua oikonomia, ga å cultura ocidental.

isto é, ao modo em que administra a sua casa, a sua

Vida e o mundo que criou, é, ao contrårio, triplice.

Como um bom pai pode confiar ao filho o desen- 5.

volvimento de certas fungöes e de certas tarefas, sem Penso também que, através desta exposiqäo su-

por isso perder o seu poder e a sua unidade, assim måria, vocés tenham se dado conta da centralidade e

Deus confia a Cristo a 'economia', a administrafäo e o da importåncia da fungäo que a nogäo de oikonomia
governo da historia dos homens," O termo oikonomia desenvolveu na teologia cristä. Jå a partir de Clemen-

foi assim se especializando para significar de modo par- te de Alexandria esta se funde com a nogäo de provi-

ticular a encarnaqäo do Filho e a economia da redenqäo déncia, e passa a significar o governo salvffico do

36 37
mundo e da hist6ria dos homens. Pois bem: qual é a Ge-stell significa comumente "aparato" (Gerät), mas
tradugäo deste fundamental termo grego nos escritos que ele entende com este termo "o recolher-se daque-
dos padres latinos? Dispositio. le (dis)por (Stellen), que (dis)pöe do homem, isto é,

O termo latino dispositio, do qual deriva o nos- exige dele o desvelamento do real sobre o modo do
so termo "dispositivo", vem, portanto, para assumir ordenar (Bestellen)", a proximidade deste termo com
em si toda a complexa esfera semåntica da oikonomia a dispositio dos te610gos e com os dispositivos de

te016gica. Os "dispositivos" de que fala Foucault es-


Foucault é evidente.Comum a todos esses termos é a
täo de algum modo conectados com esta heranqa teo-
referéncia a uma oikonomia, isto é, a um conjunto de

16gica, podem ser de alguma maneira reconduzidos å pråxis, de saberes, de medidas, de instituiföes cujo

fratura que divide e, ao mesmo tempo, articula em objetivo é gerir, governar, controlar e orientar, num
Deus ser e pråxis, a natureza ou esséncia e a operagäo sentido que se supöe fitil, os gestos e os pensamentos

por meio da qual ele administra e governa o mundo dos homens.

das criaturas. O termo dispositivo nomeia aquilo em


que e por meio do qual se realiza uma pura atividade
de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso 6.

os dispositivos devem sempre implicar um processo Um dos principios metod016gicos que Sigo cons-
de subjetivaqäo, isto é, devem produzir o seu sujeito.
tantemente em minhas pesquisas é o de individuar

A luz desta genealogia te016gica, os dispositi- nos textos e nos contextos em que trabalho o que

vos foucaultianos adquirem uma riqueza de signifi-


Feuerbach definia como o elemento filos6fico, ou seja,

cados ainda mais decisiva, num contexto em que es- o ponto da sua Entwicklungsfähigkeit (literalmente,
capacidade de desenvolvimento), o locus e o momento
tes se cruzam näo apenas com a "positividade" do jo-
vem Hegel, mas também com a Gestell do ültimo em que estes säo passiveis de desenvolvimento. To-

Heidegger, cuja etimologia é anåloga äquela da dis- davia, quando interpretamos e desenvolvemos neste

positio, dis-ponere (o alemäo stellen corresponde ao sentido o texto de um autor, chega o momento em
latim ponere). Quando Heidegger, em Die Technik que comeqamos a nos dar conta de näo mais poder

und die Kehre (A técnica e a volta), escreve que seguir além sem transgredir as regras mais elementares

38 139
da hermenéutica. Isso significa que o desenvolvimen- as fåbricas, as disciplinas, as medidas juridicas etc.,

to do texto em questäo alcanqou um ponto de cuja conexäo com o poder é num certo sentido evi-

indecidibilidade no qual se torna impossfvel distin- dente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a
guir entre o autor e o intérprete. Embora este seja para filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegaqäo, os com-
o intérprete um momento particularmente feliz, ele sabe putadores, os telefones celulares e — por que näo — a

que é o momento de abandonar o texto que estå anali- pr6pria linguagem, que talvez é o mais antigo dos

sando e de proceder por conta pr6pria. dispositivos, em que hå milhares e milhares de anos
Convido-os, portanto, a abandonar o contexto um primata — provavelmente sem se dar conta das

da filologia foucaultiana em que nos movemos até consequéncias que se seguiriam — teve a inconscién-

agora e a situar os dispositivos num novo contexto. cia de se deixar capturar.


Proponho-lhes nada menos que uma geral e ma- Recapitulando, temos assim duas grandes clas-

ciqa divisäo do existente em dois grandes grupos ou ses, os seres viventes (ou as subståncias) e os disposi-

classes: de um lado, os seres viventes (ou, as substån- tivos. E, entre os dois, como terceiro, os sujeitos. Cha-
cias), e, de outro, os dispositivos em que estes säo in- mo sujeito o que resulta da relaqäo e, por assim dizer,

cessantemente capturados. Isto é, de um lado, para do corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos.

retomar a terminologia dos te610gos, a ontologia das Naturalmente as subståncias e os sujeitos, como na
criaturas, e, do outro, a oikonomia dos dispositivos velha metafisica, parecem sobrepor-se, mas näo com-
que procuram governå-las e guiå-las para o bem. pletamente. Neste sentido, por exemplo, um mesmo
Generalizando posteriormente a jå bastante am individuo, uma mesma subståncia, pode ser o lugar
pla classe dos dispositivos foucaultianos, chamarei dos mültiplos processos de subjetivaqäo: o usuårio
literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de telefones celulares, o navegador na internet, o es-

de algum modo a capacidade de capturar, orientar, critor de contos, o apaixonado por tango, o näo-glo-

determinar, interceptar, modelar, controlar e assegu- bal etc. Ao ilimitado crescimento dos dispositivos no
rar os gestos, as condutas, as opiniöes e os discursos nosso tempo corresponde uma igualmente dissemi-
dos seres viventes. Näo somente, portanto, as prisöes, nada proliferagäo de processos de subjetivagäo. Isso
os manicömios, o Pan6ptico, as escolas, a confissäo, pode produzir a impressäo de que a categoria da

40 | 141
subjetividade no nosso tempo vacila e perde consis- mais abstratas as relaqöes entre as pessoas. Apesar de ter

téncia; mas se trata, para ser preciso, näo de um cance- me surpreendido muitas vezes pensando em como des-
lamento ou de uma superagäo, mas de uma dissemi- truir ou desativar os "telefoninos" e em como eliminar

nafäo que leva ao extremo o aspecto de mascaramento ou ao menos punir e aprisionar aqueles que os usam,

que sempre acompanhou toda identidade pessoal. näo creio que seja esta a solugäo justa para o problema.
O fato é que, segundo toda evidéncia, os dispo-
sitivos näo säo um acidente em que os homens cal-

7. ram por acaso, mas tém a sua raiz no mesmo processo

Näo seria provavelmente errado definir a fase de "hominizagäo" que tornou "humanos" os animais

extrema do desenvolvimento capitalista que estamos que classificamos sob a rubrica homo sapiens. O evento
vivendo como uma gigantesca acumulaqäo e prolife- que produziu o humano constitui, com efeito, para o

ragäo de dispositivos. Certamente, desde que apare- vivente algo como uma cisäo que reproduz de algum
ceu o homo sapiens havia dispositivos, mas dir-se-ia modo a cisäo que a oikonomia havia introduzido em
que hoje näo haveria um s6 instante na Vida dos in- Deus entre ser e aqäo. Esta cisäo separa o vivente de si

dividuos que näo seja modelado, contaminado ou mesmo e da relaqäo imediata com o seu ambiente, isto

controlado por algum dispositivo. De que modo, en- é,com aquilo que Uexkühl e depois dele Heidegger
täo, podemos fazer frente a esta situaqäo, qual a estra- chamam o circulo receptor-desinibidor. Quebrando ou
tégia que devemos seguir no nosso quotidiano cor- interrompendo esta relaqäo, produzem-se para o vi-

po a corpo com os dispositivos? Näo se trata sim- vente o tédio — isto é, a capacidade de suspender a

plesmente de destruf-los, nem, como sugerem alguns


relagäo imediata com os desinibidores — e o Aberto,

ingénuos, de uså-los de modo correto. isto é, a possibilidade de conhecer o ente enquanto

Por exemplo, vivendo na Itålia, isto é, num pais ente, de construir um mundo. Mas com essas possi

cujos gestos e comportamentos dos individuos foram bilidades é dada imediatamente também a possibili

remodelados de Cima abaixo pelo telefone celular (cha- dade dos dispositivos que povoam o Aberto com
mado familiarmente de "telefonino"), eu desenvolvi um instrumentos, objetos, gadgets, bugigangas e

Odio implacåvel por este dispositivo, que deixou ainda tecnologias de todo tipo. Por meio dos dispositivos, o

42 143
Ill

homem procura fazer girar em väo os comportamentos ou transgredisse esta especial indisponibilidade que
as reservava exclusivamente aos deuses celestes (e
anlmais que se separaram dele e gozar assim do Aberto

como tal, do ente enquanto ente. Na raiz de todo dispo- eram entäo chamadas propriamente "sagradas") ou

sitivo estå, deste modo, um desejo demasiadamente hu- inferiores (neste caso, chamavam-se simplesmente "re-

mano de felicidade, e a captura e a subjetivaqäo deste


ligiosas"). E se consagrar (sacrare) era o termo que
designava a saida das coisas da esfera do direito hu-
desejo, numa esfera separada, constituem a poténcia es-
mano, profanar significava, ao contrårio, restituir ao
pecffica do dispositivo.
livre uso dos homens. "Profano", podia assim escre-

ver o grande jurista Trebazio, "diz-se, em sentido pr6-


8. prio, daquilo que, de sagrado ou religioso que era, é

restitufdo ao uso e å propriedade dos homens."


Isso significa que a estratégia que devemos ado-
tar no nosso corpo a corpo com os dispositivos näo
Pode-se definir religiäo, nessa perspectiva, como

pode ser simples, jå que se trata de liberar o que foi


aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas
do uso comum e as transfere a uma esfera separada. Näo
capturado e separado por meio dos dispositivos e
restituf-los a um possivel uso comum. E nesta pers-
s6 näo hå religiäo sem separagäo, mas toda separaqäo

pectiva que gostaria agora de falar-lhes de um con-


contém ou conserva em si um nücleo genuinamente

ceito sobre o qual me ocorreu trabalhar recentemen- religioso. O dispositivo que realiza e regula a separagäo
te. Trata-se de um termo que provém da esfera do di é o sacrificio: por meio de uma série de rituais minu-
ciosos, diversos segundo a variedade das culturas, que
reito e da religiäo (direito e religiäo säo, näo apenas
Hubert e Mauss pacientemente inventariaram, o sacrifi-
em Roma, estreitamente conexos): profanagäo.

Segundo o direito romano, sagradas ou religio-


Cio sanciona em cada caso a passagem de alguma coisa

do profano para o sagrado, da esfera humana å divina.


sas eram as coisas que pertenciam de algum modo
aos deuses. Como tais, eram subtrafdas ao livre uso Mas aquilo que foi ritualmente separado pode ser resti-

e ao comércio dos homens, näo podiam ser vendi-


tufdo pelo rito ä esfera profana. A profanagäo é o

das, nem penhoradas, cedidas ao usufruto ou grava- contradispositivo que restitui ao uso comum aquilo que
das em servidäo. Sacrflego era todo ato que violasse o sacrificio tinha separado e dividido.

145
44 |
9. plurissecular do dispositivo penitencial, no qual um
O capitalismo e as figuras modernas do poder novo Eu se constitui por meio da negagäo e, ao mes-

parecem, nessa perspectiva, generalizar e levar ao ex- mo tempo, assunqäo do velho. A cisäo do sujeito ope-
tremo os processos separativos que definem a reli- rada pelo dispositivo penitencial era, nesse sentido,

giäo. Se considerarmos a genealogia te016gica dos produtora de um novo sujeito que encontrava a pr6-
dispositivos que acabamos de delinear, a qual os pria verdade na näo-verdade do Eu pecador repudia-

conecta ao paradigma cristäo da oikonomia, isto é, do. Consideragöes anålogas podem ser feitas para o

do governo divino do mundo, veremos que os dis- dispositivo prisional, que produz como consequéncia
positivos modernos apresentam, porém, uma diferen- mais ou menos imprevista a constituifäo de um sujei-
qa em relaqäo aos tradicionais, o que torna particu- to e de um milieu delinquente, que se torna o sujeito

larmente problemåtica a sua profanaqäo. De fato, todo de novas — e, desta vez, perfeitamente calculadas — téc-
dispositivo implica um processo de subjetivaqäo, sem nicas de governo.

o qual o dispositivo näo pode funcionar como dis- O que define os dispositivos com os quais te-

positivo de governo, mas se reduz a um mero exercf- mos que Iidar na atual fase do capitalismo é que estes

Cio de violéncia. Foucault assim mostrou como, numa näo agem mais tanto pela produgäo de um sujeito

sociedade disciplinar, os dispositivos visam, através quanto por meio de processos que podemos chamar

de uma série de pråticas e de discursos, de saberes e de dessubjetivaqäo. Um momento dessubjetivante

de exercfcios, å criaqäo de corpos d6ceis, mas livres, estava certamente implicito em todo processo de
que assumem a sua identidade e a sua "liberdade" de subjetivaqäo, e o Eu penitencial se constitufa, havfa-

sujeitos no proprio processo do seu assujeitamento. mos visto, somente por meio da pr6pria negaqäo; mas
Isto é, o dispositivo é, antes de tudo, uma måquina o que acontece agora é que processos de subjetivagäo

que produz subjetivaqöes e somente enquanto tal é e processos de dessubjetivaqäo parecem tornar-se re-

também uma måquina de governo. O exemplo da ciprocamente indiferentes e näo däo lugar ä recom-

confissäo é aqui iluminador: a formaqäo da subjeti- posifäo de um novo sujeito, a näo ser de forma larvar
vidade ocidental, ao mesmo tempo cindida e, no en- e, por assim dizer, espectral. Na näo-verdade do su-

tanto, dona e segura de si, é inseparåvel da agäo jeito näo hå mais de modo algum a sua verdade.

46 |
147
Aquele que se deixa capturar no dispositivo "telefo- que pressupunha sujeitos e identidades reais (o mo-
ne celular", qualquer que seja a intensidade do dese- vimento operårio, a burguesia etc.), e o triunfo da

jo que o impulsionou, näo adquire, por isso, uma oikonomia, isto é, de uma pura atividade de governo

nova subjetividade, mas somente um nümero pelo que visa somente a sua pr6pria reproduqäo. Direita e

qual pode ser, eventualmente, controlado; o espec- esquerda, que se alternam hoje na gestäo do poder,
tador que passa as suas noites diante da televisäo tém por isso bem pouco o que fazer com o contexto

recebe em troca da sua dessubjetivaqäo apenas a politico do qual os termos provém e nomeiam sim-
måscara frustrante do zappeur ou a inclusäo no cål- plesmente os dois polos — aquele que aposta sem es-

culo de um indice de audiéncia. crfipulos na dessubjetivaqäo e aquele que gostaria, ao


Aqui se mostra a futilidade daqueles discursos contrårio, de recobri-la com a måscara hip6crita do
bem intencionados sobre a tecnologia, que afirmam que bom cidadäo democråtico — de uma mesma måqui-
o problema dos dispositivos se reduz äquele de seu uso na governamental.
correto. Esses discursos parecem ignorar que, se a todo Daqui, sobretudo, a singular inquietude do po-

dispositivo corresponde um determinado processo de der exatamente no momento em que se encontra diante
subjetivaqäo (ou, neste caso, de dessubjetivaqäo), é to- do corpo social mais d6cil e frågil jamais constitufdo

talmente impossivel que o sujeito do dispositivo o na hist6ria da humanidade. E por um paradoxo ape-
use "de modo correto". Aqueles que tém discursos simi- nas aparente que o in6cuo cidadäo das democracias

lares säo, de resto, o resultado do dispositivo midiåtico p6s-industriais (o bloom, como eficazmente se suge-

no qual estäo capturados. riu chamå-lo), que executa pontualmente tudo o que
lhe é dito e deixa que os seus gestos quotidianos, como
sua saåde, os seus divertimentos, como suas ocupa-

10. qöes, a sua alimentaqäo e como seus desejos sejam

As sociedades contemporåneas se apresentam as- comandados e controlados por dispositivos até nos

sim como corpos inertes atravessados por gigantescos mfnimos detalhes, é considerado pelo poder — talvez

processos de dessubjetivaqäo que näo correspondem a exatamente por isso — como um terrorista virtual. En-

nenhuma subjetivaqäo real. Daqui o eclipse da politica, quanto a nova normativa europeia impöe assim a todos

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49
os cidadäos aqueles dispositivos biométricos que de-
dos dispositivos — isto é, da restituifäo ao uso comum
senvolvem e aperfeigoam as tecnologias antropométricas daquilo que foi capturado e separado nesses — é, por
isso, tanto mais urgente. Ele näo se deixarå colocar cor-
(das impressöes digitais å fotografia sinalética) que fo

ram inventadas no século XIX para a identificaqäo retamente se aqueles que dele se encarregam näo esti-

dos criminosos reincidentes, a vigilåncia por meio verem em condigöes de intervir sobre os processos de

de videocåmera transforma os espaqos püblicos das subjetivaqäo, assim como sobre os dispositivos, para

cidades em åreas internas de uma imensa prisäo. Aos levar å luz aquele Ingovernåvel, que é o inicio e, ao

olhos da autoridade — e, talvez, esta tenha razäo — nada mesmo tempo, o ponto de fuga de toda politica.

se assemelha melhor ao terrorista do que o homem


comum.
Quanto mais os dispositivos se difundem e dis-

seminam o seu poder em cada åmbito da Vida, tanto

mais o governo se encontra diante de um elemento

inapreensfvel, que parece fugir de sua apreensäo quan-


to mais docilmente a esta se submete. Isto näo signi-

fica que ele representa em si mesmo um elemento


revolucionårio, nem que possa deter ou também so-

mente ameaqar a måquina governamental. No lugar


do anunciado fim da hist6ria, assiste-se, com efeito,

ao incessante girar em väo da måquina, que, numa


espécie de desmedida par6dia da oikonomia te016gi-

ca, assumiu sobre si a heranga de um governo pro-


videncial do mundo que, ao invés de salvå-lo, o con-

duz — fiel, nisso, å originåria vocaqäo escat016gica da


providéncia —å catåstrofe. O problema da profanagäo

151
50 |
O que é o contemporåneo?

O texto retoma aquele da lifäo inaugural do curso de


Filosofia Teorética 2006-2007 junto å Faculdade de Arte

e Design do IUAV de Veneza.


A pergunta que gostaria de escrever no limiar
deste seminårio é: "De quem e do que somos con-
temporåneos? E, antes de tudo, o que significa ser

contemporåneo?". No curso do seminårio deveremos

ler textos cujos autores de n6s distam muitos séculos

e outros que säo mais recentes ou recentfssimos: mas,


em todo caso, essencial é que consigamos ser de algu-
ma maneira contemporåneos desses textos. O "tem-
po" do nosso seminårio é a contemporaneidade, e isso

exige ser contemporåneo dos textos e dos autores que


se examinam. Tanto o seu grau quanto o seu éxito

seräo medidos pela sua — pela nossa — capacidade de


estar å altura dessa exigéncia.
Uma primeira e provis6ria indicaqäo para orien- ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apre

tar a nossa procura por uma resposta nos vem de ender o seu tempo.

Nietzsche. Numa anotaqäo dos seus cursos no College Essa näo-coincidéncia, essa discronia, näo signi-

de France, Roland Barthes resume-a deste modo: "O fica, naturalmente, que contemporåneo seja aquele que

contemporåneo é o intempestivo". Em 1874, Friedrich vive num outro tempo, um nostålgico que se sente

Nietzsche, um jovem fi1610go que tinha trabalhado até em casa mais na Atenas de Péricles, ou na Paris de

entäo sobre textos gregos e, dois anos antes, havia atin- Robespierre e do marqués de Sade do que na cidade

gido uma inesperada celebridade com O nascimento e no tempo em que lhe foi dado viver. Um homem
da tragédia, publica as Unzeitgemässe Betrachtungen, inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe, em todo
as "Consideraqöes intempestivas", com as quais quer caso, que lhe pertence irrevogavelmente, sabe que näo

acertar as contas com o seu tempo, tomar posifäo em pode fugir ao seu tempo.

relaqäo ao presente. "Intempestiva esta consideraqäo A contemporaneidade, portanto, é uma singular

o é", lé-se no infcio da segunda "Consideraqäo", "por- relagäo com o pr6prio tempo, que adere a este e, ao

que procura compreender como um mal, um incon- mesmo tempo, dele toma diståncias; mais precisamen-

veniente e um defeito algo do qual a época justamen- te, essa é a relagäo com o tempo que a este adere através
te se orgulha, isto é, a sua cultura hist6rica, porque eu de uma dissociaqäo e um anacronismo. Aqueles que

penso que somos todos devorados pela febre da his- coincidem muito plenamente com a época, que em to-
t6ria e deveremos ao menos disso nos dar conta". dos os aspectos a esta aderem perfeitamente, näo säo

Nietzsche situa a sua exigéncia de "atualidade", a sua contemporåneos porque, exatamente por isso, näo con-

contemporaneidade" em relagäo ao presente, numa seguem vé-la, näo podem manter fixo o olhar sobre ela.

desconexäo e numa dissociagäo. Pertence verdadeira-

mente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporåneo,


aquele que näo coincide perfeitamente com este, nem 2.

estå adequado ås suas pretensöes e é, portanto, nesse Em 1923, Osip MandelXtam escreve uma poesia
sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamen- que se intitula "O século" (mas a palavra russa vek

te através desse deslocamento e desse anacronismo, significa também "época"). Essa contém näo uma

| 59
581
reflexäo sobre o século, mas sobre a relaqäo entre o poe- åltima estrofe da poesia — estå quebrado. O poeta,

ta e o seu tempo, isto é, sobre a contemporaneidade. enquanto contemporåneo, é essa fratura, é aquilo que

Näo o "século", mas, segundo as palavras que abrem o impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo,
primeiro verso, o "meu século" (vek mol): o sangue que deve suturar a quebra. O paralelismo
entre o tempo — e as vértebras — da criatura e o tempo —

Meu século, minha fera, quem poderå e as vértebras do século constitui um dos temas es-
olhar-te dentro dos olhos senciais da poesia:
e soldar com o seu sangue
as vértebras de dois séculos?4 Enquanto vive a criatura

deve levar as pröprias vértebras,

O poeta, que devia pagar a sua contemporaneidade os vagalhöes brincam

com a Vida, é aquele que deve manter fixo o olhar nos com a invisfvel coluna vertebral.

olhos do seu século-fera, soldar com o seu sangue o Como delicada, infantil cartilagem

dorso quebrado do tempo. Os dois séculos, os dois é o século neonato da terra.

tempos näo säo apenas, como foi sugerido, o século


XIX e o XX, mas também, e antes de tudo, o tempo O outro grande tema — também este, como o pre-
da Vida do individuo (lembrem-se que o latim cedente, uma imagem da contemporaneidade — é o
das vértebras quebradas do século e da sua sutura, que
saeculum significa originalmente o tempo da Vida) e
o tempo hist6rico coletivo, que chamamos, nesse é obra do individuo (nesse caso, do poeta):

caso, o século XX, cujo dorso — compreendemos na


Para liberar o século em cadeias

para dar infcio ao novo mundo


é preciso com a flauta reunir
4 Essa traduqäo é feita diretamente do texto italiano apresentado por
os joelhos nodosos dos dias.
Agamben na edifäo italiana de Che cos'é il contemporaneo?. Desse
poema existe uma •traduqäo para o portugués, sob o nome A Era, feita por
Haroldo de Campos em Poesia Russa Moderna, Editora Brasiliense, 1987.
N. do T.

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Que se trate de uma tarefa inexecutåvel — ou, de obscuros. Contemporåneo é, justamente, aquele que

todo modo, paradoxal — estå provado pela estrofe suces- sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever

Siva que conclui o poema. Näo apenas a época-fera tem mergulhando a pena nas trevas do presente. Mas o
as vértebras fraturadas, mas vek, o século recém-nasci- que significa "ver as trevas", "perceber o escuro"?

do, com um gesto impossivel para quem tem o dorso Uma primeira resposta nos é sugerida pela

quebrado quer virar-se para trås, contemplar as pr6- neurofisiologia da visäo. O que acontece quando nos
prias pegadas e, desse modo, mostra o seu rosto de encontramos num ambiente privado de luz, ou quan-
mente: do fechamos os olhos? O que é o escuro que entäo
vemos? Os neurofisiologistas nos dizem que a ausén

Mas estå fraturado o teu dorso cia de luz desinibe uma série de células periféricas da

meu estupendo e pobre século. retina, ditas precisamente off-cells, que entram em
Com um sorriso insensato atividade e produzem aquela espécie particular de

como uma fera um tempo graciosa visäo que chamamos o escuro. O escuro näo é, por-

tu te voltas para trås, fraca e cruel, tanto, um conceito privativo, a simples auséncia da

para contemplar as tuas pegadas. luz, algo como uma näo-visäo, mas o resultado da ati-
vidade das off-cells, um produto da nossa retina. Isso
significa, se voltamos agora ä nossa tese sobre o escu-

3. ro da contemporaneidade, que perceber esse escuro

O poeta — o contemporåneo — deve manter fixo näo uma forma de inércia ou de passividade, mas
é

o olhar no seu tempo. Mas o que vé quem vé o seu implica uma atividade e uma habilidade particular

tempo, o sorriso demente do seu século? Neste ponto que, no nosso caso, equivalem a neutralizar as luzes

gostaria de lhes propor uma segunda definifäo da que provém da época para descobrir as suas trevas, o

contemporaneidade: contemporåneo é aquele que seu escuro especial, que näo é, no entanto, separåvel

mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perce- daquelas luzes.

ber näo as luzes, mas o escuro. Todos os tempos säo, Pode dizer-se contemporåneo apenas quem näo

para quem deles experimenta contemporaneidade, se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever

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nessas a parte da sombra, a sua intima obscuridade. nos alcanqar. Aquilo que percebemos como o escuro Ill

Com isso, todavia, ainda näo respondemos a nossa do céu é essa luz que viaja velocissima até n6s e, no

pergunta. Por que conseguir perceber as trevas que


entanto, näo pode nos alcangar, porque as galåxias das

provém da época deveria nos interessar? Näo é talvez


quais provém se distanciam a uma velocidade supe-

o escuro uma experiéncia anönima e, por definifäo, rior äquela da luz.

impenetråvel, algo que näo estå direcionado para n6s


Perceber no escuro do presente essa luz que pro-

e näo pode, por isso, nos dizer respeito? Ao contrå- cura nos alcanqar e näo pode faze-lo, isso significa ser
contemporåneo. Por isso os contemporåneos säo ra-
rio, o contemporåneo é aquele que percebe o escuro
do seu tempo como algo que lhe concerne e näo ces-
ros. E por isso ser contemporåneo é, antes de tudo,

sa de interpelå-lo, algo que, mais do que toda luz, di-


uma questäo de coragem: porque significa ser capaz

rige-se direta e singularmente a ele. Contemporåneo näo apenas de manter fixo o olhar no escuro da épo-

é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas ca, mas também de perceber nesse escuro uma luz que,

que provém do seu tempo. dirigida para n6s, distancia-se infinitamente de n6s.

Ou ainda: ser pontual num compromisso ao qual se

pode apenas faltar.

4. Por isso o presente que a contemporaneidade

No firmamento que olhamos de noite, as estre-


percebe tem as vértebras quebradas. O nosso tempo,
las resplandecem circundadas por uma densa treva. o presente, näo é, de fato, apenas o mais distante: näo

Uma vez que no universo hå um nümero infinito de pode em nenhum caso nos alcangar. O seu dorso estå

fraturado, e n6s nos mantemos exatamente no ponto da


galåxias e de corpos luminosos, o escuro que vemos
no céu é algo que, segundo os cientistas, necessita de fratura. Por isso somos, apesar de tudo, contemporåneos

uma explicaqäo. E precisamente da explicaqäo que a a esse tempo. Compreendam bem que o compromis-
astroffsica contemporånea då para esse escuro que so que estå em questäo na contemporaneidade näo tem
gostaria agora de lhes falar. No universo em expan- lugar simplesmente no tempo cron016gico: é, no tem-

säo, as galåxias mais remotas se distanciam de n6s a po cron016gico, algo que urge dentro deste e que o

uma velocidade täo grande que sua luz näo consegue


transforma. E essa urgéncia é a intempestividade, o

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anacronismo que nos permite apreender o nosso tem- desenhista e em seguida å alfaiataria que confecciona o
po na forma de um "muito cedo" que é, também, um prot6tipo? Ou, ainda, o momento do desfile, em que a
"muito tarde", de um jå" que é, também, um "ainda veste é usada pelas finicas pessoas que estäo sempre e

näo". E, do mesmo modo, reconhecer nas trevas do pre- apenas na moda, as mannequins, que, no entanto, exa-
sente a luz que, sem nunca poder nos alcanqar, estå pe- tamente por isso, nela jamais estäo verdadeiramente?
renemente em viagem até n6s. Jå que, em ültima inståncia, o estar na moda da "ma-
neira" ou do "jeito" dependerå do fato de que pessoas
de carne e osso, diferentes das mannequins essas viti

5. mas sacrificiais de um deus sem rosto —, o reconheqam


Um bom exemplo dessa especial experiéncia do como tal e dela fagam a pr6pria veste.
tempo que chamamos a contemporaneidade é a moda. O tempo da moda estå constitutivamente adianta-
Aquilo que define a moda é que ela introduz no tem- do a si mesmo e, exatamente por isso, também sempre
po uma peculiar descontinuidade, que o divide se- atrasado, tem sempre a forma de um limiar inapreensfvel
gundo a sua atualidade ou inatualidade, o seu estar entre um "ainda näo" e um "näo mais". É provåvel que,
ou o seu näo-estar-mais-na-moda (na moda e näo como sugerem os te610gos, isso dependa do fato de

simplesmente da moda, que se refere somente ås coi- que a moda, ao menos na nossa cultura, é uma assina-
sas). Essa cesura, ainda que sutil, é perspfcua no senti- tura te016gica da veste, que deriva do fato de que a
do em que aqueles que devem percebé-la a percebem primeira veste foi confeccionada por Adäo e Eva de-
impreterivelmente, e, exatamente desse modo, atestam pois do pecado original, na forma de um tapa-sexo
o seu estar na moda; mas, se procuramos objetivå-la e entrelaqado com folhas de figo. (Para ser preciso, as

fixå-la no tempo cron016gico, ela se revela inapreensfvel. vestes que nos usamos derivam näo desse tapa-sexo
Antes de tudo, o "agora" da moda, o instante em que vegetal, mas das tunicae pelliceae, das vestes feitas de
esta vem a ser, näo é identificåvel através de nenhum pele de animal que Deus, segundo Gen. 3, 21, faz ves-

cronömetro. Esse "agora" é talvez o momento em que tir, como sfmbolo tangivel do pecado e da morte,
o estilista concebe o traqo, a nuance que definirå a nossos progenitores no momento em que os expulsa
nova maneira da veste? Ou aquele em que a confia ao do paraiso.) Em todo caso, qualquer que seja a razäo

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disso, o "agora", o kairos da moda é inapreensfvel: a também a moda imperial ou neoclåssica). Ou seja, ela

frase "eu estou neste instante na moda" é contradit6- pode colocar em relaqäo aquilo que inexoravelmente
ria, porque no åtimo em que o sujeito a pronuncia, dividiu, rechamar, re-evocar e revitalizar aquilo que
ele jå estå fora de moda. Por isso, o estar na moda, tinha até mesmo declarado morto.
como a contemporaneidade, comporta um certo

uma certa dissociaqäo, em que a sua atualida-


de inclui dentro de si uma pequena parte do seu fora, 6.

um matiz de démodé De uma senhora elegante se Essa especial relaqäo com o passado tem também
dizia em Paris, no século XIX, nesse sentido: "Elle est um outro aspectu
contemporaine de tout le monde".
De fato, a contemporaneidade se escreve no pre-
Mas a temporalidade da moda tem um outro ca- sente assinalando-o antes de tudo como arcaico, e
råter que a aparenta å contemporaneidade. No gesto somente quem percebe no mais moderno e recente
mesmo no qual o seu presente divide o tempo segundo os indices e as assinaturas do arcaico pode dele ser
um "näo mais" e um "ainda näo", ela institui com es- contemporåneo. Arcaico significa: pr6ximo da arké,
ses "outros tempos" — certamente com o passado e, tal- isto é, da origem. Mas a origem näo estå situada ape-
vez, também com o futuro — uma relaqäo particular. nas num passado cron016gico: ela é contemporånea
Isto é, ela pode "citar" e, desse modo, reatualizar qual- ao devir hist6rico e näo cessa de operar neste, como
quer momento do passado (os anos 20, os anos 70, mas o embriäo continua a agir nos tecidos do organismo
maduro e a crianga na Vida psiquica do adulto. A dis-
tåncia — e, ao mesmo tempo, a proximidade — que
define a contemporaneidade tem o seu fundamento
5 Agio, do latim: "å vontade" e, dependendo do contexto, pode dar a ideia nessa proximidade com em nenhum
a origem, que
de intervalo, espaqo livre. Preferimos näo traduzir o termo agio, pois se
trata de um termo-chave do vocabulårio de Agamben. Hå, inclusive, um ponto pulsa com mais forga do que no presente. Quem
ensaio denominado Agio em "La Comunitå che viene. Bollati Boringhieri,
viu pela primeira vez, ao chegar pelo mar num ama-
2001. p. 23-25." Também o tradutor portugués desse livro (A Comunida-
de que Vein. Lisboa: Editorial Presenqa, 1993.), Antönio Guerreiro, op- nhecer, os arranha-céus de Nova York subitamente per-
tou por näo traduzir o termo. N. do T.
cebeu essa facies arcaica do presente, essa contiguidade

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com a ruina que as imagens atemporais do 11 de se- 7.

tembro deixaram evidente para todos. Aqueles que procuraram pensar a contemporaneidade
Os historiadores da literatura e da arte sabem que puderam faze-lo apenas com a condigäo de cindi-la

entre o arcaico e o moderno hå um compromisso em mais tempos, de introduzir no tempo uma essen-
secreto, e näo tanto porque as formas mais arcaicas Cial desomogeneidade. Quem pode dizer: "o meu tem-

parecem exercitar sobre o presente um fascinio par- po" divide o tempo, escreve neste uma cesura e uma
ticular quanto porque a Chave do moderno estå es- descontinuidade; e, no entanto, exatamente através

condida no imemorial e no pré-hist6rico. Assim, o dessa cesura, dessa interpolaqäo do presente na


mundo antigo no seu fim se volta, para se reencon- homogeneidade inerte do tempo linear, o contem-
trar, aos prim6rdios; a vanguarda, que se extraviou poråneo coloca em aqäo uma relaqäo especial entre

no tempo, segue o primitivo e o arcaico. E nesse sen- os tempos. Se, como vimos, é o contemporaneo que
tido que se pode dizer que a via de acesso ao presente fraturou as vértebras de seu tempo (ou, ainda, quem
tem necessariamente a forma de uma arqueologia que percebeu a falha ou o ponto de quebra), ele faz dessa

näo regride, no entanto, a um passado remoto, mas a fratura o lugar de um compromisso e de um encon-
tudo aquilo que no presente näo podemos em ne- tro entre os tempos e as geraqöes. Nada mais exem-
nhum caso viver e, restando näo vivido, é incessante- plar, nesse sentido, que o gesto de Paulo, no ponto em
mente relanqado para a origem, sem jamais poder que experimenta e anuncia aos seus irmäos aquela
alcanqå-la. Jå que o presente näo é outra coisa senäo a contemporaneidade por exceléncia que é o tempo
parte de näo-vivido em todo vivido, e aquilo que im- messiånico, o ser contemporåneo do messias, que ele

pede o acesso ao presente é precisamente a massa da chama precisamente de "tempo-de-agora" (ho nyn
quilo que, por alguma razäo (o seu caråter traumåtico, kairos). Näo apenas esse tempo é cronologicamente
a sua extrema proximidade), neste näo conseguimos indeterminado (o retorno do Cristo, a parusia, que
viver. A atenqäo dirigida a esse näo-vivido é a Vida do assinala o fim desse tempo, é certo e pr6ximo, mas
contemporåneo. E ser contemporåneo significa, nesse incalculåvel), mas ele tem a capacidade singular de co-

sentido, voltar a um presente em que jamais estivemos. locar em relaqäo consigo mesmo todo instante do
passado, de fazer de todo momento ou epis6dio da

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historia biblica uma profecia ou uma prefiguraqäo åquela sombra, de ser contemporaneo näo apenas do

( typos, figura, é o termo que Paulo predica) do presen- nosso século e do "agora", mas também das suas figu-

te (assim, Adäo, através de quem a humanidade rece- ras nos textos e nos documentos do passado, que de-

beu a morte e o pecado, é "tipo", ou figura, do messias, penderäo o éxito ou o insucesso do nosso seminårio.

que leva aos homens a redenqäo e a Vida).

Isso significa que o contemporåneo näo é ape-


nas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele
apreende a resoluta luz; é também aquele que, divi-

dindo e interpolando o tempo, estå å altura de


transformå-lo e de colocå-lo em relafäo com os ou-
tros tempos, de nele ler de modo inédito a hist6ria,
de "citå-la" segundo uma necessidade que näo pro-
vém de maneira nenhuma do seu arbftrio, mas de uma
exigéncia å qual ele näo pode responder. E como se

aquela invisfvel luz, que é o escuro do presente, pro-


jetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado

por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de


responder as trevas do agora. E algo do género que
devia ter em mente Michel Foucault quando escrevia

que as suas perquiriföes hist6ricas sobre o passado


säo apenas a sobra trazida pela sua interrogafäo te6-

rica do presente. E Walter Benjamin, quando escrevia

que o Indice hist6rico contido nas imagens do passa-


do mostra que estas alcanqaräo sua legibilidade so-

mente num determinado momento da sua hist6ria. E


da nossa capacidade de dar ouvidos a essa exigéncia e

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0
1.

A amizade é täo estreitamente ligada å pr6pria de-


finifäo da filosofia que se pode dizer que sem ela a filo-

sofia näo seria propriamente possfvel. A intimidade en-


tre amizade e filosofia é täo profunda que esta inclui o
philos, o amigo, no seu pr6prio nome e, como frequen-
temente ocorre para toda proximidade excessiva, corre
o risco de näo conseguir realizar-se. No mundo clåssico,
essa promiscuidade e quase consubstancialidade do
amigo e do fi16sofo era presumida, e é certamente por

uma intenqäo de alguma maneira arcaizante que um


fi16sofo contemporåneo — no momento de colocar a
pergunta extrema: "'O que é a filosofia?" — pode escre-

ver que esta é uma questäo para ser tratada entre amis.
De fato, hoje, a relagäo entre amizade e filosofia caiu
em descrédito, e é com uma espécie de embaraqo e de define como a concepqäo falocéntrica da amizade que
må consciéncia que aqueles que fazem da filosofia domina a nossa tradifäo filosofica e politica. Quan-
uma profissäo tentam acertar as contas com este do Derrida ainda estava trabalhando no seminårio a
partner incömodo e, por assim dizer, clandestino de partir do qual o livro nasceu, havfamos discutido jun-
seu pensamento.
tos um curioso problema fi1016gico que dizia respei-

Muitos anos atrås, meu amigo Jean-Luc Nancy e to precisamente ao mote ou a cisma em questäo. Este
eu decidimos trocar cartas sobre o tema da amizade. se encontra citado, entre outros, em Montaigne e em
Eståvamos persuadidos de que esse era o melhor modo Nietzsche, que o teriam extrafdo de Diogenes Laerzio.

de se aproximar e quase "colocar um pro-


em cena" Mas se abrirmos uma edifäo moderna das Vidas dos
blema que, de outro modo, parecia escapar a um trata- filösofos, no capftulo dedicado å biografia de Arist6teles

mento analftico. Eu escrevi a primeira carta e esperei, (V, 21), näo encontraremos a frase em questäo, mas
näo sem trepidaqäo, a resposta. Näo é este o lugar para sim uma em aparéncia quase idéntica, cujo significa-
tentar compreender por quais razöes — ou, talvez, do é todavia diverso e bem menos enigmåtico: oi
mal-entendidos — a chegada da carta de Jean-Luc sig- (Omega com iota sublinhado) philoi, oudeis philos,

nificou o fim do projeto. Mas é certo que a nossa ami- aquele que tem (muitos) amigos näo tem nenhum
zade — que nos nossos prop6sitos deveria nos ter aber-
amigo."
to um acesso privilegiado ao problema — foi para n6s, Uma visita å biblioteca foi suficiente para escla-

ao contrårio, um obståculo e, de algum modo, resul- recer o mistério. Em 1616 aparece a nova edifäo das
tou ao menos provisoriamente obscurecida. Vidas que teve a curadoria do grande fi1610go genebrino
E por um anålogo e, provavelmente, consciente Isaac Causabon. Junto ä passagem em questäo — que
mal-estar que Jacques Derrida escolheu como leitmotiv na edifäo que teve a curadoria de seu sogro Henry
do seu livro sobre a amizade um tema sibilino que a Etienne ainda trazia o philoi (6 amigos) — ele corrigi-

tradifäo atribui a Arist6teles e que nega a amizade no ra sem hesitar a enigmåtica lifäo dos manuscritos, que
pr6prio gesto com que parece invocå-la: o philoi, se tornava assim perfeitamente inteligfvel e, por isso,

oudeis philos, "6, amigos, näo hå amigos". Um dos fora acolhida pelos editores modernos.
temas do livro é, de fato, a critica daquilo que o autor

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181
Uma vez que logo informei Derrida do resulta- 2.

É possfvel que para esse incömodo dos fi16sofos


do das minhas pesquisas, fiquei surpreso quando o
livro foi publicado com o tftulo Politiques de l' amitié, modernos tenha contribufdo o particular estatuto

por nele näo encontrar nenhum vestigio do proble- semåntico do termo "amigo". E not6rio que ninguém

ma. Se o mote — ap6crifo segundo os fi1610gos mo- jamais conseguiu definir de modo satisfat6rio o sig-

dernos — af aparecia na sua forma originåria, näo era nificado do sintagma '(eu te amo", tanto que se pode-
ria pensar que este tenha caråter performativo — isto
certamente por um esquecimento: era essencial, na
é, que o seu significado coincida com o ato do seu
estratégia do livro, que a amizade fosse, ao mesmo
tempo, afirmada e colocada em dfivida. proferimento. Consideraqöes anålogas poderiam ser

Nisso, o gesto de Derrida repetia o gesto de


feitas para a expressäo "sou seu amigo", mesmo se

Nietzsche. Quando um estudante de


era ainda aqui o recurso å categoria do performativo näo pa-

filologia, Nietzsche tinha comeqado um trabalho so- rega possfvel. Ao contrårio, penso que "amigo" perten-

bre as fontes de Di6genes Laerzio e a hist6ria do tex- qa åquela classe de termos que os linguistas definem
näo-predicativos, isto é, termos a partir dos quais näo
to das Vidas (e, portanto, também a correqäo de
Casaubon) devia ser-lhe perfeitamente familiar. Mas é possivel construir uma classe de objetos na qual ins-
a necessidade da amizade e, ao mesmo tempo, uma crever os entes a que se atribui o predicado em ques-

täo. "Branco", "duro", "quente" säo certamente termos


certa desconfianqa em relaqäo aos amigos era essen-
Cial para a estratégia da filosofia nietzschiana. Daqui predicativos; mas é possfvel dizer que "amigo" defina,

o recurso å liqäo tradicional, que jå no seu tempo


nesse sentido, uma classe consistente? Por estranho que
näo era mais corrente (a edifäo Huebner de 1828 tem possa parecer, "amigo" compartilha essa qualidade com
a versäo moderna, com a anotaqäo: legebatur o philoi,
uma outra espécie de termos näo-predicativos, os in-

sultos. Os linguistas demonstraram que o insulto näo


emendavit Causabonus).
ofende quem o recebe porque o inscreve numa cate-

goria particular (por exemplo, aquela dos excrementos,

ou dos 6rgäos sexuais masculinos ou femininos, se-

gundo as linguas), o que seria simplesmente impossfvel

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ou, de qualquer modo, falso. O insulto é eficaz exata- multidäo, iluminada aqui e ali por particulas de luz qua-
mente porque näo funciona como uma predicaqäo se esbogadas ao acaso sobre os bragos, os rostos e as trom-
constativa, mas sim como um nome pr6prio, porque betas. Da minha parte, penso que aquilo que torna este

chama na linguagem de um modo que o chamado quadro propriamente incomparåvel é que Serodine re-

näo pode aceitar, e do qual, todavia, näo pode se de- presentou os dois ap6stolos täo pr6ximos, com as fron-
fender (como se alguém insistisse em me chamar tes quase coladas uma na outra, que estes absolutamente
Gastone, sabendo que me chamo Giorgio). Isto é, aquilo näo podem se ver: na estrada para o martlrio, estes se

que ofende no insulto é uma pura experiéncia da lin olham sem se reconhecerem. Essa impressäo de uma pro-
guagem, e näo um referimento ao mundo. ximidade por assim dizer excessiva é ainda acrescida
Se isso é verdadeiro, 'amigo" compartilharia essa do gesto silencioso das mäos que se apertam embaixo,
condigäo näo apenas com os insultos, mas com os dificilmente visfveis. Sempre me pareceu que esse qua-
termos filos6ficos que, como se sabe, näo tém uma dro contenha uma perfeita alegoria da amizade. O que
denotaqäo objetiva, e, como aqueles termos que os é, de fato, a amizade senäo uma proximidade tal que

16gicos medievais definiam "transcendentes", signifi dela näo é possfvel fazer nem uma representagäo nem
cam simplesmente o ser. um conceito? Reconhecer alguém como amigo sig-

nifica näo poder reconhecé-lo como "algo". Näo se

pode dizer "amigo" como se diz "branco", "italiano"

3. ou "quente" — a amizade näo é uma propriedade ou


Na Galeria Nacional de Arte Antiga em Roma uma qualidade de um sujeito.
conserva-se um quadro de Giovanni Serodine que
representa o encontro dos ap6stolos Pedro e Paulo na
estrada do martfrio. Os dois santos, im6veis, ocupam o 4.
centro da tela, circundados pela gesticulaqäo desordenada Mas é tempo de comeqar a leitura da passagem
dos soldados e dos carrascos que os conduzem ao suplf- de Aristoteles que pretendia comentar. O fi16sofo de-
cio. Os criticos frequentemente notaram o contraste dica å amizade um verdadeiro tratado, que ocupa os
entre o rigor heroico dos dois ap6stolos e a comoqäo da

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livros oitavo e nono da Etica nicomachea.6 Jå que se sentimos sentir, e se pensamos, nos sentimos pensar,
e isso é a mesma coisa que sentir-se existir: existir (to
trata de um dos textos mais célebres e discutidos de
einao significa, de fato, sentir e pensar.
toda a hist6ria da filosofia, tomarei como pressupos- Sentir que vivemos é por si s6 doce, jå que a Vida é

to o conhecimento das teses mais consolidadas: que naturalmente um bem e é doce sentir que um tal

bem nos pertence.


näo se pode viver sem amigos, que é preciso distin-
Viver é desejåvel, sobretudo para os bons, jå que
guir a amizade fundada sobre a utilidade ou sobre o para estes existir é um bem e uma coisa doce.

prazer da amizade virtuosa, na qual o amigo é amado Com-sentindo (synaisthanomenoj provam dogura
pelobem em si, e isso que o homem bom prova em
como tal, que näo é possfvel ter muitos amigos, que a relaqäo a si, o prova também em relaqäo ao ami-
amizade a diståncia tende a produzir o esquecimento go: o amigo é, de fato, um outro si mesmo (heteros
autos). E como, para cada um, o fato mesmo de
etc. Tudo isso é not6rio. Hå, ao contrårio, uma passa-
existir (to auton einao é desejåvel, assim — ou quæ
gem do tratado que me parece näo ter recebido sufi- se — é para o amigo.

ciente atenqäo, ainda que contenha, por assim dizer, a A existéncia é desejåvel porque se sente que esta é
uma coisa boa e essa sensaqäo (aisthesis) é em si doce.
base ont016gica da teoria. Trata-se de 1 170a 28-1171b
Também para o amigo se deverå entäo com-sentir
35. Leiamos juntos a passagem: que ele existe e isso acontece no conviver e no ter
em comum (koinonein) agöes e pensamentos. Nes-
se sentido, diz-se que os homens convivem (syzen)
Aquele que vé sente (aisthanetal) que vé, aquele que
e näo como para o gado, que condividem7 0 pasto.
escuta sente que escuta, aquele que caminha sente
[...] A amizade é, de fato, uma comunidade e, como
que caminha e assim para todas as outras ativida-
des hå algo que sente que estamos exercitando-as
acontece em relaqäo a si mesmo, também para o
(oti energoumen), de modo que se sentimos, nos
amigo: e como, em relagäo a si mesmos, a sensaqäo
de existir (aisthesis oti estin) é desejåvel, assim tam-
bém serå para o amigo.

6 Existem ao menos duas ediföes portuguesas da Ética a Nicömaco:


ARISTOTELES. Ética a Nicömaco. Traduqäo Edson Bini. Säo Paulo:
Edipro, 2007; ARISTOTELES. Ética a Nicömaco. Traduqäo Pietro 7 Condividono: terceira pessoal do plural do verbo condividere, em italiano.
Nassetti. Säo Paulo: Martin Claret, 2001. Entretanto, como Agamben Condivisione, em italiano, significa "o compartilhar". Preferimos manter
faz um trabalho pr6prio de tradugäo dos textos gregos para o italiano, em condivisäo e suas variantes no texto: condividir, condivisfvel, condividem
todos os trechos aqui citados preferimos traduzir a versäo apresentada (sempre em itålico) — pois, ainda que seja um neologismo em portugués,
por Agamben no seu texto. N. do T. esboga melhor a leitura de Aristoteles feita aqui por Agamben. N. do T.

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5. um com-sentirg (synaisthanesthai) a existéncia do
Trata-se de uma passagem extraordinariamente amigo. A amizade é a inståncia desse com-sentimen-
densa, porque Aristoteles af enuncia teses de filosofia to da existéncia do amigo no sentimento da existén-
primeira que näo säo encontradas nessa forma em cia pröpria. Mas isso significa que a amizade tem um
nenhum outro de seus escritos: estatuto ont016gico e, ao mesmo tempo, politico. A

sensaqäo do ser é, de fato, jå sempre dividida e com-


1) Hå uma sensaqäo do ser puro, uma aisthesis dividida, e a amizade nomeia essa condivisäo.9 Näo
da existéncia. Aristoteles repete isto vårias vezes, mo- hå aqui nenhuma intersubjetividade — esta quimera
bilizando o vocabulårio técnico da ontologia: dos modernos —, nenhuma relagäo entre sujeitos: em
aisthanometha oti esmen, aisthesis oti estin: o oti estin vez disso o ser mesmo é dividido, é näo-idéntico a si,

é a existéncia — o quod est — enquanto oposta a essen- e o eu e o amigo säo as duas faces — ou os dois polos —
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cia (quid est, ti estin). dessa com-divisäo.

2) Essa sensaqäo de existir é em si mesma doce 5) O amigo é, por isso, um outro si, um heteros
( edys). autos. Na sua tradugäo latina — alter ego — esta expres-
säo teve uma longa hist6ria, que näo é aqui o lugar de
3) Hå equivaléncia entre ser e viver, entre sentir- reconstruir. Mas é importante notar que a formula-
se existir e sentir-se viver. E uma decisiva antecipaqäo fäo grega tem algo a mais do que nela compreende
da tese nietzschiana segundo a qual: "Ser: n6s näo te- um ouvido moderno. Antes de tudo, o grego — como
mos disso outra experiéncia que viver". (Uma afirma- o latim — tem dois termos para dizer a alteridade: allos

fäo anåloga, mas mais genérica, pode ser Iida também


em De An. 415b 13: "Ser, para os viventes, é viver".)

8 Con-sentire em italiano. Mais uma vez Agamben marca sua leitura por
4) Nessa sensaqäo de existir insiste uma outra sen- meio da utilizaqäo do hffen. N. do T.

9 Cf. nota de tradugäo n. 6.


sagäo, especificamente humana, que tem a forma de
10 Con-divisione: aqui também preferimos uma tradufäo literal. Agamben
utiliza-se do hffen para salientar sua leitura do texto aristotélico. N. do T.

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(lat. alius) é a alteridade genérica, heteros (lat. alter) éa um existencial e näo um categorial. Mas esse existen-

alteridade como oposifäo entre dois, a heterogeneidade. Cial — como tal, näo-conceitualizåvel — é atravessado,

Além disso, o latim ego näo traduz exatamente autos, entretanto, por uma intensidade que o carrega de algo
que significa "si mesmo". O amigo näo é um outro como uma poténcia politica. Essa intensidade é o syn,

eu, mas uma alteridade imanente na "mesmidade", um o "com" que divide, dissemina e torna condivisfvel

tornar-se outro do mesmo. No ponto em que eu per- ou melhor, jå sempre condividida — a sensagäo mesma, a

cebo a minha existéncia como doce, a minha sensa- dogura mesma de existir.

fäo é atravessada porum com-sentirll que a desloca e Que essa condivisäo tenha, para Aristoteles, um
deporta para o amigo, para o outro mesmo. A amiza- significado politico estå implicito numa passagem do
de é essa des-subjetivaqäo no coraqäo mesmo da sen- texto que acabamos de analisar e sobre a qual é opor-

sagäo mais intima de si. tuno retornar:

Mas, entäo, também para o amigo se deverå com-sentir


que ele existe, e isso acontece no conviver (syzen) e
6.
no ter em comum (koinonein) aqöes e pensamen-
Neste ponto, o estatuto ont016gico da amizade tos. Nesse sentido, diz-se que os homens convivem
e näo, como para o gado, que condividem o pasto.
em Arist6teles pode ser considerado jå conhecido. A
amizade pertence å protephilosophia, porque aquilo que
A expressäo que traduzimos por "condividir o
nesta estå em questäo concerne å pr6pria experiéncia, å
pasto" é en to auto nemesthai. Mas o verbo nemo —
pr6pria "sensafäo" do ser. Compreende-se entäo por que
que, como vocés sabem, é rico em implicaqöes poli-
amigo" näo possa ser um predicado real, que se acres-
ticas, basta pensar no deverbal nomos —, razoavelmen-
centa a um conceito para inscrevé-lo numa certa classe.
te, significa, em sua forma medial, também "tomar
Em termos modernos se poderia dizer que "amigo" é
parte", e a expressäo aristotélica poderia significar sim-
plesmente "tomar parte no mesmo". Essencial é, em todo

caso, que a comunidade humana seja aqui definida, em


11 Cf. nota de traduqäo n. 7.
relaqäo åquela animal, através de um conviver (syzen

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adquire aqui um significado técnico) que näo é defi-

nido pela participagäo numa subståncia comum, mas


por uma condivisäo puramente existencial e, por as-

sim dizer, sem objeto: a amizade, como com-senti-


mento do puro fato de ser. Os amigos näo condividem
algo (um nascimento, uma lei, um lugar, um gosto):

eles säo com-divididos pela experiéncia da amizade.


A amizade é a condivisäo que precede toda divisäo,

porque aquilo que hå para repartir é o proprio fato


de existir, a pr6pria Vida. E é essa partilha sem objeto,

esse com-sentir originårio que constitui a polftica.

Como essa sinestesia politica originåria tenha se

tornado no decurso do tempo o consenso ao qual con-


fiam hoje seus destinos as democracias na ültima, extre-

ma e extremada fase da sua evoluqäo é, como se diz, uma


outra hist6ria sobre a qual deixo vocés refletirem.

Uma primeira versäo deste texto foi Iida pelo


autor na ocasiäo do recebimento do "Prix Européen

de l'Essai Charles Veillon 2006", em 19 de fevereiro de


2007, em Lousanne.

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