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CASAMENTO EM MONTANA

DEBBIE MACOMBER
ERA PRECISO RESISTIR... MESMO QUE SEU CORAÇÃO DISSESSE O
CONTRÁRIO!
A vida na cidade grande não servia para Molly Coogan,
principalmente com dois filhos para criar. Havia chegado o momento de
voltar para casa, em Sweetgrass, Montana. Para casa, na fazenda de seu
avô.
Dois fatos perturbadores acolheram sua chegada. Primeiro, a saúde
precária de seu avô. E, segundo, o homem misterioso que agora
trabalhava na fazenda. Era óbvio que o xerife não confiava em Sam
Dakota, mas apesar de suas próprias dúvidas, Molly, não podia negar a
atração que surgira entre eles. E foi então que seu avô tentou empurrá-
los na direção do casamento.
Para Molly, a mudança para o Estado de Montana era uma coisa, mas
entrar no estado de casada de casada era outra bem diferente!
CAPÍTULO 1
Não sei por quanto tempo seu avô ainda vai viver. As palavras
atingiram Molly Cogan com a força de um soco inesperado. Enquanto
sentava-se pesadamente num banquinho ao lado do telefone da cozinha,
ela bloqueou o ruído da televisão ligada e da gritaria entre seus dois
filhos, que discutiam sobre de quem seria a vez de arrumar a mesa.
Tom e Clay estavam a ponto de se agarrar, mas Molly só conseguia
lidar com uma crise de cada vez.
— Quem é mesmo que está falando, por favor?
— Meu nome é Sam Dakota. Escute, sei que talvez não seja o melhor
momento, mas achei que deveria lhe contar. — Fez uma pausa e
acrescentou:
— Walt não gostaria de saber que liguei, mas, como eu disse você
tem o direito de saber que a saúde dele não está nada boa.
O som inconfundível de vidro quebrado filtrou-se através do barulho
da televisão, enquanto os gritos dos meninos ficavam mais altos.
Cobrindo o fone com a mão, Molly pediu:
— Meninos! Agora não, por favor.
Alguma coisa em sua voz devia ter comunicado a importância do
telefonema, porque ambos viraram-se e olharam para ela. No instante
seguinte Tom foi pegar a vassoura.
A mão de Molly tremia quando levou o fone novamente ao ouvido.
— Como conhece meu avô, Sr. Dakota?
— Sou o administrador da fazenda. Trabalho aqui há seis meses.
O fato de vovô haver delegado o controle de sua fazenda a alguém
contratado, um estranho, lhe disse muito. Nos últimos anos, ele estivera
vendendo partes da propriedade que já fora imensa, até que tudo o que
restara foram apenas alguns pares de centenas de acres, bem pouco para
os padrões de Montana. Mas sempre administrara a fazenda Flecha
Quebrada sozinho, por tanto tempo quanto ela podia se lembrar. Os
empregados iam e vinham, dependendo do tamanho dos rebanhos, mas
pelo que ela sabia, seu avô sempre mantivera um controle rígido das
operações rotineiras. No decorrer dos anos suas cartas haviam sido pouco
frequentes, mas desde a última, que ela recebera depois do Natal, quatro
meses e meio atrás, Molly pressentira que algo não estava certo com
vovô. No entanto, afastara aquela sensação, consumida como estava com
seus próprios problemas.
— Conte-me novamente o que aconteceu — ela disse abrupta,
lutando para recuperar o controle. As primeiras palavras que o homem
lhe dissera provocaram um choque tão intenso que mal ouvira o restante.
— Como falei, a primavera é a época em que ficamos mais ocupados,
e ontem seu avô me disse que sairia para ajudar a checar os novos
bezerros. Quando ele não apareceu, voltei para a casa e encontrei-o
inconsciente no chão da cozinha. Logo percebi que ele sofrerá um ataque
cardíaco.
Molly pressionou os dedos nos lábios, contendo um gemido de
aflição. Vovô... Sentindo dores. Incapaz de respirar. Perdendo a
consciência. Era aterrorizante pensar nessas coisas.
Com a mãe e o meio irmão morando na Austrália, o avô de Molly era
a única família que ela possuía. Sua única ligação com o pai, falecido há
muito tempo.
— Levei-o para a clínica na cidade e o Dr. Shaver confirmou o que eu
já imaginava. E mesmo o coração. Walt tem um marca-passo, mas as
paredes do coração estão velhas e frágeis e o aparelho não está
funcionando tão bem quanto o médico esperava.
— Vovô tem um marca-passo? — Molly quase gritou.
— Quando isso aconteceu?
Enquanto falava, levou a mão até o camafeu que pendia de uma
corrente de ouro em torno de seu pescoço, e apertou-o com força. Aquela
era a jóia mais preciosa que possuía. Vovô lhe dera no dia do enterro de
sua avó, nove anos atrás.
— Há mais de seis meses. Foi a primeira vez que ouvi falar nisso,
também.
— Mas por que ele não me contou? — Molly perguntou, dando-se
conta de que seria impossível que Sam Dakota soubesse a resposta.
Desejou, e não pela primeira vez, que San Francisco fosse mais perto
de Montana. Naquele momento, Sweetgrass parecia estar a milhões de
quilômetros de distância.
— Não sei responder a isso. Só achei que você deveria saber que é
bem provável que Walt não viva por muito tempo. Se quiser vê-lo, sugiro
que planeje logo uma visita.
— O quê, exatamente, está errado com o coração dele? Tal pergunta
poderia indicar que Molly estava evitando
a questão principal, mas ela precisava entender qual era o estado de
vovô antes mesmo de começar a pensar em qualquer outra coisa. Como
suas finanças, por exemplo. E em como poderia arcar com uma viagem até
Montana, agora.
— Você sabe alguma coisa sobre marca passos?
— Um pouco. — Apenas o bastante para entender que tais aparelhos
emitiam um "bip" eletrônico, que ajudavam o coração a bater num ritmo
estável.
— Bem, como eu disse antes, as paredes do coração de seu avô são
muito frágeis e é difícil fazer com que o marca-passo funcione
adequadamente. O Dr. Shaver esteve com ele por umas duas horas, mas
não pôde fornecer nenhuma garantia. Disse que não há mais nada que
possa fazer. E apenas uma questão de tempo, antes que o coração de
Walt desista completamente de funcionar.
Molly mordeu o lábio, tentando assimilar o que aquele homem lhe
dizia.
— Eu... Agradeço muito por ter ligado. Obrigada. — A cada palavra,
sentia-se mais dominada pela emoção. Não o vovô, por favor, meu Deus,
não o vovô. Ainda não.
— Lamento ter ligado com notícias tão más.
— E como... como ele está, agora? — Molly olhou de relance para a
sala e viu que Tom e Clay estavam parados na soleira da porta,
observando-a com toda atenção. Um sorriso os teria tranquilizado, mas
até mesmo isso estava além de suas forças.
— Está melhor. Então, você vem para cá? — o administrador
perguntou.
— Ainda não tenho certeza.
Molly não sabia como lidar com tudo aquilo. Com a suspensão do
pagamento da pensão dos meninos e os ajustes financeiros que ela fora
obrigada a fazer no ano anterior, não podia imaginar como acrescentar
mais uma despesa ao seu orçamento já tão restrito. Até mesmo uma
viagem curta iria exigir que faltasse pelo menos uma semana do seu
trabalho, um emprego sob contrato sem férias remuneradas. Além disso,
haveria as despesas com passagens de avião ou, o que era mais provável,
com gasolina e hospedagem, se fossem de carro. Ela teria de levar os
meninos, pois vovô iria querer vê-los, e eles mereciam vê-lo também.
— Quando poderá saber se vem ou não?
Talvez fosse apenas imaginação, porém Molly detectou um tom de
censura na voz dele. Aquele homem nada sabia a seu respeito, nada sabia
sobre as circunstâncias de sua vida. Como se atrevia a julgar suas
decisões?
— Se eu soubesse, teria dito logo!
Recostando a cabeça contra a parede da cozinha, Molly tentou
pensar com clareza, desesperada para encontrar uma saída, uma solução,
qualquer coisa que aliviasse o peso de seus temores. E como nunca fora
do tipo que chora abertamente, ainda mais na presença de estranhos,
lutou contra o nó que se formava em sua garganta.
— Então não vou tomar mais o seu tempo — Sam retrucou ríspido.
Molly queria lhe gritar que esperasse que ela ainda tinha outras
perguntas, mas ele já respondera todas as mais importantes. Na verdade,
o que ela mais queria era ouvir aquele desconhecido lhe dizer que vovô
ficaria bem e curado.
— Obrigada por me ligar — ela falou, sentindo-se culpada pela
resposta irritada que lhe dera momentos antes. Ninguém gostava de
transmitir más notícias e fora bondade de Sam Dakota certificar-se de que
ela estivesse a par do estado de saúde de seu avô. — Eu o avisarei se
formos até aí para uma visita — sentiu-se no dever de acrescentar.
— Ótimo. Seu avô estará em casa daqui a um ou dois dias. Eu
consideraria um favor se você não lhe mencionar que liguei.
— Não vou dizer nada. E muito obrigada. Levantando-se, Molly
desligou o telefone e olhou para os filhos. Os dois tinham os mesmos
olhos castanhos escuros do pai, e ambos haviam nascido com a
capacidade de enxergar direto através dela. Aos quatorze anos Tom
crescia a olhos vistos, transformando-se num adolescente desengonçado
com pés grandes demais em proporção ao restante do corpo. Ele ainda
não atingira toda sua altura, e tornara-se dolorosamente autocrítico.
Passava por aquele estágio constrangedor, repleto de frustrações e
hormônios desvairados. Molly e o filho já haviam sido muito ligados, mas
isso mudara completamente nos últimos meses. Agora Tom mal falava
com ela, não lhe fazia mais confidencias como antes. Muitas vezes ficava
irritado e deprimido, sem qualquer motivo aparente. Tal atitude a
deixava preocupada; ela pressentia que o filho lhe escondia alguma coisa.
Tentava não pensar muito nisso, mas frequentemente o medo de que ele
estivesse envolvido com drogas, ou andando com a turma errada
penetrava em sua mente e recusava-se a sair.
Clay, com onze anos, era uma versão mais nova do irmão. Nenhum
dos meninos havia herdado os cabelos avermelhados de Molly, nem os
seus olhos azuis. Ambos assemelhavam-se com o lado paterno da família,
cabelos e olhos escuros. Não que a família de Daniel tivesse revelado
muito interesse em seus filhos. Mas como, se tampouco Daniel
demonstrava interesse?
— Foi sobre o papai, não é? — Tom perguntou os olhos fixos nos
dela.
Os ombros do menino enrijeceram, como se ele se preparasse para a
resposta. A situação com Daniel não havia sido fácil para nenhum deles.
Haviam visto seu nome nos jornais e na tevê, dia após dia, durante
semanas, por todo o tempo em que durou o julgamento.
— O telefonema não foi a respeito de seu pai — Molly respondeu,
com todo cuidado.
As crianças já haviam sofrido muito por causa de Daniel. Ele jamais
fora um bom pai, e muito menos um bom marido. Na verdade, a deixara
por outra mulher. Porém, Molly tinha de lhe dar um crédito: até o ano
anterior, ele havia pago religiosamente a pensão dos meninos. O
pagamento só fora interrompido quando os problemas de Daniel
começaram. E os problemas legais dele eventualmente causaram
problemas financeiros para ela e os meninos.
— O que papai fez, dessa vez? — Tom inquiriu, com os olhos
estreitando-se, desconfiados.
Aquele era um olhar que Molly reconhecia um olhar que lhe dizia
que Tom, com seu recém-adquirido cinismo de adolescente, não estava
disposto a acreditar em nenhum adulto, especialmente em sua mãe...
— Já disse que não tinha nada a ver com seu pai! — Molly aborrecia-
se em pensar que seu filho presumira que estivesse mentindo para ele.
Não havia nada que ela abominasse mais do que a mentira. Daniel
encarregara-se de ensinar-lhes, a ela e aos seus filhos, mais do que o
suficiente sobre essa questão.
— Eu não mentiria para você.
— Então, o que aconteceu de errado?
— Clay entrou na cozinha e Molly estendeu os braços para o filho
mais novo.
Clay não fazia objeções a um abraço ocasional, mas Tom já deixara
bem claro que estava velho demais para esse tipo de coisa, e "seguro"
demais para demonstrações de afeto da própria mãe. Molly respeitava
seus desejos, ao mesmo tempo em que ansiava pela hora em que
pudessem compartilhar um simples abraço.
— É o vovô — ela disse. Sua garganta fechou-se novamente e não
conseguiu falar mais nada.
Clay abraçou-a com força pela cintura e recostou a cabeça em seu
ombro. Molly suspirou profundamente.
— Vovô está doente?
— Tom perguntou, enfiando as mãos nos bolsos. Depois, começou a
andar de um lado para outro da cozinha, inquieto.
Aquele havia se tornado um hábito dele, nos últimos tempos, um
hábito particularmente irritante. Os últimos doze meses haviam sido
duros para todos eles. Tom parecia estar enfrentando a pior parte, tendo
de suportar tudo: a humilhação pública do julgamento de seu pai por
fraude, a falta de dinheiro, e depois a mudança de uma espaçosa casa de
três quartos para um entulhado apartamento de dois quartos. Mas
aquele apartamento fora o melhor que ela pudera arranjar, e a
insatisfação dele acentuava seus próprios sentimentos de inadequação.
— O vovô está com problemas no coração — Molly finalmente
respondeu. Falou num tom fraco, baixo.
— Quando vamos visitá-lo?
Molly afastou os cabelos da testa de Clay e olhou para o rosto doce e
infantil.
— Ainda não sei.
— Mas, mamãe, você não quer ir?
— Tom gritou. Aquilo doeu. Era óbvio que ela queria.
Desesperadamente.
Se tivesse alguma escolha, pegaria o primeiro avião para lá.
— Ah, Tom, como pode me perguntar uma coisa dessas? Eu daria
tudo para estar ao lado de vovô.
— Então vamos. Podemos sair hoje à noite.
Tom foi em direção do quarto que dividjá com o irmão mais novo,
como se a única coisa que precisassem fazer era jogar algumas roupas na
mala e sair pela porta.
— Não podemos — ela disse, balançando a cabeça, mais uma vez
desconcertada pela realidade de sua situação.
— Por que não? — A voz de Tom era desdenhosa.
— Porque não temos bastante...
— Dinheiro — o filho mais velho completou a frase. Bateu com o
punho no balcão da cozinha e Molly encolheu-se, sabendo que aquele
gesto devia ter sido doloroso. — Eu odeio dinheiro! Toda vez que
queremos fazer alguma coisa, ou precisamos de alguma coisa, não
podemos, por causa do dinheiro.
Molly puxou uma cadeira e afundou-se nela, com toda energia
esgotada, todo o ânimo abatido pela raiva e auto piedade.
— Não é culpa da mamãe — Clay murmurou, pousando o braço
magro em torno dos ombros dela, confortando-a.
— Não sei o que fazer — Molly falou, pensando em voz alta.
— Se quiser ir sozinha — Tom ofereceu, com evidente relutância —,
eu fico aqui tomando conta de Clay.
— Não preciso que ninguém tome conta de mim — Clay retrucou.
— Sei me cuidar sozinho. — Olhou direto para o irmão, desafiando-o
a contrariá-lo.
— Não posso viajar agora, com ou sem vocês — Molly falou, com
tristeza.
Tinha menos de vinte dólares em sua conta bancária. Era aquela
história tão conhecida: mês demais para dinheiro de menos.
— Eu me lembro do vovô — Tom falou, subitamente.
— Pelo menos, acho que me lembro.
A última vez que Molly visitara a fazenda fora um pouco depois do
divórcio, dez anos atrás. Sua avó, que já estava doente naquela época,
com um câncer que se espalhou rapidamente, morrera pouco tempo
depois. Seu avô lhe pedira para que fosse morar com ele, e por um
instante ela havia considerado seriamente o convite. Agora, disse a si
mesma que se tivesse algum juízo teria aceitado a oferta na hora. Na
verdade, teria concordado se tivesse sido capaz de encontrar um
trabalho. Fluente em francês e alemão, Molly era funcionária contratada
de uma importante agência. Infelizmente, não havia muita procura para
as suas habilidades na região agrícola e pecuária de Montana.
Naquela visita, Tom tinha apenas quatro anos e Clay ainda usava
fraldas. Quaisquer lembranças que Tom tivesse provavelmente vinham
das histórias que ela lhes contava sobre a fazenda. Aconchegada no sopé
das montanhas Bitterroot, a Flecha Quebrada era uma das fazendas
solitárias que se espalhavam pelo vale do rio Flathead. Molly falava
sempre sobre o lugar, especialmente depois que recebiam uma carta de
vovô. Não havia muitas, somente duas ou três por ano. Sua avó sempre
fora a encarregada de cuidar da correspondência da família. Molly
também descobrira que vovô detestava falar no telefone, mais do que
odiava escrever cartas. Ainda assim, ele fazia um esforço para manter
contato com ela. Cada uma de suas cartas era lida inúmeras vezes e
guardada com carinho. O fato de ter perdido a companheira de toda uma
vida o deixara devastado e mesmo agora, nove anos depois do seu
falecimento, vovô mencionava a esposa em todas as cartas, em todas as
conversas.
Molly sempre respondia as cartas e enviava-lhe fotos dos meninos.
Através dós anos, conversavam pelo telefone muitas vezes, porém as
conversas sempre foram obviamente desconfortáveis para seu avô. Ele
jamais fora de muita conversa, nem tampouco era aquele estereótipo do
velhinho bondoso que habita os livros de histórias infantis. Muito pelo
contrário, tratava-se de um velho bem rabugento. Costumava gritar no
telefone, como se pensasse que isso era necessário para ser ouvido, e
queixava-se constantemente sobre o quanto a ligação estaria custando.
Era um homem grande, com mais de um metro e oitenta de altura e
pesava pelo menos 90 quilos. Aos quatro anos, Tom achara a aparência
dele tão assustadora que se agarrara à perna de Molly nos primeiros dias
da visita. Clay escondia o rosto em seu ombro e gemia baixinho, sempre
que vovô se aproximava.
Mas o avô de Molly não tinha a menor ideia do quanto podia ser
amedrontador aos meninos pequenos.
Havia realmente se passado nove anos, desde a última vez em que o
vira? Parecia impossível, entretanto ela sabia que era verdade.
— Ele gritava — Tom murmurou perdido em seus próprios
pensamentos.
Sem dúvida, ele gritava. Era resmungão, impaciente e tão sutil
quanto uma espingarda apontada para o rosto de alguém. Mas bastava
conhecê-lo bem para amá-lo, embora ele raramente desse chance para
que as pessoas se aproximassem o bastante para isso. Como jamais tivera
medo de expressar suas opiniões, vovô fazia questão de que aqueles que
o cercavam soubessem exatamente o que estava pensando, e por que; e
quem se atrevesse a discordar era chamado de "idiota rematado".
Quando a avó de Molly ainda era viva, conseguia minimizar os
estragos. Seu charme e bom humor compensavam a natureza arredia de
Walt Wheaton. Agora, no entanto, era bem provável que vovô já tivesse
brigado com quase todos os habitantes de Sweetgrass.
O administrador que ligara dissera que estava trabalhando na
fazenda havia mais de seis meses. Se vovô mencionara o fato de estar
contratando um administrador, em alguma de suas cartas, Molly havia
deixado escapar, o que era difícil de acreditar, pelo número de vezes que
costumava ler as cartas. Mas conhecendo vovô, sabia que ele preferia roer
as unhas do que admitir que precisava de ajuda.
Sam Dakota. O nome lhe soava quase familiar. Molly esboçou um leve
sorriso, permitindo-se um breve instante de divertimento ao perceber
que estava confundindo o nome do administrador com o nome de um
Estado, Dakota do Sul. Ou, talvez, vovô tivesse mencionado o nome numa
das conversas, mas sem relacioná-lo com quaisquer empregados. Só podia
ser isso.
Naquela noite os meninos foram para a cama com um mínimo de
discussão, o que deixou Molly muito grata. Ela foi deitar-se em seguida,
cansada até os ossos.
Mas não foi de surpreender que não conseguisse pegar no sono. A
cada vez que fechava os olhos, tudo o que via era o rosto de vovô. Tudo o
que podia pensar era no velho impertinente que ela tanto amava.
Por volta da meia noite, Molly desistiu de tentar dormir e acendeu a
luz. Afastando as cobertas, foi até a escrivaninha e procurou nas gavetas,
até encontrar a última carta que recebera de vovô. Sentou-se na cama,
com as pernas cruzadas, e leu a carta devagar.
Querida Molly,
Obrigado pelas fotos dos meninos. Eles não se parecem em nada com
qualquer um dos Wheatons, não é? Imagino que não posso culpá-los por
se parecerem tanto com o pai. Mas a sua fotografia é outra história.
Sempre que a olho, é como se estivesse vendo minha doce Molly quando
tinha sua idade. A única diferença é que ela usava os cabelos compridos.
Não consigo entender o que acontece com as mulheres, hoje em dia.
Elas cortam os cabelos curtos, como se quisessem ser como os homens.
Ginny Dougherty, a dona da fazenda que fica ao lado da minha, é um
exemplo disso. Essa tola mulher acha que é capaz de criar gado tão bem
quanto um homem, portanto decidiu ficar parecida com um homem. Até
seria bonita, se deixasse os cabelos compridos e usasse um vestido. Vou
lhe dizer uma coisa, o marido dela iria se remexer na tumba, se visse o
que ela fez consigo mesma.
Mas, nessa questão de cabelos, tenho de admitir que os homens não
são muito melhores. Parece que muitos deles preferem usá-los
compridos, como os hippies e outros tipos dos anos sessenta. Mas nunca
pensei que, que ainda veria homens adultos, homens grisalhos, pelo amor
de Deus! Usando rabos de cavalo. Ou, o que é pior, quando usam aquelas
trancinhas. Pelo que sei, Willie Nelson tem uma grande responsabilidade
sobre essa moda.
Mas não se trata apenas sobre o que as pessoas fazem com seus
cabelos. Coisas cada vez mais estranhas andam acontecendo aqui em
Sweetgrass. Um homem já não sabe mais em quem confiar. As pessoas
falam do governo como se este fosse o inimigo. Eu não lutei numa guerra
mundial para ficar ouvindo essas conversas malucas, mas também, o
pessoal por aqui nunca deu muita importância para as minhas opiniões.
Ainda assim, faço questão de que saibam o que penso, quer eles desejem
saber ou não.
O tempo tem estado bom e ruim. Até agora o inverno não está
rigoroso demais, tivemos somente uma geada.
As galinhas estão pondo mais ovos do que posso consumir o que
significa que estão contentes. Não há nada melhor do que ovos com
bacon no café da manhã. Espero que você esteja dando aos meninos um
desjejum decente, e não aquelas porcarias açucaradas.
Agora, quero falar sobre você. Parece que Daniel finalmente obteve o
que sempre mereceu. Imagine só, fraudar aquelas pessoas decentes,
roubando-lhes o dinheiro que juntaram a duras penas! Nunca entendi
realmente porque você se casou com aquele "fala mansa". No instante em
que o vi, soube que não era bom caráter. Se tivesse pedido minha
opinião, antes de ser tola o bastante para casar com ele, talvez eu lhe
tivesse poupado muitos problemas. Bem, pelo menos você tem os
meninos, portanto para alguma coisa boa esse casamento serviu.
Você é minha única neta, Molly, e tudo o que me restou. Você sabe
disso. Lembro-me do dia em que você nasceu e seu pai ligou para dizer
que Joan dera a luz à uma menina. Sua avó chorou quando soube que
seus pais decidiram dar-lhe o nome dela. Talvez eles tivessem percebido,
pois, mesmo quando era tão pequena, já se parecia muito com minha
Molly, e fica mais parecida a cada ano que passa. Ela era Uma bela
mulher, e você também é.
Eu queria que seu casamento tivesse sido como o nosso. Foi a melhor
coisa da minha vida, Molly.
Fico contente em saber que você está livre daquele Daniel, mas
gostaria que se casasse novamente. Porém, suponho que devemos deixar
esta questão para uma outra vez.
Quero falar com você sobre outra coisa. Recentemente comemorei
meus setenta e um anos, e decidi que estava na hora de deixar meus
assuntos em dia. Mandei preparar um novo testamento. Quando estive
na cidade, na semana passada, fui ao escritório de Russell Letson. E um
advogado que está por aqui há algum tempo, e o pai dele era meu amigo.
Gosto bastante de Russell, embora continue suspeitando de que todos os
advogados são uns rábulas. De qualquer forma, levei meu testamento
antigo e Russell e eu conversamos um bocado, e ele me fez uma porção
de perguntas que me fizeram pensar.
Há certas coisas que você precisa saber. Em primeiro lugar, tenho um
cofre no banco, onde guardei as medalhas que ganhei na guerra. Quando
chegar a hora, e quando eles começarem a dar valor para esse tipo de
coisa, você pode dar as medalhas para meus bisnetos. Creio que também
deveria guardar no cofre a aliança de sua avó, mas não consigo me
desfazer dela. Deixo-a guardada no criado-mudo, junto à minha cama.
Nove anos se passaram, e ainda sinto falta de Molly.
A fazenda será sua. Eu quis que você se mudasse para cá depois que
Molly morreu, mas compreendi porque decidiu voltar para a Califórnia.
De minha parte, não entendo como consegue respirar este ar poluído, já
vi na televisão como é San Francisco. Não pode fazer bem para os
meninos, ficar respirando toda aquela fumaça. Só espero que, depois que
eu me vá, você decida fazer mais uma tentativa aqui em Sweetgrass. O
pessoal aqui é decente e trabalhador. Na maioria dos anos a fazenda
consegue zerar as despesas. E a casa é sólida. Meu pai a construiu em
1901 e, depois que ele morreu, Molly e eu acrescentamos eletricidade e
encanamentos. Não é uma casa elegante, mas esteve de pé durante todos
esses anos, e vai continuar por muitos mais.
Acho que isso é tudo o que eu queria lhe dizer.
Eu a amo muito, minha garota, e aos seus filhos também. Tenho
certeza de que você sabe disso, embora eu não seja do tipo que diz essas
coisas com freqüência. Esta carta me forneceu uma boa ocasião para
dizer.
Lembre-se: não permita que Daniel lhe cause mais sofrimentos. Ele
está recebendo o que merece.
Vovô.
Molly leu a carta pela segunda vez, e depois pela terceira. Tudo fazia
sentido, agora.
De acordo com o que o administrador lhe dissera, vovô devia tê-la
escrito dois meses depois de ter colocado o marca-passo. Seu adorado
avô não mencionara uma palavra sequer sobre o problema de saúde, e
ela sabia por quê.
Daniel.
Vovô tinha razão sobre Daniel: a prisão era exatamente
o que ele merecia. Como especialista de investimentos, Daniel
estivera roubando regularmente a aposentadoria de seus clientes idosos.
Fora muito esperto ao agir, armando esquemas e falsificando números.
Demorara quase um ano para que os especialistas em finanças e os
contadores descobrissem a extensão total de seus crimes. Durante toda a
sua chamada "carreira", Daniel havia lesado as mesmas pessoas que
deveria estar ajudando. Mentiu para os colegas e clientes, mentiu para a
polícia e para a imprensa. Foi flagrado mentindo até mesmo sob
juramento. Seu julgamento durou várias semanas, com uma multidão de
cidadãos idosos lotando o tribunal, exigindo justiça. Não receberam o
dinheiro de volta, mas estavam ali para ver Daniel ser sentenciado a vinte
anos de prisão.
Por estar tão atormentada pelo que acontecia àquelas pessoas que,
como ela, haviam confiado em Daniel, Molly não prestara muita atenção a
alguns dos detalhes da carta de vovô. Havia lido e relido as palavras pelo
conforto que lhe traziam, pela maneira como os aproximava mais, porém
não havia parado para questionar o súbito interesse dele em fazer um
testamento, e em "deixar seus assuntos em dia". Não percebera que ele a
estava preparando para sua morte. Agora, parecia óbvio que vovô não
esperava viver por muito tempo.
Além daquela carta, Molly só se lembrava de uma outra única vez em
que vovô lhe dissera que a amava: o dia do enterro de sua avó. Ela não
tinha dúvidas de seu amor; ele costumava proclamá-lo alto e claro, mas
raramente com palavras. Demonstrações abertas de emoções deixavam-
no embaraçado, como acontecia com muitos outros homens,
especialmente de sua geração.
Aquela carta não fora à primeira vez que ele levantava a questão de
um novo casamento para ela. Este assunto fora uma constante, desde o
divórcio de Molly. A tinta mal secara nos documentos oficiais, e vovô já
estava tentando apresentá-la aos fazendeiros solteiros da região.
A ideia de um novo relacionamento provocava calafrios em Molly.
Como costumava dizer às amigas, ela já tivera uma experiência com o
casamento e não pretendia repeti-la.
Guardando a carta novamente no envelope, tornou a se deitar,
embora não esperasse dormir. Mas devia ter cochilado pois, quando deu-
se conta, o despertador estava tocando. A carta de vovô continuava em
sua mão, apertada contra o peito.
Então, tudo ficou claro para ela. Tão claro que ela deveria ter
percebido meses atrás. A resposta estivera sempre ali, mas fora cega
demais, teimosa demais, voluntariosa demais para ver. No entanto, o fato
de quase perder seu avô lhe servira para mostrar o que tinha de fazer.
A saleta de reuniões ao lado do escritório do diretor era o último
lugar onde Tom desejava estar. Chamada de "cela de espera" pelos alunos
do Colégio Ewell, a saleta permanecia fria até mesmo nos dias mais
quentes, e tinha um odor desagradável que o fazia lembrar do consultório
de dentista.
Eddie Ries estava sentado numa cadeira de madeira, ao lado dele. A
mãe de Eddie estava a caminho da escola. Tom não ouvira quando sua
própria mãe chegaria. Tudo o que sabia era que, quando ela chegasse,
não iria ficar nada contente.
Suspensão por três dias. Será que achavam que isso era um castigo?
Tom quase riu alto. Ficar um tempo longe da escola era praticamente um
prêmio por estar "aprontando". Pessoalmente, Tom estava enjoado da
escola. Enjoado das coisas que não podia mudar. Como de seu pai, por
exemplo, e do jeito que seus colegas o olhavam, quando souberam que o
sujeito que aparecia nos jornais era seu pai. Estava farto de sentir-se
impotente e frustrado, e foi por isso que acabou envolvendo-se em algo
que jamais imaginara que poderia fazer.
Ele não era amigo de Eddie. Nem mesmo gostava dele. Eddie estava
sempre procurando encrencas, como se isso o fizesse sentir-se
importante. Fazia-o sentir-se alguém, um adulto numa escola onde nunca
se adaptou realmente. Tom também não tinha certeza se já se adaptara,
e talvez fosse isso que o levara a agir de maneira tão estúpida.
Apesar de não lamentar a suspensão, Tom detestava ter
acrescentado mais uma preocupação a tantas outras que sua mãe já
enfrentava. Havia visto como a notícia sobre a saúde de seu bisavô a
deixara deprimida. Durante o jantar, na noite anterior, ela mal havia
falado e quase não comera nada.
Tom também não tivera muito apetite. Não conseguia parar de
pensar em vovô. Não tinha certeza se lembrava-se ou não do bisavô, mas
deixara que Clay pensasse que sim, principalmente porque era o mais
velho e deveria se lembrar. Clay havia sido apenas um bebê, naquela vez
em que foram para Montana.
Em seu décimo-segundo aniversário, e nos dois anos depois disso,
Tom recebera uma carta pessoal de vovô, além de um cheque de vinte
dólares. Antes disso, vovô sempre enviara o dinheiro para sua mãe, que
então saía e comprava alguma coisa para ele. Nos últimos aniversários, no
entanto, o cheque lhe foi enviado especialmente.
Em sua primeira carta, vovô dizia que um rapaz de doze anos tinha
idade suficiente para saber o que queria. E também para sair e comprar o
que quisesse. Tom jamais esqueceu a sensação que a carta lhe provocara.
Pela primeira vez em sua vida sentiu-se como um homem. Talvez não se
lembrasse da aparência do bisavô, porém o amava do mesmo jeito que
sua mãe.
Sua mãe estava preocupada. Ela se preocupava com uma porção de
coisas. Tom sempre podia dizer quando os problemas a deprimiam. O
trabalho, o seu pai, a falta de dinheiro. E, agora, vovô. Através dos anos,
Tom aprendeu a reconhecer os sintomas na mãe. Ela ficava muito quieta,
e então três linhas verticais se formavam no centro de sua testa. Era
doloroso ver aquelas linhas aparecendo, sem poder fazer nada para
ajudá-la. Nessas ocasiões, ele ia para seu quarto, colocava os fones de
ouvido e tocava a música num volume tão alto que sua cabeça ficava
latejando, depois.
A música ajudava-o a não pensar porque, quando o fazia, seu
estômago doía.
Tom queria ajudar a mãe. Quando era criança, sonhava que seria um
mágico e que faria todas as coisas ruins da vida desaparecerem com um
floreado meneio da varinha encantada. Gostava de imaginar-se fazendo
isso, às vezes.
Com um simples aceno de mão, todos os problemas desapareceriam
num passe de mágica.
A porta da saleta de reuniões abriu-se de repente, e Tom endireitou-
se na cadeira quando a mãe irrompeu para dentro, os olhos reluzindo de
raiva.
Tom baixou seus próprios olhos. Brincou com a idéia de
cumprimentá-la, mas decidiu-se ao contrário. Ela não parecia nada
contente em vê-lo.
— Símbolos de gangue, Tom? — ela disse, por entre os dentes
cerrados, com as mãos nos quadris. — Você pichou símbolos de gangue
na parede do ginásio?
— Na parede de fora do ginásio, mãe — ele corrigiu, arrependendo-
se imediatamente.
— E você acha que tem importância em qual parede foi?
— ela indagou, num tom que lhe dizia que os três dias de suspensão
da escola eram o menor de seus problemas.
O diretor, Sr. Boone, entrou na sala em seguida, parecendo muito
satisfeito consigo mesmo, como se tivesse cumprido uma missão com
êxito. Tom nunca tivera nada contra o diretor, porém agora estava
inclinado a detestá-lo, apenas pelo jeito satisfeito com que ele sorria,
sabendo que Tom estaria bem mais encrencado em casa do que na
escola.
— Como expliquei antes, sra. Cogan — o diretor falou,
— esta escola tem uma política de tolerância zero no que se refere a
atividades de gangues. Embora eu não acredite que Tom esteja realmente
envolvido com uma gangue, agora tenho minhas dúvidas. Gostaria de
acreditar que Tom é esperto demais para isso, mas depois de hoje já não
tenho tanta certeza.
— Pegue suas coisas, Tom. Vou levá-lo para casa — a mãe instruiu.
Pelo sua voz, Tom sabia que ela ainda tinha muito a dizer.
Assim mesmo, ele quase pulou da cadeira, ansioso por ir embora.
Pegou a jaqueta e seguiu a mãe para fora.
— De todas as coisas estúpidas e impensadas que você podia fazer,
escolheu a pior — Molly foi dizendo, enquanto dirigiam-se para o
estacionamento. Andava tão rápido que Tom teve dificuldade em
acompanhá-la.
"É", ele pensou, "também não estou muito orgulhoso de mim
mesmo."
Subiram no carro e, pela maneira como Molly arrancou, Tom chegou
a pensar que haviam deixado uma marca dos pneus no asfalto. Ela passou
por um sinal de "Pare" e disparou pelas ruas, quase batendo num outro
carro.
— Mãe! — ele gritou, agarrando-se na beirada do assento, quando
foi atirado contra a porta, numa curva. — Não acho uma boa ideia você
dirigir quando está assim tão zangada.
— "Zangada" não descreve o que estou sentindo.
— Tudo bem, tudo bem, eu fiz uma besteira.
— Uma besteira. Está metido com gangues, Tom?
— Não estou em gangue nenhuma!
Ela enviou-lhe um olhar que assegurava-lhe que pensava exatamente
o contrário.
— Então, por que pichou as paredes com os símbolos? — Sem sequer
respirar, juntou: — Você vai pintar aquela parede sozinho, meu rapaz.
— Ei, eu não fui o único que pichou as paredes!
— Isso não era justo!
— Você vai voltar à escola amanhã cedo e pintar as paredes do
ginásio.
— E quanto a Eddie?
Molly lançou lhe um olhar que seria capaz de cortar vidro.
— Não posso dizer nada a respeito de Eddie, mas tenho muito que
dizer sobre você.
Ela gostava de pensar que sim, mas aquela não parecia a hora certa
para discutir o assunto.
— De acordo com o que o Sr. Boone disse, não posso chegar nem
perto da escola — Tom falou. Um dos dois teria de manter a cabeça fria, e
era óbvio que sua mãe estava incapaz de fazer isso.
— Não precisa se preocupar. Já pedi permissão ao Sr. Boone e ele
está mais do que disposto a abrir uma exceção.
— Mas isso não é justo! Por que eu tenho de voltar e pintar a
parede? Eddie devia me ajudar. — A raiva crescia dentro de Tom, e ele
cerrou os dentes, sabendo que de nada adiantaria dar vazão a ela,
naquele momento.
— Os pais de Eddie que cuidem do castigo dele.
O que significava que Eddie estaria a salvo. A mãe de Eddie bebia o
dia inteiro, e ele nem mesmo sabia por onde andava seu pai. Tom
certamente sabia o paradeiro de seu próprio pai, bem como o restante da
cidade.
— Não posso pintar a parede depois da suspensão?
— perguntou, pensando que preferia fazer isso durante o fim de
semana. Não lhe agradava nada a ideia de ter a escola inteira
testemunhando sua humilhação.
— Não.
— foi a resposta enfática.
— Por que não? — ele retrucou, cerrando os punhos.
— Porque vou precisar que você me ajude com outras coisas.
— Que coisas?
— Arrumar as malas.
Aquilo captou-lhe a atenção. Esperou um instante, depois perguntou:
— Nós vamos para algum lugar?
— Montana.
O coração dele encheu-se de alegria. Ela dera um jeito. Iria levá-los
para Montana. Isso era uma boa notícia, muito melhor do que qualquer
coisa que pudesse antecipar.
— Vamos visitar o vovô?
Molly não respondeu na hora. Tom observou que as mãos dela
seguravam o volante com mais força.
— Não exatamente. Pedi demissão do emprego hoje de manhã. Nós
vamos nos mudar.
CAPÍTULO 2
Sam Dakota despertou repentinamente de um sono profundo. Seu
coração disparava, batendo contra o peito com uma força quase dolorosa.
O suor frio cobria-lhe a testa e grudava-se em seu tronco nu. Aspirou o ar
com dificuldade, uma, duas vezes, enquanto seu corpo lançava-se para a
frente, num esforço desesperado para levar o oxigênio aos pulmões em
brasa.
Aquele sonho sempre o despertava. Onde quer que estivesse, sentia
novamente o pânico, o medo tão vivido e real como naquele primeiro dia
em que a porta do presídio fechara-se com um ruído ensurdecedor atrás
dele. O barulho havia ecoado pelas paredes de concreto, reverberado em
seus ouvidos. Dois anos em liberdade, e ele ainda ouvia o som terrível.
Invadia lhe o sono, torturava-o, lembrava-o constantemente de que ele
era um fracasso ambulante. Felizmente o sonho já não vinha mais com
tanta frequência, pelo menos desde que começara a trabalhar para o
velho Wheaton.
Fechando os olhos, Sam tornou a se deitar, aninhando a cabeça no
travesseiro de penas. Engoliu em seco e flexionou as mãos, tentando
aliviar a tensão do corpo, forçando-se a relaxar.
Estava tudo acabado. Acabado.
A prisão pertencia ao passado, e também a vida que vivera antes
disso. No entanto, um dia ele havia sido um astro dos rodeios, cavalgando
em touros, flertando com a fama. Com a fama e com as mulheres. Tivera
suas próprias seguidoras, as fãs que corriam atrás dele por onde fosse.
Elas lhe lustravam o ego, torciam por ele, bebiam com ele, dormiam
com ele e, em mais de uma ocasião, brigavam por sua causa.
As fas haviam desparecido, do mesmo jeito que tudo que certa vez
fora importante para ele também desaparecera. Em sua carreira nos
rodeios, e depois do acidente, Sam havia se deparado com o perigo, com
as injúrias, a morte, e enfrentara tudo sem qualquer traço de medo.
No auge do sucesso, conseguira tudo o que sempre desejara. Atingira
o ponto máximo no campeonato de rodeios em Vegas, seis anos atrás.
Mas o cinturão de prata que o proclamava como sendo o melhor dos
melhores fora penhorado para ajudar um velho a manter sua fazenda.
Atualmente, Sam ficava longe de encrencas, tratava de manter a
cabeça fria e cuidava de sua própria vida. Quando a ansiedade o atingia,
ele seguia em frente.
Sam não gostava de ficar repisando os seus tempos de rodeio. Isso
estava no passado, acabado. Os médicos o alertaram sobre os riscos de
tornar a competir. Se tivesse mais uma queda como aquela que encerrara
sua carreira, poderia ficar incapacitado pelo resto da vida. Ou morrer. Era
simples assim. O dinheiro, o pouco que ele conseguira economizar, fora
todo engolido pelos médicos e pelas contas do hospital.
Alguns amigos ainda permaneceram ao seu lado por algum tempo,
mas Sam afastara a todos com sua revolta e frustração. Nem mesmo seus
pais sabiam de seu paradeiro, o que, para ele, não tinha importância. O
orgulho o impedia de deixar que soubessem que ele havia cumprido uma
pena de dois anos no presídio estadual de Washington, por agressão em
segundo grau. Depois de dois anos de silêncio, ele achara que não valeria
a pena lhes escrever e inventar uma história sobre onde estivera e por
que demorara tanto para dar notícias.
Assim, alguns anos tinham se passado desde a última vez em que
tivera contato com sua família e, com o decorrer dos meses, Sam pensava
neles cada vez menos.
Até o dia em que acabou parando na fazenda Flecha Quebrada, Sam
já havia perambulado por três ou quatro Estados, sentindo-se deprimido,
infeliz e repleto de ódio e raiva. A inquietação que habitava dentro dele
recusava-se a morrer.
E havia permanecido em Sweetgrass por mais tempo do que em
qualquer outro lugar.
Principalmente por causa do velho. Walt era tão irascível quanto um
urso selvagem e tão exigente quanto um sargento de treinamento, mas
isso não impedia que Sam o admirasse. Seis meses atrás, Sam havia
chegado naquela cidadezinha de Montana; seis minutos depois, já se
deparava com o xerife.
Ele não estava atrás de problemas, mas as encrencas sempre
pareciam encontrá-lo. Sua intenção fora apenas ajudar uma dama em
dificuldades, que estava sendo molestada por um bêbado e, ao fazer isso,
pisara nos pés errados. Acontece que o bêbado era amigo do xerife. Antes
mesmo que Sam soubesse disso, o xerife já descobrira tudo sobre sua
ficha na polícia e levou-o direto para a cadeia, acusando-o de conduta
ilegal e perturbação da ordem. O outro sujeito, o homem que estivera
espancando a pobre mulher, saíra livre e ileso. Então, por algum motivo
desconhecido, Walt Wheaton surgira em cena, pagando-lhe a fiança e
oferecendo-lhe um emprego. Eventualmente as acusações foram
retiradas, graças às negociações empreendidas pelo advogado de Walt.
Sam era capaz de lidar com qualquer coisa. Com a dor, o
desapontamento e os reveses da sorte. Porém, descobriu que estava
despreparado para lidar com a bondade. Isso o deixava embaraçado,
pouco à vontade. Endividado. O único motivo que o levara a aceitar o
emprego de administrador foi por estar em débito com aquele homem
simplório.
O salário não era grande coisa, mas Walt o instalara numa casinha na
propriedade, livre de aluguel. Aquela era a antiga residência do
administrador, quase em ruínas, mas ainda habitável.
No instante em que Sam pôs os pés na fazenda, compreendeu que
Walt estava com sérias dificuldades financeiras. A Flecha Quebrada
encontrava-se num estado deplorável. E tão logo Sam começou a
trabalhar uma série de eventos, misteriosos e aparentemente sem
qualquer relação, começou a ocorrer. Travessuras e vandalismos, nada
mais grave, porém assim mesmo um aborrecimento.
Walt era um patrão exigente, mas nunca exagerado. Sam trabalhava
duro e ao fim de cada dia sentia-se bem, melhor do que já se sentira em
anos. Em parte porque havia uma sensação de realização em restaurar a
ordem na fazenda quase deteriorada. E, em parte, porque o velho
precisava dele. Era simples assim.
Estava trabalhando na fazenda por quase dois meses quando, sem
mais nem menos, certa noite Walt convidou-o para jantar. Aquela foi a
primeira vez que Sam viu a fotografia da neta de Walt, Molly. Em um
porta-retratos dourado, sobre o aparelho de tevê, o instantâneo a
captara num momento que Sam só podia descrever como natural. Ela
estava de pé, com um braço em torno de cada um dos filhos; um deles, o
mais novo, sorria abertamente para ela, enquanto que o outro disfarçava
um meio sorriso. O vento desmanchava lhe os cabelos e ela sorria
timidamente para a câmera. O que Sam reparou primeiro foram os olhos
dela. Não achava que já vira olhos tão azuis. Poderia até desconfiar de
que se tratavam de lentes de contato coloridas, se não fosse pela foto de
Walt com a esposa. A outra Molly. Os olhos desta Molly tinham o tom
idêntico de azul-cobalto. Os cabelos tinham a mesma cor de um profundo
castanho-avermelhado. A neta de Walt era bonita, de um jeito até
comum. Atraente, mas não belíssima. Sam conhecera muitas mulheres
que a superavam de longe no quesito "beleza", mas gostava daquela foto.
Havia algo nela que o atraía. E sabia que Walt amava profundamente a
neta e os dois bisnetos.
Desde a breve conversa que tivera com a neta de Walt, Sam
apanhava-se pensando nela nos momentos mais estranhos. Como agora,
por exemplo. Na verdade, era bem fácil entender o porquê disso. Ele
estivera celibatário por muito tempo. O que realmente precisava era
dirigir até a cidade numa noite de sexta-feira e deixar que alguma bela e
jovem garota o levasse para casa. No entanto, era como se não
conseguisse reunir o entusiasmo suficiente para isso.
Nos seus tempos de rodeio ele até gostava de um caso passageiro,
mas no decorrer dos anos acabara perdendo o interesse no sexo pelo
sexo. Quando arrastava-se para a cama com uma mulher, não queria
preocupar-se em ter de lembrar o nome dela na manhã seguinte. Além
disso, o fato de lembrar os nomes era uma das menores preocupações,
atualmente, no que se referia a parceiros de cama. Se tivesse de optar
pela autodestruição, Sam preferia fazer isso no lombo de um touro mal-
humorado do que numa cama de molas soltas e com uma mulher sem
rosto gemendo em seu ouvido.
Depois daquele primeiro convite para jantar, Walt e Sam passaram a
fazer todas as refeições juntos. O velho cumulava-o de perguntas
rotineiramente. Algumas ele respondia, outras, ignorava. Walt dependia
dele, confiava nele, e Sam tentava viver de acordo da confiança que lhe
era conferida.
A fazenda Flecha Quebrada era uma boa gleba de terra, com pasto
abundante e um bom rebanho. Se Sam algum dia considerasse a idéia de
acomodar-se, seria num lugar como aquele. Não que tivesse condições
para isso. Em alguns dias, lutava contra a amargura. Se não fosse pelo
acidente, poderia ter tudo: fama, dinheiro e vida boa. Um touro
endiabrado pusera um fim a essas esperanças e expectativas. Mas ele
havia sobrevivido.
Naquele período, aprendera algumas coisas sobre si mesmo. Era um
sobrevivente. O destino até poderia nocauteá-lo novamente, só que na
próxima vez ele estaria preparado. Tudo o que precisava fazer era
certificar-se de que não dava a mínima para nada, ou para ninguém. Pois,
caso contrário, estaria vulnerável. Ocorreu-lhe, então, que já estava se
afei-çoando demais ao velho, e isso o preocupou.
Quando finalmente ordenou seus pensamentos e acalmou o coração
descontrolado, o despertador estava prestes a tocar.
Sam levantou da cama, fez o café e vestiu-se enquanto o sol
despontava sobre as montanhas Rochosas, formando translúcidos raios
cor-de-rosa e dourados no céu. Já se tornara um hábito, para ele, verificar
como estava Walt, antes de sair para as tarefas do dia. Meio que esperava
chegar numa manhã e descobrir que o velho morrera durante o sono. Não
que estivesse ansioso por isso mas, como Waltlhe dissera, havia tido uma
boa vida e sofrido bem poucos arrependimentos. Era assim que Sam
queria que fosse, quando sua própria vez chegasse.
A luz da cozinha estava acesa, quando entrou pela varanda dos
fundos da casa de Walt. O velho já não acordava mais tão cedo. Depois do
ataque cardíaco, e fraco como estava, passava metade do dia cochilando.
— O café está pronto — Walt falou, assim que Sam entrou na
cozinha.
Sam reparou que ele estava bem mais animado, um agradável
contraste do humor quase letárgico dos últimos tempos.
Walt fez um gesto com sua caneca na direção do bule de café.
— Não, obrigado, já tomei uma xícara.
— Sam nunca fora de muita conversa, pela manhã. Um resmungo de
vez em quando normalmente era suficiente para ambos.
— Recebi um telefonema de Molly, ontem à noite.
— Um sorriso retorcido ocupou todo o rosto de Walt.
— Parece que, no fim das contas, você vai conhecê-la e aos meninos.
— Ela vem visitá-lo? — Sam esperava sinceramente que ela fosse
inteligente o bastante para não mencionar o telefonema dele. Como lhe
dissera Walt não apreciaria a sua interferência.
— Melhor do que isso.
— Walt segurou a caneca quente entre as mãos calejadas. Os olhos
reluziam de felicidade.
— Por quanto tempo ela vai ficar?
— Para sempre — Walt disparou, como se isso fosse óbvio.
— Finalmente ela criou juízo e vendeu tudo o que podia, juntou o
restante num trailer e está vindo para cá de carro. Deverá chegar daqui a
uns quinze dias.
Sam sentou numa cadeira, devagar. Isso era algo que não havia
esperado. Cruzou as mãos, descansando-as sobre o surrado tampo da
mesa de pinho, enquanto as palavras de Walt penetravam em sua mente.
— A fazenda é dela — Walt anunciou, alegremente.
— Não há mais ninguém, além dela. Só rezo para que ela seja forte o
bastante para manter este lugar depois que eu me for.
Sam havia pensado um pouco acerca da fazenda e sobre o que seria
feito dela depois que Walt morresse. Sempre soubera que Molly herdaria
a Flecha Quebrada. Chegou até a brincar com a idéia de formar uma
sociedade com ela, continuar cuidando das terras e dividir os lucros. Faria
tudo para assegurar-se de que o acordo fosse lucrativo para ambos,
mesmo se isso significasse ter de trabalhar vinte e quatro horas por dia.
Talvez, com o tempo, pudesse economizar o suficiente para comprar toda
a gleba.
Seus planos ainda eram muito vagos, mas pela primeira vez pensava
num futuro a longo prazo. Mas tudo isso mudaria, agora. A última coisa
que a neta de Walt iria querer seria um ex-presidiário perambulando pela
fazenda. A julgar por esta notícia, seria melhor que começasse a procurar
outro emprego. Iria escrever uma ou duas cartas, naquela noite, e as
enviaria a alguns proprietários de terras, agora que sua autoconfiança
havia retornado. Havia gostado de trabalhar na Flecha Quebrada quase
tanto quanto gostava do velho ranzinza que lhe dera uma chance.
— Você não tem nada a dizer?
— Walt perguntou, encarando-o. Depois, começou a rir, num som
que mais parecia um bezerro doente engasgado.
Provavelmente, aquela era a primeira vez que Sam ouvia Walt rindo.
— O que há de tão engraçado?
— Você. — O riso de Walt foi morrendo aos poucos.
— Queria que visse sua cara, quando eu disse que Molly está vindo
para cá. Espere só para vê-la em pessoa. Se for como a avó, e ela é, logo
você estará andando por aí com a língua de fora. Aquela foto em cima do
aparelho de televisão não lhe faz justiça. Ela é muito bonita.
— Não comece a ter ideias — Sam avisou. Walt havia interpretado
mal a maneira como ele olhava para a fotografia, porém Sam não estava
disposto a corrigi-lo. Era melhor deixar que o velho se divertisse um
pouco.
— Ideias sobre o quê?
— Era óbvio que Walt estava se fazendo de tolo.
— De me juntar com sua neta.
— Ah, quem dera você tivesse essa sorte!
Sam não queria ser grosseiro, mas não estava a fim daquela conversa.
— Isso não vai acontecer.
O sorriso de Walt desapareceu e ele estreitou os olhos pálidos,
fitando Sam com uma intensidade que teria feito um homem mais fraco
estremecer.
— Duvido que ela o quisesse. Sam não iria discordar.
— Também duvido — afirmou. Pegando o chapéu no cabideiro, saiu
pela porta da cozinha.
O sol rompeu no horizonte como o braço dourado de Deus,
anunciando mais uma perfeita manhã californiana. Tom afundou-se no
assento ao lado de Molly, com os braços cruzados no peito, num gesto de
desafio. Tal postura servia para informá-la de que nada do que fizesse ou
dissesse seria capaz de apaziguá-lo pela grave injustiça que cometera, ao
afastá-lo dos amigos.
Clay, por outro lado, pulava como uma bolinha de borracha no banco
traseiro, incapaz de parar quieto. Sua ex-citação, no entanto, não parecia
ser contagiosa.
Como não conseguia enxergar pelo retrovisor, Molly olhou pelo
espelho lateral, a fim de certificar-se de que estava tudo certo com o
trailer. Não estava acostumada a dirigir com um reboque, e o trailer
alugado estava bem carregado. Tudo o que conseguira acumular nos seus
trinta e quatro anos, tudo o que não havia vendido, doado à caridade ou
dado aos amigos, estava dentro do trailer.
Embora estivesse extremamente preocupada com o avô, Molly
esperava que a viagem até Sweetgrass fosse algo divertido para os três.
Uma viagem que "ficaria na história", como sua avó costumava dizer.
Pensava nas férias de verão de sua infância, que passava na fazenda, e
como sua avó permitia que desse nomes aos bezerros, explorasse os
arredores da casa, recolhesse os ovos no galinheiro...
Aquele último ano tivera bem poucas lembranças felizes, tanto para
ela como para os meninos. Este seria um novo começo para todos eles. E
um desafio, também, afinal teriam de construir uma nova vida, um novo
lar. Poucas pessoas tinham esse tipo de oportunidade. Molly tinha toda a
intenção de fazer o melhor possível.
— Já estamos chegando? — Clay perguntou, sua cabeça pulando no
espelho retrovisor.
— Clay — o irmão resmungou, — ainda nem saímos da Califórnia.
— Não?
— Infelizmente, não — Molly concordou.
A cabeça de Clay desapareceu quando ele afundou no banco,
empurrando os pequenos ombros para frente.
— Quanto tempo ainda vai demorar?
— Dias — Tom respondeu sombrio.
Molly resistiu ao impulso de começar uma discussão com ele. Desde o
início, a atitude do filho mais velho em relação à mudança havia sido bem
pouco entusiasmada, embora ele aprovasse uma simples visita ao avô em
Montana.
Mas não para ficar lá para sempre, como lhe dissera repetidas vezes
no decorrer da semana anterior. Mal havia pronunciado uma palavra,
desde de que começaram a viagem, duas horas atrás. E, tanto quanto ela
podia dizer, continuava a culpá-la por tê-lo obrigado a pintar a parede do
ginásio da escola. Molly não sabia por que ela tinha de se sentir culpada,
quando fora ele quem pichara a parede com os símbolos da gangue.
Se precisasse de uma confirmação de que havia tomado a decisão
certa, Tom certamente a forneceu. A simples idéia de ver o filho envolvido
com uma gangue a deixava paralisada de medo. Atemorizava-se com a
atração que uma gangue poderia representar por um menino como ele,
ou para qualquer rapaz confuso, revoltado e sem um pai presente. As
gangues não eram um problema em Sweetgrass. As pessoas eram
decentes, trabalhadoras e ela não precisaria mais se preocupar com as
más influências da cidade grande.
— Já lhes falei sobre a Flecha Quebrada? — perguntou, numa
tentativa de iniciar uma conversa. Se demonstrasse uma atitude positiva,
talvez Tom começasse a pensar do mesmo jeito.
— Umas cem vezes, mais ou menos — ele murmurou, com o rosto
virado para a janela.
A paisagem se desenrolava, com as imensas sequoias e as florestas
verde-escuras, tão diferente do fértil vale do rio em Montana.
— Temos cavalos, também — Molly continuou. Pelo que se lembrava,
vovô sempre tivera um bom número de cavalos à mão. Eram cavalos
grandes, vigorosos, criados para o trabalho, e não para o lazer ou
exposições.
Tom bocejou.
— Quantos?
Molly encolheu o ombro, os olhos fixos na estrada. Interesse pensou.
Mesmo aquele pouquinho, era bem mais do que Tom havia demonstrado
desde o instante em que ela anunciara seus planos.
— E o meu boletim? — Clay perguntou, atirando-se contra o assento
da frente e enfiando a cabeça entre Tom e Molly.
— O pessoal da escola disse que irá enviá-lo pelo correio.
— Molly achou melhor não lembrar ao filho de que já respondera
aquela pergunta pelo menos dez vezes.
Eles haviam perdido as duas últimas semanas de aula, mas fizeram
todas as provas e tarefas com antecedência. Molly receava que até uma
demora de duas semanas pudesse ser demasiada, considerando o estado
de saúde de seu avô.
— Você podia ter-me perguntado se eu queria mudar.
— Tom recostou-se no banco e olhou para ela. Ao que parecia,
manter a cabeça erguida exigia mais energia do que ele era capaz de
reunir.
— E verdade — Molly admitiu relutante.
— Você tem razão. Eu devia, mesmo. — Aquele era um ponto de
conflito com Tom. Uma transgressão que ele parecia ser incapaz de
perdoar.
— Mas você não me perguntou.
— Não, não perguntei. Vovô precisa de nós agora e achei que não
podíamos recusar nossa ajuda.
Talvez tivesse cometido um erro, pensou. Não teria sido seu primeiro,
e certamente não seria o último. Mas Molly sentia que não lhe restavam
muitas opções. Além de remover Tom de um envolvimento com uma
gangue, tinha de chegar até vovô o mais depressa possível, para ficar ao
lado dele pelo tempo que lhe restava. E, desde que iria herdar a fazenda,
quanto mais cedo aprendesse sobre ela, melhor seria.
— Você está nos afastando dos nossos amigos.
— Como Eddie Ries, por exemplo?
Estava claro para Molly que Tom precisava de melhores companhias.
Preocupava-se incessantemente com seu filho e perguntava-se o que teria
acontecido com o menino agradável e prestativo que ele costumava ser. A
transformação acontecera literalmente da noite para o dia. Ele se tornara
preguiçoso, mal-humorado e irritadiço.
A princípio, Molly receou que ele estivesse usando drogas. Chegou
até ao ponto de ligar para um serviço de informações sobre drogas. Foi-
lhe dito que a melhor maneira de descobrir se seu filho estava envolvido
com drogas ilegais não seria vasculhando a mochila ou o quarto dele, à
procura de evidências. Os adolescentes eram espertos para esconder sua
parafernália, e mais ainda para convencer a família de que eram
inocentes de quaisquer atos perigosos ou proibidos. Molly suspeitava que
isso acontecia quando os pais não queriam aceitar que seus filhos haviam
sido apanhados em algo tão destrutivo e, portanto, preferiam acreditar
em qualquer coisa que eles lhes dissessem. Encarar a verdade era bem
mais doloroso, pois exigiria alguma ação.
O verdadeiro teste, segundo o folheto que lhe enviaram, era
conhecer os amigos dos filhos. Apenas um olhar para o tipo de amigos de
seu filho, ou filha, geralmente seria o suficiente.
Até o último outono, os amigos de Tom haviam sido bons meninos,
de famílias estáveis, com boas notas na escola. Molly sentia-se
relativamente tranquila, até que ele começou a andar com Eddie Ries.
Porém, mesmo então foi difícil encarar a realidade.
De acordo com o sr. Boone, o diretor da escola, a amizade de Tom
com Eddie se desenvolvera recentemente. Molly esperava que fosse
verdade.
— Vovô vai me ensinar a cavalgar?
— Clay perguntou, recostando em seu assento.
— Provavelmente não — Molly respondeu, com uma renovada
sensação de tristeza.
— Lembre-se de que ele não está bem de saúde. Não creio que ainda
faça passeios a cavalo.
— Isso vai ser uma chatice — Clay resmungou, encostando a cabeça
no vidro da janela.
Molly balançou a cabeça, perplexa.
— O quê, em nome de Deus, há de errado com vocês dois?
— Não temos nenhum amigo em Montana — Tom falou, amuado.
— Pois farão novos amigos.
Isso era algo que ela podia dizer em favor de seus meninos. Depois
de apenas uma semana, quando mudaram-se para o apartamento, eles já
conheciam todas as crianças num raio de cinco quarteirões. Nem Tom,
nem Clay, tinham quaisquer problemas em fazer novas amizades. As
crianças da fazenda estariam ansiosas em saber de tudo sobre a cidade
grande, e logo os dois meninos seriam como heróis.
— Deixem-me lhes contar sobre a fazenda — tentou novamente.
— E! — Clay exclamou, animado.
— Não estou interessado — Tom resmungou. Um sim, um não.
— Então, como vai ser? — Molly perguntou brincalhona.
— Sou eu quem dá o voto decisivo?
— Isso não é justo! — Tom queixou-se.
— Tape os ouvidos — Clay sugeriu, com uma risadinha. Tom
murmurou mais alguma coisa e virou o rosto, com uma expressão de
mártir atormentado. Tal expressão já se tornara quase artística, de tanto
que ele praticava. Molly não se recordava de sua adolescência como
sendo, nem de longe, tão traumática, e Tom tinha apenas quatorze anos.
Detestava pensar em todos os dramas que ele ainda reservava para os
anos futuros.
— No início, a Flecha Quebrada tinha mais de 15.000 acres — ela
começou. Falava com orgulho, sabendo o quanto fora difícil para vovô
vender partes de suas terras. Tudo o que restava da propriedade original
eram 2.500 acres.
— Por que a fazenda se chama Flecha Quebrada?
— Porque encontraram uma flecha quebrada ali, seu burro.
— Tom!
— Bem, é verdade, não é?
— Sim, mas não foi uma pergunta tola. Se bem me lembro, Tom, você
me perguntou a mesma coisa.
— E, mas quando eu era pequeno, ainda.
— Mais ou menos da idade de Clay, se não me engano.
— Molly realmente não se lembrava, mas usara aquilo para que Tom
parasse de implicar com irmão mais novo.
— E o tal administrador? — Clay perguntou em seguida. O
administrador da fazenda. Molly não tinha nada a dizer sobre ele. Tudo o
que sabia dele era o nome e o fato de que, aparentemente, era dedicado
ao vovô. Dedicado o bastante para se certificar de que ela soubesse de
que vovô estava doente.
Molly havia relembrado a breve conversa diversas vezes, nas duas
semanas desde o telefonema, temendo que tivesse deixado escapar
alguma informação importante. Imaginava se teria havido algo mais que
ele quisesse lhe dizer, alguma mensagem oculta por trás das palavras.
Pressentira sua urgência, aceitara a gravidade da situação. No entanto,
quando ligou para vovô na noite seguinte, ele parecia bem saudável.
Ficara encantado com as notícias, e ela desligara o telefone sentindo-se
muito animada, também.
Os pensamentos de Molly desviaram-se de Sam Dakota para as
possibilidades de arrumar um emprego. Eventualmente, teria de
encontrar um trabalho em Sweetgrass. Embora não houvesse muita
procura por uma tradutora, podia ser que a escola da cidade precisasse
de uma professora de francês ou alemão. Se tudo o mais falhasse,
tentaria pegar encomendas de outras cidades, como freelance. Talvez
pudesse dar aulas particulares. Muitas pré-escolas de San Francisco
estavam começando a fornecer cursos de idiomas para os alunos de três a
quatro anos. Ei, pensou, talvez ela até daria início a uma nova moda em
Montana!
Molly suspirou. Não queria pensar no estado precário das suas
finanças. Havia vendido tudo o que podia: móveis, louças e
eletrodomésticos. Apesar de não estar a ponto de jogar dinheiro fora
graças aos lucros das vendas, com sua magra poupança e com o último
salário que recebera teria fundos suficientes para passar os próximos dois
meses. Depois disso...
— Mamãe — Clay interrompeu seus pensamentos.
— Eu perguntei sobre o administrador da fazenda do vovô.
— O que tem ele?
— Você acha que ele pode me ensinar a cavalgar?
— Eu... eu não sei, querido.
— Por que ele faria isso? — Tom perguntou e girou os olhos, como se
mal pudesse aguentar ficar no mesmo carro com alguém tão estúpido.
— Posso pedir, não posso? — Clay choramingou.
— E claro que pode — Molly respondeu, tentando evitar mais uma
batalha verbal.
Depois de repetidos avisos, Clay finalmente prendeu o cinto de
segurança e pegou no sono, com a cabeça inclinada para o lado. Como o
ar-condicionado do carro não funcionava, Molly havia esperado evitar o
calor o mais que pudesse, saindo antes das seis da manhã. Mas os
meninos já estavam cansados e mal-humorados. Pouco depois que Clay
cochilou, Tom apoiou a cabeça contra o vidro e fechou os olhos.
O silêncio foi um alívio abençoado após duas horas de provocações
contínuas. Molly sentiu-se grata pela quietude, grata pelo seu avô e grata
a Sam Dakota, por ter ligado na hora certa.
Ainda nem conhecia o sujeito e ele já havia modificado sua vida.
Uma brisa refrescante vinha do norte. Walter Wheaton sentou na
cadeira de balanço na varanda da frente e desfrutou do ar fresco e doce
da manhã. Estava fraco, mas nem mesmo seu coração doente seria capaz
de privá-lo da excitação.
Molly e os meninos estavam a caminho. Já estavam na estrada por
dois dias, e segundo suas estimativas mais otimistas, estariam chegando
por volta do meio-dia. Walt já imaginava como o carro estaria saindo da
rodovia principal e entrando na sinuosa estrada de terra que levava à
fazenda. Quando chegassem, queria estar sentado ali mesmo na varanda,
esperando por eles. Diabos, mas como seria bom tornar a ver Molly. Seria
bom ver aqueles meninos dela, também. Ela não lhe dissera nada, mas
Walt sabia que ela se preocupava em ser uma boa mãe. O mundo era um
lugar bem diferente, agora, comparado com aquele onde ele crescera,
mas amor e disciplina ainda produziam maravilhas.
O garoto mais velho era um tanto desbocado; Walt o entreouvira,
quando falava com Molly no telefone. E o mais novo era como um
filhotinho, fazendo bagunça onde quer que estivesse. Porém, com o
tempo eles iriam aprender. Tom talvez precisasse de um pouco de ajuda
para acertar sua atitude, mas Walt sentia-se a altura da tarefa. O que o
rapaz precisava era de uma influência masculina, da orientação de um
homem. Isso e uma boa palmada no traseiro, quando merecesse!
Na cidade grande Walt corria o risco de ser denunciado, por sugerir
tal castigo. Iriam dizer que estava "abusando de crianças" e,
provavelmente, o mandariam para a cadeia. Mas ele acreditava que
abusar de crianças era ignorá-las, negligenciá-las, e não lhes dar uma boa
orientação e um bom exemplo. Estas coisas feriam mais as crianças do
que uma palmada ocasional no traseiro. O que estava acontecendo com
as pessoas de hoje? Perguntou-se.
Uma nuvem de poeira ergueu-se no fim da estradinha. Molly. Não
esperava que chegassem tão cedo. Sua Molly e seus meninos.
Walter levantou-se com cuidado, bem devagar, a fim de não
sobrecarregar o coração. Ah, meu Deus, estava ansioso em rever sua
família. Graças a Deus que Molly lhe enviara todas aquelas fotos! Se não
fosse por elas, não conseguiria reconhecer seus bisnetos.
Seus olhos já não eram mais como antes, e Walt demorou mais
tempo do que seria necessário para reconhecer que era uma caminhonete
que disparava na direção da casa, e não um carro puxando um trailer.
Outro minuto se passou, antes que ele reconhecesse sua vizinha, Ginny
Dougherty. A mulher não tinha o bom senso que Deus concedia até
mesmo a uma pedra.
Walt resmungou baixinho, irritado. Ginny era uma idiota rematada. A
viúva simplesmente não reconhecia suas limitações; era maluca o
bastante para tentar conduzir uma fazenda sozinha. Fred, seu primo
solteirão, tinha no mínimo uns sessenta anos, morava com ela e a
ajudava na fazenda. Na opinião de Walt, os dois eram como um cego
guiando o outro. E fazia questão de dizer isso a ela. Com frequência.
Ginny freou a caminhonete bruscamente, espalhando poeira por
toda parte. A porta abriu-se e ela pulou para fora tão depressa que era
como se o assento estivesse pegando fogo.
— Antes que você comece a gritar — ela disse —, sugiro que me
escute.
Walt já não tinha muita força para gritar, ultimamente, mas não
deixaria que Ginny soubesse disso.
— O que quer desta vez? — perguntou. Enlaçou o braço em torno do
pilar da varanda e recostou-se distraidamente, de forma que ela não
percebesse o quanto estava fraco.
Ginny ficou ali parada, com as mãos nos quadris. Walt examinou-a de
cima a baixo e balançou a cabeça. Uma mulher daquela idade não tinha
nada que ficar usando um macacão de brim, disso ele tinha certeza.
— Alguém destruiu sua caixa de correio — ela disse, erguendo o
queixo teimosamente na direção dele. — E, pelo jeito, foi de propósito.
Uma onda de vandalismos estivera causando estragos, nos últimos
meses. Walt não conseguia entender por quê.
— Quem faria uma coisa destas?
— Qualquer um que conheça você, Walt Wheaton. Já fez tudo o que
podia para se tornar o homem menos popular da cidade.
— Você veio até a minha casa para me insultar, mulher?
Walt esqueceu de tudo sobre poupar as forças. Ginny sempre tinha a
capacidade de irritá-lo. Desconfiava que ela fazia isso de propósito e, para
dizer a verdade, ele até que gostava daquelas escaramuças verbais.
— Não estou insultando você. Estou dizendo a verdade.
— Eu não... Não preciso... Ficar ouvindo essas coisas — ele disse, e
sentou-se lentamente na cadeira.
Ginny franziu a testa.
— Você está bem?
— E claro que sim. — Ele fechou os olhos, e a respiração tornou-se
ruidosa e ofegante. Sempre era assim que acontecia: sem nenhum aviso
prévio, ele se via incapaz de respirar. Nenhuma sensação podia ser pior.
Era como se alguém estivesse tentando estrangulá-lo.
— Walt?
Ele a descartou com um gesto de mão.
— Walt? — a voz de Ginny estava bem mais próxima, agora.
— Comprimidos — ele conseguiu dizer, ofegante. Bateu no bolso da
camisa. Sua cabeça caiu para o lado
e ele sentiu a mão de Ginny procurando o pequeno frasco marrom
do remédio. Durante todo o tempo, ela não parava de falar. Só mesmo
uma mulher, para ficar matraqueando numa hora como aquela, ele
pensou. Se seu coração não o matasse, Ginny certamente o faria.
Uma eternidade se passou antes que ela finalmente colocasse o
comprimido sob sua língua. Dois minutos depois, ele sentiu os efeitos.
Conseguiu manter-se consciente, mas somente por pura força de vontade.
Walt recusava-se a desmaiar; do contrário, Sam sem dúvida o levaria de
volta para a clínica. E se o sujeito não estivesse doente quando entrava
naquele hospital, certamente estaria quando saísse.
O Dr. Shaver quase o matara, enquanto Sam permanecera olhando
tranquilamente. Walt havia despedido Sam três vezes, nos dias que se
seguiram, mas Sam ignorara suas ordens. O problema era que aquele
administrador podia ser tão teimoso quanto o próprio Walt.
— Beba isso — Ginny enfiou um copo debaixo de seu nariz.
— O que é isso? Arsênico?
Casamento em Montana
— Água, seu velho bobo.
Como ele demorava muito para obedecer, Ginny pegou o copo e
bebeu toda a água.
— Pensei que era para mim — ele resmungou.
— Eu precisava disso mais do que você.
Ginny desabou na cadeira ao lado dele. A cadeira de balanço de
Molly. Por quarenta anos ela havia se sentado ali na varanda, todas as
noites, ao lado dele. Ficava cerzindo meias, fazendo crochê ou tricotando.
Sua esposa não acreditava em mãos ociosas. De vez em quando, ele
arrumava um jeito de lhe roubar um beijo. Jamais cansava de se admirar
em como uma mulher tão bonita e talentosa como. Molly McDougal fora
capaz de se casar com um tipo como ele. E a única tristeza dela era a de
ter-lhe dado apenas um filho.
Agora, ambos haviam partido. Adam morrera num acidente
provocado por um motorista bêbado, ainda em seus vinte anos e, depois,
a sua Molly se fora. Ele estaria se reunindo a eles em breve. Mas não
agora. Ainda havia um trabalho a ser feito. Assuntos a serem concluídos.
Acordos a serem feitos. Ele queria ter um tempo para passar com Molly e
os meninos, primeiro. Deus lhe concederia isso, Walt tinha certeza. O bom
Senhor achara por bem tirar Adam e Molly de sua vida bem cedo, e pelo
que Walt sabia, estava lhe devendo um tempo extra.
— Você me deu o maior susto da minha vida!
— Ginny gritou.
Estava balançando-se tão rápido na cadeira que quase provocou um
redemoinho.
— O que você fez com minha correspondência?
— Walt indagou, esperando mudar de assunto.
Ginny encarou-o, os olhos escuros fuzilando.
— Acabei de salvar sua vida e você só se preocupa com a maldita
correspondência?
— Mas você pegou, não é? Aposto que leu minhas cartas, também.
— E evidente que não.
Ele fez um muxoxo, incrédulo.
— Que tal me agradecer? ^— Ginny resmungou. — Se não fosse por
mim, você poderia estar morto, agora.
Walt emitiu um ruído de desgosto.
— Se soubesse que você iria ficar aí reclamando desse jeito, a morte
teria sido uma benção.
CAPÍTULO 3
Provavelmente é a maior e mais bonita casa que já vi na vida — Molly
disse aos meninos, pensativa, enquanto disparavam pela rodovia de mão
dupla.
Ansiosa por chegar logo em Sweetgrass, ela dirigia um pouco acima
da velocidade máxima permitida. Já fazia mais de meia hora que não
cruzavam com nenhum outro carro, e Molly calculou que a polícia
rodoviária teria coisas mais importantes a fazer do que preocupar-se com
uma antiga estrada rural.
— De que tamanho é a casa? — Clay perguntou.
— Tem mais cômodos do que eu podia contar — Molly respondeu,
sorrindo consigo mesma.
Quando criança achava que a casa dos avós era uma mansão. Levara
dois verões para explorar todos os três andares. A casa original havia sido
construída pouco depois da virada do século, uma construção audaciosa
para a época, com um torreão dominando o lado direito da estrutura de
madeira. Havia uma ampla varanda na frente, que fora acrescentada anos
mais tarde e de onde podia-se avistar o cercado de pastagem dos cavalos.
Uma trilha estreita de terra batida serpenteava desde a entrada da
fazenda, onde via-se uma placa assim que se saía da rodovia.
— Quer dizer que posso ter um quarto só para mim? — Tom
perguntou, dando sinal de vida pela primeira vez desde o almoço.
— Acho que há quatro, ou talvez até cinco quartos que não estão
sendo usados agora.
— Eu dormiria até no sótão e sem luz elétrica, se isso significasse que
não teria mais de dividir o quarto com Clay.
Para Tom, este havia sido o aspecto mais difícil da mudança deles
para o apartamento. Ele fora tolerante a respeito disso por algum tempo,
mas viver em tal proximidade com o irmão mais novo rapidamente se
tornara um problema.
— Minha avó cuidava da casa com todo carinho — Molly falou.
Em sua última visita, um mês depois da morte da avó, ela ficara
admirada ao ver como a casa continuava limpa e bem organizada. Molly
Wheaton costumava encerar regularmente o piso de madeira e lavava até
as paredes. Secava todas as roupas no varal e depois as passava a ferro,
dobrando tudo cuidadosamente, inclusive os panos de prato.
Por respeito à esposa, vovô sempre tirava os sapatos antes de entrar
na casa, evitando deixar um rastro de lama no piso impecável.
Todos os cômodos tinham um perfume ensolarado, com um leve
traço de limão ou pinho. Molly até era capaz de sentir aquele perfume,
agora.
— De que tamanho é o celeiro?
— Enorme.
— Isso foi o que você disse sobre a casa.
— Acho que lhe dei o nome certo, meu filho — ela disse, estendendo
a mão e desmanchando lhe os cabelos. — Tomás, aquele que duvida.
Tom afastou-lhe a mão bruscamente e ela riu, pois estava bem-
humorada demais para permitir que aquela atitude a magoasse.
Estavam a uma hora de Sweetgrass, e Molly foi invadida por uma
aguda sensação de volta ao lar. Era uma excitação que a fazia lembrar da
infância e dos dias quentes de verão, uma alegria que precisava ser
extravasada. Depois dos longos e difíceis meses do julgamento de Daniel,
os meses de luta e vergonha quando seus nomes foram arrastados por
toda mídia, este era um novo começo para todos eles. Finalmente
poderiam deixar os problemas e o passado de lado e seguir em frente.
— Há um salgueiro chorão ao lado da casa — ela disse.
— Quando eu era menina, costumava me esconder entre os galhos.
Vovô saía para me procurar, e fingia que não conseguia encontrar-me.
— A lembrança fez com que desse uma leve risada.
Seu avô podia ser um homem ríspido por fora, mas no íntimo era tão
bom e amoroso quanto um homem podia ser. Enquanto que sua avó
cumulava a única neta de atenções, acarinhando-a e mimando-a, vovô
resmungava e bufava sobre a falta de castigos e os mimos exagerados.
No entanto, fora ele quem lhe fizera uma casa de bonecas e cada um
dos pequenos móveis, esculpidos à mão. Havia demorado um inverno
inteiro para completar o projeto. Mas, ao invés de lhe dar a casinha como
um presente, guardara-a no sótão, para que Molly pensasse que estivera
ali durante anos.
Sua avó jamais permitira cães ou gatos dentro de casa, mas fora seu
avô quem contrabandeara um gatinho para dormir com ela na primeira
noite em que Molly passara longe dos pais, quando tinha seis anos. Ele
não queria que ela soubesse, porém Molly vira-o subindo as escadas na
ponta dos pés, carregando o gatinho numa cesta.
Todas as lembranças envolveram-na como o calor do sol,
confortantes e adoráveis, além de qualquer descrição.
— O vovô tem um cachorro? — Clay perguntou, excitado.
— Três ou quatro, eu acho — Molly respondeu.
Vovô costumava dar aos cachorros os nomes de personagens de
desenhos animados. Molly lembrava-se do "Mr. Magoo" e do
"Supermouse". O "Zé Colmeia" e o "Catatau" eram os seus preferidos.
Imaginava se ele continuaria com esta prática ainda agora, com os cães
mais recentes.
— Aí está!
— Molly exclamou, apontando para as duas altas vigas de madeira.
Uma tábua com o nome Flecha Quebrada, gravado com letras maiúsculas,
balançava-se numa corrente entre elas. O mesmo símbolo com que
marcavam os animais estava estampado em cada lado do nome da
fazenda.
— Não estou vendo a casa — Clay murmurou.
— Vamos ver daqui a pouco — ela prometeu.
Molly respirou fundo. Estavam na estrada por dois dias, mas parecia
o dobro do tempo. Seu coração estava pronto para a visão da casa,
pronto para absorver a riqueza de emoções que transbordava dentro
dela, sempre que recordava-se daqueles verões de sua infância.
Seu Taurus de dez anos de idade galgou a primeira colina e ela
manteve os olhos atentos à frente, sabendo que era ali que a casa
aparecia pela primeira vez. Mal podia esperar pela reação de seus filhos.
Mal podia esperar para ouvi-los ofegar de admiração e contentamento.
Mal podia esperar para lhes mostrar a casa que seria deles, dali em
diante.
Não foram Tom e Clay que ofegaram, mas sim a própria Molly. A
casa, pelo menos no lado de fora, não era em nada como ela se lembrava.
Assentava-se ali tristemente, revelando os anos de negligência e
abandono. Muitas das venezianas haviam desaparecido e as que ainda
permaneciam penduravam-se obliquamente, presas apenas por alguns
pregos. A pintura havia se desgastado e descolado, deixando grandes
retalhos de madeira ressecada. Duas das colunas da varanda haviam
apodrecido, e a cerca em torno dela tinha vários vãos, como um sorriso
desdentado. Uma lona azul-turquesa estava estendida no telhado, sobre
o lugar onde antes fora o seu quarto, provavelmente para impedir uma
goteira.
— Tem certeza de que é esta casa? — a pergunta veio de Tom.
— Não é esta... é? — As palavras de Clay pareciam sair com
dificuldade.
— A família Adams iria adorar este lugar — Tom comentou sarcástico.
Molly sentia o olhar vigilante dos filhos, mas estava sem fala, sem
saber o que dizer.
— Vamos ficar parados aqui? — Clay perguntou.
Ela nem se dera conta de que havia parado. Endireitou os ombros e
obrigou-se a engolir o desapontamento. Tudo bem, então a casa não
estava exatamente do jeito que se recordava. Iria providenciar
pessoalmente uma boa reforma e manutenção. Era responsabilidade sua,
agora. Suas mãos apertaram o volante com força, quando um novo
pensamento lhe ocorreu. Se o exterior da casa estava tão ruim, nem
podia imaginar como estaria a parte de dentro.
— Não podemos esquecer que vovô está doente — ela disse, mais
para convencer a si mesma do que às crianças.
— Ele não tem conseguido tomar conta das coisas. E por isso que
estamos aqui, lembram-se?
— Esse lugar é um lixo.
— Thomas, pare com isso! — Ela não iria suportar aquilo, não,
naquele momento. — Esta é a sua casa.
— Estávamos melhor no apartamento.
Os dedos de Molly chegaram a doer, de tanta pressão que fazia no
volante.
— Ela vai ficar tão bonita como era antes, em pouco tempo —
afirmou enfática, desafiando os meninos a contradizê-la.
Talvez eles tivessem reconhecido a determinação na voz dela, ou
estavam cansados demais para discutir, pois ficaram em silêncio.
Molly quase esperava que vovô estivesse na varanda esperando por
eles quando chegassem, e ficou desapontada quando não o avistou.
Parou o carro nos fundos da casa, perto do celeiro onde vovô
normalmente estacionava os veículos. Dois cachorros, um deles uma
fêmea imensamente grávida, começaram a latir com fúria.
Ela desligou o motor e um homem surgiu por entre as sombras do
celeiro. Ele tirou o chapéu e esfregou o antebraço pela testa, depois
parou para observá-la.
Aquele só podia ser Sam Dakota. O administrador da fazenda. Os
meninos pularam para fora do carro, desejosos de escapar do
confinamento. Era óbvio que ambos estavam ansiosos por explorar as
redondezas, mas ficaram perto do carro, esperando por ela. No instante
em que saiu pela porta, Clay ajoelhou-se e começou a brincar com a
cadela grávida, afagando-a com afeto. O outro cachorro continuava seu
latido agudo e incessante.
Molly preocupava-se com o fato de ainda não ter visto seu avô.
Imediatamente sentiu o medo de ter chegado tarde demais e que seu avô
já houvesse morrido. Sam não teria meios de comunicar-se com ela,
enquanto estava na estrada. Fora uma tolice não ter ligado do hotel, só
para se certificar...
Tão rápido quanto a ideia penetrou em sua mente, Molly tratou de
afastá-la, recusando-se a acreditar que qualquer coisa pudesse ter
acontecido a vovô. Ainda não! Abriu a porta do carro e saiu para o sol da
tarde.
Sam encaminhou-se em sua direção, o que deu a ela amplas
oportunidades de avaliar sua aparência. Depois daquele primeiro relance,
quando ele removera brevemente o Stetson, não pôde ver muito bem os
traços de seu rosto, que estiveram ocultos sob a sombra do chapéu. A
impressão de traços rigidamente delineados foi a que permaneceu em sua
mente, de um rosto forte e bem definido. Ele era alto e esguio,
extremamente másculo.
Se as roupas dele fossem alguma indicação, o fato era que não se
envergonhava do trabalho duro. O jeans era velho, desbotado pela
lavagem constante. A camisa colorida, com as mangas enroladas até os
cotovelos, já vira dias melhores. Ele tirou a luva direita e, mesmo daquela
distância, Molly podia ver que estavam gastas e ressequidas.
— Você deve ser Sam Dakota —' ela disse, tomando a iniciativa.
Adiantou-se e estendeu-lhe a mão. Ele a cumprimentou com firmeza, e
soltou-a rapidamente.
— Eu sou Molly Cogan, e estes são meus filhos, Tom e Clay. Onde
está vovô?
— Descansando. Ele achou que vocês chegariam mais cedo. Esperou a
manhã inteira por vocês. -— A censura na voz ríspida era inequívoca.
Molly enrijeceu involuntariamente. Clay aproximou-se e ela passou o
braço em torno do pescoço dele, apertando-o um pouco contra si.
— E como ele está se sentindo? — perguntou, decidindo ignorar o
tom de voz do administrador.
— Não muito bem. Teve outro mal-estar, esta manhã. Molly franziu a
testa, preocupada.
— Você o levou para a clínica? Ele não devia estar no hospital?
— E o que eu acho, mas Walt não quer nem ouvir falar nisso. Nem
vinte mulas conseguiriam levantar aquele traseiro teimoso da cadeira.
Molly sorriu de leve.
— Minha avó era a única pessoa que conseguia fazê-lo mudar de
idéia, e isso acontecia apenas porque ele a amava muito.
Um sorriso de resposta reluziu nos olhos dele.
— Infelizmente, ele não sente o mesmo por mim — Sam murmurou, e
depois voltou a atenção para Tom e Clay. — Vocês não estão com sede?
Tem uma jarra de limonada na geladeira. — Sem esperar resposta, seguiu
na direção da casa.
Com um misto de alegria e temor, Molly foi atrás dele. Fez uma pausa
ao entrar na cozinha, estava ainda pior do que ela havia imaginado O
cômodo que antes fora tão limpo e impecável agora estava sujo e
mergulhado numa bagunça total. Pratos sujos de uma semana
amontoavam-se na pia. Os balcões, ou pelo menos no que se podia ver
deles, estavam repletos de pilhas de jornais velhos, montes de
correspondências e quase tudo o mais, parecendo que não passavam por
uma limpeza havia semanas. As janelas estavam imundas, Molly tinha
certeza de que não eram lavadas há anos, e as cortinas desbotadas
estavam tão finas quanto lenços de papel.
Molly não era nem de longe uma dona de casa tão meticulosa
quanto fora a sua avó; trabalhando fora, tinha tempo para limpar a casa
apenas uma vez por semana. Ainda assim, tinha seus padrões e aquela
casa estava bem abaixo deles.
— Só tem limonada? — Tom perguntou, quando Sam pegou três
copos no armário da cozinha. Molly ficou surpresa ao ver que ainda
restavam alguns pratos limpos. — Não tem uma Pepsi, ou Coca? Nada? —
Tom resmungou.
— Temos água — Sam sugeriu, depois piscou para Clay, que não teve
problemas em aceitar o refresco caseiro.
Tom enviou um olhar de desgosto à mãe e pegou o copo de
limonada, como se estivesse fazendo um grande favor a todos eles.
— Seu avô está dormindo na sala de estar — Sam informou, saindo
da cozinha.
Molly não precisava de um guia para encontrar a sala, mas não disse
nada. Sem querer assustar vovô, entrou na sala na ponta dos pés.
Ficou parada por um momento, observando-o. Ele estava recostado
na poltrona, com as pernas estendidas, roncando levemente. Mesmo
dormindo, parecia velho e frágil, bem diferente do homem robusto que
fora apenas dez anos atrás.
Molly precisou de uma boa dose de orgulho e determinação para
evitar que seus olhos se enchessem de lágrimas. Seu coração enchia-se de
amor por aquele homem que representava seu último laço com seu pai,
de quem ela mal se lembrava. Era tão pequena quando seu pai morrera,
tinha somente seis anos. Todo o seu mundo desabara no dia daquele
acidente de carro, e até hoje ela sentia saudade. Sua mãe tornara a se
casar menos de um ano depois, e Molly ganhara um irmãozinho no ano
seguinte. E no verão em que ela se formara no colégio, sua mãe, seu
padrasto e o meio-irmão imigraram para a Austrália.
Ajoelhando-se ao lado da poltrona, Molly afastou delicadamente os
cabelos brancos da testa de vovô. Levada por uma necessidade de tocá-lo,
de sentir uma conexão física, deixou que a mão se demorasse ali.
— Vovô — sussurrou, tão baixo que nem mesmo ouviu a própria voz.
Nenhuma reação.
Com ternura, Molly pousou a mão sobre a dele.
— Estamos aqui, vovô.
Os olhos dele abriram-se, hesitantes.
— Molly, minha menina — ele murmurou, estendendo a mão para
acariciar lhe o rosto. — Finalmente chegou. Veio para ficar?
— Vim para ficar — ela assegurou-lhe.
O sorriso surgiu primeiro nos olhos dele, antes de alcançar os lábios.
— Por que demorou tanto? — indagou, no tom ríspido tão
conhecido.
— Teimosia. Orgulho — ela respondeu, e beijou-lhe a face
ressequida.
— Não posso imaginar de quem herdei essas coisas.
Vovô riu baixinho, olhando por cima do ombro dela.
— Onde estão os seus meninos? Fiquei esperando o dia inteiro por
isso, e sem nenhuma paciência, também.
Tom e Clay entraram na sala. Tom mantinha os braços cruzados no
peito e um ar de desdém no rosto. Retardava-se atrás de Clay, que exibia
um largo sorriso, incapaz de ficar parado no lugar.
— Oi, vovô!
O cumprimento exuberante de Clay foi seguido por um "Oi" relutante
de Tom.
Walt analisou os meninos pelo que pareceu um longo tempo, antes
de assentir com a cabeça. Foi então que Molly reparou no brilho das
lágrimas nos olhos cansados do avô. Ele endireitou-se na poltrona e
pousou as mãos nós joelhos.
— Você fez um bom trabalho criando esses meninos, Molly. Um
trabalho muito bom, mesmo.
— E ela? — Lance sussurrou, espiando do beco entre a cafeteria e a
loja de ferragens. Fez um gesto de cabeça na direção de Molly Cogan.
Ela saiu do banco de Sweetgrass, erguendo os olhos para o homem
que a acompanhava. Ele usava um chapéu Stetson e andava como um
vaqueiro.
O olhar de Monroe seguiu o de seu companheiro Legalista até o
outro lado da rua. Ficou surpreso ao ver que um velho rabugento como o
Wheaton tinha uma neta tão bonita. Pelo que sabia, ela estava divorciada
há muitos anos. Uma mulher que passara tanto tempo sem um marido
certamente iria apreciar um pouco de atenção do tipo certo de homem. Já
ouvira dizer que as ruivas podiam ser realmente selvagens na cama.
Afastou rapidamente o pensamento. Seria um erro misturar negócios
e prazer. E poderia acabar sendo um erro muito caro. Mas, assim que o
assunto da faz;enda estivesse resolvido, ele poderia mostrar a ela a
diferença entre um homem de Montana e um garoto da cidade.
Ah, sim. Monroe ouvira muitas coisas sobre os homens da Califórnia,
especialmente os de San Francisco. Aqueles almofadinhas com certeza
não sabiam o que fazer com uma mulher. Ao que parecia, apaixonavam-
se uns pelos outros, se é que alguém pode imaginar uma coisa dessas!
Todo aquele maldito país iria acabar indo direto para o inferno, mas não
se ele pudesse evitar.
Era para isso que existiam os Legalistas, um grupo de milícia que
existia por mais ou menos dez. anos. Na última reunião, mais de cem
homens lotaram o ponto de encontro secreto, a fim de demonstrar seu
apoio às mudanças que ele e outros Legalistas estavam planejando
executar. E claro que alguns sujeitos, que não sabiam de nada, faziam
objeções à causa. Como Walt Wheaton, por exemplo. O maldito velho era
mais teimoso que uma mula. Monroe havia feito tudo o que podia para
convencê-lo a vender a fazenda. Com sutileza, evidentemente. Guardar
sua própria identidade e sua posição de poder na organização era
essencial. Apenas os Legalistas conheciam-no como Monroe e, embora ele
tivesse comparecido na última reunião, ninguém em Sweetgrass tinha
ideia do quão profundamente envolvido ele estava com a milícia. Seu
disfarce era útil e importante demais aos propósitos dos Legalistas, para
ser revelado.
Depois de uma análise cuidadosa dos possíveis locais para os campos
de treinamento, o grupo decidiu que a propriedade do velho Wheaton
tinha a localização ideal. Mas Walt Wheaton permanecera inflexível.
Como gerente dó banco, Dave Burns encontrava-se numa posição de fazê-
lo comer o pão que o diabo amassou, mas isso não havia funcionado.
Quando as coisas não deram certo, o líder dos Legalistas enviara Lance
para ajudá-los. Monroe não gostava muito de Lance, mas guardava suas
opiniões consigo mesmo.
Num derradeiro esforço para manter a violência fora do cenário, não
que ele se opusesse ao uso da força, quando necessário, Monroe havia
convencido as autoridades do grupo a lhe dar uma última chance de
convencer o velho fazendeiro. Detestaria ver um imprudente, como o
idiota do Lance, receber todo o crédito por obter a propriedade, quando
ele próprio poderia finalizar o acordo... com um pouco de ajuda, é claro.
E foi então que ele pressionou um primo seu, em terceiro grau, para
fazer uma oferta irrecusável ao velho Wheaton. Agora que a neta de Walt
estava na cidade, talvez finalmente pudessem fazer algum avanço. A
fazenda estava praticamente afundando, graças a Burns, que recusara
novos empréstimos a Wheaton e cobrara aqueles que ele já devia.
— Quanto tempo de vida o velho ainda tem?
— Lance perguntou, interrompendo seus pensamentos.
— Não muito — Monroe respondeu, num suspiro.
Se fosse necessário, deixaria que Lance desse a Wheaton um bom
empurrão para a eternidade, mas isso era algo que preferia evitar.
Provocaria muita confusão. E a última coisa que os Legalistas precisavam
era de um bando de policiais e repórteres olhando na direção deles.
— Quem é o sujeito que está com ela?
— Sam Dakota — Monroe respondeu, com um risinho abafado de
desprezo diante da postura protetora que administrador adquiria ao lado
da mulher.
Podia ver claramente o jogo daqueles dois. Sam iria querer a garota
para si, mas Monroe não deixaria que isso acontecesse. Dakota era um ex-
presidiário e, assim que o velho Wheaton descobrisse sem dúvida lhe
mostraria o olho da rua. E bem depressa, pelo que conhecia de Walt
Wheaton.
— Ele vai nos criar problemas?
— E bem pouco provável. — Dakota não saberia o significado de
palavra "problema" até a hora em que se enredasse com os Legalistas.
Monroe tinha de admitir que o administrador era um problema, mas não
esperava que Sam continuasse por ali por muito mais tempo.
— Pensei que você havia dito que teríamos as terras de Wheaton em
breve.
— Lance resmungou.
Monroe franziu a testa.
— Isso leva tempo.
— Tem certeza de que o velho não sabe de nada?
— Tenho, sim. — A paciência de Monroe estava se esgotando. O
sujeito mais novo não tinha nada que ficar questionando-o, e deixou bem
claro o seu desagrado enviando-lhe um olhar duro e penetrante.
— Posso convencê-lo a vender dentro de uma semana, se você me
deixar.
— Lance murmurou.
— Vamos fazer isso do meu jeito — Monroe retrucou por entre os
dentes.
A necessidade de manter a discrição era fundamental para a
sobrevivência do grupo. O governo, especialmente o FBI, faria de tudo
para deter o movimento militar. Bastava dar uma olhada em Ruby Ridge e
Waco, e logo se percebia como os federais haviam se tornado corruptos.
Bem, mas tudo isso estava prestes a mudar.
— Eu não vou fazer nada estúpido — Lance assegurou-lhe.
— Ótimo.
Mesmo contra a vontade, Monroe apanhou-se observando Molly
Cogan novamente. A calça jeans que ela usava ajustava-se lindamente no
traseiro. Não tão apertada a ponto de despertar olhares, mas tampouco
tão larga que disfarçasse o fato de que ela era uma bela mulher. E só a
maneira como ela andava provava que era de fato uma Wheaton.
Orgulhosa como o diabo e, se fosse parecida com o avô, teimosa também.
— É bem bonita, isso eu posso dizer em favor dela.
— Não comece a ter ideias — Monroe falou, esforçando-se para
conter a irritação. — Já temos mais complicações do que precisamos.
— Tudo bem, tudo bem. Mas então me deixe visitar uma das
meninas, e logo. Já sou um rapaz crescidinho, se é que você me entende.
O garoto podia julgar-se muito esperto, mas Monroe não achou a
menor graça. Uma grande parte do apoio financeiro dos Legalistas vinha
da rede de prostituição que envolvia todo o Estado. O dinheiro que lhes
forneciam era vital para a organização, porém não seria suficiente se os
jovens garanhões como Lance e seu amigo Tavis continuassem "servindo-
se dos doces" o tempo todo. Ele próprio era culpado de aproveitar-se,
porém considerava Pearl e mais outras duas garotas como benefícios
adicionais. Calculava que ele tinha muito mais direito a elas do que Lance.
— Fique fora da cidade até segunda ordem — Monroe instruiu o
rapaz.
Lance franziu a testa.
— Você ouviu o que eu disse, não é?
— Monroe sabia que Lance costumava vir para a cidade às
escondidas. Era melhor que o garoto entendesse de uma vez que ele
tinha meios de saber de tudo o que fazia e para onde ia, quando estava
ali.
— Ouvi, sim — Lance murmurou.
— Ótimo.
Monroe despachou Lance e esperou o bastante para se certificar de
que ele pegara a rodovia para fora de Sweetgrass. Depois entrou em seu
carro, que estava quente como um forno. Ele próprio também estava
quente, em outro sentido, e culpou a neta de Wheaton por isso. Estava
na hora de fazer uma visitinha a Pearl, provavelmente ela estava sentindo
sua falta. Dirigiu por várias ruas e parou perto do parque comunitário.
Não precisava anunciar a todos para onde estava indo, deixando o carro
diante da casa.
Cortou caminho pelo beco e atravessou o quintal de Pearl, depois
entrou pela cozinha. Não se deu ao trabalho de bater na porta.
Ainda de roupão, Pearl surgiu no corredor. Parecia surpresa ao vê-lo.
Meio-dia, e ela ainda não estava vestida, Monroe pensou. Não que
estivesse reclamando. Isso lhe pouparia o tempo.
— O que está fazendo aqui? — ela indagou, pousando as mãos nos
quadris. O gesto fez com que a frente do roupão se abrisse, oferecendo
uma visão tentadora dos seus seios.
— Adivinhe — ele respondeu, com um risinho. Foi abrindo a fivela do
cinto, sem disposição para joguinhos preliminares.
O ar de bravata desapareceu rapidamente do rosto dela, enquanto se
afastava.
— Nosso acordo era uma vez por mês — disse.
— Não me lembro disso.
Pearl devia ter sido bem bonita um dia, mas tantos anos naquela
"vida" haviam estragado o que quer que ela tivesse de atraente. A
maquiagem estava pesada em seu rosto, muito diferente da de Molly
Cogan. Monroe franziu a testa, ao pensar na neta do velho bastardo.
— Eu... Eu não quero que você me amarre, desta vez. — A voz de
Pearl tremia um pouco.
Ele gostava disso. O medo na medida certa, o bastante para deixá-la
disposta a fazer coisas que talvez não fizesse com outros fregueses. Mas
ele não era como os outros. Os Legalistas eram os donos de Pearl e ela
estava ali para lhes satisfazer as vontades, por bem ou por mal.
Vovô havia insistido para que Sam a acompanhasse até Sweetgrass, e
embora Molly não visse razão para isso, achou melhor concordar. Os
meninos estavam interessados demais em explorar a casa e tirar seus
pertences das malas para incomodarem-se em vagar pela cidade. Assim,
Molly os deixara com vovô.
Na verdade, esperava aproveitar aqueles momentos a sós com Sam
para descobrir tudo o que pudesse sobre a saúde de seu avô. Ele lhe
parecera pálido e distraído, naquela manhã, apesar de ter tentado ocultar
isso da neta.
A velha caminhonete de vovô devia ter, no mínimo, uns vinte e cinco
anos. Molly lembrava-se dela de quando era criança. O piso no lado do
passageiro estava todo enferrujado, e ela tinha de tomar cuidado onde
pousar os pés.
A viagem iniciou-se num silêncio bastante descontraído. De vez em
quando ela olhava para Sam, mas ele mantinha o olhar cuidadosamente
fixo na estrada.
Molly foi a primeira a falar:
— Você é dessas redondezas?
— Não.
— De Montana?
— Não.
— Em que outros lugares você trabalhou como administrador? — ela
indagou, tentando uma tática diferente.
— Eu não era administrador.
— Nunca foi?
— Nunca — ele repetiu.
E nisso se limitou toda a conversa. Nos quarenta minutos do trajeto
até Sweetgrass, Sam não respondia com palavras de mais de duas sílabas.
Juntar mais do que um par de palavras parecia ser uma tarefa muito além
de sua capacidade.
Molly tivera a esperança de conversar com ele, conhecê-lo um pouco
melhor antes de dar início às perguntas relativas ao estado de saúde de
seu avô. Porém, não importava como ela se aproximava, Sam Dakota
permanecia de boca fechada e pouco disposto a cooperar.
Molly desistiu do esforço assim que avistaram a cidade.
— Puxa vida... — murmurou.
Se a fazenda Flecha Quebrada havia mudado em nove anos, a
cidadezinha de Sweetgrass não mudara nada. A rua Principal parecia ter
sido presa nas malhas do tempo. O bazar de miudezas Foley's, com a
desbotada placa vermelha, continuava na esquina das ruas Principal e
Maple. A avó de Molly costumava levá-la naquela loja quando era criança,
para que ela pudesse ver os peixinhos vermelhos no grande aquário. Os
hamsters, em suas gaiolinhas cheias de artefatos, também a deixavam
encantada. Além de filhotes, a loja vendia todo tipo de bugigangas e
souvenirs de gosto duvidoso, para qualquer turista desavisado que
tivesse a má sorte de passar por ali. Não que existisse um grande afluxo
de turistas no local. Em retrospecto, Molly concluiu que a Foley’s
continuava funcionando apenas graças aos doces que ficavam expostos
nos balcões envidraçados.
O grande painel do banco, que exibia alternadamente a hora e a
temperatura, ficava bem em frente da Foley’s, no outro lado da rua. A
Farmácia Sweetgrass e o salão de barbeiro eram vizinhos ao banco. Molly
perguntou-se se o barbeiro cantor teria se aposentado. Conforme se
recordava, ele fazia uma excelente imitação de Elvis Presley.
A sorveteria, com as cadeiras de vime pintadas de branco, continuava
exatamente como ela se lembrava.
Sam olhou para ela.
— Tudo está como antes — Molly falou.
— Tudo muda — ele disse, sem qualquer emoção.
— As aparências podem ser traiçoeiras, portanto não se deixe
enganar.
— Estacionou a caminhonete numa vaga e desligou o motor.
— Preciso ir ao banco — ela disse, olhando para o grande prédio de
tijolos vermelhos.
Dali, teria de ir ao supermercado comprar mantimentos. O
Supermercado Safeway ficava a cerca de seis quarteirões de distância. Um
semáforo suspenso balançou suavemente com a brisa, entre as ruas
Principal e Chestnut. Durante algum tempo, aquele havia sido o único
semáforo de todo o condado. Porém, cinco anos atrás, a cidade de
Jordanville, a quarenta quilômetros ao leste, também instalara um sinal
de trânsito, roubando a exclusividade de Sweetgrass. Vovô aceitara mal
aquela notícia e lhe escrevera uma carta queixando-se amargamente das
mudanças em Montana. Havia gente demais, ele reclamara.
Sem olhar para ela, Sam acrescentou:
— Tenho de pegar alguns suprimentos para a fazenda.
Ele não se mostrava pouco amigável, mas também não fizera o
menor esforço para que ela se sentisse bem-vinda. Molly não tinha ideia
do que fizera, ou do que deixara de fazer, para provocar tal... Frieza na
atitude dele. Naquela manhã ele parecera neutro, porém a neutralidade
tinha, definitivamente, se transformado em frieza.
— Encontro você no banco, depois que terminar minhas coisas — ele
disse.
Molly desceu da caminhonete e ajeitou as alças da bolsa no ombro.
Sam foi andando ao lado dela até chegarem ao banco, e depois
atravessou a rua. Enquanto abria as pesadas portas de vidro, ela teve um
relance dele observando-a. E foi uma sensação desconfortável.
Embora a parte de fora do banco estivesse relativamente inalterada,
o interior havia sido reformado. Os balcões de madeira encerada haviam
desaparecido, e exceto pelo piso de mármore do saguão, todo o restante
fora carpetado.
Molly dirigiu-se para a mesa com o sinal indicativo de "Abertura de
Contas".
— Olá — disse, sentando-se numa cadeira.
— Oi! — A mulher, cuja plaqueta sobre a mesa dizia chamar-se Cheryl
Ripple, saudou-a com um sorriso cordial.
— Sou Molly Cogan — ela disse, apresentando-se. — Walt Wheaton é
o meu avô.
O sorriso de Cheryl desapareceu no mesmo instante e ela levantou-se
abruptamente. Quase como se não tivesse tempo suficiente para fugir,
Molly pensou.
— Espere só um momento, por favor — disse a mulher. Correu para o
escritório do gerente e, no instante seguinte, um homem de meia idade e
aparência distinta apareceu.
— Sra. Cogan? — ele falou, aproximando-se dela com as mãos
firmemente cruzadas. — Meu nome é David Burns. Há algum problema?
Molly pestanejou, reparando no terno bem cortado e nos sapatos
engraxados.
— Não. Deveria haver?
David Burns emitiu um risinho nervoso.
— Não exatamente. E que seu avô já... bem, digamos que ele já
desafiou a integridade desta instituição bancária por diversas vezes. Vim
apenas me certificar de que não há nenhum problema com a conta dele.
Novamente.
— Que eu saiba, não. — disse Molly, perguntando-se o que seu avô
teria feito ou dito, para provocar tanta preocupação. Mas, pensando bem,
ela não queria realmente saber. — Na verdade, eu vim abrir minha
própria conta.
— Sua conta? — O alívio dele era evidente. — Ah, isso é ótimo.
— Estou morando com meu avô, agora.
— Entendo. Bem-vinda a Sweetgrass. Cheryl terá todo prazer em
atendê-la.
— Burns deu alguns passinhos para trás, antes de virar-se na direção
de seu escritório.
Dez minutos depois Molly havia assinado todos os documentos e
recebido um talão de cheques.
Quando estava pronta para sair, reparou num homem atraente que
estava parado no saguão, olhando para ela. Quando seus olhares se
cruzaram ele sorriu e fez um gesto de cabeça, como se a conhecesse. Mas
ela não o conhecia. Momentos depois, ele aproximou-se.
— Molly Cogan?
Ela assentiu, franzindo a testa, certa de que não o reconhecia. Era um
rosto do qual se lembraria, sem dúvida. Bonito, de olhos azuis, com um ar
de menino. Os cabelos loiros estavam revoltos, como se ele tivesse se
esquecido de penteá-los. E era alto, talvez mais do que um metro e
oitenta.
— Meu nome é Russell Letson — ele disse, dando um passo em sua
direção, com a mão estendida.
Não havia aliança de casamento, Molly reparou automaticamente. Os
olhos dele desviaram dos seus e ela percebeu que, na verdade, ele um
pouco tímido. Isso era algo que não havia esperado encontrar entre os
tipos rudes e "durões" de vaqueiros, que geralmente associava com
Montana.
Trocaram um aperto de mão, enquanto Molly tentava se lembrar de
onde ouvira aquele nome antes.
— Sou o advogado de seu avô — ele explicou.
A carta de vovô. Era por isso que achara o nome conhecido. Seu avô
o mencionara quando lhe dissera que havia atualizado o testamento.
— Será que tem tempo para tomarmos um café? — ele perguntou,
consultando o relógio de pulso. — Tenho uma hora de folga antes do meu
próximo compromisso, e há um assunto que gostaria de discutir com
você. — Parecia ligeiramente tenso, ao falar sobre isso.
Molly imaginou o que ele teria para discutir com ela, e não pôde
evitar de sentir-se curiosa e, para sua surpresa, tentada. Russell Letson
era um dos homens mais atraentes que vira nos últimos tempos, e o que
a deixava admirada era o fato de que ele não parecia dar-se conta disso.
Russell acrescentou:
— Não vou lhe tomar muito tempo.
Justamente quando Molly estava prestes a aceitar o convite, Sam
entrou no banco, provocando-lhe uma pontinha de desapontamento.
— Infelizmente, hoje não será possível.
— Um jantar, então? — ele sugeriu. — Amanhã à noite, se estiver
bem para você.
— Eu... — Atônita demais para responder, Molly ficou parada no
meio do banco, com a boca entreaberta, enquanto lutava para encontrar
uma resposta, Um encontro. Nem podia se lembrar da última vez em que
um homem, atraente e solteiro, a convidara para jantar.
— Não sei se Walter lhe disse, mas agora temos uma churrascaria
muito boa em Sweetgrass. Poderíamos conversar, então.
— É claro — ela disse, antes de conseguir encontrar uma desculpa
conveniente. — Vai ser ótimo.
Ele marcou a hora para o jantar e disse que iria buscá-la na fazenda,
embora ficasse fora de seu trajeto. Bonito e gentil, ainda por cima.
Poderia até começar a gostar de Russell Letson, Molly concluiu. Era um
contraste agradável com aquele administrador mal-humorado que a
levara para a cidade.
— Então nos vemos amanhã à noite — Russell falou,
cumprimentando-a antes de sair do banco.
Tudo acontecera tão depressa que a cabeça de Molly girava.
Encaminhou-se para Sam, que estava à sua espera recostado na parede
do saguão.
— O que foi aquilo? — ele perguntou, com um ar de desdém.
Depois do tratamento de silêncio que ele lhe proporcionara por todo
o caminho até a cidade, ela não estava disposta a responder.
— Nada de mais.
— Você vai deixar que Letson a leve para jantar. Se ele já sabia, por
que lhe perguntou?
— Por acaso vou, sim — Molly respondeu, adorando a sensação de
satisfação que a invadiu, ao informá-lo de que tinha um encontro.
CAPÍTULO 4
Era bom estar ali na varanda, sentado na cadeira de balanço e
entalhando a madeira, Walt Wheaton refletiu. Os filhos de Molly estavam
sentados no degrau da escada, lixando duas peças que ele havia
esculpido em madeira canário. A madeira amarelada era uma de suas
preferidas. Havia pelo menos seis meses que não entalhava nenhuma
peça, mas a presença de Molly e dos meninos tinha renovado suas
energias. Alegrado seu coração. Ultimamente nem sempre sabia direito
em que dia da semana estavam, porém isso não importava. Não agora,
que Molly e os garotos estavam ali, no lugar a que pertenciam.
Não lhe exigiria muito esforço fazer de conta que era seu filho Adam
quem estava sentado na escada, quarenta e poucos anos atrás, com um
amigo da escola. Ou imaginar que sua Molly estivesse na cozinha,
preparando o jantar.
Os dedos de Walt moviam com habilidade a faquinha afiada sobre a
madeira, removendo uma lasca de cada vez, removendo tudo o que não
fosse o urso. Escolhera o carvalho para aquela peça, e o urso escuro
ficaria de pé, com cerca de 15 centímetros de altura. Pretendia dá-lo de
presente a Tom. O garoto o fazia pensar num jovem urso, lutando para
provar a própria masculinidade, todo braços, pernas e pés. Lembrou-se de
si mesmo naquela idade, quando sua voz oscilava entre duas oitavas. Ele
havia sido alto e magro como Tom, com as pernas parecendo duas estacas
de madeira e o tronco quase inexistente.
Walt brincou com a ideia de dizer alguma coisa ao bisneto.
Queria assegurar ao garoto que em pouco tempo seu corpo se
transformaria no de um homem, mas receava deixá-lo embaraçado.
Os três continuaram trabalhando num silêncio confortável. Walt
ansiava por compartilhar as histórias de sua juventude com dois meninos,
mas apenas falar já lhe esgotava as energias. Ao diabo com isso, decidiu.
Deus lhe dera a oportunidade de passar algum tempo com aqueles
garotos, e ele iria aproveitá-la.
— Os ursos comem árvores, vocês sabem — disse, casualmente.
Tom olhou para cima.
— Arvores? Tem certeza, vovô?
O filho mais velho de Molly tinha uma natureza cética; Walt gostava
disso. Não lhe agradaria a ideia de um parente seu estar aceitando
qualquer coisa ou qualquer pessoa sem questionar. Desconfiava que a
neta talvez fosse do tipo que se deixa convencer com mais facilidade,
porém o filho dela não seria assim. Ficava mais tranquilo ao ver que o
menino revelava possuir um antiquado bom senso, uma virtude
escandalosamente rara nos dias atuais. Como aquele grupo de milícia, por
exemplo. Ele havia batido de frente com eles por mais de uma vez, nos
últimos anos. Embora Walt não concordasse plenamente com tudo o que
o governo fazia, era certo que não acreditava nas loucas afirmações
daquele grupo de que tropas estrangeiras planejavam invadir o país, com
a ajuda do governo federal. Aquilo era tão absurdo quanto as outras
idéias que eles tinham, como achar que chips de computadores haviam
sido implantados nos cérebros das pessoas, para que o governo pudesse
controlar todas as suas atividades. Ele jamais ouvira tanta bobagem em
toda sua vida, e rangia os dentes de raiva sempre que pensava nas
pessoas decentes que acreditavam em tais loucuras.
— Vovô?
A voz de Tom despertou-o dos pensamentos. Walt tinha uma certa
dificuldade em manter a mente nos trilhos, nos últimos tempos.
— O que é, filho?
— Isso é verdade?
Ele franziu a testa. Sobre o que o menino estaria falando? Sobre as
ideias paranoicas do grupo de milícia, talvez? Não era isso que estavam
conversando?
— E claro que não é verdade — respondeu ríspido. Aquela tolice
sobre chips de computador era tão idiota quanto as supostas visões de
helicópteros estrangeiros sobrevoando o país e fazendo disparos do céu.
— Sempre questione tudo, meu filho, ouviu bem?
Tom assentiu e continuou lixando.
Com seu coração fraco como estava Walt não sabia por quanto
tempo ainda ficaria por ali. Gostava de imaginar que teria tempo de
contar a Tom e Clay sobre a vida durante a Grande Depressão. E sobre a
guerra. As crianças de hoje não sabiam o significado da adversidade e
privações, não como a sua geração.
— Vovô? — Clay olhava para ele, em expectativa. — Mas o senhor
disse que os ursos comem árvores. Então não é verdade?
Ah, sim.- Era isso, sobre isso que estavam falando. Sobre ursos.
— Eles comem as cascas das árvores — explicou, sua mente trilhando
os desvios sinuosos de épocas há muito passadas. Arquivou as histórias
sobre a Depressão a fim de explicar o que sabia sobre os ursos.
— Eles arrancam a casca da árvore com as garras. Sem a casca, a
árvore morre. Desta forma, sim, pode-se dizer que os ursos comem
árvores. Na próxima vez que vocês forem a uma floresta, prestem atenção
numa árvore morta. Se não for por alguma praga ou doença, podem estar
certos de que um urso andou arrancando a casca.
— E por isso que o senhor está entalhando um urso? — o menino
mais velho indagou. — Porque eles comem árvores?
Tom continuava esfregando levemente a lixa na coruja entalhada.
Observando-o, Walt pensou que ultimamente não via mais muitas corujas
serradeiras do norte, por ali. Estas corujas eram muito pequenas e
pesavam um pouco mais de um quilo.
Casamento em Montana
Walt não tinha mais muita chance de observar a natureza, como
costumava fazer. Sentia falta de suas caminhadas, sentia falta de muitas
outras coisas, mas tudo isso fazia parte do envelhecimento.
— Vovô? — Era Tom, novamente.
— O que é filho?
— Clay perguntou sobre o urso. Por que o senhor está entalhando
um urso?
— Ah, sim... o urso. Um deles quase me pegou, deste jeito. Os dois
meninos o encararam ao mesmo tempo, e ele sorriu, recordando as
aventuras de sua juventude.
— Eu me deparei com o urso quando ele estava arrancando a casca
de um pinheiro. Era só um garoto, naquela época, mas tinha idade
suficiente para saber que não devia fazer nada estúpido. — Fez uma
pausa e acrescentou, murmurando para si mesmo: — Como chegar perto
demais de um urso, por exemplo. Nem meu cavalo nem eu vimos o urso,
que era uma fêmea, até que foi tarde demais. A mamãe urso tinha dois
filhotes e não estava querendo companhia. Ela ergueu-se nas patas
traseiras e assustou meu cavalo de tal forma que ele empinou,
derrubando-me no chão. Pensei que seria o meu fim, naquela hora.
Os garotos ouviam com toda atenção.
— O que aconteceu, então? — Tom perguntou.
— O que aconteceu?! — Walt riu baixinho, lembrando-se do
incidente com tanta nitidez como se fosse aquele dia, quase setenta anos
atrás. Sorriu e continuou entalhando, enquanto a memória enchia-se dos
detalhes daquela tarde fatídica — Assim que me recobrei o bastante para
conseguir levantar, saí correndo, gritando o mais que podia. — Balançou a
cabeça, sorrindo novamente.
— Quantos anos o senhor tinha, vovô?
— Uns dez anos, mais ou menos — Walt respondeu. — Minhas
pernas eram boas e fortes.
— Então o senhor correu?
— As mãos de Clay ficaram imóveis.
— Achei que não devia ficar parado ali e deixar que a ursa me
comesse no jantar. — Isso o fez lembrar de Uma outra lição que os filhos
de Molly precisavam, uma lição que somente um homem poderia lhes
ensinar.
As mulheres não gostavam muito de lutas e brigas, não entendiam a
necessidade que os homens tinham de confrontação. O mais importante,
no entanto, era saber quando brigar, e por quê. Saber pelo que valeria a
pena lutar. Haveria aquelas vezes em que todas as perguntas tinham as
respostas certas, mas mesmo assim a melhor coisa a fazer era desistir. Ele
próprio dera as costas para uma ou duas brigas, e lhe exigira muito mais
coragem para ceder do que para insistir na luta.
— Ela não pegou o senhor, não é? — Clay perguntou.
— Chegou bem perto, mas meu pai me salvou.
Até hoje Walt lembrava-se do imenso alívio que sentira quando seu
pai irrompeu na mata, com o cavalo a pleno galope. Ele correra na direção
de Walt e, naquele instante, fora difícil descobrir quem o apanhara
primeiro, seu pai ou a ursa.
Mesmo com os olhos tão cansados e nublados, Walt viu o espanto
nos rostos dos meninos. Assentiu, devagar. Fazia bem ao seu coração
passar o tempo com os netos de Adam. Eles precisavam de um homem
em suas vidas, alguém para ocupar o lugar do pai inútil. Ele queria ensinar
tudo aos garotos, mas não lhe restava mais muito tempo...
A porta de tela abriu-se e Molly espiou na varanda, mantendo-a
aberta.
— O jantar estará pronto em dez minutos — ela avisou.
— E o tempo de vocês guardarem as ferramentas e lavarem as mãos.
Quase desde o primeiro minuto em que chegou, Molly estivera
esfregando e limpando aquela cozinha. De alguma forma, Walt sentia-se
confortado ao vê-la pondo a casa de novo nos eixos. Sua doce Molly teria
desaprovado inteiramente seus métodos de manutenção da casa.
Provavelmente deveria ter contratado uma das mulheres da cidade para
fazer uma limpeza geral, pelo menos antes que a neta chegasse e
encontrasse tanta bagunça.
Walt sempre tivera a intenção de contratar uma governanta, mas
ainda estava para encontrar alguém que quisesse ver em sua casa por
mais do que cinco minutos. Tampouco lhe agradava a ideia de uma
estranha mexendo nas coisas da sua Molly. A única pessoa em que
poderia pensar era Ginny, mas ela também não cuidava muito bem da
própria casa, e ele podia apostar que ficaria ofendida se lhe sugerisse que
limpasse a sua, mesmo que estivesse disposto a lhe pagar por isso.
Tom e Clay não precisaram ouvir duas vezes que estava na hora do
jantar. Entraram na casa tão depressa como dois coelhos. Walt já não era
tão rápido com os pés. Ergueu-se da cadeira com dificuldade, grato pelo
fato de que os meninos haviam guardado as ferramentas e as peças
entalhadas. Aquele Tom podia ser um pouco atrevido, mas no fundo era
um garoto bom e prestativo.
Walt respirou fundo, aspirando o aroma de alguma coisa apetitosa.
Não sabia o que a neta havia preparado para o jantar, mas o cheiro
tentador que vinha da cozinha lhe dizia que seria uma refeição e tanto.
Preparar a própria comida se tornara uma tarefa difícil para ele; cada vez
mais, nos últimos meses, era Sam quem lhe providenciava o jantar.
Walt confiava em Sam, e esta confiança não lhe fora dada de graça.
Foi por isso que ele havia pedido a Sam que acompanhasse Molly até a
cidade, naquela tarde. Quando voltaram, Sam levara os mantimentos
para a cozinha em silêncio, retirando-se logo em seguida. Walt sorriu
consigo mesmo, divertindo-se com a maneira como Sam estava mantendo
a distância, desde a chegada de Molly.
Walt encaminhou-se para a cozinha, sem pressa. Embora Sam não
tivesse lhe dito nada, provavelmente não estava gostando da idéia de
Molly sair com Russell Letson. Ele próprio ficara surpreso por ela ter
concordado em jantar com aquele advogado-mirim. O garoto nem fazia a
barba todos os dias, disso ele tinha certeza.
Mas Letson era boa pessoa, tímido e um tanto calado. Bem diferente
do pai, que não tinha papas na língua e metia-se em tudo. O filho já era
mais discreto. Walt perguntava-se por que Russell não se casara. Mas, é
claro, não havia muitas mulheres casadouras em Sweetgrass.
Agora que Molly estava ali, Walt desconfiava que muitos rapazes
começariam a aparecer na fazenda. Assim que dessem uma boa olhada
em sua neta, encontrariam desculpas para fazer uma visita. Linda como
uma flor, era Molly. Inteligente, também, e ótima cozinheira. Com o
tempo, ela acabaria se tornando uma excelente esposa para um
fazendeiro.
Walt acreditava que Molly precisava de um marido, embora tivesse
certeza de que ela não concordaria com isso. Gostaria de vê-la casada
outra vez. Ainda era jovem e, se tornasse a casar, provavelmente teria
mais filhos. Entristecia-o saber que não estaria mais por ali para conhecê-
los e amá-los, mas recusava-se a ficar pensando nisso. Estava
determinado a aproveitar o tempo que tinha, e deixar o futuro por conta
de Deus.
Parou na soleira da porta da cozinha. Mal reconhecia o lugar. As
paredes brilhavam depois que Molly as lavara, as tábuas do pipo reluziam
com a cera, e os vidros das janelas faiscavam sob as cortinas novas. Molly
fizera as cortinas na velha máquina de costura Singer da avó, usando uma
peça de algodão que encontrara no sótão. Sua Molly devia ter comprado
o tecido um pouco antes de morrer. Enquanto os meninos corriam para
levar as travessas para a mesa, Walt admirava-se com as mudanças
ocorridas naquela cozinha. Por isso, demorou um pouco para perceber
que a mesa fora posta apenas para quatro pessoas.
— E quanto a Sam? — perguntou, espantado por Molly ter-se
esquecido do administrador.
Ela ergueu o queixo levemente, como se considerasse a pergunta
uma afronta.
— Eu o convidei para jantar, mas ele disse que tinha outros planos.
Isso era interessante. Walt observou a neta, enquanto ela trazia uma
travessa de frango para a mesa.
Seus lábios haviam se contraído ligeiramente, quando mencionou
Sam. Agora que pensava a respeito, Walt concluiu que pressentira uma
leve tensão entre os dois.
— Que outros planos? — pressionou.
— Ele não disse.
E ela também não havia perguntado, Walt calculou. Franzindo a
testa, olhou pela janela da cozinha para a casinha onde Sam morava. Um
pouco adiante, ficava o antigo alojamento dos empregados; o velho
prédio de madeira era uma lembrança dos dias gloriosos da Flecha
Quebrada, quando as terras eram vastas o bastante para justificar a
contratação de vários empregados. Agora, havia apenas Sam. Viu que a
velha caminhonete continuava estacionada no lugar de sempre, o que
significava que ele não saíra da fazenda.
— Será que ele não está com fome? — perguntou.
O sujeito era orgulhoso demais para seu gosto. E tal teimosia o faria
perder uma das melhores refeições que, provavelmente, ele já tivera. Não
que adiantasse alguma coisa lhe dizer isso tudo. Seria o mesmo que
discutir com um tronco de árvore.
Clay levou uma salada verde para a mesa, com um vidro de molho
para saladas light.
Walt fez uma careta. Preferia o molho da marca que costumava
comprar, e não se importava se estivesse entupido de gorduras. Não se
podia exigir tanto sacrifício de um homem. Afinal, ele já estava mesmo
com um pé na cova. O nível de colesterol era a menor de suas
preocupações.
— Quer que eu convide Sam novamente? — Molly perguntou,
apoiando-se no encosto da cadeira da cozinha, com uma postura rígida.
Apesar de ela ter feito a sugestão, era evidente que não desejava
cumpri-la.
— Se não quer jantar conosco, tudo bem. Ele é quem decide. Molly
assentiu.
— E exatamente o que eu penso.
Sam mal conhecia Russell Letson e nem sabia por que estava com
tanta raiva do sujeito. Exceto por aquele incidente em seu primeiro dia
em Sweetgrass, ele e Russell não tinham quase nada a ver um com o
outro. O quê, para Sam, estava tudo bem. Ocorreu-lhe, enquanto jogava
uma boa porção de feno na cocheira de Sinbad, que não era capaz de
pensar num único motivo para que antipatizasse com o advogado, além
do fato de que Letson convidara Molly para jantar. A bem da verdade,
Sam nutria uma desconfiança inata por todos os advogados, porém não
tinha nenhum motivo pessoal para sentir-se precavido em relação a
Russell Letson. E, é claro, o que Molly decidia fazer não era de sua conta.
Então, por que isso o incomodara tanto?
Os músculos dos ombros de Sam enrijeceram. Ele havia limpado os
estábulos e espalhado uma nova camada de palha, embora isso não fosse
realmente necessário, simplesmente porque tinha necessidade de ficar
movimentando-se. Se trabalhasse duro e por bastante tempo, talvez seus
pensamentos o deixassem em paz.
Sam não apenas antipatizava com Letson, como também não tinha
certeza se gostava de Molly Cogan. Não que alguém tivesse pedido sua
opinião. E nem a estava oferecendo.
Uma progressão infinita de perguntas zumbia em sua mente, como
moscas impertinentes. Mas Sam decidiu que não iria preocupar-se com as
respostas. Não estava disposto a perder tempo analisando seus
sentimentos por Molly. Em primeiro lugar, e principalmente, por que ele
iria importar-se com quem ela saía? Pois não se importava, diabos!
Talvez devesse pensar em ir embora dali. Havia trabalhado na Flecha
Quebrada por mais tempo do que em qualquer outro lugar, e não era o
tipo de homem que se acomodava num canto. Quando fora à cidade,
naquela tarde, conseguira os endereços de várias grandes fazendas no
Estado. Aquele era um momento tão bom quanto qualquer outro para
pedir emprego. Estivera na fazenda por tempo demais, e estava ficando
inquieto. Pelo menos, era isso que dizia a si mesmo.
Porém, imediatamente deu-se conta de que tudo isso era mentira.
Trabalhar para Walt Wheaton lhe proporcionara muita satisfação. O
velho precisava dele, e Sam, sem dúvida, precisava de trabalho. Mais do
que isso. Precisava de um lar, de um pouco de respeito e de sentir-se útil.
Estava disposto a admitir tudo isso agora, apesar de não ser fácil. Os
últimos seis meses haviam lhe dado uma nova perspectiva da vida.
O gosto amargo da raiva havia desaparecido, e Sam sentia-se capaz
de olhar para trás, para seu tempo na cadeia, com uma espécie de...
aceitação. Havia sido um sujeito beberrão e estúpido, esbravejando pela
perda de sua carreira e de cada tostão que economizara. Estivera mesmo
procurando encrencas naquela noite, quase quatro anos atrás. A briga
acontecera por sua culpa, e teve de pagar o preço de sua estupidez.
Sam havia pensado que aprendera a lição, mas apenas cinco minutos
depois que chegou em Sweetgrass, cometeu o mesmo erro. Ele fora até o
bar do Willie para tomar uma cerveja; tudo o que queria era matar a
sede. Todos os que estavam no bar limitavam-se a ignorar o casal que
discutia, e Sam fez o mesmo. Até que o bêbado começou a bater na
mulher. E foi então que ele se intrometeu. A briga iniciada no bar
prolongou-se até a rua, onde Walt Wheaton estava parado, conversando
com dois velhos amigos. Em pouco tempo o xerife já surgia no cenário e
Sam foi levado para a cadeia. E Walt presenciara tudo...
Sam era muito grato a Walt por tê-lo contratado sem fazer perguntas
intermináveis sobre seu passado. Não entendia o que havia levado o
velho a pagar sua fiança. Tudo o que interessava a Walt era a capacidade
de Sam para conduzir a fazenda, e assim que assegurou-se de que ele
sabia o que estava fazendo, ofereceu-lhe o emprego.
A não ser que outra pessoa houvesse lhe contado, Walt não sabia
que Sam cumprira dois anos de sentença no Presídio Estadual de
Washington.
Sam não julgava que isso fosse relevante; além do mais, ser um ex-
presidiário não era algo de que se orgulhava. E tampouco um assunto
sobre o qual gostava de falar.
Sam ainda se perguntava por que aquele homem idoso e doente
confiara nele. Muito tempo havia se passado, desde a última vez em que
alguém estivera disposto a depositar confiança nele. E fora por isso que
Sam havia ficado, e porque trabalhava até o ponto de exaustão, mês após
mês. Sam preferia morrer do que desapontar Walt Wheaton.
Muito tempo se passara, também, desde a última vez em que se
permitira gostar de alguém. Qs sentimentos eram um luxo a que um
homem que estava sempre em movimento não podia se dar. Eles sempre
faziam com que Sam ficasse pouco à vontade, por mais razões do que
desejava analisar.
No decorrer das semanas e dos meses em que trabalhou na Flecha
Quebrada, Sam foi se apegando ao velho ranzinza. Eles possuíam uma
espécie de ligação. Sam devia a Walt, de uma forma que jamais devera a
ninguém, antes. E também via o desespero de Walt diante da
deterioração da fazenda, e estava determinado a salvá-la, tanto quanto
fosse possível. Num esforço de provar-se digno da confiança de Walt, Sam
lutava para recuperar o rebanho. Já percorrera aquelas terras tantas vezes
que conhecia quase cada centímetro quadrado.
Mas cometera um erro. Um grande erro. Havia começado a sonhar.
De vez em quando, inventava uma desculpa para cavalgar até o topo
da colina de onde se avistava o vale, e sonhava que aquelas terras eram
suas.
Talvez fosse por isso que carregava toda a responsabilidade da
fazenda, agora. Começara a sentir que pertencia àquele lugar. E isso era
perigoso.
A noite, tornara-se um hábito seu caminhar pelos arredores da casa,
checando os estábulos e celeiros uma última vez antes de recolher-se. E
com uma frequência crescente seus pensamentos tornavam-se
fantasiosos demais, e ele imaginava que havia uma mulher dentro da
casa, à sua espera. Sua esposa. Fingia que seus filhos dormiam no andar
de cima, aconchegados com segurança em suas camas, amados muito
além de qualquer medida.
Mas isso jamais aconteceria. Quando Walt morresse, a Flecha
Quebrada passaria para Molly e seus dois meninos. Então ela encontraria
um novo marido, que sem dúvida lhe mostraria o olho da rua.
Sam sorriu com tristeza. Seus sonhos eram mesmo ridículos e, quanto
mais depressa os tirasse da cabeça, mais fácil seria fazer as malas e seguir
em frente. Com a experiência que havia adquirido ali poderia pedir
emprego em qualquer outro lugar. Não havia sentido em prolongar sua
estadia, quando tudo já estava tão claro. Ele estaria desempregado ao
final daquele ano.
De repente Sam percebeu que não estava mais sozinho. Virou-se e
viu que Tom, o mais velho dos filhos de Molly, estava parado na porta do
celeiro. O garoto parecia hesitante, olhando em volta como se não tivesse
certeza de que deveria estar ali.
— Precisa de alguma coisa? — Sam perguntou, mal-humorado,
soando mais inamistoso do que pretendia. Na verdade, gostava de Tom.
O garoto o fazia lembrar um pouco de si mesmo, quando tinha aquela
idade.
— Não. Eu... Pensei em dar comida aos cavalos.
Sam reparou que o menino escondia uma das mãos atrás das costas.
— E o que pretende dar a eles?
Tom estendeu o braço e mostrou um punhado de cenouras.
— Você conhece bem cavalos?
Tom balançou a cabeça, em negativa.
— Então deixe-me lhe dar algumas instruções — disse Sam. A última
coisa que o velho Walt precisava era o choque de ver um dos bisnetos ser
mordido por com cavalo, ou de levar um coice na barriga.
Ouvindo vozes, Sinbad arqueou o pescoço negro e esguio na beirada
da cocheira. Sinbad era um animal amigável, perfeito para um garoto da
idade de Tom. Gus, o cavalo da raça Morgan de Walt, também não se
opunha a um pouco de atenção, mas Sam preferia direcionar o menino
para o animal mais confiável.
— Você gosta de cavalgar? — Sam perguntou, enquanto mostrava a
Tom a maneira certa de segurar a cenoura sem correr o risco de perder
um par de dedos.
— Nunca cavalguei — o menino admitiu.
— Então vai ter de aprender, não é?
Se a mãe de Tom resolvesse manter a fazenda, provavelmente seria o
rapaz quem teria de conduzir o rebanho, arcando com algumas
responsabilidades bem sérias.
— Eu gostaria de aprender. — Tom enviou um olhar a Sam, como se
sugerisse que precisava de alguém para ensiná-lo e que Sam era a escolha
mais óbvia.
— Acha que já está adulto o bastante? — Sam perguntou, abrupto.
— Acho que sim. — A voz do menino soava confiante. Sam sorriu
levemente.
— Foi o que pensei. — Abrindo a portinhola da baia, Sam pegou
Sinbad pelo cabresto e guiou-o para fora. — Ele tem cerca de quinze
palmos de altura
— explicou, passando a palma da mão pelo pescoço lustroso do
animal.
— Isso significa que você ficará, mais ou menos, a um metro e meio
do chão.
— Olhou para Tom, avaliando seu interesse. — Vou lhe dizer uma
coisa, o ar fica um pouco mais leve quando a gente senta no alto de uma
sela.
Um sorriso alastrou-se no rosto de Tom.
— Sempre achei que tudo na vida fica muito mais claro quando estou
montado num cavalo — Sam prosseguiu. — Dá uma sensação gostosa na
barriga. Sinto-me feliz quando estou cavalgando, e este é um tipo de
felicidade que ainda não encontrei em nenhum outro lugar.
O garoto estava hipnotizado e, com uma plateia tão atenta, Sam seria
capaz de falar a noite inteira. Cavalgar era mais do que um meio de se ir
de um lugar para outro. Envolvia um relacionamento com outra criatura.
Você dependia do cavalo; você e seu animal precisavam ter confiança
e respeito mútuos. Este pequeno segredo era tão importante quanto
qualquer técnica que Sam pudesse ensinar ao rapaz.
— Na minha opinião, a primavera é a melhor época do ano para se
cavalgar. Especialmente depois de uma boa chuva, quando o vento bate
em seu rosto e o cheiro da grama chega até a gente. E fica ainda melhor
se você está guiando o cavalo com o coração.
Nada era mais estimulante do que um galope firme e suave através
de acres de pastagem. Mas era o silêncio que Sam mais adorava, o
silêncio quebrado apenas pelo ritmo das batidas dos cascos do cavalo.
— Sinbad é um cavalo de trabalho — Sam continuou dizendo, para o
caso de Tom estar pensando que algum daqueles animais era criado para
divertimentos ou campeonatos.
Vovô e Sam compartilhavam da mesma opinião, quando se tratava
de animais. Isto é, achavam que deveriam trabalhar para seu sustento.
Inclusive os cães. Vovô podia ter-lhes dado nomes engraçadinhos, mas
cada um dos cães trabalhava tanto quanto ele próprio.
— O que quer dizer com "cavalo de trabalho"?
A pergunta era sincera e Sam respondeu da mesma forma.
— Ele é um pônei de rebanhos. Por toda sua vida tem trabalhado
com o gado, reunindo os novilhos e guiando os rebanhos. Um vaqueiro é
tão bom quanto sua montaria, e Sinbad é um cavalo danado de bom.
Um tanto hesitante, Tom ergueu a mão até o pescoço do cavalo. Sam
percebeu que ele não queria demonstrar que estava intimidado pelo
enorme animal, mas não culpou o garoto por estar com um pouco de
medo. Num esforço para deixá-lo à vontade, distraí-lo do nervosismo,
Sam continuou falando:
— Sinbad é um cavalo quarto de milha, uma raça norte-americana.
Isso significa apenas que são usados de vez em quando para competir em
corridas de um quarto de milha. Mas, no que me diz respeito, os animais
desta raça são perfeitos para o trabalho nas fazendas.
O interesse de Tom aguçou-se e ele chegou mais perto. O afago que
fazia no pescoço do cavalo tornava-se mais confiante, agora, e parecia ter
esquecido seus temores.
— Aquele também é um quarto de milha? — o menino perguntou,
olhando para Gus, que esticara a cabeça sobre o portão da cocheira.
— Gus é da raça Morgan — Sam explicou.
— E uma raça excelente, também, especialmente para uma fazenda
de gado. São capazes de superar qualquer outro tipo de cavalo que esteja
por perto. Você sabia que o único sobrevivente da Batalha de Little Big
Horn foi um cavalo Morgan? Vá em frente, pode tocá-lo. Ele é bem manso.
— Oi, Gus — Tom falou. Exibiu um largo sorriso e aproximou-se para
esfregar o nariz aveludado do Morgan.
—Quando posso começar aprender a cavalgar? — indagou ansioso. —
Pode ser agora mesmo? Não estou fazendo nada, agora.
— Não acha melhor falar com sua mãe, primeiro? — Sam resistiu à
tentação de perguntar discretamente sobre o pai do garoto. Sabia que
Molly era divorciada, mas nada além disso.
Diante da menção de sua mãe, a excitação desapareceu lentamente
dos olhos castanhos de Tom.
— Ela não vai se importar.
— E melhor pedir para ela, primeiro.
— Pedir o quê? — Molly perguntou.
Ela acabara de entrar no celeiro. A porta aberta deixava os últimos
raios de sol penetrarem no interior sombrio. Banhada pela luz, envolvida
pela luminosidade suave do entardecer, Molly Cogan estava
extremamente linda.
Não era de admirar que Russell Letson a convidara para jantar. Sam
teve de reunir cada mínimo esforço de concentração para conseguir
afastar os olhos daquela imagem maravilhosa.
— Sam vai me ensinar a cavalgar! — Tom exclamou, excitado.
— Ele estava me contando tudo sobre cavalos. Você sabia que... — o
menino ficaria tagarelando para sempre, Sam pensou, se Molly não o
interrompesse.
— Vai ensiná-lo a andar num cavalo? — ela indagou.
— E claro! O que mais podia ser? Você não queria que eu aprendesse
a montar num galo, não é? — O entusiasmo do menino sobrepujou o
sarcasmo.
— Sam disse que podemos começar hoje mesmo. Podemos, não é?
Molly lançou um olhar fuzilante para Sam.
— Preciso conversar sobre isso com o sr. Dakota, primeiro — disse.
Sr. Dakota. Sam quase deu uma risada. A última vez que alguém o
chamara assim, ele estivera deitado numa maca no pronto-socorro de Um
hospital, sentindo uma dor tão intensa que nem mesmo a morfina fora
capaz de aplacar.
— Mamãe... — Tom pressentiu um problema, e isso ficou evidente
pelo olhar que enviou a Sam.
— Não vim aqui para discutir com você, Tom — Molly falou,
friamente.
— Quero que volte para casa e vá direto para o andar de cima.
— Para o quarto? — Tom reclamou, indignado.
— Você está me tratando como seu eu fosse uma criancinha. Ainda
está claro aqui fora! Não está me mandando ir para a cama, não é?
— Não. Seu avô precisa de algumas coisas que estão no andar de
cima, e quer que você as pegue. Ele não pode mais ficar subindo as
escadas.
— Eu faço isso — Sam ofereceu-se. Se Tom era incapaz de reconhecer
uma boa chance para escapar, o mesmo não acontecia com ele. Sem a
presença de Tom, Molly certamente iria repreendê-lo pelo que havia
feito, isto é, por ter concordado em ensinar o menino a cavalgar.
— Não, Tom pode fazer — ela retrucou, com firmeza. Então ele não
seria capaz de desviar a artilharia. Pegando
o cabresto de Sinbad, Sam levou-o de volta para a baia e fechou a
portinhola.
— Posso voltar aqui, depois? — Tom perguntou à mãe.
— Se... se Sam concordar.
Tom virou-se e olhou para Sam, com uma expressão ansiosa. Sam
não podia desapontá-lo.
— Sim, é claro. Vou começar ensinando sobre os arreios e selas, e
assim que você estiver familiarizado com isso eu lhe mostro como colocar
a sela em Sinbad, e depois seguimos daí.
— Vai fazer tudo isso ainda hoje? — Molly perguntou.
— Podemos nos limitar com a aula sobre os arreios, por enquanto —
Sam assegurou-lhe.
Dando pequenos passos para trás, Tom estava nitidamente relutante
em sair.
— Está tudo bem — Sam falou, esperando que Tom entendesse o
recado.
Tom assentiu com um ar sério, virou-se e saiu correndo do celeiro.
No instante em que ficaram a sós, Molly começou a falar.
— Tom é meu filho e eu sou responsável pela segurança dele.
Gostaria que você discutisse este tipo de coisa comigo, primeiro.
Sam tirou o chapéu. Se iria se desculpar, era melhor fazer da maneira
certa.
— Tem toda razão — disse. — Isso não vai tornar a acontecer.
O pedido de desculpas aparentemente a desarmou, pois Molly ficou
em silêncio. Mas, ainda assim, demorou-se por ali. Foi até a baia de
Sinbad e afagou-lhe o pescoço, passando os dedos por entre a longa
crina.
— Será que eu disse alguma coisa que o tenha ofendido?
— ela perguntou, inesperadamente. A voz estava mais suave, incerta.
— Talvez esta tarde, quando estávamos na cidade?
— Você acha que fiquei ofendido? — ele indagou surpreso. Molly
virou-se devagar e encarou-o. Sam nunca havia
visto uma mulher com olhos tão azuis; fez o possível para desviar o
olhar.
— Vovô ficou preocupado por você não ter ido jantar conosco.
Sam não sabia muito bem como traduzir os sentimentos em palavras.
O jeito mais simples, concluiu, seria lhe dizer a verdade.
— Vocês são uma família. Eu não faço parte dela.
— E tolice sua cozinhar apenas para você, quando eu preparo o
jantar para todos.
— Eu não me incomodo.
— Pois eu, sim — ela insistiu, com a irritação brotando na voz.
Controlou-a rapidamente, respirando fundo e prendendo o fôlego por um
instante.
— Tanto vovô como eu gostaríamos que você fizesse as refeições
conosco.
— Fez uma pausa. — Isso significa muito para ele.
— E quanto a você? Significa alguma coisa para você? — Sam não
fazia idéia do que o levara a perguntar aquilo. Era praticamente um
convite para que ela arrasasse com seu ego!
— Apenas acho que é o mais sensato — Molly respondeu.
— No entanto — respirou fundo novamente, — depende de você
querer, ou não.
Então era isso, Sam pensou. Ela cumprira seu dever. Não havia
dúvidas de que fora Walt quem lhe pedira para fazer aquele convite.
— E então, o que me diz? — ela tornou a falar, acrescentando:
— Preciso saber para quantas pessoas vou cozinhar.
— Ainda não decidi.
— Escute, não precisa me fazer nenhum favor, está bem? O que Sam
fez em seguida foi gerado pelo puro instinto.
Foi o que estivera pensando em fazer desde o primeiro instante em
que pusera os olhos nela. O que queria fazer no instante em que ouvira
Russell Letson convidá-la para jantar.
Sem dar a mínima para a sensatez ou para os seus motivos, ele deu
um passo à frente, segurou-a pelos ombros e pousou os lábios sobre os
dela.
Seus lábios encontraram-se brevemente, um contato tão suave que
Sam não teve certeza de que realmente os tocara até que a sentiu
enrijecer. Aproveitando-se do susto, obrigou-a a entreabrir a boca e
estava prestes a enlaçá-la com seus braços quando Molly pressionou as
mãos em seu peito e o afastou.
— Nunca mais faça isso! — Ela esfregou as costas da mão sobre a
boca.
— Como se atreve!
Sam perguntou-se a mesma coisa.
— Vovô o mandaria embora na mesma hora, se eu lhe contar sobre
isso.
— Pois conte — Sam desafiou-a. Não sabia por que fizera algo tão
estúpido, e não estava muito orgulhoso de si mesmo por ter seguido o
impulso. Porém, preferia morrer antes de confessar isso a ela.
— Eu deveria mesmo contar. Você bem que merecia!
— Então, não deixe que nada a impeça.
O que Sam tinha de fazer era desculpar-se, outra vez, e deixar tudo
como estava, mas a mesma loucura que o induzira a beijar Molly o
incitava, agora. Talvez tivesse prosseguido com as respostas petulantes, se
não fosse pela mágoa e incerteza que viu nos olhos dela.
— Gostaria que me desse sua palavra de honra de que isso não
tornará a acontecer.
Sem querer, ele começou a rir. Honra? Os ex-presidiários não eram
exatamente conhecidos pela sua honra.
— Acha isso engraçado, Sr. Dakota? — Os olhos de Molly estreitaram-
se e sua voz ficou um pouco mais aguda.
Se ele não a tivesse deixado irritada antes, certamente agora
conseguira. Sem querer. Ela girou nos calcanhares e marchou para fora do
celeiro. Sam suspirou, recostando-se contra a coluna de madeira e passou
a mão pelo rosto, ainda perguntando-se por que a beijara.
No entanto, talvez soubesse a resposta. Não havia gostado da idéia
de ela sair com Letson. Sua antipatia pelos advogados era instintiva,
graças ao tratamento menos do que justo que recebera de seu próprio
advogado de defesa. O que, para ser honesto, não era culpa de Letson. De
qualquer forma, era mais do que isso.
Sam havia reparado na maneira com que Letson olhara para Molly,
como um garotinho numa loja de doces, com a boca enchendo-se de água
diante das balas de limão. Letson levaria Molly para jantar e depois iria
beijá-la. E quando isso acontecesse, Sam queria que os pensamentos de
Molly estivessem nublados com a lembrança do seu beijo. A lembrança de
seu toque.
Mas, por quê? Lembrou-se de que nem mesmo gostava de Molly
tanto assim. Então, por que estava competindo com Letson?
Não fazia a menor ideia.
E que beijo Molly iria preferir, o seu ou o de Letson? Sam rangeu os
dentes, diante do pensamento.
Podia apostar qualquer coisa de que não seria o seu.
CAPÍTULO 5
Russell Letson era, de longe, o homem mais atraente com quem
Molly já havia saído. No quesito aparência, Sam Dakota recebia um
distante segundo lugar. Na verdade, disse a si mesma, ele nem sequer
estava no páreo.
Se estivesse pensando em casar novamente, o que não estava, Molly
desejaria um homem como o seu avô. Embora vovô não fosse nenhum
exemplo de sociabilidade, era sólido e forte em todos os aspectos que
realmente importavam. O mundo precisava de mais homens como ele.
Seu corpo havia se deteriorado com a idade, mas em sua juventude fora
um homem que servira de inspiração para outros. Era honesto, bom e
justo, e amara a esposa com total dedicação. Exatamente como a avó de
Molly o amara.
Pela conversa que tivera com o gerente do banco e pelas escassas
cartas que recebera de vovô, Molly deu-se conta de que nos últimos anos
ele havia se afastado de muitas pessoas. Quando sua avó era viva, sempre
fora capaz de contornar as dificuldades e minimizar as brigas, mas depois
que ela se foi vovô havia se tornado rabugento e implicante. Molly
esperava que isso pudesse mudar, agora que estava morando com ele. E,
apesar dos defeitos, vovô sempre seria o seu cavaleiro an-dante, sua
bússola, o farol que a orientava com sua luz. Molly não conseguia
imaginar como seria a vida sem ele.
Pelo menos vovô parecia aprovar Russell, e Russell parecia ter-se
esforçado muito para tornar aquela noite especial. O restaurante era
exatamente do jeito que ele descrevera.
O interior era elegante, as cadeiras forradas de veludo vermelho e a
iluminação suave. Havia uma pequena pista de dança e um conjunto que
tocava ao vivo todas as sextas e sábados, conforme dizia um cartaz lá
fora. Molly ficou surpresa ao ver que uma cidade do tamanho de
Sweetgrass podia ter um restaurante de alta categoria como o Cattle
Baron.
— Fiquei muito contente por você ter concordado em conversar
comigo — Russell falou, fechando o cardápio. O sorriso dele era cordial, e
Molly sorriu de volta.
Ela havia caprichado na aparência. Até mesmo vovô reparou no
tempo em que ela passara arrumando os cabelos e maquiando-se.
A mudança para Montana lhe oferecia uma oportunidade, há muito
tempo adiada, de retomar sua vida social. Molly estava disposta a
esquecer todos os erros do passado e olhar para o futuro. Fazendo parte
da comunidade de Sweetgrass, queria encontrar pessoas, fazer amizade
com outros adultos, e aquele jantar era um primeiro passo nessa direção.
O casamento não a interessava, mas uma vida social satisfatória, sim.
Quando morava em San Francisco raramente saía com homens. Não
que tivesse qualquer coisa contra isso, mas era difícil encontrar um
homem que compreendesse suas responsabilidades de mãe e
compartilhasse de seus valores. Mesmo se encontrasse alguém realmente
interessante, era quase impossível arrumar tempo para um
relacionamento, entre sua família e seu trabalho. O dia não tinha horas
suficientes para tanta coisa.
"Desculpas" pensou. "Apenas desculpas".
Não estivera preparada, então, mas agora estava. A diferença era a
sua disposição em se arriscar. Talvez fosse porque, com vovô por perto,
ela se sentia mais segura, mais protegida. Era óbvio que ele confiava em
Russell, gostava dele. E de Sam...
— Ouvi dizer que você causou um bocado de agitação entre os
rapazes da cidade — Russell falou, olhando para ela e ruborizando
levemente.
— Eu? Causei agitação?
— Bem, não há muitas solteiras da sua idade, aqui em
Sweetgrass. A sua chegada provocou muitas conversas, você sabe,
muito interesse.
Russell parecia um tanto afogueado, como se tivesse falado mais do
que devia. Não era uma característica que se esperaria de um advogado,
mas isso fez com que ele parecesse ainda mais encantador. Molly já
gostava dele.
— Tenho certeza de que já recebeu muitos telefonemas — a frase
dele soou quase como uma pergunta.
— Alguns — Molly respondeu. O de uma senhora da Igreja Batista
local e outro da secretaria da escola, e isso fora tudo. Os homens não
estavam exatamente pondo abaixo a sua porta, mas não fazia mal algum
ao seu ego se Russell presumisse o contrário.
O garçom, um homem sério e idoso, serviu o vinho para que Russell
provasse, e depois encheu-lhes as taças. Russell havia escolhido bem,
Molly concluiu depois de tomar o primeiro gole. O merlot da Califórnia
estava excelente.
Esvaziou a taça e permitiu que Russell tornasse a enchê-la. Uma noite
relaxante era tudo o que precisava, especialmente depois da longa
semana por que passara. Havia dirigido desde a Califórnia até Montana,
trazendo a reboque todos os seus pertences terrenos. Suportara as brigas
dos filhos através de vários Estados, lidara com a realidade da saúde de
vovô e começara a melhorar as tristes condições da casa da fazenda. Fora
uma semana inesquecível.
Depois de fazer os pedidos, conversaram amigavelmente. Os modos
de Russell eram encantadores e logo Molly percebeu que estava se
divertindo. Não podia lembrar-se da última vez que passara uma noite
tão tranquila, na companhia de um homem atraente.
O conjunto musical chegou e começou a tocar por volta das nove
horas. Não as músicas country que ela esperava, mas sim o som
melodioso de baladas de rock. A música era um acompanhamento e não
uma intromissão à conversa. Alguns pares levantaram-se para dançar e
Molly lançou um olhar cobiçoso para a pista de dança.
— Gostaria de dar um giro? — Russell perguntou, estendendo-lhe a
mão. Os olhos dele brilhavam, como se estivesse apenas esperando por
um sinal da parte dela. Uma mulher poderia acostumar-se com um
homem tão sensível, ela pensou.
Porém, foi somente quando Russell enlaçou-lhe a cintura e puxou-a
contra si que Molly experimentou uma sensação de desapontamento. E
precisou de alguns ansiosos momentos para entender o que estava
acontecendo.
O último homem que a abraçara havia sido Sam Dakota. As mãos
dele em seus ombros foram fortes e poderosas; a maneira como ele a
tocara fora intensa, mas o beijo havia sido doce e delicado. O contraste
fora... Chocante. Memorável. Vinte e quatro horas haviam se passado, e a
lembrança continuava intacta.
Molly fechou os olhos, num esforço para banir Sam Dakota de sua
mente. Russell era bonito e bem-educado. Gentil. Bem-sucedido.
Exatamente o tipo de homem que ela esperava encontrar. Sam, no
entanto, era duro, inflexível, áspero como o couro cru. Um empregado.
Ela não sabia quase nada acerca de seu passado, e menos ainda sobre seu
futuro.
Ficou exasperada por saber que estava nos braços do mais perfeito
par que já a convidara para um jantar, enquanto que sua mente estava
repleta de imagens de outro homem. Do homem errado!
Apesar de sua determinação em expulsar Sam dos pensamentos,
Molly achou muito difícil. Ficou aliviada quando os pratos chegaram e ela
pôde sentar-se na frente de Russell e conversar.
— Talvez se lembre de que havia um assunto que eu queria discutir
com você — Russell falou. Ajeitou o guardanapo no colo e bebeu um gole
de vinho.
Molly teve a impressão de que ele queria ver o assunto, fosse qual
fosse, resolvido naquele mesmo instante. Imediatamente. Pela maneira
como ele mexia nervosamente na taça de vinho, desconfiou que não
estava muito disposto a dar início à conversa.
— Imagino que você esteja curiosa sobre o que eu queria lhe
perguntar — ele começou, segurando a taça de vinho com as duas mãos.
Na verdade, até o momento em que ele mencionara, Molly havia
esquecido completamente o motivo daquele convite para jantar.
— E claro — respondeu, fingindo estar aguardando ansiosamente a
conversa.
— Entendo que talvez seja um tanto prematuro — ele disse.
— Pessoalmente, eu preferiria esperar, mas meu cliente está ansioso,
o que é bastante compreensível. — Os olhos dele nublaram-se, sinceros.
— Me desculpe, Molly, se isso puder ofendê-la.
— Ofender-me?
Um cliente, ela pensou. Ele estivera lhe falando em nome de um
cliente? Nada disso fazia sentido. Presumira que haviam saído juntos para
se conhecerem e para desfrutarem da companhia um do outro e, talvez,
discutirem algum assunto trivial a respeito do testamento de vovô.
— Isso se relaciona com a fazenda Flecha Quebrada — Russell
prosseguiu.
Ela ficou tensa.
— O que tem a fazenda?
Ele franziu a testa, como se tudo fosse muito desagradável, algo que
preferia não estar fazendo.
— Meu cliente deseja saber quais são as suas intenções, depois que
seu avô morrer.
Molly deixou a faca e o garfo sobre o prato e torceu as mãos no colo.
— Minhas intenções quando o quê? — perguntou, em voz baixa. A
noite estava completamente arruinada, todas as suas ilusões destruídas.
Aquilo não fora um encontro, mas sim algum tipo de transação comercial.
— Pediram-me para lhe apresentar a ideia de vender a fazenda.
Naturalmente, meu cliente está disposto a esperar até o momento mais
apropriado.
Até que vovô esteja morto e enterrado, é claro. Mas não o bastante
para que o corpo dele esfrie. Por um instante, a raiva deixou-a quase
cega. Seu peito contraiu-se e ficou difícil respirar.
— Isso é uma brincadeira de mau gosto, não é? — Não era no fundo
ela sabia, mas tinha de perguntar.
As desculpas de Russell foram imediatas.
— Desculpe-me, Molly, por favor. Como lhe disse, eu sabia que não
era o momento de levantar este assunto, mas meu cliente insistiu.
Não queria lhe apresentar isso tudo agora, tão cedo, mas meu cliente
receia que alguém mais poderá tentar abordá-la primeiro. Tenho certeza
de que, depois de pensar nisso com calma, você acabará reconhecendo
que o pedido dele é razoável.
Seu avô ainda não morrera, mas as aves de rapina já começavam a
rodear.
— Pode dizer ao seu cliente... Seja ele quem for, que não vou vender
a fazenda.
— Não está falando sério, não é? — Russell arregalou os olhos.
— O que planeja fazer com a fazenda?
Molly ainda não tinha tomado nenhuma decisão. Sua única e
principal preocupação fora chegar na casa do avô antes que o impensável
acontecesse. A mudança da Califórnia para Montana absorvera todo seu
tempo e energia, ocupando todos os minutos de seu dia. Não estava
preparada para responder a Russell, e nem tampouco sentia-se na
obrigação de fazê-lo.
— Quem o contratou? — inquiriu.
— Quem seria tão frio e insensível, oferecendo-se para comprar a
fazenda antes mesmo de meu avô morrer? E dessa forma, através de um
advogado. Quem faria uma coisa destas?
Russell evitou-lhe o olhar. Molly sabia que ele estava sentindo-se mal
com tudo aquilo, e agora compreendia por que a convidara para jantar.
Ele havia esperado preparar o terreno, e suavizar o choque.
— Não posso responder esta pergunta, Molly. Meu cliente prefere
permanecer anônimo.
Ela deu um risinho breve.
— O que é compreensível, não acha?
— Suspirou e ergueu os olhos para o teto, enquanto organizava os
pensamentos. — Se quer mesmo saber, eu pretendo conduzir a fazenda
sozinha.
— Você... — ele disse, devagar. Começou a franzir a testa novamente.
— Da maneira como fala, é como se duvidasse de que eu seja capaz.
— Tem alguma experiência nisso, Molly? — ele indagou,
casualmente.
— Experiência — ela repetiu, fingindo uma risadinha.
— Posso aprender fazendo.
A ruga na testa de Russell aprofundou-se.
— Molly, entendo que este assunto é muito... Desagradável. Acredite,
eu não estava muito ansioso em mencioná-lo a você tão cedo. Se
dependesse de mim... Bem, isso não importa. O fato é que uma mulher
sozinha, com dois filhos em idade escolar, não será capaz de conduzir
uma fazenda por conta própria. Não numa época como a nossa. Não com
o mercado atual.
— Por que não? Segundo vovô, Sam Dakota é um excelente
administrador.
Russell amassou o guardanapo de linho e deixou-o na mesa, ao lado
do prato, aparentemente perdendo todo o apetite. O de Molly também
havia desaparecido.
— Este administrador é uma outra questão. O que você sabe sobre
ele?
Molly tentou encontrar uma resposta, mas nenhuma lhe ocorreu
imediatamente.
— Vovô contratou Sam, e para mim isso basta — disse. Simplesmente
não tivera tempo para descobrir muito a respeito dele, ou para avaliar o
seu caráter. Ela sabia que o achara um tanto perturbador. No entanto,
também sabia que Sam gostava de seu avô e que, de fato, salvara a vida
dele. Se não fosse por mais nada, sua devoção a vovô conquistara a
gratidão dela, e também sua lealdade. Mais uma vez Russell pareceu
hesitante.
— Se Dakota realmente concordar em permanecer como
administrador, você conseguirá pagar o salário dele?
— O salário? — Isso era algo que jamais lhe ocorrera.
— Você deve se lembrar que fui eu que redigi o testamento de
Walter, portanto estou ciente da sua situação financeira. Molly, tenho de
ser honesto com você. A situação é desoladora. Mesmo se você conseguir
fazer algum acordo financeiro com Dakota, não há garantias de que seja
capaz de reerguer a fazenda. Os preços do gado estão baixos. Muitas
fazendas bem estabelecidas estão passando por dificuldades financeiras.
Existem cada vez menos fazendas independentes, cada vez menos
vaqueiros verdadeiros. Os conglomerados estão avançando e comprando
as propriedades financeiramente exauridas a preços muito abaixo dos
valores de mercado. Quase sempre os fazendeiros não têm outra opção
senão vender, e são deixados praticamente sem nada, depois de uma vida
inteira de trabalho. Não quero ver você perder sua herança deste jeito.
— Obrigada pelo seu voto de confiança.
— Não é fácil lhe dizer estas coisas — Russell murmurou.
— Mas sinto que é minha obrigação. Daqui a seis meses, quando a
fazenda estiver indo a leilão, não quero que você olhe para mim e
pergunte por que não a avisei.
Molly respirou fundo, tentando acalmar-se. Sabia que chegaria o
momento em que teria de tomar tais decisões, mas não esperava
confrontar-se com elas logo em sua primeira semana em Montana. E
ainda por cima num encontro.
— Molly — ele voltou a falar, estendendo a mão sobre a mesa e
segurando a dela com firmeza. — Entendo que isso tudo é desagradável,
diabos, qualquer um ficaria aborrecido. Mas você precisa considerar a
ideia de vender agora. Quando Walter morrer, será o pior momento,
emocionalmente falando, para você tomar este tipo de decisão. Tudo o
que lhe peço é que pense durante algumas semanas, ou meses, ou pelo
tempo que resta de vida a Walter.
Molly sabia que Russell estava certo, mas ainda não queria encarar o
problema. Pousou os cotovelos sobre a mesa e apoiou a cabeça nas mãos.
— Aquelas terras pertencem à minha família há quatro gerações.
— Vovô, e o seu próprio pai, haviam nascido naquela mesma casa
onde agora ela e seus filhos viviam.
Por todos aqueles anos a família estivera unida. Sobrevivendo.
Durante duas guerras mundiais os Wheaton haviam permanecido nas
terras, lutado através dos magros anos da Grande Depressão.
No decorrer de tudo isso, os preços do gado tinham afundado e
depois se reerguido vezes seguidas, como uma louca montanha-russa, e
os Wheaton sempre conseguiram sobreviver. O conseguiriam novamente,
com a ajuda de Deus.
A fazenda era a herança que Molly receberia de seu avô, e do pai que
ela mal conhecera. E, um dia, pertenceria aos seus filhos. Fechou os olhos
por um instante, pensando que por mais irritada que a oferta de Russell a
deixasse, ele havia lhe feito um favor ao obrigá-la a reconhecer suas
responsabilidades em relação ao seu avô e à fazenda.
— Isso é muito difícil — murmurou —, mas... Russell relaxou e sorriu,
como se dissesse que sabia que ela acabaria sendo sensata.
— Então vai considerar a oferta?
Molly encarou-o, perplexa. Ele a interpretara erroneamente.
— Deixe-me lhe assegurar agora mesmo que trata-se de uma quantia
excelente — Russell falou, num tom animado. — Excelente, sem dúvida.
Você não precisará se preocupar com dinheiro durante muito tempo.
— Não vou vender Russell — ela anunciou, direta. — Não enquanto
eu viver e respirar. Farei tudo o que for necessário para manter a fazenda.
Mas Russell tinha razão sobre uma coisa: ela certamente precisaria
de ajuda. Se isso significasse ter de engolir o orgulho e pedir auxílio a Sam
Dakota, então ela o faria. Todo orgulho, até mesmo o feminino, tinha
seus limites.
— E como planeja fazer isso? Quem irá ajudá-la? — Russell indagou.
Seu rosto se contorcia ligeiramente, mascarando as feições quase
perfeitas.
— Sam Dakota, para começar.
Também haveria outras pessoas, Molly sabia. Vovô vivera naquela
comunidade durante toda vida. Ela não duvidava nem por um instante
que, quando chegasse a hora e ela precisasse de ajuda, alguém se
adiantaria e lhe estenderia a mão.
Russell recostou-se na cadeira e encarou-a por um longo momento.
Parecia estar escolhendo cuidadosamente as palavras.
— Eu não pretendia dizer nada, mas agora vejo que isso é necessário.
Molly, o quê, exatamente, você sabe a respeito de Sam Dakota?
— Esta é a segunda vez que você menciona isso. Vovô o contratou e
ele é...
— Não deixe que seu julgamento seja obscurecido pelo
relacionamento de seu avô com ele. Você precisa formar sua própria
opinião.
— Eu o conheci há apenas alguns dias. — Molly começava a pensar se
não deveria confiar em seus instintos acerca de Sam. Eles tinham sido
embaralhados, confundidos por aquele beijo. Confundidos por uma
porção de coisas que não tinham nada a ver com seu avô, ou com o fato
de Sam ser um bom administrador.
Russell assentiu pensativo.
— Sam Dakota é um estranho, um errante. Ninguém sabe direito de
onde veio, ou qualquer coisa sobre ele. Apareceu nesta cidade certo dia,
vindo de não se sabe onde.
— Não há nada de errado com isso.
— E verdade, mas o que aconteceu em seguida é motivo de
preocupação.
— O que foi? — ela perguntou sem estar totalmente certa se queria
saber a resposta.
— Problemas, Molly, muitos problemas. Uma hora depois que ele
chegou aqui, envolveu-se numa... Altercação na taverna de Willie, e... —
Russell fez uma pausa.
— Acho melhor não dizer mais nada.
— Por quê?
— Creio que seria melhor se você perguntasse a Sam, pessoalmente.
Ela hesitou, observando-o com intensidade.
— Molly, escute o que estou dizendo, por favor. Não tenho certeza se
você deve confiar nele.
— Ora, não seja ridículo!
— Acha que é isso que estou sendo? — O advogado parecia estar
obviamente desconfortável. — Tudo o que peço é que você seja muito
cuidadosa, entendeu?
— O rosto dele estava sério, preocupado, como se fosse tudo o que
pudesse fazer para não fornecer mais informações.
— Ah, não, nada disso. — Molly não estava disposta a deixar tudo
como estava. Se Russell sabia de algo que ela não sabia, tinha toda a
intenção de conhecer os fatos, mesmo se tivesse de ficar ali a noite
inteira.
— Conte-me tudo o que sabe Russell. Tenho o direito de saber a
verdade.
— Não posso Molly. Eu já falei mais do que devia. — Ele afastou os
olhos antes de exalar um lento suspiro. — Deixe-me colocar as coisas
desta maneira: para onde Dakota vai, os problemas o acompanham.
Aconteceram vários incidentes inexplicáveis nesta região, recentemente.
Incidentes estranhos. Walt não os mencionou a você?
Molly balançou a cabeça, em negativa.
— Que incidentes são esses?
— Pergunte ao seu avô. Não sou uma pessoa desconfiada, mas creio
que seria coincidência demais se Sam não estivesse envolvido.
— Envolvido em quê? — A primeira preocupação de Molly foi com
relação às crianças. Com vovô na fazenda provavelmente eles estariam
seguros, mas ele estava fraco e com a saúde precária. Não conseguia
imaginar o que Russell estava tentando lhe dizer.
— Não posso falar mais nada, Molly. Talvez nem devesse ter tocado
neste assunto, mas senti que era minha obrigação alertá-la.
— Você falou em incidentes estranhos. O que é isso? Será que estão
culpando Sam por algumas misteriosas aparições de alienígenas? — Tal
sugestão foi o bastante para fazê-la rir.
— Não é este tipo de "estranho" — Russell apressou-se em informá-
la.
— Ginny Dougherty e o primo estiveram na cidade há uns dois dias e
deram queixa sobre um caso de vandalismo.
Aparentemente, alguém derrubou a caixa de correio de Walter. E a
terceira vez que isso acontece, somente neste mês. Ela mesma teve alguns
problemas.
Molly recordou-se vagamente que vovô lhe dissera alguma coisa
sobre a caixa de correio ter sido destruída.
— Não foi só isso.
— O que mais aconteceu?
— Pergunte a Ginny Dougherty — ele respondeu.
— Ginny?
— Eu já lhe disse mais do que devia.
— Russell cerrou os lábios e Molly compreendeu que nem mesmo
com uma alavanca conseguiria arrancar dele mais informações.
Naquela noite Tom sentou-se na varanda da frente com um dos
cachorros ao seu lado. Era Natasha, a cadela da raça collie que estava
grávida. Suspirando, ele afagou-lhe as orelhas sedosas. Já ouvira falar
sobre pessoas que passavam por crises de depressão por abstinência, mas
nunca imaginara que algum dia teria de lidar com isso. Só que, no seu
caso, o problema não eram as drogas. De jeito nenhum, ele não era assim
tão idiota. O que mais sentia falta, a ponto de querer gritar, era da
televisão. Um bom e velho aparelho de tevê a cores, com controle remoto
e tela de vinte e três polegadas.
Vovô tinha um aparelho em branco e preto, que sintonizava apenas
um canal. Tom ficou surpreso em saber que ainda existiam aparelhos em
preto e branco nos Estados Unidos. Mas o que mais o incomodava era o
fato de que vovô recusava-se a comprar uma antena parabólica, ou uma
tevê a cabo, de forma que a única estação que as anteninhas de alumínio
captavam era a que vinha do Canadá. Um canal educativo! Se ele quisesse
aprender alguma coisa, iria para a escola. O mais triste era que vovô não
fazia ideia do que estava perdendo. O velho nem sabia o que era a MTV e,
além do mais, nem sequer se importava.
Vovô estava dormindo na poltrona, agora, com a tevê ligada mas sem
som, a imagem chuviscando. O que Tom conseguia enxergar era o
bastante para convencê-lo de que não queria assistir, mesmo se a imagem
fosse nítida.
A única estação de rádio de Sweetgrass era tão ruim quanto o canal
canadense. Todas as manhãs, às dez e meia, a cidade inteira
aparentemente parava para ouvir o bingo no rádio. Tom sabia que
algumas pessoas gostavam de jogar bingo. Em San Francisco, a Igreja
Católica no final de sua rua organizava noites de bingo duas vezes por
semana, mas ele jamais ouvira ninguém jogando bingo pelo rádio.
Como se isso não bastasse, Tom tinha de ficar ouvindo uma litania de
preços de produtos agrícolas até a hora do almoço. Detestava desapontar
vovô, mas realmente não dava a mínima para o preço da arroba do porco.
Depois disso, vinha um comentarista local e começava a falar sobre a feira
de outono e sobre alguma coisa chamada 4-H. Quase todas as suas
discussões relacionavam-se com o cultivo de hortaliças e os cuidados com
o gado.
E quando a estação finalmente passava a tocar um pouco de música,
eram sempre aquelas coisas horríveis das décadas de 40 e 50. Coisas que
já existiam antes mesmo da sua mãe nascer!
Agora, ela havia saído para jantar com um sujeito. Sua mãe, saindo
com um homem? Tom não tinha certeza se gostava da ideia, mas decidiu
que seria maduro a respeito disso. Ainda assim, pensou, se ela estava
interessada em passear pela cidade à noite, deveria ter ido com Sam.
Tom gostava de Sam. Clay também gostava. Mas nenhum deles sabia
nada sobre Russell Letson. Viram-no apenas quando ele aparecera para
buscar mamãe, e Tom não nutria nenhum sentimento em relação á ele,
bom ou mau. Talvez Letson fosse um bom sujeito. Sam, no entanto, era
sensacional.
Tudo bem, então o administrador não era tão "bonitão" quanto o
advogado, mas Sam tinha a vantagem de saber tudo o que havia para
saber sobre cavalos. O advogado parecia bem ignorante, pelo menos
naquele aspecto.
Nas últimas duas noites Sam havia passado algum tempo com Tom,
depois do jantar, ensinando-lhe tudo sobre cavalos. Entretanto, parecera
bastante distraído, naquela noite. Talvez fosse por culpa de Clay. Clay
havia sido um pestinha, mas Tom estava acostumado com o jeito irritante
do irmão mais novo. E Sam não estava.
Uma coisa ele tinha a dizer sobre o administrador da fazenda de
vovô: Sam nunca se mostrara superior, fosse para com ele ou para Clay.
Sempre falava com ambos como se eles fossem sujeitos normais.
Clay dormia profundamente, mas Tom saíra do quarto e sentara-se
no escuro, esperando a mãe voltar. Ouvira falar sobre as mães que
esperam seus filhos voltarem de um encontro. Nunca pensara que ele
ficaria sentado ali, matando o tempo enquanto esperava que ela
aparecesse. Mas, como vovô também estava dormindo, alguém precisava
ficar de olho no relógio.
Viu as luzes de faróis surgindo à distância, mas sabia que o carro
poderia estar a quilômetros. Nunca havia visto um lugar tão escuro como
Montana. Na Califórnia, mesmo no meio da noite, não importava onde
estivesse Tom podia olhar pela janela e enxergar alguma luz. Em qualquer
lugar.
Mas não em Montana. Quando a noite chegava, espalhava-se pela
terra como... Como tinta preta. Cobria tudo. Exceto pela lua e as estrelas,
era impossível enxergar qualquer coisa. Na primeira noite, quando olhou
pela janela, ele havia ficado atônito. Tudo estava envolto na escuridão. E
no silêncio. Era o bastante para deixar qualquer pessoa nervosa.
Os faróis desviaram-se quando o carro fez uma curva fechada e
seguiu pela estrada por trás dos estábulos. Tom quase cometeu o erro de
entrar na casa, porque não queria surpreender a mãe e seu amigo
advogado se beijando. Isso faria com que todos ficassem embaraçados.
Além disso, Tom não tinha certeza de como se sentiria se visse o
advogado com os lábios colados nos de sua mãe. Poderia fazer alguma
coisa estúpida, como dar-lhe um soco no meio do nariz.
Tom voltou os olhos para o céu. Longe das luzes da cidade, o céu
noturno estava forrado de estrelas. Ele nunca imaginara que existissem
tantas. De repente, reparou que o carro estava indo embora, os faróis
estendendo-se na direção da autoestrada. Bem. As despedidas não
haviam demorado muito.
— Vovô, o senhor está acordado? — Tom ouviu a mãe perguntar, de
dentro da casa.
Ele enrijeceu no mesmo instante. A voz de sua mãe estava agitada.
Talvez Letson tivesse tentado alguma coisa, e ela queria contar a vovô.
Diabos. Tom sabia que devia ter ido para dentro, mas agora era tarde
demais.
— Vovô, desculpe acordá-lo, mas preciso lhe perguntar algumas
coisas.
A ansiedade na voz da mãe fez com que Tom se levantasse de um
salto. Aquele Letson estaria pedindo perdão, na hora em que Tom
acabasse com ele. Ninguém mexia com sua mãe!
— Molly, querida — vovô falou, e Tom ouviu-o bocejar.
— Você se divertiu?
— Vovô, nós precisamos conversar.
— Conversar?
De seu posto na varanda, Tom podia espiar na sala através da porta
de tela e não ser visto. Vovô estava na poltrona reclinável e sua mãe
sentara-se numa banqueta diante dele. Ela inclinou-se e enlaçou os
braços em torno dos joelhos.
— O que o senhor sabe sobre Sam Dakota? — ela indagou,
abruptamente.
— Sam? — Vovô cocou a cabeça. — Você saiu para jantar com Letson
e ficou falando sobre Sam?
— Diga-me o que sabe a respeito dele.
— Por quê? — A pergunta soava como um desafio.
— Por que... Preciso saber se podemos confiar nele.
O garoto não estava certo se gostava do tom de voz de sua mãe, ou
de suas perguntas, mas queria ouvir o que ela dizia mais do que desejava
correr para defender Sam.
— Por que está me perguntando uma coisa dessas? Molly jogou a
cabeça para trás e olhou para o teto, como se estivesse contando até dez.
Ela fazia isso às vezes, quando precisava recuperar a calma.
— O senhor checou as referências dele? — indagou baixinho. Vovô
passou a mão pelo rosto, afastando o sono.
— Não me lembro de ele ter dado nenhuma referência.
— Então, por que o contratou? — A voz de Molly elevou-se
ligeiramente.
— Porque eu precisava de ajuda.
Vovô parecia achar que tal explicação era o bastante. Mas Tom sabia
que sua mãe não ficaria satisfeita com tão pouco. Não, ela iria insistir até
obter o que queria. Nem todas as mães eram assim, mas a sua era.
Teimosa, e jamais aceitava que se mudasse de assunto antes de esgotar
todas as possibilidades.
— Sam Dakota é um bom homem, Molly.
— Mas o senhor não tem muita certeza disso, não é?
— Não preciso de um pedaço de papel com um punhado de nomes
para me dizer o que duas horas num pasto dizem muito melhor.
— Tudo bem, então Sam é eficiente no lombo de um cavalo. — Ela
fez com que isso soasse como algo menor.
— Ele lida com o gado como um profissional — vovô acrescentou.
— É um dos melhores vaqueiros com quem já trabalhei em muitos
anos. Agora, diga-me o porquê de tantas perguntas. Você não está
fazendo muito sentido, garota. Ela hesitou, depois encolheu os ombros.
— Russell Letson disse que vários estranhos incidentes começaram a
acontecer, desde que Sam apareceu por aqui. Disse que as pessoas na
cidade estão falando sobre ele. — A voz dela ergueu-se novamente, e ela
inclinou-se para a frente.
— Não sou homem de ficar ouvindo fofocas. E você estará me
desapontando, Molly, se der ouvidos, a isso.
— Mas, vovô, Sam tem passado muito tempo com os meninos.
— Você foi envenenada pela língua ferina de um advogado.
— Mas pensei que o senhor gostasse dele. E o seu advogado!
— Pois deveria despedi-lo, é isso que eu devia fazer! Não quero que
ele fique enchendo sua cabeça de dúvidas.
— Como sabe que ele não está dizendo a verdade? — Molly retrucou.
— O que Russell quis dizer com "incidentes"? Por que o senhor não
me contou estas coisas? E verdade, vovô?
— Besteiras.
— Vovô, por favor. Pense um pouco. Tudo estava bem, e quando Sam
Dakota chegou e começou a agitar a cidade...
— Esta cidade precisava de um pouco de agitação. Todo o maldito
lugar estava se deteriorando. Não sei como isso aconteceu, mas do dia
para a noite a população de Sweetgrass se transformou num punhado de
fanáticos. Agora, vou lhe dizer uma coisa: a briga não foi por culpa de
Sam. Eu vi quando tudo aconteceu, e teria agido da mesma forma.
— Conte-me sobre esta briga. Russell também a mencionou, mas não
me deu detalhes.
Aparentemente, sua mãe não sabia de tudo. O próprio Tom estava
interessado nos detalhes. Talvez Sam não fosse tão grande como alguns
homens, mas era forte. E Tom sabia que ele não era do tipo que foge de
um desafio.
— Não há nada que você precise saber sobre isso, além do que já lhe
contei.
— Vovô, eu preferia que...
— Está se esquecendo de uma coisa, minha querida Molly — vovô
interrompeu. — Se não fosse por Sam Dakota, numa hora dessas eu já
estaria morto.
Um instante de silêncio seguiu aquelas palavras.
— Ah, vovô...
Tom viu a mãe tomar a mão de vovô e pressioná-la contra o rosto.
Ela fechou os olhos e Tom sabia o quanto sentia-se grata por ele estar
vivo. E, tinha de admitir, ele também era muito grato por isso.
— Tem mais uma coisa que quero lhe dizer — vovô prosseguiu
ríspido.
— Sam foi um campeão de rodeios, um dos melhores, até que sofreu
um terrível acidente. Ele conhece o trabalho duro e o valor de um sonho.
Como se isso não bastasse, conseguiu manter esta fazenda funcionando.
Portanto, se você tem algo a dizer para ele, sugiro que comece com um
"muito obrigada".
CAPÍTULO 6
Era mais por hábito do que por necessidade que Sam continuava
parando na casa de Walt todas as manhãs. Com a família por perto, Walt
já não precisava mais que Sam ficasse checando como ele estava. Suas
visitas acabaram se tornando uma simples cortesia: perguntava sobre a
saúde do patrão e, depois, relacionava seus planos para o dia.
Embora o cargo de Sam fosse de administrador, ele tomara para si
todas as responsabilidades que, nas fazendas maiores, eram delegadas a
um gerente geral. Cuidava de toda papelada, encomendava os
suprimentos, contratava e despedia os empregados temporários quando
precisavam de ajuda extra, e organizava todo o trabalho. E também lidava
com os problemas que iam surgindo, e que nunca pareciam ter fim.
Numa manhã, quase ao final da segunda semana de Molly na
fazenda, ele entrou na cozinha e encontrou-a apenas de roupão, descalça,
parada diante da cafeteira. A reação que teve ao vê-la, parecendo tão
quente e sonolenta, com os cabelos despenteados, surpreendeu até a ele
mesmo. Foi como se... como se alguém tivesse dado um soco em seu
estômago.
— Bom dia — ele disse ciente de que soava um tanto agitado. Num
gesto de respeito, tocou a aba do chapéu.
— Sam... olá. — Obviamente, o fato de vê-lo também a deixara
nervosa. Sam observou enquanto ela prendia o robe com mais firmeza em
torno da cintura, esfregando um pé descalço sobre o outro.
Estiveram evitando-se por quase uma semana. Tê-la beijado naquela
noite não havia sido uma de suas manobras mais inteligentes, mas por
mais que tentasse Sam não conseguia arrepender-se do que fez. Ao vê-la
agora, com os cabelos revoltos e o rosto sem maquiagem, pensou que
Molly Cogan era uma mulher adorável, muito mais bonita do que
percebera antes. Era difícil não encará-la.
Sam afastou os olhos e perguntou-se se aquela atração teria alguma
relação com o fato de tê-la conhecido melhor, e também aos meninos. Ele
gostava de Molly, das pequenas coisas que ela fazia para tornar cada dia
especial. Não se passava uma noite sem que ela acrescentasse um toque
extra ao jantar.
As vezes era um buquê de flores-do-campo colocado no centro da
mesa; outras vezes, uma sobremesa sem calorias, preparada
especialmente para o avô. Sem mais discussões, Sam havia se reunido à
família para jantar num domingo e, desde então, continuara aparecendo
todas as noites.
Ele e Molly não se falavam, nem tampouco olhavam um para o outro,
mas ele descobriu-se ouvindo o som contagiante de sua risada. Isso
sempre o fazia sorrir, não importava como estivesse seu humor. A
delicadeza com que ela tratava o avô o deixava emocionado. E pressentia
que era também uma ótima mãe para os meninos. E não era só isso,
ficava impressionado com as melhorias que ela fizera na casa. Molly e os
garotos já haviam feito inúmeros pequenos consertos que ele próprio
deixara de lado por absoluta falta de tempo. Como consertar os degraus
da escada da varanda, pintar a porta da frente, coisas assim.
— Quer tomar café? — ela perguntou, interrompendo seus
pensamentos. Abriu o armário e pegou uma caneca a mais.
— Não, obrigado. Já tomei a minha quota de hoje. Sam já estivera
trabalhando por mais de duas horas, e engolira quase meio bule de café
antes mesmo do amanhecer. Sua rotina era acordar às quatro da manhã,
a fim de selecionar a montanha de papéis e documentos que sempre se
acumulavam, e depois seguir para os estábulos.
Na semana anterior ele contratara dois empregados, jovens
estudantes do ginásio que não exigiam salário alto e eram gratos por ter
um trabalho temporário. Chegavam bem cedo, todas as manhãs, e
voltavam para casa no final do dia. Pete sabia lidar com ferraduras,
consertar cercas e máquinas quebradas. Charlie trabalhava metade do dia
como ajudante e na outra metade arrebanhava o gado; sua
responsabilidade principal era cuidar dos cavalos.
Alguns fazendeiros usavam veículos motorizados ao invés de cavalos,
mas Walt nem queria saber disso. O cavalo era o arrebanhador original,
dizia, e embora tal opinião pudesse ser ultrapassada, Sam geralmente
concordava. Não se opunha a usar a picape no pasto, e o fazia com
frequência, mas nada se comparava a cavalgar. Nada se comparava à
sensação de euforia e liberdade que experimentava no lombo de um
cavalo. Durante seus dias mais difíceis na prisão, era sobre isso que
pensava, e em como escaparia do inferno onde se metera.
Sam obrigou a mente a retornar ao momento presente. Charlie
cuidava bem dos cavalos, mas ele suspeitava que até o próximo ano Tom
teria conhecimentos suficientes para tomar o serviço para si.
O filho mais velho de Molly possuía a sensibilidade necessária para
lidar com cavalos. Isso era algo que não se adquiria. Para Tom, parecia vir
naturalmente. O garoto tinha uma afinidade verdadeira com os animais,
especialmente os cavalos, e aprendia rápido. Muitas vezes fazia com que
Sam se lembrasse de como ele era naquela idade, ansioso em provar o
próprio valor, procurando meios de afirmar sua masculinidade. Nada
melhor do que o trabalho numa fazenda para isso.
Os dois filhos de Molly eram bons meninos. Sam gostaria de dizer
isso a ela, mas hesitava porque a tensão entre eles permanecia muito
forte. Provavelmente por causa daquele maldito beijo.
Sam encaminhou-se para a sala de estar, onde Walt descansava.
Sabia o quanto era difícil para o velho permanecer inativo, algo que era
obrigado a fazer cada vez mais, ultimamente. Este era um dos motivos
que o levava a visitar
Walt todas as manhãs, consultando-o e pedindo-lhe conselhos,
embora raramente precisasse deles.
— Sam — Molly chamou-o quando ele estava prestes a sair da
cozinha. Ele virou-se. — Eu... Há algo que gostaria de lhe perguntar, se
não se importa — ela disse, sem olhá-lo.
Desde aquela noite de sábado em que ela saíra para jantar com
Letson, Sam havia reparado numa mudança em sua atitude. Presumira
que teria algo a ver com o beijo, mas agora já não tinha certeza.
— Vovô disse que você não ofereceu nenhuma referência quando ele
o contratou — ela falou, segurando a caneca de café com as duas mãos.
— Eu queria saber por quê.
— Ele não pediu referências. — Sam endireitou os ombros, num
gesto de desafio. — Você está pedindo, agora?
— Vovô parece achar que não precisa delas. — Um tom de dúvida na
voz de Molly indicou-lhe que ela não concordava com isso.
Se já não tivesse demonstrado sua capacidade e comprometimento
até agora, Sam duvidava que jamais conseguiria. E estava quase lhe
dizendo exatamente isso, quando ela levantou outra questão:
— Ouvi dizer que aconteceram vários... Incidentes inexplicáveis por
aqui, desde que você começou a trabalhar na fazenda.
— Incidentes inexplicáveis?
Decerto aconteceram alguns, mas haviam começado antes de ele ser
contratado, segundo Walt lhe dissera. Perguntou-se quem teria
mencionado isso a Molly. Letson, sem dúvida. Quaisquer problemas com
que Sam se deparava, procurava resolvê-los com rapidez e eficiência. Na
maior parte das vezes não via necessidade de preocupar Walt, portanto
não lhe relatara nenhum dos incidentes mais recentes. O velho sabia
sobre a caixa de correio ter sido derrubada por três vezes, mas somente
porque Ginny Dougherty viera lhe contar. Quanto aos postes das cercas
quebrados, o lixo espalhado e os ovos podres atirados na parte de trás do
celeiro, eram mais um aborrecimento do que um prejuízo.
O incidente mais perigoso acontecera no início daquela semana. Um
moinho usado para bombear a água que os animais bebiam havia sido
derrubado. A princípio, Sam imaginou que o vento e o fato de o moinho
ser muito velho tinham sido a causa, porém um exame mais minucioso
lhe revelou que o estrago fora proposital. Levara mais de meio dia para
consertá-lo.
A mão direita de Molly agarrou a frente do robe.
— Vovô sugeriu que, se eu estivesse preocupada com estas coisas,
deveria perguntar a você. Ele está certo... Você deve ter a chance de se
defender.
Sam cerrou os punhos no mesmo instante.
— Defender-me? — Seus olhos estreitados colaram-se nos dela, e sua
raiva parecia estar prestes a irromper. — Por acaso está sugerindo que eu
seja o responsável?
— Não foi isso que eu disse. — A hesitação dela, antes de responder,
insinuava o contrário. — Só quero saber a verdade. Posso lidar com
qualquer coisa, exceto mentiras. Se você tem algo a esconder, então
preferia que me dissesse tudo agora mesmo.
— Algo a esconder? — ele repetiu. Abria e fechava as mãos, tenso.
— Em outras palavras, está perguntando se fui eu quem causou estes
problemas. Isso não faz muito sentido, para mim. Por que cuspiria no
prato em que estou comendo?
— Para provar o quanto é indispensável. Aparentemente, ela havia
pensado bem naquele assunto.
— Não preciso arrumar mais trabalho para mim mesmo apenas para
provar o quanto sou necessário nesta fazenda. Olhe em volta, Molly. A
fazenda encontra-se num estado deplorável! Somente como está, não
consigo dar conta de tudo o que precisa ser feito. Acredite-me, a última
coisa de que preciso é mais trabalho.
Ela observou-o, como se estivesse verificando a veracidade de suas
palavras. Depois de um instante, assentiu.
— Obrigada, Sam. Peço desculpas se o ofendi.
— Tudo bem. — Ela o irritara de verdade, mas Sam a admirava pela
coragem de confrontá-lo diretamente. Muitas pessoas não agiam dessa
forma, e ele teria sido despedido sem nem mesmo saber o motivo.
— Agora, se me dá licença, vou conversar um pouco com seu avô.
Walt parecia pálido e cansado, quando Sam finalmente entrou na
sala. Apenas o ato de sentar já parecia exaurir todas as suas forças.
— Bom dia, Sam.
— Walt. — Sam tirou o chapéu e sentou-se na cadeira em frente ao
patrão.
— Minha neta está lhe criando problemas? Sam riu, baixinho.
— Nada que eu não consiga resolver.
— Ótimo. — Walt recostou a cabeça na almofada do sofá e fechou os
olhos.
— Você conseguiu comprar o chapéu Stet-sonl — perguntou.
— Sim, comprei um na cidade, ontem. — Sam não mencionou que o
chapéu custara quase cem dólares, e nem que pagara do próprio bolso.
O sorriso de Walt era completo, algo raro até mesmo em seus
melhores dias.
— Tom vai ter uma surpresa, não acha?
— Espero que sim — Sam respondeu também contente com a ideia.
— Ótimo.
Estava na hora de tratar das tarefas do dia.
— Vou mandar Pete e Charlie para o vale Lonesome, para checarem
o...
— Tudo bem, tudo bem. Faça como achar melhor — Walt
interrompeu, com gesto. — Como Tom e Clay estão se saindo? Molly me
disse que eles o seguem por toda parte, como uma sombra.
Realmente os meninos haviam se acostumado a acompanhá-lo por
onde fosse, fazendo perguntas intermináveis, mas Sam não se
incomodava. Na maior parte do tempo eles ajudavam de verdade,
especialmente Tom, fazendo pequenas tarefas como limpar as selas e
varrer os estábulos. Sam sempre podia utilizar um par de mãos extra.
— Tom está se saindo muito bem com as aulas de equitação — disse.
— Gostaria de levá-lo para as pastagens.
Os lábios de Walt contorceram-se num sorrisinho.
— Faça o que achar melhor — repetiu. — E quanto ao mais novo?
— Ainda não. Fica nervoso demais. Precisa adquirir um pouco mais
de autoconfiança, primeiro.
Walt mostrou que concordava assentindo vigorosamente.
— Você não me disse que Natasha já teve os filhotes?
— Sim, uns dois dias atrás. — Sam exibiu um sorriso.
— Clay passa os dias cuidando deles, quando a mãe não o põe para
pintar os batentes ou pregar os degraus da escada.
— Muito bem. Deixe o garoto escolher um dos filhotes. O velho era
mesmo esperto; dar um cachorrinho ao menino seria perfeito.
— Pode deixar.
— E... — Uma barulheira ergueu-se lá fora, seguida de um grito.
Sam reconheceu a voz esganiçada de Ginny, e soube que isso
significava problemas. Levantou-se num salto e correu na direção da
cozinha, quase trombando com Molly em sua pressa.
Afastando-se para lhe dar passagem, ela perdeu o equilíbrio.
Instintivamente, Sam segurou-a pelos ombros, a fim de segurá-la. Não
tinha certeza de como isso aconteceu, mas sua mão roçou de leve nos
seios dela. Foi o mais breve dos contatos, completamente sem intenção, e
ainda assim ele sentiu um fluxo de desejo tão poderoso que era como se
alguém tivesse o tivesse atravessado com uma lança.
Molly também sentiu, por mais leve que tivesse sido o toque, e seus
olhos ergueram-se para ele, surpresos.
Sam abriu a boca para desculpar-se, mas ela balançou a cabeça,
informando-o sem palavras que uma desculpa não seria necessária. Ela
entendia. E havia coisas mais importantes a fazer, naquele momento.
— Sam! — O cavalo da raça Appaloosa de Ginny movia-se inquieto
no quintal, o pescoço suado pelo longo galope. — Eu estava checando
meu rebanho e vi que sua cerca foi derrubada. Tem mais de cem cabeças
indo direto para o rio.
Sam bateu o chapéu contra a perna e praguejou.
Já havia mandado Pete e Charlie passarem o dia fora. Primeiro
precisava encontrá-los, e depois ir atrás do gado. Só rezava para que
nenhum dos animais estivesse ferido ou perdido, antes que pudesse
encontrá-los. Mas isso não era tudo com que tinha de se preocupar.
Recentemente, plantara setenta e cinco acres de alfafa, e o gado solto
seria capaz de destruir a plantação inteira em dez minutos.
— Obrigado por me avisar, Ginny — disse, já correndo para pegar* a
picape.
— O que foi isso, mulher? — Walt gritou da porta, os olhos reluzindo
com mais vida do que Sam havia visto em semanas.
Sam parou, abrupto, e virou-se na direção deles.
— Uma cerca está caída — explicou. A reação de Walt foi idêntica à
dele.
— Mas isso não é o pior — Ginny resmungou.
— O que mais aconteceu? — Walt tornou a gritar.
— Que inferno, mulher, será que só sabe trazer más notícias?
— Não é culpa minha, seu velho rabugento! Se você fosse capaz de
fazer amigos em vez de inimigos, talvez se metesse menos em apuros.
— Vocês querem parar de discutir? — foi a vez de Sam gritar. Não
tinha tempo de ficar parado ali, enquanto os dois trocavam insultos. Se
houvesse mais algum problema, precisava saber logo o que era e tentar
resolvê-lo o mais rápido possível.
O olhar de Ginny desviou-se de Walt para ele.
— Foi de propósito, Sam. Alguém cortou o arame. Desta vez, Sam e
Walt praguejaram ao mesmo tempo.
Molly não entendia o amplo significado do que acontecera. Sabia
apenas que três dias haviam se passado, desde que Sam saíra.
Ela havia ligado para o escritório do xerife, a fim de dar queixa dos
danos, mas não tivera nenhum retorno. Imaginava se aquele tipo de coisa
era considerado um crime de rotina em Montana, do mesmo jeito que a
polícia de San Francisco encarava os arrombamentos de carros.
As refeições eram apressadas, naqueles dias de crise.
Charlie ou Pete sempre levavam alguma coisa para Sam comer, mas
ele nunca aparecia. Molly nem tinha certeza de quando ele estaria
dormindo. Quase contra vontade, enquanto trabalhava no jardim que
começara formar, apanhou-se pensando nele, preocupando-se com ele.
Estava o tempo todo ciente da ausência dele.
Vovô também estava ansioso, atormentando-a com perguntas,
repetindo as mesmas coisas vezes seguidas, a ponto de esgotar sua
paciência. Ele irritava-se e afligia-se, e Molly sabia que isso não era nada
bom para seu coração. Preocupava-se em deixá-lo sozinho mesmo por
pouco tempo, mas vovô detestava que ficassem à sua volta. A atmosfera
na casa parecia estalar de tensão. Molly trabalhava no jardim quase
obsessivamente, tentando escapar.
Os meninos estavam nervosos e agitados, e Molly não importou-se
quando começaram a passar a maior parte do tempo nos estábulos. Era a
maneira deles de lidar com a ansiedade, como cuidar do jardim era a sua.
Na tarde de sábado, o terceiro dia, quando o sol estava prestes a
desaparecer no horizonte, Tom avistou Sam cavalgando lentamente na
direção da casa.
— Mamãe! Mamãe!
— Tom disparou para onde ela estava, as pernas magras e ágeis
levantando uma nuvem de poeira.
Molly deixou a tesoura de poda no chão e passou o braço pela testa
suada. Ainda não se acostumara a ver Tom com aquele chapéu de
vaqueiro. E não se tratava de uma imitação barata, pois parecia ter
custado uma pequena fortuna. Ele o encontrara sobre a cama, no dia em
que ficaram sabendo que a cerca fora cortada. A única pessoa que
poderia tê-lo colocado ali era Sam, mas por quê, ela não sabia. Não que
isso importasse muito a Tom. Ele pusera o chapéu na cabeça e não o
tirara mais, exceto para dormir.
— Estou vendo, querido — Molly falou, olhando na direção do cavalo
e do cavaleiro. A silhueta de ambos recortava-se contra o céu rosado do
entardecer.
Sem querer, Molly prendeu o fôlego. A cena parecia ter sido tirada de
algum filme western clássico. Como "O Retorno do Vaqueiro".
Mas aquele vaqueiro mal dormira por duas noites. Havia feito as
refeições ao ar livre. E enfrentado dias longos e extenuantes trabalhando
sem parar.
Molly levou a mão à garganta. Sam estava meio reclinado na sela,
como se mal tivesse forças para manter-se sobre o cavalo. Conforme foi
aproximando-se da casa e viu Molly e os meninos, ele endireitou o corpo.
Tom e Clay juntaram-se em torno dela. Sam aproximava-se cada vez
mais, e Molly procurou-lhe o rosto, tentando ver sinais de problemas,
temendo que ele trouxesse mais notícias desagradáveis.
Sem saber muito bem o que pretendia dizer, ela correu na direção de
Sam, quando ele parou. Havia tantas coisas que queria lhe falar, que
havia pensado no decorrer daqueles três dias. Mas nem uma palavra
sequer lhe veio à mente, agora.
— Oi! — Aquilo soou incrivelmente idiota. Infantil. Molly queria
engolir a palavra de volta, no instante em que pronunciou-a.
— Oi para você também — ele disse. Sorriu. Era o sorriso lento e
cansado de um homem que estivera longe demais de casa. Um homem
que finalmente retornava e encontrava alguém à sua espera. O olhar dele
prolongou-se sobre o de Molly por um instante a mais, e depois voltou-se
para Tom. — Belo chapéu, filho.
Filho. A palavra escorregara sem qualquer esforço pelos seus lábios, e
Molly observou a reação do menino. E achou que ele endireitava mais o
corpo, ficava mais alto.
A tensão que pesava nos ombros de Molly aliviou-se um pouco.
— Encontrou todo o rebanho?
— Acho que sim. As duas últimas cabeças ficaram atoladas numa
vala, com lama até o meio das pernas. Tive um trabalho danado para tirá-
las de lá. Pete e Charlie já voltaram?
Tom respondeu:
— Chegaram há uma hora.
— Ótimo.
Pela primeira vez Molly reparou que Sam trazia consigo os vestígios
da vala: suas roupas estavam cobertas de lama ressecada. A barra da
calça jeans estava grossa com a lama, bem como as mangas da camisa. O
rosto estava todo salpicado. Era engraçado que ela não havia reparado
nisso antes.
— Vou levar o Thunder para você — Tom ofereceu-se.
— Vou lhe dar uma boa escovada e uma ração extra de aveia. Ele
merece.
— Charlie devia fazer isso. E para isso que estamos lhe pagando.
— Charlie e Pete foram para casa — Molly falou.
Os olhos de Sam fuzilaram brevemente, antes que ele suspirasse.
— Acho que não posso culpá-los. Aposto que jamais imaginaram que
teriam um trabalho tão duro durante o verão.
— Creio que ninguém imaginaria — Molly acrescentou. Apoiando-se
na sela, Sam escorregou pesadamente para
o chão. O couro rangeu e, por um instante, ele se apoiou no cavalo.
— Preciso tomar um banho, comer alguma coisa e dormir, nesta
ordem.
— Sobrou bastante comida do jantar — Molly assegurou-lhe. Tom
pegou o cavalo pelas rédeas e levou-o para o estábulo.
— Não se preocupe com Thunder — disse, sem esconder o prazer que
sentia em poder ajudar Sam.
— Tenho certeza de que vovô vai querer conversar com você,
também — Molly falou. Detestava ter de sobrecarregar Sam com mais
problemas, mas no estado em que vovô se encontrara naqueles últimos
dias...
— Vou fazer um relatório completo para ele, assim que acabar de
comer — Sam prometeu.
Molly perguntou-se se vovô teria paciência para esperar tanto tempo.
Tom e Clay ainda estavam no estábulo cuidando de Thunder quando
Sam entrou na cozinha, recém-saído do chuveiro. Com as roupas limpas e
os cabelos úmidos e penteados, tinha uma aparência impressionante.
Lutando contra o im
Casamento em Montana
pulso de ficar olhando para ele, Molly virou a grossa fatia de
presunto que colocara na frigideira, enquanto esquentava o purê de
batatas e as ervilhas em outra panela.
Sam fechou os olhos e, por um louco momento, Molly receou que ele
estivesse prestes a desabar. Mas logo descobriu que estava apenas
aspirando o aroma da comida caseira.
— Juro que seria capaz de comer um cavalo.
— Não deixe Thunder ouvir isso — ela brincou. Sam puxou a cadeira
e sentou-se junto à mesa.
— Ou Tom — murmurou, rindo.
Molly serviu-lhe a comida e entregou-lhe uma carta que havia
chegado. Sam ergueu os olhos para ela, quando viu o envelope sobre a
mesa, e depois guardou-o no bolso, sem abrir. Não sem uma pontinha de
culpa, Molly havia analisado aquele envelope minuciosamente. O
endereço do remetente era de uma fazenda bem conhecida, no outro
lado do estado.
Sam estava no meio da refeição, quando Vovô apareceu na cozinha.
— Então está de volta.
— Estou de volta — Sam concordou.
— Não ouvi quando chegou — disse vovô. — Acho que peguei no
sono.
Walt puxou a cadeira e sentou-se no outro lado da mesa, de frente
para Sam, que não fizera nem uma pausa em sua apreciação da comida.
Pegou um segundo pãozinho e espalhou uma camada de manteiga.
— Você teve uns dias bem difíceis — Walt falou.
Sam fez que sim, mordendo o pãozinho com uma expressão de puro
deleite.
Molly trouxe uma caneca de café para o avô e sentou-se ao seu lado.
— Molly também tem trabalhado muito — vovô acrescentou.
— Está formando um jardim. Exatamente no mesmo lugar em que
minha Molly tinha o dela. Aquela mulher tinha jeito com plantas. —
Balançou a cabeça, pensativo.
— Aposto que a neta tem o mesmo "dedo verde".
Apenas alguns dias atrás, o lugar em que sua avó cultivara um dos
mais belos jardins que Molly já vira estava coberto de mato e pragas. Com
a ajuda dos meninos, ela limpara todo o terreno, adubara a terra e
plantara hortaliças. Porém, sem resistir, havia acrescentado algumas
flores. Flores fáceis de cuidar, como narcisos e impatiens. O trabalho havia
sido cansativo e ela sentia o corpo inteiro dolorido.
— Teremos de esperar para ver se tenho o mesmo dom da vovó —
ela disse, embaraçada diante dos elogios. Quando criança, ela havia
ajudado a avó a cuidar do jardim, porém nunca tivera um que fosse só
seu. Seria uma experiência, especialmente levando em conta que fizera o
plantio tão tarde.
Vovô franziu a testa.
— Mas tive de impedi-la de subir no telhado. Esta tolinha pensa que
pode consertar uma goteira, também. — Balançou a cabeça.
— Está começando a agir como a Ginny, achando que é capaz de
fazer tudo sozinha.
— Eu pretendia consertar o telhado — Sam falou, com o rosto
nublando-se brevemente. — E uma das coisas que tenho adiado.
— Você já tem muito que fazer — Molly protestou. Não era
completamente inútil e queria que tanto seu avô como Sam soubessem
que ela pretendia fazer a sua parte. E, embora não gostasse muito da
ideia de equilibrar-se no telhado escorregadio, a verdade era que teria de
ser consertado antes do início das chuvas.
— Seu avô tem razão, você não devia subir no telhado — Sam
intercedeu.
— Se eu não puder fazer o conserto na semana que vem, posso
contratar alguém para isso. -— Olhou direto para ela. — Entendeu bem?
—- Entendi — ela resmungou, mas tinha de admitir que era bom
passar a responsabilidade para ele.
A não ser pelos primeiros anos de vida de Tom, nunca houvera um
homem por perto para ajudá-la com coisas como aquela. Ela tivera de
aprender a fazer pequenos reparos e a consertar o que precisava de
conserto, uma habilidade que agora se mostrava bastante útil.
Um breve silêncio se seguiu.
— Alguém ligou para você, esta tarde — vovô falou, em voz baixa.
Alguma coisa na voz dele fez com que Molly achasse que era mais do
que um comentário casual.
— Para mim? — Sam levantou a cabeça.
— Da Fazenda Curly Q, em Laramie. Já ouviu falar? Obviamente
desconfortável, Sam mexeu-se na cadeira.
— O que eles queriam?
Molly olhou de um para outro, intrigada com a tensão que se
instalara entre eles. Pensando bem, vovô estivera agitado desde que
atendera aquele telefonema, resmungando baixinho e perguntando por
Sam a toda hora.
— O sujeito disse que você enviou um pedido de emprego. E
verdade?
— Walt inquiriu.
Sam largou o pãozinho na beirada do prato.
— E, é verdade.
— Eu ainda não morri! — vovô explodiu, com a voz trêmula.
— Sei que não, mas Molly vai vender a fazenda. Só estou tentando
defender meus interesses. — Sam afastou o prato, com o apetite
aparentemente satisfeito, ou arruinado.
— Não vou vender a fazenda — ela afirmou, querendo que isso
ficasse bem claro.
A expressão de Sam dizia o contrário.
— Pode estar pensando assim agora, mas quando as ofertas...
— Já recusei uma oferta — Molly interrompeu. Sua raiva refletia-se
em cada palavra. Sam era igual a todos os outros, via os abutres
sobrevoando e pretendia abandonar o barco o mais rápido possível.
O que a deixava mais preocupada era a ideia de cuidar da fazenda
sem ele. Era uma novata, uma principiante, e sem a ajuda e orientação de
Sam estaria perdida. Se ele fosse embora, talvez não tivesse outra escolha
senão vender a fazenda.
Vovô e Sam encaravam-na. Ela piscou.
— O que foi?
— Já recebeu uma oferta pela fazenda? — vovô perguntou.
— De quem?
— Não sei quem é o cliente de Russell. Ele não quis me dizer.
— Letson lhe fez a oferta? — Assustada, Molly viu o rosto do avô ficar
muito vermelho, e em seguida ele soltou uma enxurrada de palavrões,
alguns dos quais ela nunca ouvira antes.
— Vovô! — exclamou, dando graças pelo fato de os meninos não
estarem presentes.
— Não se pode confiar naquele filho da mãe.
— Vovô fechou os olhos e respirou fundo várias vezes, tentando se
acalmar.
— Não vou vender a Flecha Quebrada — Molly repetiu, voltando-se
para Sam.
Era como se as bases de tudo o que planejara estivessem se
trincando. Sem Sam para administrar a fazenda, para vender o gado e
ensinar-lhe tudo o que precisava saber, estaria irremediavelmente
afundada em problemas, numa questão de dias. Não havia ninguém mais
a quem pedir ajuda. Os empregados que ele contratara eram apenas
estudantes, e estariam de volta para a escola muito em breve.
— Desculpe se o desapontei, Walt — Sam falou, e de fato parecia
contrito.
— Mas tive de pensar em mim. Nós dois sabemos que vou ficar aqui
pelo tempo que você precisar de mim.
Molly percebeu a ênfase. Ele estava dizendo que sua lealdade
pertencia a vovô, e não a ela e aos meninos. Não somente as bases de seu
futuro haviam sido trincadas, mas toda estrutura estava prestes a desabar
aos seus pés. No entanto, o orgulho falou mais alto e ela recusava-se a
permitir que aquele... Aquele administrador volúvel soubesse o quanto
estava sofrendo.
— Ele está certo, vovô — disse, com um ar indiferente, como se
deserção de Sam nem a preocupasse. — Seria tolice pensar que Sam
ficaria por mais tempo do que o necessário. Ele tem a própria vida com
que se preocupar.
Mesmo enquanto falava, sentia a raiva aumentar ao pensar que
aquele homem em quem ela decidira confiar, contra sua própria vontade,
diabos!, faria algo tão desleal. Fora um erro confiar nele, acreditar que ele
realmente se importava com a fazenda, ou importava-se com qualquer
outra pessoa ali, exceto vovô, para querer ficar.
Havia começado a baixar a guarda com Sam, e os meninos haviam
feito o mesmo, admirando-o e confiando nele implicitamente. E isso fora
um grande erro, sem dúvida.
Molly levantou-se abruptamente e pegou os pratos sujos, jogando
neles os talheres.
— Molly...
— Está tudo bem, vovô.
Felizmente, algo em sua voz revelou que não estava disposta a
continuar com aquela discussão. De costas para os dois homens, atirou os
pratos na pia e começou a lavá-los com força suficiente para remover até
as flores estampadas.
Ouviu Sam sair e seu avô arrastar-se novamente para a sala. Fechou
os olhos, grata por ambos terem saído, deixando-a em paz.
Apoiou as mãos na beirada da pia e respirou fundo, e depois
começou a lavar as panelas, lutando contra a emoção que ameaçava
sufocá-la.
Não se podia confiar nos homens, pensou. Havia aprendido esta lição
dolorosa anos atrás. Mas Sam Dakota, com sua rude gentileza em relação
a vovô e seu tratamento paciente para com os meninos, havia aberto uma
pequena fresta no coração teimoso de Molly. Ela não queria que nada
disso acontecesse! Então, houvera aquele beijo no estábulo... Ficava
desolada ao lembrar-se do quanto se preocupara com ele naqueles
últimos três dias, esperando-o, até sentindo saudade.
Sam não era o problema, concluiu, batendo com a frigi-deira no
secador de louças. Ela era. Sentindo as mãos trêmulas, parou por um
instante, fechando os olhos novamente.
Depois de arrumar a cozinha Molly saiu a fim de continuar seu
trabalho no jardim. Já estava escuro, mas a luz do quintal estava acesa e
ela achou que um pouco de esforço físico poderia ajudá-la a lidar com a
raiva.
Honestamente, tinha de admitir que Sam não teria motivos para
continuar trabalhando na fazenda sem o vovô.
Ela havia presumido que ele estaria disposto a ficar mas, como
sempre, se enganara.
Pegando a tesoura de podar, Molly começou a desbastar a base de
uma videira, cujos ramos haviam se enrascado nos galhos mais baixos das
macieiras. O pomar que sua avó plantara consistia de seis árvores, duas
de ameixas, duas de maçãs e duas de peras. E estava tão abandonado
quanto estivera o jardim.
Desabafando a frustração enquanto podava as teimosas videiras e
arrancava os ramos com as mãos protegidas por luvas, Molly deu-se conta
de que aquela carta endereçada a Sam deveria ser a resposta para um
pedido de emprego.
Não que isso importasse. Não mesmo. Por que Sam Dakota seria
diferente de Daniel, ou de qualquer outro homem que ela conhecera?
Com exceção de vovô, é claro. Molly ignorou a fraca voz interior que lhe
dizia que, talvez, ela não estivesse sendo justa. Aquela era a sua
recompensa por ter confiado, por ter-se permitido gostar de alguém e
nutrir esperanças, pensou, com raiva. O que mais doía era o fato de saber
que realmente começara a gostar de Sam. Ele havia demonstrado mais
interesse por seus filhos nas duas últimas semanas do que o pai deles
tivera durante as suas vidas inteiras.
Ele fizera amizade com seus filhos, e durante todo o tempo planejava
ir embora, abandoná-los. Isso era cruel e injusto. Diabos, ele até a fizera
acreditar que se importava, não apenas com vovô, mas com toda a
fazenda e... Com os meninos. E, apesar do aviso de Russell Letson, ela
confiara nele.
— Mamãe! Mamãe! — Clay veio correndo do estábulo, gritando de
excitação.
Ela parou, virando-se para ele. Clay carregava um embrulhinho nos
braços.
— Veja! — ele exclamou, estendendo o filhote para que ela
examinasse.
O cachorrinho collie era tão novo que os olhos nem estavam abertos.
— Você se lembra de que eu falei que os filhotes de Natasha tinham
nascido? — Clay mal conseguia se conter. — Sam disse que eu posso
escolher um deles, só para mim! Eu nunca tive um cachorro, e agora
posso escolher o que quiser. Sam disse que preciso treiná-lo e cuidar dele.
Ele disse que...
Mais um "Sam disse" e Molly jurava que iria explodir.
— Ele lhe deu o cachorrinho? — interrompeu áspera. Clay assentiu.
Toda excitação desapareceu dos olhos dele, substituída pela expressão
séria de uma criança que sabe que está prestes a ouvir algo
desapontador. Segurou o minúsculo filhote contra o peito, como se
temesse que a mãe fosse arrancá-lo de seus braços.
Molly largou a tesoura no chão e encaminhou-se para o estábulo com
passos rápidos. Queria confrontar Sam agora mesmo. Não iria descansar,
não conseguiria dormir, até que resolvesse tudo de uma vez.
— Mamãe... Mamãe, o que vai fazer?
— Clay perguntou, alcançando-a.
— Já tenho idade para cuidar do cachorrinho, eu juro! Vou fazer tudo
certo, dar comida para ele, escovar o pelo e treiná-lo para trabalhar com
o rebanho, do mesmo jeito que Natasha.
Era muita coragem. Como Sam se atrevia a dar um filhote de cachorro
ao seu filho sem lhe pedir permissão? Ele lhe prometera que não faria
mais esse tipo de coisa! Não apenas estava abandonando-a e aos seus
filhos, mas também complicava sua vida antes de partir. Isso já era
demais!
Embora cansado, Sam não fora direto para a cama, como
provavelmente deveria ter feito. Encontrou Molly no lado de fora do
estábulo, e sua postura, sua atitude, revelavam um ar de desafio.
— Eu já havia lhe avisado sobre este tipo de coisa
— Molly disparou.
— Avisado de quê?
— Deixei muito claro que primeiro você deveria falar comigo, antes
de fazer qualquer coisa assim.
Sam fitou-a como se não soubesse do que ela estava falando.
— Escute, Molly, se está se referindo ao filhote...
— E o que mais poderia ser? — Enquanto falava, ela própria percebia
que sua reação era exagerada, mas não pôde se conter. A raiva e o
ressentimento fundiam-se em sua mente.
— Mamãe, eu já tenho idade para cuidar do cachorrinho. De
verdade!
— Clay insistiu, quase chorando. — Vou cuidar bem dele, prometo. —
Suas palavras cortavam o coração de Molly.
— Nada disso tem a ver com o cachorro, e você sabe — Sam retrucou,
calmamente.
Ele tinha razão.
— Isso tem a ver com o telefonema que Walt recebeu, não é? E com
aquela carta. — Sam passou a mão pela testa. — Um homem precisa
trabalhar Molly.
— Você poderia ter-me perguntado o que eu pretendia fazer com a
fazenda, primeiro!
Ele franziu a testa.
— Talvez, mas na época a situação não me parecia muito promissora.
— Mamãe! Mamãe! — Clay puxava a barra da sua blusa, tentando
chamar-lhe a atenção.
Ela olhou para o filho, sentindo-.se culpada.
— Pode ficar com o cachorrinho — disse suavemente, sentindo-se
uma megera pela maneira como o tratara.
Porém, antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, ouviu vovô
chamando por ela e por Sam. Virou-se e avistou-o parado no topo da
escada da varanda.
Pensando que algo de errado pudesse ter-lhe acontecido, Molly
disparou na direção do avô. Sam seguiu-a de perto.
Vovô apoiava-se fracamente no batente da porta, quando
aproximaram-se.
— Preciso falar com vocês dois — disse.
— Talvez este não seja o melhor momento — Molly avisou. Sam
estava exausto, e ela... ela também estava. Emocional e fisicamente
exausta.
— E um momento tão bom quanto qualquer outro — vovô afirmou.
Sem esperar por outro argumento encaminhou-se para a cozinha, e
os dois não tiveram outra escolha senão segui-lo.
— Encontrei uma solução — ele anunciou, com um largo sorriso.
— Solução para quê? — Sam quis saber. Parecia tão impaciente
quanto Molly se sentia.
— Para vocês dois e a fazenda — vovô explicou. O sorriso alargou-se
ainda mais enquanto olhava primeiro para a neta, e depois para Sam. Riu
alto, divertindo-se de verdade. — Vocês já estão brigando como se fossem
casados. E minha idéia é: vamos tornar isso oficial.
CAPITULO 7
Pearl estava cansada. Fora uma noite agitada e seus clientes
habituais haviam sido mais exigentes do que o normal. Achava cada vez
mais difícil demonstrar entusiasmo, ou melhor, o falso entusiasmo
necessário para seu trabalho. Ela era boa no que fazia. Uma das
melhores. Os homens lhe diziam isso desde os seus dezesseis anos. Jamais
tivera a chance de ser uma adolescente como as outras. Seu tio lhe
roubara a virgindade quando ela mal tinha idade para saber o que havia
acontecido e, mais tarde, apresentou-a aos amigos. Quando estava no
ginásio, Pearl já aprendera como usar seu corpo para obter qualquer coisa
que quisesse. Expressava todas as emoções através do sexo. Felicidade.
Tristeza. Dor. Raiva. Isso era tudo o que ela sabia. A necessidade sempre
presente de ser desejada, amada. Usada.
Nunca pretendera tornar-se uma prostituta, mas agradar os homens
na cama era o único talento que possuía capaz de lhe garantir uma renda
decente.
No início, quando ainda era jovem e bonita o bastante para atrair as
atenções, até que fora divertido. Não havia sido apenas sexo, então.
Havia os jantares em bons restaurantes, garrafas de champanhe e, por
umas poucas horas, ela podia fazer de conta que estava saindo com um
namorado. O fingimento também era bem mais fácil. Os suspiros suaves e
os gritos ofegantes vinham sem muito esforço, e quando o freguês
acabava ela colava-se a ele e sorria secretamente consigo mesma. Cada
um deles reivindicava os direitos sobre o seu corpo, que ela cedia por
uma determinada quantia, porém nenhum deles jamais tocou seu
coração. Somente Russell.
Com ele era diferente, sempre fora diferente. Na primeira vez em que
a visitara, estava muito nervoso e até um tanto envergonhado. No
entanto, surpreendentemente, muitos homens agiam dessa forma.
Muitos procuravam-na porque tinham certos "problemas" e achavam que
ela poderia ajudá-los. Outros ficavam nervosos porque temiam o
desconhecido, embora o medo frequentemente lhes aumentasse o
prazer.
Pearl sabia como controlar estes amantes ansiosos mas relutantes,
tentando-os, provocando-os e encorajando seus temores. No instante em
que estavam prontos para se levantar e fugir correndo, ela os acalmava,
satisfazendo cada desejo. E, inevitavelmente, eles sempre acabavam
voltando. O medo os fazia voltar. O medo e o prazer.
Então Russell entrara em sua vida. Ela fora seu presente de
aniversário, e as instruções que recebera de Monroe haviam sido bem
específicas. Ela seria o prêmio por Russell ter feito um favor a Monroe, e
teria de fazê-lo feliz por toda a noite. Em troca de seus serviços, receberia
uma contribuição generosa. Pearl aceitou a oferta de bom grado. Bastava
manter o homem satisfeito por uma noite, e receberia mais do que
normalmente ganhava com cinco ou seis.
Logo que ele chegou, Pearl ficou surpresa. Havia imaginado um
homem que tivesse problemas em atrair as mulheres, mas era evidente
que este não era o caso. Russell era bonito o bastante para ter qualquer
mulher que quisesse. Certamente não precisava dela, quando muitas
mulheres ficariam ansiosas em dormir com ele de graça.
Porque ele estava nervoso, esforçando-se para não demonstrar, e
porque tinham a noite toda pela frente, Pearl sugerira que tomassem
uma taça de vinho primeiro. Russell começara a falar para preencher o
silêncio desconfortável. Conversava com ela como se fosse uma amiga,
uma garota com quem saíra para um encontro. Não como uma prostituta.
E, mais importante que tudo, ele a tratara com respeito.
Logo descobriram que gostavam dos mesmos filmes e ouviam o
mesmo tipo de música, jazz de Nova Orleans. Normalmente era ela a
responsável por deixar um freguês à vontade, mas fora Russell quem
fizera com que ela baixasse a guarda e relaxasse.
Logo ela estava rindo e brincando com ele, como se o conhecesse a
vida inteira. Russell era maravilhoso, com sua conversa interessante e um
senso de humor inteligente. Depois de algum tempo, ele tirou os sapatos
e apoiou os pés na mesinha de centro. Depois, afrouxou o laço da
gravata. Como não havia jantado, sugeriu que pedissem uma pizza.
Aquela foi a primeira vez que um freguês mandou entregar comida na
casa dela.
Enquanto comiam, ele perguntou se podiam ligar a tevê e assistir um
filme. Enroscaram-se no sofá como um casal de namorados adolescentes
e Pearl recostou a cabeça no ombro dele.
Jamais havia experimentado tanta ternura em sua vida. Nunca ficara
sentada num sofá em companhia de um homem, sem que ele começasse
a deslizar as mãos pelo seu corpo. Nunca, desde aquela primeira noite
com Russell.
O mais irônico era que ela recebera mais para distraí-lo do que se
tivesse trabalhado numa festa de despedida de solteiro e, no final, tudo o
que fizeram fora trocar um beijo. Um beijo lento, delicado. E tão doce que
ela sentia lágrimas nos olhos todas às vezes em que se lembrava. Russell
poderia tê-la possuído a qualquer hora, e ela o receberia de bom grado.
Mas ele não o fizera.
Se contasse a alguém o que havia acontecido naquela noite, ou, mais
precisamente, o que não acontecera, sabia que as pessoas teriam uma
ideia errada a respeito dele. Poderiam sugerir que fosse gay, ou
impotente. Ou assexuado. Mas Russell não era nada disso. Pearl tinha um
sexto sentido para essas coisas, e sabia muito bem. Ele era um homem de
verdade e, mais do que isso, Russell Letson era um cavalheiro.
Como Sweetgrass era uma cidade pequena, não demorou muito para
que Pearl o encontrasse por acaso. Ela estava no supermercado e, quando
o viu, seu coração, aquele que ela presumira estar atrofiado e morto,
quase saltara para fora de seu peito. Entretanto, uma prostituta conhecia
seu lugar e algo que ela jamais fizera era cumprimentar um freguês em
público.
Evitando olhá-lo, havia passado por ele sem dizer uma palavra. Fora
uma das coisas mais difíceis que já fizera em sua vida. Ao chegar no
estacionamento, sentiu vontade de chorar. Mas prostitutas não choram,
esta era a primeira regra. Nunca se importam. Nunca revelam quaisquer
sentimentos verdadeiros. A mente era oca, e o corpo era... Algo para ser
usado.
Russell a seguira para fora do supermercado e ela lhe explicara que
não seria bom para ele ser visto ao seu lado. As pessoas iriam comentar.
Mas ele insistiu que não se incomodava com isso. Queria tornar a vê-la,
mesmo se para isso tivesse de pagar pelos seus serviços. Pela primeira vez
em sua vida, Pearl recusou um freguês pagante.
Mas Russell não desistiu. E por receio de comprometer a reputação
dele, Pearl recusou-se a permitir que ele a visitasse. Foi então que ele lhe
falou sobre o chalé que tinha no Lago Giles, que ficava a cerca de oitenta
quilômetros da cidade.
Ele simplesmente marcou uma hora na tarde de domingo e deu-lhe
as instruções de como chegar lá.
Nada a impediria de ir àquele encontro. Quando ela chegou, Russell
foi recebê-la na varanda e sorriu como se a chegada dela significasse tudo
no mundo. Depois disso, ela dirigia até o chalé de Russell todos os
domingos e, a cada visita, transformava-se um pouco mais. Quando
estava com ele, não precisava de maquiagem, nem de roupas sensuais.
Ele gostava mais quando ela amarrava os cabelos num rabo de cavalo,
usava calças jeans e uma camiseta larga.
Com o passar do tempo, e por confiar nele, Pearl lhe contou seu
segredo mais vergonhoso: que nunca aprendera a ler.
Pearl jamais preenchera um cheque, jamais mergulhara num bom
livro ou seguira uma receita culinária. Ela havia chorado e ocultado o
rosto, depois de lhe dizer a verdade. Mas, ao contrário dos outros que
zombavam dela e chamavam-na de estúpida, Russell afastara suas
lágrimas com um beijo e dissera que iria ensiná-la a ler. E foi naquele dia
que todo seu mundo se transformou.
Eles haviam se tornado amantes, mas não imediatamente. Várias
semanas se passaram, antes disso. Russell era um amante dedicado,
apaixonado e carinhoso.
Foi com ele que Pearl fez amor pela primeira vez em süa vida. Depois,
chorou nos braços dele e, aconchegando-a contra si, ele também chorou.
Nunca falavam sobre o que ela fazia durante as noites. Era um
assunto tão proibido quanto o futuro.
Pearl não sabia se aquilo era amor. Sabia apenas que o que sentia
por Russell jamais sentira por qualquer outra pessoa. Vivia apenas pelos
domingos, pelo tempo que passavam juntos. E embora nunca tivesse se
dedicado aos afazeres domésticos, descobrira o quanto gostava de
cozinhar. Todas as semanas experimentava receitas novas, preparando e
servindo pratos requintados para ele. Pearl gostava de fingir que aquela
era a sua vida verdadeira, aquelas poucas horas roubadas longe de
Sweetgrass, e que todo o restante não passava de um pesadelo do qual,
eventualmente, ela acabaria acordando.
As duas horas da madrugada de sexta-feira, quando já dera a noite
por encerrada, Pearl ouviu a porta dos fundos se abrir. Sentiu um fluxo de
adrenalina perpassar-lhe o corpo, e enrijeceu. Apenas uma pessoa tinha a
chave daquela porta; somente uma pessoa se atreveria a chegar tão
tarde. O homem que ela odiava: Monroe, primo de Russell. Como dois
homens podiam ser tão diferentes? Monroe a controlava, e também a
uma dezena de mulheres em várias cidadezinhas por todo o nordeste de
Montana. Ele mantinha seus clientes na linha, fornecia-lhe camisinhas
com desconto e, frequentemente, fazia uso de seu corpo.
— Pearl! — Monroe gritou seu nome, a voz exigente e impaciente.
Ela fechou os olhos, cerrando os dentes. Ele estivera bebendo. As
vezes ficava violento quando bebia, e frequentemente as marcas roxas
demoravam uma semana para desaparecer de seu corpo.
Outras vezes, ele se comportava como uma criança. Poucos meses
atrás, quando estava bêbado, ele a amarrara na cama e, depois de tudo o
que ele fizera, Pearl entrara em pânico, certa de que pretendia matá-la.
— Pearl — ele chamou novamente, agora soando como um garotinho
que perdeu o brinquedo. Um menininho querendo a mãe.
Os ombros de Pearl relaxaram de alívio. Podia lidar com o garotinho;
era o bêbado violento que a amedrontava.
— Estou aqui, nenê — respondeu com suavidade, entrando na
personagem.
Ouviu-o atravessar o corredor escuro e obrigou-se a sorrir quando ele
parou na soleira da porta, parecendo perdido e desamparado sob a luz
fraca do abajur.
— Quer que a mamãe faça você sarar? — murmurou carinhosamente.
Ele abriu a fivela do cinto e assentiu.
— Fiquei a noite inteira esperando você.
— Pearl recitou a frase bem ensaiada, enquanto desfazia o laço de
seu robe de seda. — Você sabe o quanto é especial para mim. Venha aqui
com a mamãe, e deixe-me fazê-lo se sentir melhor.
— E por isso que estou aqui. Me faça melhorar, Pearl. Agora...
Ela forçou um sorriso, que era quase uma careta, enquanto ele
cruzava o quarto e desabava por cima dela, esmagando-a com seu peso.
Exalava um odor forte de bebida e cigarros. Ela mal teve tempo de lhe
colocar a camisinha, antes que ele começasse a ofegar e gemer, com a
cabeça atirada para trás e os dentes cerrados.
Pearl fechou os olhos e virou a cabeça para o lado, rezando para que
ele acabasse logo. Com os olhos fechados podia sonhar com o dia em que
estivesse livre dele, e de todos os homens como ele.
Walt sorriu levemente diante da idêntica expressão de espanto nos
rostos de Molly e de Sam. Se não estivesse falando sério, seria capaz de
começar a rir naquele instante. Porém, a sugestão de que eles se
casassem fazia todo sentido para ele. Muito sentido. Para ser honesto,
isso só lhe ocorrera recentemente, portanto não podia culpá-los por não
estarem enxergando o óbvio, quando a ideia ainda era quase tão nova
para ele quanto era para ambos.
Sam encarou Walt de tal forma que era como se desconfiasse que
havia algo mais de errado com o patrão, além de um coração fraco. Os
olhos de Molly eram mais sinceros: reluziam como fogo na madeira verde
demais para queimar direito.
— Vovô.
— Walt.
— Vamos sentar um pouco na varanda — Walt falou.
Sempre gostara da tranquilidade das noites de verão. Gostava de
imaginar que sua Molly estava balançando na cadeira ao seu lado, e de
uma forma espiritual acreditava que ela jamais o abandonara realmente.
Sentia a presença dela muito mais do que sentia sua falta, naqueles
últimos tempos, e suspeitava que era porque iria juntar-se a ela em
breve.
Nenhum médico precisava lhe dizer que seus dias estavam contados.
Walt sentia isso e, por mais difícil que fosse deixar a neta e os bisnetos,
estava pronto para partir.
Acomodando-se na cadeira de balanço, esperou que um dos dois
fizesse a primeira objeção. Riu baixinho ao perceber que ambos ainda
estavam atônitos demais pra falar.
— Está achando tudo isso engraçado, velho? — Sam perguntou, com
voz dura.
O administrador não costumava usar aquele tom de voz com ele mas
Walt o perdoou, considerando que Sam passara a maior parte dos
últimos três dias numa sela, à procura do rebanho.
— Vovô, acho que o senhor não entende a gravidade do que acabou
de dizer — Molly falou em seguida, num tom bem mais delicado.
— Acha que estou senil, menina? E isso que está pensando?
Reconheço que minha sugestão é um tanto chocante, mas vamos ser
realistas. Não vou ficar por aqui por muito mais tempo e...
— Não diga isso — Molly interrompeu, sentindo-se mais confortável
negando do que encarando seus temores.
Um suspiro profundo trovejou no peito de Sam.
— Está falando bobagens, velho.
Mas a diversão de Walt não diminuiu. Não esperava que nenhum dos
dois aceitasse a ideia de imediato. Aliás, na primeira vez em que pensara
naquilo também presumira que não iria funcionar. No entanto,
examinando a ideia com mais cuidado, sua sensatez tornou-se mais que
evidente. E ele esperava, sinceramente, que aqueles dois tivessem o bom
senso suficiente para reconhecer isso, para enxergar as vantagens.
— Você vai aceitar aquela oferta de trabalho?
— Walt indagou, fitando Sam com os olhos semicerrados.
— Já lhe expliquei. Não faço caridade, nem tampouco espero receber
caridade. — A expressão de Sam era tão impenetrável quanto sua voz.
— Molly não vai conseguir cuidar da fazenda sozinha — Walt
prosseguiu.
— O que estou lhe perguntando, Sam, é o seguinte: você planeja sair
daqui no instante em que eu estiver a seis palmos debaixo da terra?
Sam não respondeu, e Walt não culpou-o por isso.
— Não preciso dele — Molly afirmou, num tom de desafio.
— Este seu orgulho só vai lhe criar problemas, garota — Walt falou.
— Sem o tipo certo de ajuda você perderia a fazenda em um mês.
Está preparada para apagar quatro gerações de história, apenas porque é
orgulhosa demais para admitir que precisa de Sam?
— Preciso de alguém que administre a fazenda, reconheço, mas
posso muito bem passar sem um marido.
— Eu também não estou procurando uma esposa — Sam retrucou.
Cruzou os braços, recostou-se no cercado da varanda e baixou os olhos
para o piso de tábuas de madeira recém-pintadas.
— Não seria um casamento de verdade — disse vovô. Havia pensado
muito nessa parte e concluiu que se eles não estivessem interessados
num casamento normal, então um acordo de negócios seria a melhor
solução. Embora desconfiasse que aquele casamento de conveniência não
permaneceria assim por muito tempo...
Nos meses desde que Sam viera trabalhar na fazenda,
Walt passara a gostar dele cada vez mais. Seu próprio filho morrera
havia muito tempo, e porque amava Molly, preocupava-se com o seu
futuro, e com o de seus bisnetos. Do seu ponto de vista, ela precisava de
um homem, e Walt não podia pensar num homem melhor para ela do
que Sam Dakota.
— O senhor está falando sobre um casamento de conveniência?
— Molly indagou, cruzando os braços. — Está pensando que as
pessoas realmente concordam com este tipo de coisa, hoje em dia?
— Faz todo sentido — vovô respondeu, calmamente.
— Não, para mim não faz — Sam resmungou.
— Quando, e se eu me casar, não será para fazer nenhum acordo de
negócios. Minha esposa terá de compartilhar da minha vida e da minha
cama.
Molly empinou o queixo com uma expressão de desafio, à menção
que ele fez sobre a cama.
— Isso tudo está completamente fora de cogitação.
— Se vocês dois pararem de ser tão malditamente teimosos e me
escutarem, talvez aprendam alguma coisa. — Walt sabia que suas forças
eram limitadas e não queria perder mais tempo discutindo com aqueles
dois tolos teimosos. Respirou fundo e recomeçou: — Em primeiro lugar,
Sam, você deveria ser capaz de reconhecer a preocupação de Molly. Pois,
pelo que sabemos, pretende trabalhar em outro lugar. Até já começou a
procurar outro emprego.
— Exatamente. — Molly olhou para Sam como se dissesse que
duvidava que algum dia seria capaz de confiar nele. Sam devolveu-lhe um
franzir de testa. Walt balançou a cabeça, mas compreendia a necessidade
que ambos sentiam de se defender, muito mais do que eles se davam
conta.
Os lábios de Sam estreitaram-se.
— Walt, o que o leva a pensar que ajudaria se eu me casasse com
Molly?
— Porque você teria um capital investido e um interesse em manter a
fazenda fora do vermelho.
— Por acaso está sugerindo que não estou dando cem por cento
neste exato momento?
O fato de que Sam mal conseguia manter-se de pé dizia mais sobre
seu compromisso com a fazenda do que qualquer afirmação que ele
tivesse feito.
— É por você ter trabalhado tanto que estou preparado para lhe
fazer esta oferta — vovô retrucou baixinho.
— Oferta? — Molly intercedeu.
— O quê, exatamente, está sugerindo, vovô?
Walt gostava da objetividade da neta. A sua Molly também fora
assim, embora de forma um pouco mais sutil. Aquela crosta protetora em
torno do coração de sua neta aparecera por causa do divórcio. Ela
cometera um erro de julgamento e pretendia punir-se pelo resto da vida.
Sim, quanto mais pensava nisso, mais se convencia de que o casamento
seria bom para ela. E para Sam, também.
Walt amava Molly, amava Tom e Clay. Seu sangue corria nas veias
deles.
Eram tudo o que lhe restara naquele mundo, além das terras que
recebera de seu pai. Convencê-los a concordar com aquele casamento
talvez fosse a última coisa que faria por ela. O último meio que teria de
proteger o seu futuro. E, diabos, isso era o mais importante.
— Eu estava pensando... — A voz de Walt era quase um sussurro,
pois sua energia estava se esvaindo. Era uma tarefa difícil encontrar as
palavras certas.
— Eu me sentiria melhor se a deixasse nas mãos de alguém em quem
confio.
— Eu já lhe disse vovô: não preciso de ninguém para cuidar de mim!
E não preciso de um marido. — Molly enviou-lhe um olhar atento. —
Vovô, o senhor está cansado?
— Quando ele balançou a cabeça, em negativa, ela suspirou.
— Escute — recomeçou, — digamos que eu concorde com esta ideia
absurda. Não há nada que garanta que Sam não vá me abandonar depois
que estivermos casados.
— Não se ele tiver algo a perder.
— Como o quê, por exemplo? — Sam perguntou. Descruzou os braços
e apoiou as mãos no cercado, inclinando-se levemente para a frente.
— Quinhentos acres de terra e cinquenta cabeças de gado. Molly
ofegou e seu rosto ruborizou-se profundamente.
— O senhor está oferecendo a ele terras e gado para que case
comigo? Como um dote? Ninguém mais faz isso, hoje em dia!
— Estou oferecendo a Sam algo que ele sempre quis — vovô
explicou. Não adiantava querer enfeitar as coisas. Aquela era a verdade,
pura e simples.
— Um homem é capaz de lutar até a morte por causa da terra e do
gado.
— E de largar mulher e filhos num piscar de olhos!
— Parece que você tem uma opinião bastante desfavorável a respeito
dos homens — Sam comentou distraidamente, sem revelar nada da
emoção que, Walt sabia, fervilhava sob a superfície.
Molly estava em desvantagem, Walt pensou, pois não conhecia Sam
por tanto tempo quanto ele. Sam não lhe contara quase nada sobre seu
passado, mas Walt confiava nele. Completamente. Entregara-lhe a
administração de sua fazenda, e embora fosse bem fácil para Sam enganá-
lo ou roubá-lo, ele nunca o fizera. Nem mesmo um centavo. Trabalhava
duro, e Walt não podia pedir mais do que isso.
No entanto, estava pedindo. Queria que Sam casasse com Molly. Que
fosse um pai para os filhos de Molly. Walt desejava ter certeza de que,
quando fosse levado para a sepultura, sua família e suas terras estariam
nas mãos de um homem capaz de cuidar bem delas.
— O que fazer do casamento vai depender apenas de vocês — vovô
falou, olhando de um para o outro. Cansado, fechou os olhos. Quase
desejou estar por perto para presenciar a batalha. Molly não entregaria
os pontos facilmente, e tampouco Sam, mas ele podia apostar um ano de
rendimentos que não demoraria muito para que os dois acabassem se
apaixonando.
Sua maior tristeza era que não conheceria os filhos deles, e nem os
apertaria contra o peito.
— Walt? — A voz de Sam fez com que ele abrisse os olhos.
— O senhor está cansado — Molly falou com suavidade. Parecia
tanto com a voz de sua Molly que, por um segundo, Walt ficou confuso.
— Vamos ajudá-lo a ir para a cama — Sam estava dizendo. Molly
devia ter concordado, porque em seguida Walt estava sendo levado pelos
dois até o seu quarto. Era o único que ficava no andar de baixo, pois o
acesso aos outros cinco cômodos tinha de ser feito pelas escadas.
— Saiam daqui — ele disse, usando a pequena reserva de forças que
ainda possuía. — Posso despir-me sozinho. Vocês dois precisam
conversar. — Olhou na direção de Molly. Sabia que, dentre os dois, era
ela quem precisava ser convencida. — Ponha algum juízo na cabeça desta
menina, meu rapaz — acrescentou, voltando-se para Sam.
— Acho que vocês estão malucos! — ela exclamou.
— Entenda bem uma coisa, Sam Dakota: eu não vou me casar com
você. Seria uma idiota se concordasse com algo tão... tão...
— Ridículo — ele completou.
Ela abriu a boca e fez um gesto de cabeça, assentindo.
— E exatamente a palavra que eu estava procurando. Isso tudo é
ridículo. E o fato de que alguém do meu próprio sangue tenha sugerido
uma coisa dessas...
— Talvez devêssemos deixar Walt descansar, agora — Sam
interrompeu, farto daquele assunto.
Um homem teria de ser extraordinário, além de forte e honesto, para
conseguir lidar com sua neta, Walt concluiu. E estava convencido de que
Sam era este homem.
Agora, tudo o que precisava fazer era convencer Molly.
Se não escutasse com seus próprios ouvidos, Sam jamais acreditaria
que Walt tivesse realmente sugerido que ele e Molly se casassem.
Ela também não parecia muito encantada com a sugestão.
— Quero que saiba, desde já, que nada do que disser me fará mudar
de ideia — Molly falou, no instante em que saíram do quarto de Walt.
— Eu não disse que estava interessado em casar com você — Sam
retrucou.
— E nem precisava. — Ela marchou até a cozinha, pegou a chaleira e
enfiou-a debaixo da torneira. — Não é nada pessoal, mas não tenho a
menor intenção de casar novamente.
— Tudo bem.
Sam não estava com disposição de discutir com ela, apesar de que,
com toda honestidade, achava bastante atraente a ideia de ser dono de
quinhentos acres e mais cinquenta cabeças de gado. Estaria mentindo, se
afirmasse o contrário.
No entanto, se quisesse casar, já o teria feito há muito tempo. Talvez
até pudesse casar, mas como dissera a Walt, não estava interessado em
nenhum casamento de conveniência. Ele e sua esposa dormiriam na
mesma cama.
Mas tinha de admitir que, por um instante de total loucura, ele ficara
bem tentado. Malditamente tentado. Terras e gado eram um incentivo
danado de bom.
Sentindo-se mais cansado do que jamais estivera em toda vida,
encaminhou-se para a porta. Esta fechou-se com um estrondo atrás dele e
o som ecoou pelo silêncio da noite. Tom encontrou-o a meio caminho do
quintal, seguido por Bóris, o pai dos filhotes de Natasha. O chapéu
Stetson encaixava-se com perfeição na cabeça do menino, formando uma
sombra em seu rosto jovem. Tom enfiou os dedos na cintura da calça
jeans, exatamente como Sam costumava fazer, e caminhava num passo
que sugeria um leve balanço. O caminhar de um vaqueiro.
— Sobre o que vovô queria conversar? — o garoto perguntou.
— Ele... Humm, ele teve uma ideia.
— Para quê?
Sam franziu a testa, imaginando o que Tom diria se soubesse. Bem,
não seria ele quem lhe contaria.
— Pergunte à sua mãe.
— Sei que ela não vai me contar, mas achei que você me diria.
— E mesmo?
— E. — Tom andou até o curral e apoiou o pé direito na cerca mais
baixa.
Sam permaneceu atrás dele e sentiu uma espécie de aperto no peito.
Uma sensação estranha, que achou difícil definir. O cansaço penetrava-lhe
até os ossos, e estava mais do que pronto para encerrar a noite. Mas
ficou por ali, olhando as terras que se estendiam à sua frente. Podia vê-
las com clareza, apesar da escuridão e da luz fraca do luar. E soube que
sem ele, sem alguém como ele, tudo aquilo acabaria em nada.
Um coiote gritou na distância, e Sam voltou os olhos para o menino
ao seu lado.
Ele perdera muitos anos de sua vida nos circuitos de rodeios,
buscando um sonho vazio. Matando-se um pouco de cada vez, no lombo
de um touro. No final, tudo o que lhe restara fora um problema de
coluna, um belo cinturão e uma caminhonete velha. Não demorou muito
até que uma sentença de prisão fosse acrescentada à sua lista de
realizações.
Tom ergueu os olhos para ele e sorriu.
— Não há nada melhor do que isso, não é? Sam riu.
— Você anda assistindo muita televisão, garoto.
A expressão de Tom ficou séria, e Sam percebeu que o ofendera.
Parou de rir no mesmo instante e deu uma palmadinha no ombro do
menino.
— Já é tarde. Nos vemos amanhã cedo.
— Tudo bem.
A ansiedade de Tom em agradá-lo era indisfarçável, e Sam ficou
aliviado ao ver que sua reação impensada não causara danos ao
relacionamento deles. Enquanto Tom disparava em direção da casa Sam
olhou-o por cima do ombro e sorriu.
— Eu ficaria orgulhoso em chamá-lo de filho — murmurou consigo
mesmo.
A luz da varanda acendeu-se subitamente e ele virou-se, deparando
com Molly parada ali, observando-o. Era uma bela mulher, embora um
tanto orgulhosa demais, mas ele próprio estava longe de ser perfeito.
Desconfiava que, com o tempo, ela acabaria se casando novamente.
Talvez com alguém como aquele advogado. Bem, não havia como negar
que Russell Letson seria um marido muito melhor para ela do que ele
jamais seria.
Molly não conseguia dormir de jeito nenhum. Já havia se virado na
cama tantas vezes que os lençóis se enrolaram entre suas pernas,
prendendo seus joelhos.
Gemendo baixinho, alcançou o abajur ao lado da cama e acendeu-o.
A luz inundou o quarto e ela esfregou os olhos até que se acostumassem,
e depois espiou no relógio.
Três da manhã.
Ela não iria concordar. O assunto estava encerrado. O casamento
nunca poderia ser um acordo de negócios. Ainda ficava irritada ao
lembrar do jeito que os olhos de Sam haviam brilhado, à menção de terra
e gado. Vovô não fazia ideia do quanto a ofendera! Ele jamais a magoaria
de propósito, disso Molly tinha certeza. Mas aquela sugestão servira para
abrir-lhe os olhos para a verdade.
Vovô estava certo em preocupar-se com ela, pensou desanimada.
Mas Sam não era a solução; ele ficaria na Flecha Quebrada somente até
receber uma oferta melhor. E, devido ao carinho que dedicava a vovô,
Molly duvidava que Sam partisse antes que ele estivesse morto e
enterrado.
Mal conseguiu respirar, quando percebeu para onde seus
pensamentos a levavam. Vovô estava morrendo. Por mais que quisesse
rejeitar a evidência daquele fato, ele era irrefutável. Nas poucas semanas
desde que chegara a Montana, ela testemunhara seu declínio físico e
mental. A cada dia ele parecia um pouco mais fraco, um pouco mais frágil.
Até mesmo a memória estava desaparecendo. Por duas vezes ele a
confundira com sua avó Molly.
Vovô bem que tentava, mas não conseguia mais esconder o quanto
estava doente. E como uma adulta, ela precisava encarar a realidade da
situação, mas o fato de saber disso não tornava as coisas mais fáceis.
Molly sabia que era sua obrigação demonstrar um pouco de
segurança a vovô, mostrar-lhe que seria capaz de cuidar de si mesma e
dos meninos. E da fazenda. Era disso que se tratava toda aquela loucura
sobre um casamento de conveniência.
Decidiu que logo depois do café da manhã iria ligar para o jornal e
mandaria colocar um anúncio procurando um administrador. E claro que
conversaria primeiro com vovô, para que ele aprovasse. Sam já estava em
busca de pastos mais verdes, por assim dizer. Não que ela o culpasse por
isso ou, pelo menos, não completamente. Mas tinha de aceitar o fato de
que eventualmente ele partiria o que significava que estava na hora de
tomar para si o controle das coisas.
Isso decidido, Molly apagou a luz e deitou-se. Antes
Casamento em Montana
de fechar os olhos, ficou olhando os desenhos que o luar formava no
teto.
Não tinha certeza de que horas eram quando finalmente adormeceu,
devia estar amanhecendo, mas mesmo então fora um sono inquieto.
Acordou às seis da manhã, ouvindo ruídos na cozinha. Levantando-se
de um salto, vestiu o robe e desceu as escadas quase correndo, para
encontrar vovô sentado à mesa da cozinha e Tom e Clay preparando o
desjejum. Farelos de cereal estavam espalhados na mesa e havia uma
pequena poça de leite ao lado de uma tigelinha vazia.
Parada na porta, descalça, ela bocejou.
— Achamos que você deve concordar — Tom falou ansiosamente, os
olhos luminosos e felizes.
Molly pestanejou, temendo perguntar sobre o que ele estava
falando. Vovô não se atreveria. Era impossível. Se ele tivesse mencionado
aos meninos alguma coisa sobre aquela ideia de ela casar-se com Sam,
não sabia como iria reagir.
— Concordar com o quê? — perguntou incerta. Seus olhos voltaram-
se lentamente para vovô, que parecia todo contente.
— Aprender a cavalgar! — Clay respondeu.
— Sam pode ensiná-la.
— Eu também posso — Tom adiantou-se, confiante. Ela esperava que
seu alívio não fosse muito evidente.
— Acho... acho que é uma boa ideia.
A porta dos fundos abriu-se e Sam entrou na cozinha. Os olhos dele
pousaram imediatamente sobre ela e, envergonhada, Molly prendeu as
lapelas do robe. Aquela era a segunda vez que ele a apanhava com as
roupas de dormir. Devia estar horrorosa, com os cabelos despenteados e
os olhos vermelhos de sono.
— Bom dia, Sam — Tom o cumprimentou.
— 'Dia. — Sam tirou o chapéu e deixou-o cuidadosamente sobre o
balcão.
— Fiz uma lista de suprimentos que estou precisando, mas não vou
ter tempo de ir à cidade.
— Eu vou — Molly ofereceu-se antes que ele tivesse a chance de
pedir.
O sorriso dele lhe dizia que estava grato por isso. Com um leve gesto
de cabeça, entregou-lhe a lista de compras. Molly deu uma lida rápida e,
pelo que entendeu, podia estar escrito em grego. Sam reparou em sua
confusão e passou a explicar cada item, fazendo pequenas anotações nas
margens do papel.
Quando terminaram, Molly deu-se conta de que estavam a sós. Ela
ouvira quando vovô e os meninos saíram da cozinha, mas estava tão
concentrada nas explicações de Sam que não lhes deu atenção. A lista de
suprimentos era importante, se quisesse aprender a administrar uma
fazenda.
— Você dormiu bem? — Sam perguntou, pegando-a de surpresa.
— Como uma pedra — ela mentiu, afastando os cabelos do rosto.
Não queria que ele soubesse o quanto sua noite fora inquieta. Ou
quantas vezes ela relembrara a conversa que tiveram depois de levarem
vovô para o quarto.
Sam também não parecia muito disposto a casar com ela. Apesar de
que, se ele tivesse revelado algum entusiasmo, ela o teria creditado à
oferta de terras e gado.
A julgar pelo seu sorriso, ele sabia que ela mentira a respeito de ter
dormido bem.
— Fiquei acordada quase a noite inteira — Molly admitiu, passando a
mão por entre os cabelos. — E você?
— Não tive problemas para pegar no sono — ele disse.
— Mas acordei bem cedo.
— Eu dormi demais.
— Estou vendo — ele disse os olhos deslizando desde o roupão que
ela usava até os seus pés descalços. Depois, virou-se e serviu-se de café.
Bebeu o primeiro gole e franziu o nariz, numa careta. — Espero que não
tenha sido você que fez este café...
Ela sorriu, balançando a cabeça. Sam ofereceu-lhe um pouco, mas ela
recusou.
— Já provei as tentativas de Tom outras vezes — disse.
— Parece que ele não entende que basta usar apenas uma colher de
café, e não cinco.
Molly não teve certeza de como Sam chegara mais perto dela, mas
subitamente ali estava ele. Meros centímetros os separavam. O olhar dele
prendia o seu, e ele deixou a xícara de café de lado.
Molly sentiu o coração disparar. Sabia o que ele estava querendo, e
percebeu que também queria. Ficou tentada a fechar os olhos e oferecer-
lhe os lábios, mas isso seria errado. Os dois já haviam tomado suas
decisões. O casamento era algo sério, do qual não podiam zombar.
Nenhum deles estava interessado num acordo de negócios; ele lhe
assegurara que não estava, e ela lhe dissera a mesma coisa.
Sam não se moveu. Ela também não. E começou a pensar se ambos
haviam parado de respirar.
— Eu... Eu pensei muito esta noite — Molly sussurrou, baixando os
olhos. Ele merecia sua sinceridade. — Não acho que daria certo, você e
eu. — Sentia dificuldade em formar as palavras.
— Estou me referindo à ideia de vovô, é claro.
O rosto dele aproximou-se um pouco mais do seu. Quase
inconsciente do que estava fazendo, Molly umedeceu os lábios com a
língua. Foi um movimento rápido, mas era tudo o que Sam precisava para
aceitar seu convite silencioso. Seus lábios úmidos e quentes pousaram
sobre os dela.
O beijo foi delicado, sem pressa. Prazeroso. Muito mais do que
aquele primeiro beijo, no estábulo. Não satisfeito em mantê-lo simples,
Sam pressionou-lhe os lábios com a ponta da língua, tornando o contato
mais doce. Ela estremeceu e apoiou-se nos braços dele.
Não pôde dizer qual dos dois emitiu um leve gemido. Então Sam
enlaçou-lhe a cintura e pressionou-a contra seu corpo, enquanto
aprofundava o beijo.
A mente de Molly gritava que aquilo tinha de parar, enquanto seu
corpo respondia a ele completamente, quase involuntariamente.
O beijo continuou lento e suave, até que ele entre abriu-lhe os lábios
e penetrou a língua em sua boca, procurando pela dela.
Um ruído agudo e dissonante interrompeu o momento mágico. Os
dois separaram-se como adolescentes apanhados em flagrante no
corredor da escola.
Molly afastou-se, com o peito ofegante. O barulho, fosse o que fosse,
desaparecera. Levou um instante para registrar que fora vovô que havia
ligado o rádio na sala.
Sam moveu-se por trás dela e acariciou lhe levemente a nuca.
— Você está bem?
Ela não seria capaz de falar, nem se disso dependesse a sua vida, e,
portanto assentiu.
— Ótimo. — Ele continuou ali mesmo, a respiração provocando-lhe
arrepios na nuca. — Fico contente por termos acertado tudo —
murmurou.
— Acertado? O quê?
— Preciso voltar, Pete e Charlie estão me esperando.
— A relutância dele em sair era tão evidente quanto a relutância dela
em deixá-lo ir.
— Sam! — ela chamou, fazendo-o parar antes que saísse pela porta.
Ele virou-se, os olhos mais sombrios e intensos do que ela jamais
vira.
— O que... o que nós acertamos?
Ele colocou o chapéu na cabeça e fitou-a por um longo instante.
— Tente descobrir — respondeu.
CAPÍTULO 8
Bingo! — Clay gritou. Deu um pulo e começou uma dança de triunfo
no meio da sala. O cachorrinho, que estiva dormindo no sofá, entreabriu
os olhos para aquela bagunça.
— Corra para telefonar, antes que alguém ligue primeiro para
reclamar os seus três dólares — vovô avisou, apontando para o telefone.
O bingo pelo rádio era um dos poucos prazeres que ele ainda podia
desfrutar. Molly concordara em pegar as cartelas semanalmente, que
eram distribuídas nas casas de comércio da cidade, e Walt ficava ouvindo
o sorteio das oito e o das dez e meia da manhã, todos os dias da semana.
O prêmio maior era de 385 dólares, mas para ganhá-lo era necessário
completar os primeiros cinco números da carteia. Ele chegara bem perto
disso, várias vezes. Perto, mas era só.
— Está ocupado — disse Clay, começando a choramingar. —: Então
alguém chegou à sua frente, rapaz — Walt falou. Esta era uma das lições
da vida, ele acreditava, e Clay seria esperto se a aprendesse agora,
enquanto era jovem. Aja rápido. Não deixe nada para depois. Arrisque-se
de vez em quando. Walt desejava que Molly tivesse aprendido esta lição
mais completamente, que fosse um pouco mais "atirada". Então, aquele
assunto do casamento poderia ser resolvido. No momento, sua neta
continuava recusando-se teimosamente a casar com Sam.
— Mas eu completei a carteia — Clay argumentou. — Eu devia
ganhar o prêmio.
— Você precisa ser o primeiro a ligar, com os números corretos —
vovô explicou. — Eu lhe falei, quando começamos a jogar. Alguém mais
completou a carteia e chegou primeiro ao telefone.
O prêmio de três dólares não era grande coisa, mas se ganhasse Clay
teria se sentido importante. Walt tinha a impressão de que era isso que
mais o incomodava.
Molly entrou na sala trazendo nas mãos uma camisa de Sam. Walt
lembrou-se vagamente de que ela se oferecera para remendá-la.
— O que aconteceu aqui? — ela perguntou.
— Eu completei a carteia do bingo, mas demorei para ligar e não
ganhei o prêmio. — Clay estava abatido, como se isso fosse uma tragédia
de proporções bíblicas.
— Faz três semanas que não completo uma carteia — Walt queixou-
se. Se fosse do tipo desconfiado, acharia que havia alguma trapaça
naquele jogo.
Guardou as cartelas do bingo numa velha caixa de papel de cartas e
deixou-a na mesinha ao seu lado. Normalmente guardava as cartelas na
gaveta da escrivaninha, mas esta estava repleta de contas, avisos e
extratos bancários, muitos deles ainda em seus envelopes fechados. Walt
sentia uma onda de culpa invadi-lo sempre que pensava em acrescentar
mais uma montanha de papéis ao já sobrecarregado serviço diário de
Sam.
Trabalhando o tempo todo, dia e noite, Sam não tinha sequer uma
folga para lidar com as pilhas de documentos relacionados com os
negócios da fazenda e com a correspondência normal, portanto Molly
tomara esta tarefa para si. Apenas começara a analisar os livros
contábeis, a tentar entender a situação. Walt fazia o possível para
responder as perguntas e tirar-lhe as dúvidas, mas sua mente nem
sempre estava muito clara. Tinha receio que acabar fazendo mais mal do
que bem, confundindo-a em vez de explicar as coisas de maneira
adequada.
As finanças não iam nada bem, ele sabia. O preço do gado estava
baixo havia vários anos, e baixava mais a cada estação. Era desnecessário
dizer que o dinheiro estava "curto". Walt passara os últimos anos fazendo
toda economia possível, raspando as suas reservas. Pagar as contas o
deixava deprimido, por isso era uma tarefa que evitava. Molly ainda não
lhe dissera nada, e ele perguntava-se se ela estaria ciente do estado
quase precário em que encontrava-se a fazenda.
— "A família Miller estará vendendo seus móveis e objetos por
motivo de mudança na sexta, sábado e domingo. O endereço é Rua
Walnut, 204, das oito as cinco" — o locutor do rádio anunciou.
Molly parecia atônita.
— Estão anunciando uma venda por mudança no rádio?
— perguntou.
Vovô inclinou-se e desligou o aparelho.
— Fazem isso todos os dias. Faz parte do programa comunitário.
— Eu me lembro dos Miller — ela disse pensativa.
— Eles tinham um posto de gasolina.
— Estão nesta região quase por tanto tempo quanto os Wheaton —
Walt falou, balançando a cabeça com tristeza.
— Eles venderam tudo.
Não gostava de pensar que Brady Miller cedera às pressões externas.
Brady lhe dissera que havia vendido por causa dos problemas financeiros,
que seu negócio não dava lucros, mas Walt estava convencido de que
aqueles fanáticos tinham algo a ver com isso. Eles também queriam as
suas terras, mas Walt recusara-se a vender.
— Nunca ouvi uma estação de rádio que toque só música, desde que
nos mudamos para Montana — disse Clay. Segurava o filhote no colo,
apoiado em seu ombro, como uma mãe carregando o bebê recém-
nascido.
Walt achava que aquele cachorrinho fora uma das suas melhores
ideias. Clay estava aprendendo a ter responsabilidade, a cuidar de outra
criatura. E quando Bullwinkle, o nome que Clay dera ao filhote, estivesse
com uns quatro meses de idade começaria a ser adestrado. O cão iria
trabalhar para seu sustento, da mesma forma que Bóris e Natasha.
— E uma estação de rádio de cidade pequena — Molly explicou ao
filho.
— Mas eles só ficam falando — Clay retrucou. — O bingo é divertido,
mas o restante dos programas é sobre o preço da alfafa e outras coisas
assim. Não tem um pouco de rap? Nem uma música grunge de vez em
quando?
— Eles tocam essas coisas num programa de duas horas, à noite —
Walt intercedeu. — Essas músicas de jovens.
Não era música de verdade, em sua opinião. Tom estivera escutando
a uma fita horrorosa, recentemente, e aquilo soava mais como um
estábulo cheio de bezerros doentes gritando pela mãe, do que como
qualquer coisa relacionada com instrumentos musicais. O barulho
incomodou-o tanto que ele amassou um lenço de papel e colocou-o nos
ouvidos. Molly havia visto a cena e começara a rir, mas, que diabos, um
homem tinha de proteger sua audição.
Walt não gostara muito de ser motivo de riso da neta. Ora, um
homem poderia ficar surdo ouvindo aquele barulho que seus bisnetos
chamavam de música. E lhes disse exatamente o que pensava disso,
também.
— Você vai à cidade, mais tarde? — perguntou à Molly. — Estou
precisando de lâminas de barbear.
— Vou me lembrar de trazê-las para o senhor.
Ele assentiu e passou a mão pelo rosto. Sua Molly lhe pedira uma
única coisa, logo que se casaram, e era para que ele se barbeasse todas as
noites. Parecia algo pequeno e portanto ele concordou, desejando fazer
tudo o que fosse necessário para fazer sua querida esposa feliz. O hábito
de uma vida inteira era difícil de quebrar. Mesmo agora, depois de tantos
anos depois da morte dela, Walt raramente ia para a cama sem se
barbear.
— Estou fazendo uma lista de compras — ela disse. — O senhor
precisa de mais alguma coisa?
Walt balançou a cabeça, em negativa. Observou-a voltar para a
cozinha e para a máquina de costura que armara sobre a mesa. Estava
preocupado com ela e com Sam. Uma semana já havia se passado desde
que fizera sua sugestão, e até agora não houvera nenhum resultado. Walt
os observava sempre que tinha uma chance, esperando ler seus
pensamentos, porém era impossível decifrar o que qualquer um deles
estava pensando.
Especialmente quando ambos esforçavam-se tanto para se evitar.
Sam raramente reunia-se à família para o jantar, naqueles últimos dias,
embora Molly sempre colocasse seu prato na mesa. As vezes ele
esquentava o que ela lhe deixava e comia sozinho na varanda, cercado
pelos cães. Algumas noites só entrava na casa bem tarde da noite. Walt
não sabia se ele ficava fora de propósito, ou se estava trabalhando
demais. Provavelmente seria as duas coisas.
— Está dormindo, vovô? — Clay perguntou baixinho.
— Só estou descansando os olhos, rapaz.
Os cochilos que costumava dar depois do almoço começavam cada
dia mais cedo, ultimamente. Walt acordara havia poucas horas, mas já se
sentia tão cansado que mal conseguia manter os olhos abertos. O médico
insistira para que ele fizesse outra consulta, mas Walt achava que isso de
nada adiantaria. Seria jogar dinheiro fora, e ele não podia dar-se a este
luxo. Como se isso não bastasse, o preço dos remédios também era um
absurdo. Um assalto à mão armada.
Mas ele tampouco aceitaria as esmolas do governo. Ou Walt
Wheaton pagava suas próprias contas, ou preferia ficar sem nada. Era
verdade que deixara que o sistema de saúde do governo o ajudasse com
o custo do marca-passo, mas isso era tudo. Era toda a caridade que
estava disposto a aceitar.
— Sam vai nos levar ao desfile de Quatro de Julho — Clay falou,
sentando na banqueta com o cachorrinho no colo.
Walt pensou que o menino acabaria mimando demais aquele
cachorro, mas secretamente se encantava ao ver que havia uma forte
ligação entre os dois. Um menino sempre precisava de um cachorro, e
vice-versa.
— Que bom — disse. Gostava da ideia de Sam passar o tempo livre
em companhia de Molly e os meninos.
Ele próprio não conseguiria ficar debaixo de um sol forte para ver um
bando de garotos desfilando pelas ruas e puxando os carros alegóricos.
Nunca gostara muito de desfiles, embora costumasse assistir a todos eles
quando a esposa era viva, pois ela os adorava. Ele teria feito qualquer
coisa por sua Molly. É assim que um homem se comporta, quando está
apaixonado.
— Sam... Disse que iria nos acompanhar? — A notícia deixara Molly
surpresa.
Walt olhou para a neta, que estava parada na soleira da porta. E viu
que tal informação a deixara consideravelmente agitada. Ótimo. Talvez,
apenas talvez, a ideia do casamento não fosse uma causa perdida, no fim
das contas. Walt achou quase impossível conter um sorriso, enquanto
recostava a cabeça na poltrona e sonhava com o futuro de Molly ao lado
de Sam.
Em toda sua vida Molly nunca havia lavado roupas tão sujas. A lama
formava crostas nas barras das calças dos meninos, uma sujeira que
tinham acumulado por seguir Sam pela fazenda. Tom passava a maior
parte do tempo com ele. E isso não era tudo: começava a ficar parecido
com ele no jeito de falar, de andar, e até imitava seus gestos.
Como se isso já não fosse ruim o bastante, Tom também falava o
tempo todo sobre Sam. Era Sam isso, Sam aquilo, até que Molly tivesse
vontade de tapar os ouvidos e exigir que ele ficasse quieto.
Ajeitou três calças jeans dentro da máquina de lavar. Conforme a
água corria, uma grossa camada de lama e espuma formava-se na
superfície. Ela teria de bater aquela roupa pelo menos três vezes, o que
significava ter de ficar atenta ao timer.
Sam. Quanto mais se esforçava para afastá-lo dos pensamentos, mais
difícil ficava. Ele a beijara duas vezes, e por duas vezes a deixara...
Confusa.
Fico contente por termos acertado tudo.
Fora o que ele dissera, depois do beijo mais recente, quase uma
semana atrás, e quando ele perguntara o que isso significava, ele limitara-
se a responder que ela teria de descobrir sozinha. Molly ainda sentia
tanta raiva que mal conseguia olhar para ele.
Chegara a uma única conclusão, e isso não "acertava" nada: ela era
uma mulher com desejos e necessidades normais.
Havia anos que um homem não a beijava da maneira como Sam
fizera. Anos, desde a última vez que seus sentidos adormecidos haviam
sido despertados daquela forma. Bem, ela não gostava da sensação. Não
gostava de sentir-se vulnerável. Os beijos dele a deixavam confusa e
envergonhada e, em consequência, tentara evitar a presença dele durante
toda a semana.
E ele também a evitara. Por que, ela só podia imaginar. Talvez
estivesse arrependido de tê-la beijado, tanto quanto ela estava. De
alguma forma, no entanto, Molly sabia que este não era o verdadeiro
motivo de ele manter distância.
Sam estava lhe dando um tempo, ela sabia. Queria ser capaz de odiá-
lo, mas isso era impossível. Não quando ele se mostrava tão bom para
vovô e seus filhos.
Era isso que tornava as coisas tão difíceis. Vovô nem precisava lhe
dizer o quanto Tom e Clay ficariam felizes se ela casasse com Sam, e o
quanto ficariam tristes se ele partisse. Especialmente Tom, que parecia
adorar o chão que Sam Dakota pisava.
Isso doía um pouco. Não, na verdade doía muito. Nem por um
segundo Molly negaria que seu filho precisava de um mentor, porém
sentia falta da proximidade que ela e Tom costumavam ter até um ano
atrás, quando ele se tornara tão fechado e difícil de lidar.
Deveria estar feliz por Tom ter melhorado tanto. E estava. O que
achava duro de aceitar era o fato de que a influência positiva que seu
filho recebia estava vindo de Sam, e não dela mesma. Imaginava que isso
fosse algo natural, mas...
As lágrimas que surgiram em seus olhos a surpreenderam. Ela piscou
várias vezes, tentando afastá-las.
Sam estava disposto a casar com ela, pensou, desolada. Tudo o que
precisava fazer era concordar. Ele seria um tolo, se não quisesse, tendo
em vista o generoso dote que vovô lhe oferecera. A lembrança daquela
conversa, quinhentos acres de terra e cinqüenta cabeças de gado, era o
bastante para deixá-la fora de si, de tanta raiva. Vovô tivera mesmo a
coragem de tentar subornar o administrador, para que casasse com ela!
Isso era absolutamente decepcionante.
Por mais de uma vez, na semana anterior, ela sentira que Sam a
observava. Os olhos dele eram como uma quente carícia e deixavam-na
ciente do que ele estava querendo. E do que ela queria, também. O que
mais incomodava Molly era a intensidade das suas próprias reações.
Idiota como éfa, havia recebido de bom grado os seus beijos, seu toque...
e ele sabia disso.
Depois de programar novamente o ciclo da máquina de lavar, pegou
a camisa que havia consertado para ele. Dobrou-a e saiu da lavanderia, a
fim de levá-la de volta para a casa de Sam.
Ainda irritada consigo mesma, cruzou o quintal até a casinha onde
ele morava. Sabia tão pouco a respeito dele... Sam não revelava nada
sobre si próprio. Russell Letson havia sugerido que Sam não era digno de
confiança e insinuara saber de coisas que não devia, ou não queria lhe
contar.
Vovô ficara furioso por ela dar ouvidos àquele tipo de comentário e
defendera Sam como se fosse de seu próprio sangue.
Embora seus instintos lhe dissessem que Sam era digno de confiança,
Molly lembrou-se de que, certa vez, também confiara plenamente em
Daniel. Quando descobriu a verdade, já era tarde demais. Porém, para ser
justa consigo mesma, tinha de reconhecer que na época era mais jovem,
menos experiente, mais ingênua. Ainda assim, não queria repetir o erro
que cometera.
Molly já fora várias vezes à casa de Sam, quase sempre para levar a
roupa lavada. O quarto dele era pequeno e entulhado. Mas, apesar de as
acomodações serem modestas, ele mantinha a casa sempre limpa e em
ordem.
Deixou a camisa sobre a cama e virou-se para sair, mas então parou
na porta e olhou em volta, como se visse o quarto com outros olhos. Sam
estivera ocupando aquele cômodo por mais de sete meses. E não havia
sequer uma fotografia, um instantâneo de família, nada que pudesse
indicar a existência de alguém importante em sua vida.
A carta que chegara na semana anterior, enviada pelo dono da outra
fazenda, fora a única correspondência pessoal que ele recebera desde que
Molly estava na fazenda. De repente, ela viu um tíquete, preso no canto
do espelho. Não devia ter lido, deveria simplesmente sair, mas não
conseguiu conter o impulso de atravessar o quarto para ver do que se
tratava.
Era um recibo da loja de penhores de Sweetgrass. O nome de Sam
estava escrito ali, juntamente com o artigo que ele havia penhorado. Uma
fivela de prata. Um prêmio de rodeio? Não podia imaginar por que Sam o
havia penhorado desde que tal objeto devia ter um significado
importante para ele.
Vovô lhe dissera que Sam havia sido um bem-sucedido vaqueiro de
rodeios, e que sofrerá algum tipo de acidente. Molly surpreendeu-se
imaginando o que teria acontecido, e como ele se sentiria vendo a
carreira encerrada daquela forma. E, quanto a penhorar a fivela de
prata... Era evidente que estava precisando de dinheiro.
Afastando-se do espelho, decidiu que esqueceria aquele assunto. Era
problema de Sam, e não seu, mas ainda assim ficou desconfiada. Mais
uma vez reconheceu que ele era um homem que não tinha nada a perder
e tudo a ganhar, se ela concordasse com o casamento.
Com a mão no trinco da porta, olhou em volta uma última vez. Seus
pensamentos pipocavam loucamente, indo desde rodeios e prêmios em
dinheiro até a fazenda e suas contas. Todas as suas noites, naquela
última semana, foram dedicadas a rever os registros financeiros da
fazenda. Os livros contábeis de vovô deixavam muito a desejar, os
registros numa confusão total. Apesar disso, era fácil descobrir que as
finanças da Flecha Quebrada encontravam-se num estado lamentável.
Molly estivera usando suas próprias economias para as despesas da casa,
mas se não houvesse uma entrada de dinheiro aqueles dólares iriam
desaparecer rapidamente. E o que faria, então?
Ela nem queria pensar na resposta.
De uma coisa tinha certeza: assim que o dinheiro se fosse, Sam
também partiria. Ele próprio deixara isso bem claro. A não ser que tivesse
um motivo para ficar, um motivo como quinhentos acres de terra e
cinquenta cabeças de gado, ele estaria se mudando. A realidade de sua
situação deixou-a aterrorizada. Não recebera nenhuma resposta ao
anúncio pedindo um administrador, e os empregados temporários iriam
embora assim que o verão terminasse.
Completamente perdida em pensamentos, Molly fechou a porta e
virou-se, dando de frente com Sam.
— O que pensa que está fazendo, me espionando desse jeito? — ela
disparou furiosa por ter sido apanhada olhando o quarto dele.
— Vim lhe dizer que aconteceu um pequeno acidente. Tom cortou a
mão num arame farpado. Como não encontrei-a em casa, então...
Molly prendeu o fôlego. Devia ser grave, se Sam dera-se ao trabalho
de trazer o menino de volta das pastagens.
— Ele vai precisar de pontos? — perguntou, sentindo o coração
disparar em seu peito. — Devo levá-lo para a cidade?
— Ele está bem — Sam assegurou-lhe, pousando a mão em um de
seus ombros. O toque acalmou-a imediatamente. Acalmou-a e, de certa
forma, fez com que se sentisse segura. — Foi um corte feio, mas ele ficará
bem.
— Precisa de pontos? — ela repetiu.
— Não.
— E um curativo?
— Já fiz o curativo.
— Ah... —Aquela sempre fora a sua função. Cortes e ferimentos,
abraços e cuidados. Afinal, era a mãe de Tom, e Sam era apenas o seu
mentor. Será que ele não podia ao menos estabelecer direito os seus
papéis? Sabia que estava sendo petulante, mas não conseguiu se contiver.
— Eu preferia ter feito isso — falou, tensa.
— Tenho certeza de que você vai querer refazê-lo e limpar o
ferimento — disse Sam. Suas mãos acariciavam os braços dela,
provocando-lhe arrepios.
Ele entendia o que ela estava sentindo. E informou-a disso, com os
olhos. E mais, sem palavras disse-lhe que estivera observando-a do
mesmo jeito que ela o observava.
Ele a queria. Seu desejo era indisfarçável. Tencionou o corpo por um
instante, e Molly sabia que ele estava tentando afastar o gosto pungente
do desejo. Então, abruptamente, ele retirou as mãos.
— Onde... Onde está meu filho? — ela perguntou.
— Em casa.
— Eu... é melhor ir vê-lo.
Sam assentiu e deu um passo para o lado.
Molly correu na direção da casa, dando graças por poder afastar-se
da influência de Sam, que tornava-se mais poderosa a cada dia.
Começou a sentir-se em pânico. Em breve seria impossível escapar
dele. Em breve estaria como os meninos, completamente subjugada pelo
seu poder. A não ser que tomasse medidas para impedir que isso
acontecesse, estaria arriscando-se a confiar em outro homem. Arriscando-
se a dizer sim para Sam Dakota.
O corte era na palma da mão de Tom e, embora parecesse feio, não
fora muito profundo. O menino estava mais irritado do que ferido.
— Sam ainda não voltou para o pasto, não é? — ele perguntou,
encolhendo-se enquanto ela fazia outro curativo.
— Não sei — Molly respondeu, cerrando os dentes diante da
ansiedade dele em voltar para a companhia do administrador.
— Ele não precisava trazer-me para cá. Eu estava bem.
— Talvez ele estivesse preocupado com a sujeira de sangue na sela —
ela retrucou, irônica.
— Ora, Sam vê sangue o tempo todo — Tom argumentou, franzindo a
testa por ela ter sugerido algo tão tolo. — Ele não queria que você ficasse
zangada.
— Eu?
— E — Tom explicou paciente: — Você é mãe. E Sam disse que as
mães se preocupam e que você ficaria furiosa com ele, se me deixasse
trabalhar o dia inteiro sem antes cuidar deste corte estúpido.
— Bem, ele estava certo. Você poderia ter uma infecção se esperasse
até o fim do dia para fazer um curativo adequado.
— Mãee... — ele gemeu, erguendo os olhos para o alto.
— Ande logo, por favor. Sam está me esperando!
Molly terminou o curativo e Tom levantou-se tão depressa quanto
um bezerro laçado que via-se subitamente livre. E disparou pela porta
antes que ela tivesse tempo de impedi-lo.
Ela o seguiu, mas quando chegou à varanda Tom e Sam já estavam de
volta aos seus cavalos e seguiam na direção dos pastos. Parada no degrau
da escada, Molly observou-os cavalgar na distância, como John Wayne e
seu jovem companheiro em algum filme western.
Ao voltar para a cozinha, encontrou vovô sentado à mesa.
— O xerife Maynard ligou enquanto você estava lá fora — ele
anunciou.
Molly afastou uma mecha do rosto, esperando que vovô não
reparasse em sua frustração.
— O que ele disse? — perguntou. Havia ligado para o xerife quando a
cerca fora cortada, e somente agora ele dera-se ao trabalho de responder.
— Quase nada. Apenas que vários incidentes como este têm
acontecido, ultimamente. — Uma sombra cobriu a expressão de vovô,
indicando a Molly que ele não lhe revelara toda a conversa.
— O que foi? — ela quis saber.
Com um ar de desgosto, vovô balançou a cabeça.
— Vou ter de saber, mais cedo ou mais tarde — Molly insistiu. Puxou
uma cadeira e sentou-se diante dele.
— Esse xerife idiota sugeriu que perguntássemos a Sam.
— Sam? Ora, isso é ridículo. — Ela própria suspeitara de Sam, antes,
mas aquilo era impossível. Sam havia passado quase setenta e duas horas
reunindo o rebanho que se dispersara. Ninguém, em seu juízo perfeito,
criaria tanto trabalho para si mesmo.
— Foi o que eu disse. — Vovô encarou-a e a aprovação nos olhos
dele deixou evidente que estava feliz pela rapidez com que ela defendera
Sam.
— Que motivos o xerife teria para fazer tal sugestão?
— Ele só disse que Sam é um estranho — Walt falou ríspido.
— No que me diz respeito, Sam já está mais do que aprovado. Não o
considero um estranho. E confio nele o bastante para esperar que se case
com minha única neta.
Molly gelou; não queria discutir aquele assunto com vovô.
— Então, você vai concordar minha menina? — ele perguntou.
Respirando fundo, Molly demorou um pouco para responder,
sabendo que vovô acabaria discutindo com ela.
— Provavelmente não.
Walt ficou em silêncio, antes de murmurar:
— E uma pena.
— Trata-se da minha vida, vovô. Eu tomo as minhas próprias
decisões.
— E comete seus próprios erros.
— Sim, isso também. — Ela não tinha argumentos contra tal
afirmação.
— Molly, minha filha — ele disse, com evidente desapontamento —,
você precisa de um marido. Por muitas razões. Principalmente morando
nesta fazenda. Se não for Sam, então, quem será?
— Vovô, o senhor está um bocado atrasado — ela falou, esforçando-
se para não começar a rir. Ou a chorar. Seu coração apertava-se só de
pensar em como Tom e Clay ficariam quando Sam fosse embora.
Como se lesse sua mente, vovô acrescentou:
— Tudo bem, você insiste que não quer um marido. Mas e quanto
aos meninos? Veja o quanto mudaram desde que você veio para cá. Você
pode não querer casar com Sam, e esta é uma escolha sua, mas tanto
Tom como Clay já o elegeram como um pai substituto.
Molly engoliu em seco, incapaz de negar. Ela própria estivera
pensando a mesma coisa.
— Eles estavam desesperados por... Como é mesmo que chamam?
Ah, por um modelo — vovô continuou. — Teria sido muito fácil ignorá-los,
mas Sam não fez isso. Vou lhe dizer uma coisa, Molly, ele tem sido mais
pai para os meninos do que Daniel jamais foi ou será.
— Vou para a cidade agora — ela disse, pegando a lista que Sam lhe
dera naquela manhã. Era impossível conversar com vovô. Absolutamente
impossível.
Já passava da hora do jantar, e um pouco antes da tempestade
começar, quando Sam e Tom voltaram à fazenda. Pete e Charlie já haviam
retornado e ido para suas casas. Espessas nuvens escuras seguiram-nos
desde as pastagens e o cheiro de chuva pairava denso no ar. O dia fora
cansativo, mas muito produtivo. Haviam levado o rebanho de uma
pastagem para outra, a segunda mudança daquele verão. A cada
mudança, traziam o gado para mais perto da fazenda e da estrada, para
que quando chegasse a hora de vender o rebanho estivesse próximo e
mais fácil de ser transportado. E trocar os locais de pastagens também era
bom para a terra.
Bóris tivera um dia de trabalho intenso. Quando Sam desmontou do
cavalo parou por um instante e fez um afago no cachorro. Para cada
quilômetro que ele completava, Bóris fazia dois. Dali a algum tempo
Bullwinkle também seria bom para trabalhar com o gado, principalmente
se aprendesse com o pai.
Um trovão explodiu próximo o bastante para estremecer o telhado
do estábulo.
— Chegamos antes da tempestade — Tom falou orgulhosamente,
enquanto abria a porta e levava Sinbad para a baia.
O garoto ainda não entendia que as tempestades vinham e iam,
surgiam quando bem queriam e desapareciam sem qualquer motivo ou
explicação, geralmente tão rápido quanto haviam surgido.
A chuva batia contra o teto do estábulo, ecoando por toda parte.
Tom olhou para cima.
— Puxa, ela veio com toda força.
— Tirou a sela de Sinbad e levou-a para o depósito.
— O que será que mamãe fez para o jantar? Estou morrendo de
fome.
— Eu também.
— Aposto que ela fez chili. E um dos meus pratos preferidos, com
pãozinho de milho tão quente que a manteiga derrete assim que a gente
passa. Humm...
O garoto estava deixando Sam com mais fome ainda, com aquela
conversa. Sam decidira ficar longe da casa na hora do jantar, preferindo
dar à Molly uma chance de pensar em tudo, de considerar suas opções.
Não queria influenciá-la, de um jeito ou de outro. Numa questão séria
como o casamento, queria que ela tivesse certeza. Ele se casaria, se ela
concordasse, mas não por amor. E fora honesto quanto a isso. Pretendia
ser um bom marido, no entanto, e um pai para os filhos dela. O que mais
o interessava era a promessa das terras e do gado. Isso representava uma
segunda chance para ele, e segundas chances não aparecem todo dia.
— Pode entrar e ir se lavar — Sam falou para o menino.
— Eu termino aqui.
Tom hesitou.
— Tem certeza?
— Sempre tenho certeza do que falo.
Sam não queria que Tom tivesse a menor dúvida sobre isso. Por
centenas de vezes, na última semana, ele teve de se conter para não falar
com Molly. Queria assegurá-la de que, se tivesse uma chance, provaria ser
merecedor da confiança dela e dos meninos. E que, mesmo não sendo um
casamento por amor, ele realmente gostava dela. Sentia-se atraído por
ela. E mais uma coisa: se por acaso se casassem, seriam marido e mulher
de verdade, e nada daquela história de dormir separados. As duas vezes
em que se beijaram haviam lhe comprovado que eram sexualmente
compatíveis. Muitos casamentos começavam com menos que isso.
Tom segurou o chapéu na cabeça enquanto abria a porta do estábulo
e corria para casa. Sam viu o flash de um relâmpago cruzar o céu. Como
seu padrasto costumava dizer, não era uma boa noite nem para os
homens, nem para os animais. Tal lembrança provocou uma dor
inesperada em seu peito, um desejo de reatar com a própria família.
Algum dia ele faria isso, prometeu a si mesmo. Mais tarde. Quando
estivesse pronto.
Sam pegou uma escova e começou a escovar seu cavalo, as mãos
trabalhando num ritmo contínuo enquanto a mente concentrava-se no
assunto do casamento. E em Molly. Ele não sabia de quase nada a
respeito do ex-marido dela. Os meninos raramente mencionavam o pai.
Pelo que conseguira entender, Daniel Cogan nunca passara muito tempo
com os filhos. Azar dele, Sam pensou. Walt também não falava muito
sobre o ex-marido de Molly, somente que se tratava de um maldito idiota
e, mesmo sem ter conhecido o sujeito, Sam concordava plenamente.
Qualquer um que tivesse abandonado uma mulher como Molly e dois
filhos como aqueles garotos, só podia ser um idiota rematado. Quanto à
Molly, era evidente que o fim de seu casamento a deixara amargurada.
Sam deixou os pensamentos se voltarem para a própria família. Ficara
sabendo, por um jornal de sua cidade, que o padrasto morrera dois anos
atrás. Seu coração contraía-se sempre que pensava que jamais tivera a
chance de agradecer a Michael Dakota por ter sido um pai para ele. Sua
mãe engravidara quando era ainda uma adolescente. Três anos se
passaram, antes que ela se casasse com Michael, que adotara Sam,
amando-o e criando-o como seu próprio filho. Quando chegou à
adolescência, Sam tornou-se um rebelde e causou apenas problemas e
sofrimentos para os pais. Michael reagira com paciência, mas fora Sam
quem o rejeitara. Sam permitira que seu orgulho teimoso e imaturo
magoasse sua família.
Naquela época ele queria, precisava da oportunidade de competir
nos rodeios. Achava doloroso admitir agora, mas aqueles anos haviam
sido uma perda de tempo. Um prazer egoísta, que lhe custara muito mais
do queria pensar.
A porta do estábulo abriu-se de repente e, pensando que fosse o
vento, Sam correu para fechá-la.
— Mamãe ainda não voltou! — Com a chuva pingando da aba do
chapéu e os olhos repletos de pânico, Tom irrompeu para dentro do
estábulo.
— Ela foi à cidade logo depois do almoço, e ainda não chegou. Vovô
disse que achava que ela voltaria por volta das três horas.
Sam olhou no relógio. Sete e quinze.
— Pensei que talvez ela tivesse decidido esperar a tempestade passar
mas, neste caso, teria telefonado. Eu sei que ela ligaria.
— O garoto tentava manter-se calmo, mas era um esforço evidente.
— Com que carro ela saiu?
— Com a caminhonete do vovô.
Sam entregou a escova para Tom e saiu do estábulo. Aquela velha
caminhonete de Walt estava nas últimas. Molly não devia ter saído com
ela. Então, lembrou-se de que lhe pedira para comprar os sarrafos para o
conserto do telhado e peças para o encanamento, coisas que não
caberiam no carro dela.
— Aonde você vai? — Tom perguntou, correndo atrás dele.
— Para onde poderia ser, rapaz? Procurar sua mãe.
— Mas não sabemos onde ela está!
— E verdade. — Mas isso não fazia nenhuma diferença.
— Não volto aqui enquanto não encontrá-la, entendeu bem?
Sam sabia que ninguém ficaria tranquilo até que Molly estivesse de
volta, sã e salva. Iria à procura dela, e não retornaria até que a
encontrasse.
Cinco minutos depois Sam estava na estrada que levava à cidade. Os
limpadores do para-brisa agitavam-se como loucos e a visibilidade era
praticamente zero. A chuva caía torrencialmente, inundando o
acostamento e formando enormes poças na rodovia. Era difícil e perigoso
dirigir em tais condições e Sam precisou de toda sua concentração para
manter a picape firme na estrada.
Onde quer que Molly estivesse, Sam rezava para que fosse esperta o
bastante para procurar um abrigo. Se a caminhonete estivesse com algum
problema mecânico, a pior coisa que ela poderia fazer seria sair de dentro
do veículo. Qualquer pessoa do interior sabia disso, porém Molly era uma
garota da cidade grande.
Enquanto dirigia cuidadosamente, sem ultrapassar os quarenta
quilômetros por hora, estremeceu de leve, tentando não pensar no pior.
Se algo tivesse acontecido com Molly, o velho Walt morreria. Ela era a
única coisa que o mantinha vivo. Ela e os meninos. E quanto a eles, o que
fariam se perdessem a mãe?
E se ele perdesse Molly? Sem nem mesmo tê-la conhecido de
verdade? Sem ter tido a chance de ver se poderiam construir uma vida
juntos?
Sam avistou um veículo à distância, parado no acostamento. Aguçou
os olhos através do movimento furioso dos limpadores e tentou enxergar
qual seria o tipo e a cor.
Não demorou muito para reconhecer a velha caminhonete de Walt. O
veículo encontrava-se quase no mesmo estado que o coração do velho.
Saiu da estrada e parou, direcionando as luzes do farol para o outro
veículo. No entanto, sob a chuva densa e torrencial, era impossível saber
se ela estava ou não dentro da cabine.
Sam abriu a porta e pulou para fora. Encolhendo-se sob
o aguaceiro, foi correndo, escorregando e deslizando, até o outro
veículo. Protegendo os olhos com as duas mãos, espiou pela janela do
lado do passageiro. Ela não estava lá dentro.
Praguejando, Sam fez meia volta e olhou ansiosamente para os dois
lados da estrada. Seu maior medo era que ela tivesse decidido voltar para
a fazenda à pé, caído numa vala e se afogado.
— Molly! — gritou. Nada.
Dissera a Tom que não voltaria sem ela, e não estava brincando.
Tentou imaginar para onde ela poderia ter ido, o que estivera pensando.
A coisa mais lógica, para qualquer pessoa com um pingo de juízo, teria
sido ficar dentro da caminhonete, diabos!
Um relâmpago iluminou o céu repentinamente, e naquele segundo
Sam avistou um relance colorido, encolhido sob o tronco de um enorme
carvalho. Atrás da árvore, estendia-se uma vasta plantação de alfafa.
— Molly? — Ele não podia entender por que ela estava sentada junto
a uma árvore, tomando toda aquela chuva, ao invés de ficar aquecida e
seca dentro da caminhonete.
Mas foi apenas quando aproximou-se que percebeu que Molly não
estava sentada.
Estava caída, com o rosto mergulhado na lama.
CAPÍTULO 9
Molly! Molly! Seu nome parecia ecoar em seus ouvidos, vindo de
muito longe. Estava lhe dando dor de cabeça. Esforçou-se para sentar,
mas não conseguiu. E quando tentou levantar o braço para verificar o que
havia de errado, percebeu que estava incapaz de se mover.
O som de seu nome chegava com mais nitidez, agora. Sam? O que ele
estava fazendo ali? E, por falar nisso, onde diabos ela estava? Molly
mexeu a mão e a lama escura escorregou entre seus dedos. Devagar e
dolorosamente juntou toda força que possuía para levantar a cabeça.
— Molly. — O alívio na voz de Sam era indisfarçável. Ela sentiu seu
corpo sendo erguido e virado de frente, e tudo o que pôde ver foi Sam
Dakota contra o céu escuro. A chuva caía em seu rosto e ela piscou. A luz
de um relâmpago surgiu subitamente e ela encolheu-se sob a claridade e
a dor instantânea que lhe provocou.
— Você está bem? — Sam indagou, ansioso. Parecia preocupado, e
zangado. Estava passando um lenço pelo seu rosto, retirando a lama.
Molly balançou a cabeça para impedir que ele continuasse com
aquele castigo, mas isso só serviu para aumentar a dor.
— Não, por favor, não... Não... Sam ignorou seu pedido.
— O que aconteceu? — Ele afastou-lhe os cabelos do rosto e quando
retirou a mão Molly imaginou estar vendo sangue. Esperava que não
fosse dela.
— Isto é sangue? — perguntou. — É meu ou seu?
— Sentia a boca tão seca que tinha dificuldade em falar.
Aparentemente ele não a ouviu, ou não quis responder. Sua atenção
parecia estar focalizada na testa dela.
— O que está procurando, agora? — ela perguntou irritada, com a
voz um pouco mais forte. — A marca do demônio?
A leve sombra de um sorriso iluminou os olhos dele, mas os lábios
permaneceram inalterados.
— Você deve ter caído e bateu a cabeça.
Aquelas palavras lhe suscitaram a lembrança. Quando estava
voltando da cidade o motor da caminhonete morreu de repente. E,
embora não entendesse nada de mecânica, Molly sabia que não era por
falta de gasolina, e que tampouco seria um problema com a bateria.
Ainda assim, depois de sacolejar e engasgar, o motor havia tossido pela
última vez e parado. Sem saber o que fazer, ela limitara-se a esperar por
ajuda.
Depois de várias horas sem que nenhum veículo passasse pela
estrada, a tempestade havia começado. A chuva castigava a caminhonete,
violenta e inclemente. Qualquer esperança de que alguém pudesse
socorrê-la desapareceu. Molly concluiu que teria de esperar que a
tempestade passasse, mas depois de meia hora, quando não havia o
menor sinal de que iria diminuir, resolveu aventurar-se para fora da
segurança da cabine e certificar-se de que não corria o risco de ser levada
pela correnteza.
— Quando estava aqui fora, vi uma luz — ela contou para Sam.
— Então, tive certeza de que haveria uma fazenda nas proximidades.
Evitou olhá-lo, sabendo que ele a considerava uma perfeita idiota, e
não o culpava por isso. Fora mesmo estupidez de sua parte sair do veículo
numa tempestade como aquela, mas a luz não parecia estar muito
distante e presumira que seria capaz de caminhar até lá.
— Não parou um pouco para pensar que...
— Sam nem se incomodou em terminar a pergunta.
— Não parecia ser tão perigoso atravessar o campo, e concluí que
preferia enfrentar um pouco de lama do que deixar vovô e os meninos
preocupados com minha demora. Parecia a coisa mais certa a fazer,
naquele momento.
— O que aconteceu, então?
— Mal comecei a andar e logo a lama estava na altura dos meus
tornozelos. Escorreguei e... Depois disso só me lembro de vê-lo perto de
mim.
— Será que nunca ninguém lhe falou que... — Com o que parecia ser
um esforço considerável, Sam interrompeu o que estava prestes a dizer.
Molly ficou grata por isto, pois não estava com a menor disposição de
ouvir sermões.
— Não fique zangado comigo, sei que agi de maneira estúpida.
Ela estava ensopada até os ossos, sentia uma dor aguda e latejante
nas têmporas, e estava coberta de lama dos pés à cabeça. E o que era
pior, fizera o maior papel de tola e, naturalmente, tinha de ser Sam que a
encontrara.
Pelo menos a chuva diminuíra, transformando-se num chuvisco.
Segurando-a pela cintura, Sam ajudou-a a levantar-se. A água
escorreu de seus cabelos pelo pescoço e pelas costas. Assim que se pôs de
pé, o campo de alfafa começou a girar, e ela teve de apoiar-se em Sam.
Ele a segurou-a com força, enquanto Molly lutava para recobrar o
equilíbrio.
Depois de um momento, durante o qual tudo continuava girando,
Sam praguejou baixinho e pegou-a no colo.
— Ponha-me no chão — ela insistiu, fechando os olhos quando uma
dor súbita atingiu-lhe a cabeça. — Eu consigo andar, dê-me apenas uns
minutos e ficarei bem.
— Ora, para o inferno com isso! Você nem consegue ficar de pé.
Sam encaminhou-se para a picape, andando com todo cuidado.
Enfrentava as mesmas dificuldades que ela tivera antes, com as botas
afundando mais e mais na lama. Cada vez que erguia o pé do chão
produzia um ruído de sucção, como se fosse um protesto.
— Quanto você pesa, afinal? — resmungou, quando estavam quase
na metade do caminho.
— Fique sabendo que perdi três quilos, desde junho.
— Pois eu gostaria que tivessem sido seis.
Dolorida e humilhada como estava, ela podia passar muito bem sem
aqueles insultos.
— Ponha-me no chão agora mesmo — exigiu, embora achasse que
ele bem gostaria de ter a chance de jogá-la no chão sem pensar duas
vezes. Enrijeceu, esperando ser atirada com o traseiro na lama, porém
Sam ignorou-a e continuou com a árdua caminhada até a estrada.
A cada dois passos que dava, ele murmurava alguma coisa que Molly
deu graças por não conseguir entender. Sua cabeça doía, latejando no
mesmo ritmo de seu pulso. Depois de alguns minutos, ela fechou os olhos
e pressionou a testa contra o ombro dele. Estava com muito frio e
sentindo-se miserável, mas ao mesmo tempo estava segura nos braços
dele, segura o bastante para ser grata por Sam tê-la encontrado, apesar
da raiva dele. E de sua própria vergonha. Logo estariam em casa e...
— Molly, acorde. Ela abriu os olhos.
— O que foi?
— Você não pode dormir. E bem provável que tenha uma contusão
na cabeça.
— Está bem. — Apesar do esforço que fazia, suas pálpebras se
fecharam.
— Que droga, Molly — ele reclamou. — Não complique mais as
coisas!
Mas era difícil manter os olhos abertos. Tão difícil...
— Eu... Sinto muito. Não queria que nada disso acontecesse.
A respiração pesada de Sam diminuiu um pouco quando finalmente
chegaram na estrada. Ele a carregou para sua picape, abriu a porta do
lado do passageiro e ajudou-a a entrar, acomodando-a no assento com
uma delicadeza surpreendente. Molly olhou-se no espelho retrovisor e
ofegou assustada. Os cabelos estavam colados na cabeça e das mechas
enlameadas escorriam água pelos seus ombros. Havia um enorme galo na
sua testa, além de um corte feio na altura da raiz dos cabelos. Mas não
parecia muito profundo e talvez nem precisasse de pontos. Seu rosto
estava todo sujo de lama, as roupas ensopadas e enlameadas.
— Já vi bezerros com mais juízo do que você — Sam disse por entre
os dentes, enquanto acomodava-se no volante.
Molly virou o rosto e ficou olhando pela janela, tremendo de frio e
sentindo-se cada vez pior. A breve ilusão de segurança que sentira nos
braços de Sam havia desaparecido. Talvez a melhor coisa a fazer seria ligar
para Russell Letson e lhe dizer que havia mudado de ideia e que venderia
a fazenda. Não. Não podia fazer isso com vovô. Estava pensando assim
agora, porque se sentia tão miserável.
Aguardou em silêncio, esperando que Sam ligasse o motor. Mas
quando nada aconteceu, a curiosidade fez com que ela se voltasse para
ele. Sam estava com os braços estendidos, segurando o volante com força,
olhando direto para a frente. Ao sentir que ela o observava, exalou um
suspiro profundo.
— Desculpe-me, Molly. Eu não devia ter dito aquilo.
— Eu... Não estou culpando você, Sam. Bem que mereço sua raiva.
Foi muita estupidez de minha parte sair da caminhonete.
— Ainda mais fraca do que antes, ela recostou a cabeça na janela e
esboçou um sorriso cansado.
— Podemos ir para casa, agora? Só quero um banho quente e talvez
umas cem aspirinas.
— Para casa.
Ele ficou repetindo as palavras como se fossem um encantamento
mágico, e naquele instante Molly deu-se conta de que a fazenda Flecha
Quebrada era a sua casa. E talvez a casa dele, também? Ela daria um jeito
de manter as suas terras e, se ele quisesse ficar, seria bem-vindo. Porém,
com ou sem Sam Dakota, faria até o impossível para não perder a sua
herança.
Tom fingia não estar realmente interessado em participar das
festividades do feriado de Quatro de Julho. Mas, na verdade, estava
extremamente animado. Só não queria que ninguém soubesse. Quando
morava em San Francisco seus amigos costumavam queimar os fogos e
bombinhas apenas para aborrecer as pessoas. Tudo aquilo era bobagem.
Naquele ano seria diferente. Nem podia lembrar-se da última vez que sua
família fora a um piquenique de verdade, ou assistira a um desfile.
Além disso, admitir que estava ansioso pelo feriado poderia dar uma
impressão errada à sua mãe. Ele não era mais criança, já era um homem.
Ou quase. Trabalhava ao lado de Sam, que lhe garantira que ele
realmente ajudava.
Tom sentia-se bem com isso. Nunca esperara gostar de Montana, mas
descobriu que gostava da vida na fazenda e dos desafios de cada dia.
E seu irmão...bem, Clay estava tão excitado com aquele piquenique
quanto o cachorrinho que ele levava para toda parte. Corria para dentro
e para fora de casa, carregando o carro com as coisas que pegava na
cozinha. Sua mãe sabia mesmo como arrumar uma cesta de piquenique.
Havia comida suficiente para uma semana, o que, para Tom, estava
ótimo. Ele até chegou a pensar se ela não tivera todo aquele trabalho
apenas para impressionar Sam.
O administrador iria acompanhá-los à cidade. Desde que chegaram à
fazenda, Tom não havia visto Sam tirar nenhum dia de folga. Não um dia
inteiro, pelo menos. E se alguém merecia um feriado, era Sam! E o que
era ainda melhor, Sam estaria com sua mãe. Não que fosse um encontro
de namorados, ou algo assim, mas o suficiente para que, talvez,
pudessem conversar um pouco. Tom gostaria tanto que eles
conversassem.
Desde aquela noite em que Sam saíra à procura de Molly durante o
temporal, as coisas haviam melhorado um pouco entre eles. Antes disso,
Tom havia reparado na maneira rígida e educada demais com que se
tratavam, como se tivessem medo de dizer o que realmente queriam.
Como se tudo estivesse apenas na superfície, e não vindo de seus
corações. Tom nutria suas próprias suspeitas, e suas próprias esperanças,
sobre o que os corações deles teriam a dizer.
O "galo" na testa de sua mãe já não estava tão grande e, com a
maquiagem que ela aplicava no rosto, ficava quase invisível. Mas estava
muito mal quando Sam a trouxera para casa. E, embora o próprio Sam
estivesse todo ensopado e com frio, insistira para que ela tomasse um
banho quente imediatamente e, enquanto ela o fazia, ficou conversando
com vovô e lhe assegurando que não havia nada com que se preocupar.
Havia ligado para o dr. Shaver, dizendo a vovô que era apenas por
precaução. Depois, chamara o pessoal de uma oficina mecânica na cidade,
para que guinchassem a caminhonete. As roupas de Sam ficaram secas
antes que ele tivesse a chance de tomar um banho.
Aquela tarde em que sua mãe desaparecera não fora fácil para Tom.
Não quis dizer nada a Clay, mas havia ficado preocupado. Muito
preocupado. Seu estômago chegara a doer, e sempre que pensava sobre o
que poderia ter acontecido, sentia vontade de ir ao banheiro. O que mais
o ajudara era lembrar-se das palavras de Sam, quando lhe dissera que
não voltaria para casa antes de encontrá-la.
Enquanto esperava, Tom ficara olhando na janela a cada dois
minutos, rezando para ver as luzes dos faróis aproximando-se, mas horas
haviam se passado antes que Sam finalmente chegasse.
Vovô também ficara aliviado. Ele também estivera tão preocupado
quanto Tom, mas permanecera em silêncio, do mesmo jeito que o
bisneto. Haviam trocado olhares preocupados, mas nenhum deles dissera
nada.
— Está pronto, vaqueiro? — Molly chamou-o ao pé da escada.
— Acho que sim. — Embora sua voz não revelasse o menor
entusiasmo, Tom correu escada abaixo e quase colidiu com Clay.
— Vou levar meu travesseiro — Clay falou, enquanto passava por
Tom e corria escada abaixo.
— Eu não sabia que você ainda tirava sonecas à tarde — Tom falou.
Adorava provocar o irmão.
— Não é nada disso — Clay protestou, segurando o travesseiro entre
os braços. — Quando os fogos começarem quero deitar e ficar assistindo.
— Em Sweetgrass não tem nenhum espetáculo de fogos
— Tom resmungou, admirado com o próprio desapontamento. Uma
cidade que tinha somente um jornal semanal certamente não teria
dinheiro para gastar com um espetáculo de fogos de verdade.
Porém, ou Clay não o escutou, ou não estava com vontade de
discutir, pois deixou o comentário passar em branco.
— Com que carro nós vamos? — Tom perguntou, desabando na
cadeira da cozinha como se tudo aquilo representasse um esforço grande
demais.
— Com o nosso — sua mãe respondeu, guardando um pote de picles
na caixa de papelão.
— Sua mãe confia em mim o bastante para deixar-me dirigir — Sam
falou, mostrando a chave do carro.
— Não vai demorar muito para que você passe a ser o motorista.
— Ora, ele tem apenas quatorze anos — Molly retrucou, juntando
um frasco de repelente de insetos à caixa.
— Pois ele estará atrás de um volante antes mesmo que você fique
sabendo.
— Sam disse a ela. Olhou para Tom e piscou.
Tom ocultou um sorriso. "O que os olhos não vêem, o coração não
sente", pensou. Sam estivera ensinando-o a dirigir nas últimas duas
semanas. Suas pernas eram compridas o bastante para que ele alcançasse
o freio e o acelerador. No início, Tom não tinha muita certeza de que
conseguiria, mas Sam lhe garantira que todo mundo sentia dificuldades
quando começava. Não demorou muito para que ele "pegasse o jeito" e
se sentisse confiante o bastante para dirigir a caminhonete de Sam por
curtas distâncias.
Molly passou a mão pelos cabelos.
— Vovô — disse —, tem certeza de que não podemos convencê-lo a ir
conosco?
Walt balançou a cabeça e resmungou alguma coisa sobre o fato de os
desfiles serem um desperdício de dinheiro público.
— Acho que isso significa que ele não está interessado — disse Sam,
pegando a caixa de papelão. — Azar o seu, velho.
Walt acompanhou-os até a porta e ficou parado ali, enquanto todos
acomodavam-se no carro. Tom sentou com o irmão no banco traseiro,
embora seu primeiro impulso fosse o de ficar com a mãe no assento da
frente.
Mas não incomodava-se com isso... Apenas porque era Sam quem
estava ao lado dela. Se fosse qualquer outro, talvez não se mostrasse tão
generoso. A caminho da cidade, Molly começou a cantar. Canções infantis,
para o desespero dos meninos, porém eram as únicas que ela sabia a
letra.
E ela só cantava quando estava feliz.
Chegaram em Sweetgrass a tempo de encontrar bons lugares para
assistir o desfile. Os quatro sentaram-se num banco na beirada do parque
e ficaram tomando sorvete enquanto esperavam.
Sam brincava com Tom e Clay, contando casos engraçados que
provocavam o riso de ambos. Tom reparou quando Sam estendeu o braço
no encosto do banco e enlaçou os ombros de sua mãe. Tentou encorajá-
lo, enviando-lhe uma piscadela, mas se Sam percebeu, não demonstrou.
Quando o desfile estava prestes a começar, algo aconteceu. Tom não
entendeu exatamente o significado do incidente, apenas que mudou todo
o curso do dia. Sam estivera rindo quando, de repente, ficou sério e em
silêncio.
Tom ergueu os olhos e viu o xerife Maynard parado na frente de Sam,
bloqueando a visão da rua. O xerife era um homem alto, com uma barriga
enorme que caía sobre o cinturão. Mas não era nada gentil, isso Tom
podia ver. Ficou ali parado com as pernas separadas, observando-os em
silêncio. O jeito com que olhava para Sam, com um ar de desprezo, deixou
Tom com raiva. E ficou ainda mais zangado ao ver que o xerife analisava
sua mãe como se... Como se ela fosse uma vedete usando um biquíni.
— Dakota — o xerife falou, num grunhido.
— Xerife.
— Veio apreciar as festividades?
Embora as palavras fossem amigáveis, Tom tinha a impressão de que
o xerife adoraria ter um motivo para dizer a Sam que fosse embora ou,
melhor ainda, para prendê-lo. Tom acompanhava a conversa, olhando de
um para outro.
— Fiquei sabendo que vocês tiveram um problema na Flecha
Quebrada — o xerife comentou em seguida.
A maneira como ele falou deixou Tom ainda mais irritado.
E sabia que Sam também estava com raiva, pois reparou que um
pequeno músculo latejava em sua mandíbula.
— Nada que eu não possa resolver — Sam respondeu após um
momento, e parecia haver um significado oculto em suas palavras. Os
olhos dele estreitaram-se e o rosto adquiriu uma expressão dura.
Tom ficou observando o xerife Maynard e concluiu que, pelo jeito, o
homem gostava muito de comer rosquinhas. As mãos dele também eram
enormes. Perguntou-se o que Sam teria feito para provocar a antipatia
das autoridades, apesar de saber que não precisava ter sido muita coisa;
ele próprio aprendera esta lição quando morava em San Francisco.
O xerife afastou-se assim que o desfile começou, mas era como se
ainda estivesse ali, pois toda a alegria desaparecera. Tanto Sam como
Molly ficaram quietos e contidos. Eles bem que tentaram recuperar a
animação de antes, todos tentaram, mas de nada adiantou.
Mais tarde, enquanto comiam numa das mesas de piquenique do
parque, Tom ficou pensando por que tudo mudara de repente. Observou
sua mãe e Sam. No passado, a ideia de sua mãe casar-se novamente o
incomodava muito. Tom queria que ela fosse feliz, mas achava tudo
estava bem com apenas os três. Não precisavam de mais ninguém.
Quando moravam na Califórnia, de vez em quando ela saía com algum
namorado, mas nunca houvera alguém a quem Tom desejasse ter como
padrasto.
Mas, agora, não se importaria se Sam casasse com sua mãe. Até seria
bom. Além disso, não precisaria mais se preocupar com a possibilidade de
Sam ir embora da fazenda.
Russell já desistira de contar quantas desculpas inventara para
escapar das comemorações do Quatro de Julho.
Levando na mão um copo de chá gelado, foi até a varanda do chalé e
olhou para o vale que estendia-se abaixo. Havia comprado a propriedade
dois anos atrás, como um investimento. Na verdade, ele não era do tipo
"campestre". Sempre dissera que preferia deixar as aventuras da vida
selvagem para os apreciadores desse tipo de coisa.
Nunca imaginara que aquela cabana acabaria se tornando o seu
ninho de amor. Ninho de amor, que termo mais tolo. E antiquado. Isso o
fez sorrir. Sentando-se, arrumou as peças de xadrez no tabuleiro e
esperou que Pearl se reunisse a ele. Ela não demorou muito.
— Estou querendo uma desforra — ele anunciou, com um largo
sorrido.
Pearl afirmava que jamais conseguiria jogar xadrez, até que ele a
ensinou. Depois dos primeiros jogos, ele achou difícil de acreditar. A
habilidade dela era impressionante. Mas não era somente no jogo de
xadrez que ela o surpreendia. Pearl possuía uma inteligência aguda e
lógica, capaz de captar as ideias rapidamente. Devido às dificuldades que
tivera para ler, ela presumira que não fosse muito inteligente quando, na
verdade, era exatamente o contrário. Russell admirava-se com sua
memória quase fotográfica. E isso, juntamente com a sabedoria que ela
acumulara, formava uma combinação intrigante. Pearl o fascinava e
desafiava. E os domingos que passava com ela haviam se tornado o ponto
alto de suas semanas.
Ele lhe perguntara se havia feito testes de QI no segundo grau, mas
ela lhe dissera que abandonara a escola antes disso. Então, quando ela
confessara que não sabia ler, Russell se oferecera para lhe ensinar. E ela
aprendera com uma facilidade que o deixara atônito. Ele adorava suas
reações, a excitação e alegria que ela não tentava ocultar. Agora, ela não
ficava mais sem um livro e Russell impressionava-se com a sua percepção
dos personagens e dos enredos.
Tudo aquilo era uma grande ironia. Pearl havia sido seu presente de
aniversário. Uma noite com uma prostituta. A princípio ele sentira-se
sórdido ao procurá-la, tão sórdido quanto sempre considerara o seu
primo que lhe dera o presente. Mas o que seu primo jamais entenderia
era. que o fato de conhecê-la, de amá-la, talvez representasse o maior
presente que Russell já recebera de alguém.
A única pergunta que o atormentava, desde que a conhecera, era
como Pearl se envolvera com aquele tipo de vida. Porém, apesar da
curiosidade, ele nunca a questionara.
O medo era o motivo principal para que guardasse a pergunta para si
mesmo. Ele percebera imediatamente que aquele assunto da "carreira"
dela, por falta de um termo melhor, era estritamente proibido. Na única
vez em que o mencionara, Pearl recusara-se a falar e quase fora embora. E
ele não podia, não queria correr esse risco novamente.
O que mais o preocupava era o problema do cafetão de Pearl. Sabia
que ela devia ter um cafetão, quase todas as prostitutas tinham. Mas
Russell nunca tivera coragem de perguntar quem era. Assim, fingia que as
coisas eram diferentes, que eram um casal normal, com um
relacionamento normal.
Russell pensava que ou ele era o maior imbecil da face da terra, ou o
amor que Pearl lhe dedicava era tão verdadeiro quanto seu diploma de
advogado. Tão verdadeiro quanto ela afirmava ser. E ele preferia acreditar
nela. Era como se existissem duas Pearls. Uma era a prostituta descarada
e fria que ele conhecera em seu aniversário. Aquela que era uma atriz
consumada, que lhe falava como ele fosse um bebezinho e comportava-se
de forma quase subserviente, enquanto oferecia relances tentadores de
seus dotes físicos.
E então, havia a outra Pearl. A Pearl verdadeira.
Russell não sabia bem por que sugerira que conversassem primeiro,
naquela noite. Provavelmente porque sentia-se nervoso e agitado demais.
Seu primo havia feito um estardalhaço sobre aquele encontro e, embora
se sentisse envergonhado e até um pouco enojado, Russell acabara
concordando com relutância.
Jamais tivera a intenção de ir para a cama com ela, e tampouco
pretendia tornar a visitá-la. Mas a primeira noite que passaram juntos
fora tão... Maravilhosa. Tão inesperada. Descobriu que podia ser ele
mesmo em companhia dela, enquanto que com outras mulheres sentia-se
tímido e inseguro. Sabia que as mulheres o achavam atraente, mas ainda
assim, sempre tivera dificuldade em conversar com elas.
Mais tarde, seu primo o questionara sobre o "presente", crivando-o
de perguntas. Russell havia mentido, revelando o menos possível. Seu
primo o congratulara com uma palmada nas costas e, baixando a voz,
perguntara se ele havia provado a especialidade de Pearl. Russell precisou
de todo seu autocontrole para não dar um soco no nariz do primo,
enquanto ouvia os detalhes escabrosos do que Pearl costumava fazer
para manter seus clientes sempre satisfeitos.
Então, Russell a vira por acaso no supermercado, e depois
começaram a encontrar-se no chalé.
Ele tinha certeza de que ninguém sabia destes encontros, o que, sem
dúvida, era o melhor. O segredo deles protegia sua reputação e, como
certa vez Pearl insinuara, a segurança dela. Além disso, havia o fato de
Pearl não ser exatamente o tipo de garota que um homem apresenta à
mãe. Mesmo assim, ele se casaria com ela, com todo prazer. E já a pedira
em casamento uma dezena de vezes, mas havia parado de falar no
assunto ao perceber o quanto ela ficava magoada por ter de recusar.
Lágrimas enchiam-lhe os olhos e ela murmurava que ele não sabia o que
estava dizendo. Mas Russell sabia. Porém, decidiu deixar esta questão de
lado e continuar provando o quanto a amava, mesmo se isso significasse
fechar os olhos para a maneira como ela ganhava seu sustento.
Olhando para ela agora, ninguém jamais adivinharia qual seria a sua
profissão. Os cabelos dela estavam amarrados num rabo de cavalo e a
camiseta larga disfarçava os seios generosos e quase todos os outros
atributos femininos.
— Sua vez — ela disse, erguendo os olhos e abrindo um sorriso
triunfante.
Russell achou difícil parar de olhá-la e concentrar sua atenção no
tabuleiro de xadrez. Mas, quando o fez, franziu a testa. Teria que ter
cuidado com sua jogada, pois estava em desvantagem. Refez
mentalmente os movimentos dela e viu que não lhe restava nenhuma
esperança. Ela vencera. Podiam ir até o final, se ela insistisse, mas o
resultado seria inevitável. Mais uma vez, Pearl o sobrepujara.
Olhou para ela e sorriu.
— Venha aqui — murmurou.
— Russell?
Ele estendeu-lhe a mão. Pearl sabia o que ele queria, e ruborizou. Na
primeira vez em que Russell vira o rosto dela tingir-se de vermelho, ficou
convencido de que era algum truque. Afinal, aquela mulher sabia de tudo
o que havia para saber a respeito de sexo. Porém, com o decorrer do
tempo, passou a acreditar que tudo entre eles era tão novo e
desconhecido para ela quanto para ele. Como ele, Pearl estava amando
pela primeira vez em sua vida.
— Ainda é possível você se salvar — ela disse, apontando para o
tabuleiro.
Mas Russell já planejara seu movimento seguinte, e não tinha nada a
ver com o xadrez.
Pearl riu alto, como uma adolescente. Depois, exalou um leve suspiro
e pousou a mão delicadamente sobre a dele. Russell puxou-a para si.
Ali, ele era capaz de esquecer que aquilo jamais poderia ter
acontecido. Podia esquecer que apaixonara-se perdidamente por uma
prostituta.
Na manhã de sexta-feira Molly e vovô foram informados por Sam de
que a água de um dos açudes estava envenenada. A carcaça de um
bezerro fora jogada no maior açude da nova pastagem. E tudo indicava
que alguém fizera isso deliberadamente.
Dez cabeças de gado já haviam morrido e outras trinta estavam
doentes. E, entre as contas do veterinário e a perda do gado, aquele era
mais um desastre que eles não precisavam.
— Temos de fazer alguma coisa, vovô! — Molly gritou indignada,
irrompendo na cozinha. Não tinha certeza de como esperava que ele
reagisse. Havia pensado no assunto inúmeras vezes e sempre chegava às
mesmas conclusões. Os livros contábeis lhe diziam que já se encontravam
com graves problemas financeiros. Qualquer coisa, por menor que fosse,
seria capaz de abalar as estruturas. E, para ela, era evidente que alguém
queria que a fazenda falisse. — Quem poderia fazer uma coisa dessas
conosco? Quem?
— Se eu soubesse minha querida Molly, não estaria sentado aqui...
— Walt estivera jogando paciência por mais de uma hora, lançando
as cartas na mesa com tanta rapidez quanto as apanhava.
— Mas, por quê?
Vovô ergueu os olhos para ela.
— Bem que eu queria saber.
— Não é óbvio que alguém está querendo acabar conosco? —
Certamente ele não se esquecera da oferta que Russell Letson fizera a ela,
poucos dias depois de sua chegada. Molly achou que seria o lugar perfeito
para começar uma investigação.
— Talvez devêssemos perguntar a Letson quem é o cliente dele.
— Sam já perguntou.
— E mesmo? — Molly não gostou de saber que os dois homens
haviam lhe ocultado tal informação, mas este era um assunto que teria de
discutir com Sam, e não com vovô.
— Agora, não comece a ficar nervosa com isso — Walt murmurou.
— Foi uma decisão lógica. Você tinha acabado de chegar e não vimos
necessidade de envolvê-la em algo que você desconhecia completamente.
— Então o senhor sabe quem fez a oferta? — ela perguntou.
— Não foi ninguém da região, se é isso que está querendo saber.
Ninguém de Sweetgrass iria querer tanto estas terras, a ponto de nos
atingir para obtê-las
— vovô respondeu.
— Então, quem foi? Walt cocou a cabeça.
— Calculo que seja um desses artistas de cinema de Hollywood —
disse.
— Ouvi dizer que agora isso virou "mania" entres eles. Esta gente
pensa que vai voltar no tempo e criar bisões nas propriedades. Besteiras
românticas.
— Fez uma careta. — Sam conversou bastante com Letson. O
advogado não pôde dizer quem fez a oferta, mas não negou quando Sam
mencionou a ideia dos artistas de cinema. Portanto, ainda não temos
certeza, mas achamos que pode ser. Algum ator. A maioria dos
proprietários da região jamais venderia as terras para um ator de cinema,
e por isso ele deve ter contratado Letson. — Walt fez uma pausa.
— No entanto, não consigo imaginar um desses garotões bonitos de
Hollywood vindo até aqui para derrubar caixas de correio e envenenar o
nosso gado.
Molly concordou. Mas ainda pretendia conversar com
Sam sobre isso. No momento, queria esclarecer mais uma coisa, algo
que estava adiando desde o feriado de Quatro de Julho.
— O quê, exatamente, o senhor sabe a respeito de Sam?
— perguntou, num tom que esperava ser de conversa.
— Sam? — Vovô estreitou os olhos, desconfiado. — Ora, não vá
começar de novo! Por que está perguntando, desta vez?
— O xerife Maynard parou para uma "conversinha" conosco, antes do
desfile na semana passada.
— Ah...
— E não estava particularmente... Agradável.
— Ah...
— Ele parecia saber de alguma coisa sobre Sam, que nós não
sabemos.
— Ah?
Todos aqueles "ah" estavam começando a irritá-la.
— Vovô, sei que o senhor gosta muito de Sam. Eu também gosto, e os
meninos mais ainda. Mas alguma coisa não está certa. Por que o xerife
Maynard iria querer criar problemas para Sam? E, mais importante, por
que Sam ficou tão calado, depois deste incidente?
— Você terá de perguntar a ele.
Vovô estava escondendo alguma coisa. Molly estava convencida
disso, e muito zangada. Ela era sua neta, sua família. E, aparentemente,
ele não confiava nela o bastante para lhe contar toda a verdade sobre um
empregado.
— Pois muito bem. E vou perguntar a ele.
— Tinha tantas perguntas para Sam que teria de começar a fazer uma
lista.
— O homem responsável por manter a lei neste condado olha para
Sam como se não fosse um sujeito confiável, e ainda assim o senhor quer
que eu me case com ele. Que tipo de mensagem o senhor está me
passando, vovô?
— Não lhe deu chance de responder.
— Isso me diz que o senhor está tão desesperado para me ver
casada, que é capaz de atirar-me para qualquer um. Até mesmo para um
homem que o senhor mal...
— Já chega! — Vovô empurrou as cartas para o lado.
— Você me pergunta o que sei sobre Sam Dakota. Sei que é um
homem decente e honesto. Sei que ele importa-se com seus dois filhos e
que seria um ótimo marido para você. E isso que eu sei. Quanto aos
problemas dele com o xerife, você pode pensar o que quiser, mas Sam
não fez nada de errado.
— Sam só está interessado nas terras que o senhor lhe ofereceu —
disse Molly. Ainda sentia-se ofendida pelo fato de vovô ter acenado com
uma parte de sua herança para atrair Sam.
— Alguma vez Sam afirmou que casaria com você apenas se eu lhe
desse as terras e o gado? — vovô perguntou.
— Não. — ela admitiu. — Mas nem precisava — acrescentou
sarcástica. A atitude dele dizia tudo.
— Realmente acredita que eu iria sugerir que você se casasse com um
homem em quem não confio? — Walt indagou, em voz baixa.
— Mas por que ele? — Molly gemeu. — O senhor acha que sou
incapaz de encontrar um marido por mim mesma? E se Sam casar comigo,
esgotar toda a fazenda e depois me abandonar?
Walt balançou a cabeça.
— Eu já lhe disse Molly, isso não vai acontecer.
— Como pode ter tanta certeza?
Ele suspirou profundamente e desviou os olhos.
— Se não fosse por Sam, eu teria perdido a fazenda no inverno
passado.
— Qualquer empregado poderia ter salvo a fazenda — ela
argumentou.
— Sam estava aqui quando o senhor precisou dele, mas poderia ter
sido qualquer um.
Novamente vovô balançou a cabeça.
— Não. Em primeiro lugar, ele conseguiu vender o gado a tempo de
pagar meu empréstimo no banco. Reconheço que qualquer outro
administrador teria sido capaz de fazer isso por mim. Mas, a outra coisa
que ele fez... — Walt esfregou os olhos. — Sam penhorou o cinturão de
prata que ganhou no rodeio para pagar meus impostos atrasados. Estas
coisas valem um bocado de dinheiro, Molly. Lembra-se de que lhe contei
que ele foi campeão mundial de rodeio, até sofrer um acidente? Foi este
prêmio que ele penhorou para salvar a fazenda. Ele não me contou o que
fez, só descobri tudo no dia em que fui ao escritório da receita para pedir
um pouco mais de prazo. Então fiquei sabendo que Sam já pagara todas
as dívidas. Ele contou-me o que havia feito apenas depois que eu o
pressionei muito.
Sam fizera aquilo? Molly sentiu uma súbita necessidade de sentar-se.
— Tenho tido alguns problemas com dinheiro — Walt prosseguiu, e
Molly sabia o quanto era difícil para ele admitir este fato. — Fiquei
adiando a solução o máximo que pude, mas quando as cartas de
cobranças começaram a chegar, eu soube que estava na hora de encarar a
verdade de frente.
— O senhor falou com Sam sobre isso?
— Não! — Walt respondeu com veemência, e Molly percebeu o
quanto a conversa sobre os problemas financeiros feria o orgulho dele. —
Mas era Sam quem pegava a correspondência. Ele mesmo viu o envelope
de aviso final de cobrança.
— Quanto era?
Vovô revelou um número substancial.
— Ele penhorou seu bem mais precioso, para ajudar-me. Apesar de
tudo o que você pensa, Sam Dakota é um bom homem, Molly. Dê-lhe uma
chance de provar que é digno de sua confiança. Você pode até se
surpreender. — Walt hesitou um pouco e depois prosseguiu, num tom de
voz mais suave. — Você devia ver como ele chegou aqui, Molly. Tinha
raiva de tudo e parecia carregar o mundo nos ombros. Mas aos poucos,
conforme trabalhava nas terras, foi mudando. E a terra também pode
curar as suas feridas, Molly, se você permitir.
Molly queria que suas feridas fossem curadas. Queria sentir a
satisfação de viver próxima à terra. Queria ter a sensação de realizar algo
verdadeiro.
— Sam pagou os impostos sem me dizer o que havia feito — vovô
continuou, quase num murmúrio. — Ele é assim. Você não cometerá um
erro ao casar-se com ele. Ele será bom para você, Molly, e um pai decente
para seus filhos. Eu não estarei por aqui por muito tempo. — Levantou a
mão, impedindo-a de começar a protestar. — Pense bem sobre casar-se
com ele. Prometo que não vai se arrepender.
Molly passou o restante da noite fazendo exatamente isso.
Pensando. Horas mais tarde, quando toda a casa dormia, ela continuava
acordada. Preocupando-se. Imaginando o que seria de sua vida. O que
faria sem Sam? Em quem poderia confiar? Seria certo casar-se com ele?
Olhando para a noite sem lua, sentiu-se muito só e com medo.
Alguém estava tentando aterrorizá-la a fim de expulsá-la de suas terras.
Tentando atingir sua família. E nunca precisara tanto de um forte aliado
como agora.
Isso bastaria para um casamento, ter um aliado, um companheiro?
A casa estava escura e silenciosa quando Molly desceu as escadas
apressadamente. O relógio sobre o fogão dizia que passava da meia noite.
Ela não soube o que a levou a olhar pela janela da cozinha, mas quando o
fez a primeira coisa que viu foram as luzes acesas na casa de Sam.
Antes que pudesse perder a coragem, vestiu um suéter, calçou as
botas, e encaminhou-se para o quintal.
Bateu na porta duas vezes, antes que ele atendesse.
— O que foi? — Sam ajeitou os cabelos despenteados, enquanto
abria a porta.
— Eu... pensei que você estivesse acordado — Molly desculpou-se.
— Acho que cochilei vendo televisão. — Sam não a convidou para
entrar, mas ela não incomodou-se com isso. Tinha apenas de dizer o que
viera dizer, e acabar logo com isso.
— Duas coisas. — Ela endireitou o corpo e forçou a voz a permanecer
calma e sem emoção. — Em primeiro lugar, decidi considerar a sugestão
de vovô.
Ele não falou nada por pelo menos um minuto. Apenas ficou olhando
para ela.
— Está disposta a se casar comigo? — perguntou, finalmente. Mas
não parecia estar acreditando nela.
— Sim — Molly respondeu, assentindo para enfatizar.
— E você, está disposto?
— Estou sim — ele falou no mesmo instante. Nenhuma pergunta ou
hesitação. Mas Molly duvidava que houvesse.
— Tudo bem. Podemos conseguir uma licença no final desta semana.
Sam fez que sim.
— Você disse "duas" coisas.
— Bem, a seguinte é uma pergunta. Por favor, seja honesto. Você
teria concordado em casar-se comigo se vovô não lhe oferecesse as terras
e o gado?
— Não. — ele respondeu, encarando-a firmemente.
Se não fosse por mais nada, ela era grata pela sinceridade dele.
— Foi o que pensei.
CAPÍTULO 10
Sam estava sentado à mesa da cozinha quando Molly desceu, na
manhã seguinte. O café estava pronto e, enquanto servia-se de uma
xícara, ela olhou de relance na direção dele. Seu silêncio a deixava ainda
mais nervosa. Passara uma noite horrível. Havia dormido, mas acordara
várias vezes. Seus sonhos foram repletos de cenas estranhas e
atemorizantes. Lembrava-se de um deles, no qual estava em seu próprio
casamento, só que o noivo era Daniel e o padre era o xerife Maynard.
A julgar pelas olheiras escuras de Sam, a noite dele não devia ter sido
muito melhor. Nenhum dos dois falou nada, embora Molly soubesse que
ele estava tão ciente de sua presença quanto ela estava da dele. Para
duas pessoas que haviam concordado em se casar, não pareciam muito à
vontade um com o outro.
Percebeu que ele estava lhe dando um tempo para tomar o café
tranquilamente, antes de Começar a falar.
— Você mudou de ideia?
O olhar de Molly cruzou o espaço que os separava.
— Você mudou?
— Perguntei primeiro.
Se ele estava tentando fazê-la de tola, sem dúvida conseguia seu
intento.
— Não. Estou disposta a ir em frente com o casamento se você
também estiver, mas...
— Eu estou — ele interrompeu, sem lhe dar chance de terminar.
Levantou-se e pegou o chapéu.
— Mas — ela continuou, como se ele não tivesse falado,
— eu preferia que fosse estritamente um acordo de negócios. Os
olhos dele estreitaram-se.
— Você já sabe minha resposta a isso. Seremos marido e mulher no
sentido pleno da palavra, ou o acordo está desfeito.
— Mas você disse que... você admitiu que não teria concordado com
o casamento se não fosse pela oferta de vovô.
— Pense nisso como minha garantia.
— Sua garantia? — Molly estava atônita. Se alguém precisava de uma
garantia era ela, sem dúvida. Afinal, não se tratava de um casamento por
amor, mesmo que seu futuro marido estivesse pensando em dividir a
mesma cama. Aquela questão ainda não estava resolvida, no que
dependia dela.
— Sua garantia de quê?
— Quem pode me dizer se daqui a alguns anos, depois que me
esfolei de tanto trabalhar, você não vai pedir o divórcio e me chutar para
fora da fazenda? — Sam indagou, friamente.
— E quem pode me garantir que você não irá vender todo o gado e
fugir com os lucros? — ela disparou de volta.
Ficaram encarando-se através da cozinha. Sam foi o primeiro a
romper o silêncio tenso.
— Não acha que ajudaria um pouco se começássemos a confiar um
no outro? A única pessoa que demonstrou confiança em nossa
capacidade de fazer este casamento dar certo foi Walt. Pelo bem dele, se
não for pelo nosso, vamos deixar de lado as nossas dúvidas e concordar
em fazer o melhor. Acha que conseguiremos?
Era mais difícil do que ela podia imaginar. A fé e a confiança não
surgiam tão facilmente.
— Está bem — ela suspirou, afinal. Sam relaxou um pouco.
— Ótimo. Vou dar as instruções do dia para Pete e Charlie, e depois
podemos ir à cidade e requerer a licença.
— Já? — ela ofegou.
— Há algum motivo para esperarmos mais? Ninguém sabia nada
sobre isso, ainda, nem mesmo vovô
e os meninos. Molly precisava de tempo para conversar com seus
filhos, pois não achava justo simplesmente lhes empurrar um padrasto,
assim de repente. Eles tinham o direito de expressar suas opiniões e
receios, primeiro. No entanto, duvidava que qualquer um dos meninos
fosse fazer alguma objeção.
— Preciso comunicar minha família. Ligar para minha mãe, na
Austrália.
— Molly passou as mãos pelos cabelos, num gesto nervoso. — Mas,
exceto por isso, não creio que haja motivo para esperar.
— Nós dois teremos de fazer um exame de sangue. Ela ajustou o
cinto do roupão.
— Pensei que podíamos fazer o exame, pegar a licença e marcar um
horário com o tabelião para amanhã à tarde.
Molly respirou fundo. Um tabelião, exames, tudo aquilo fazia com
que o processo parecesse tão... Calculado. Certamente não seria um
casamento por amor, mas ela ainda queria que fosse numa igreja.
— O que há de errado?
— O que acha de ter o casamento celebrado por um pastor?
— Considerando-se que não vamos nos casar pelos motivos normais,
fazer nossos votos perante um homem de Deus pode parecer um tanto
hipócrita, não concorda?
Era evidente que ele tinha razão e Molly não conseguiu encontrar
uma justificativa adequada para o casamento na igreja, embora ainda o
quisesse. Assentiu, com um ar infeliz.
— Sorria, Molly — ele disse num tom subitamente divertido.
— Poderia ser pior.
Molly não tinha certeza se isso era verdade. Estava prestes a
empenhar sua vida a um homem que não a amava, que admitia
abertamente que só estava se casando com ela em troca de cinqüenta
cabeças de gado e quinhentos acres de terra. Pior ainda, ela também iria
se casar pelos seus próprios motivos egoístas. Precisava da ajuda de Sam
para conduzir a fazenda, para manter a fazenda.
Realmente, era o que poderia ser descrito como um casamento de
conveniência.
Com tantas divergências entre eles, era de se duvidar que
permanecessem casados por mais do que seis meses, Molly pensou, com
um repentino pessimismo.
— Trata-se de um acordo de negócios, e algo mais — Sam esclareceu,
e esperou que ela concordasse.
— E algo mais — ela repetiu relutante.
Sam retirou-se logo em seguida, enquanto ela continuou bebericando
seu café e rezando para que estivesse fazendo a coisa certa.
Tom e Clay apareceram para tomar o café da manhã poucos minutos
depois. Molly esperou que se servissem de cereal e sentassem na mesa.
— O que vocês diriam se eu lhes contasse que estou pensando em
me casar novamente? — perguntou, evitando olhar para os filhos.
— Com quem? — Tom indagou, cauteloso.
— E, com quem você está querendo casar?
— Clay ecoou. Molly respirou fundo.
— Com Sam.
Tom abriu um largo sorriso e atirou o punho para o ar.
— Isso! — ele assentiu. — Eu bem que desconfiei!
— Muito bom, mamãe!
— Nenhum dos dois tem nada contra? — ela perguntou, embora
parecesse uma pergunta inútil.
— Eu gosto de Sam —- Clay afirmou, sem hesitar. Molly olhou, para o
filho mais velho, que continuava sorrindo.
— Se eu tivesse de escolher um novo pai, escolheria Sam.
— E, estou vendo. — Molly nem mesmo podia dizer que estava
surpresa. E, evidentemente, a amizade existente entre Sam e os meninos
fora um dos motivos que levaram-na a concordar com o casamento.
— Que gritaria é esta, aqui? — vovô perguntou, entrando
vagarosamente na cozinha.
— Mamãe vai se casar com Sam! — Clay exclamou. Vovô ficou em
silêncio por um instante, como se não soubesse se deveria acreditar.
— É verdade, Molly? Ela fez que sim.
— Deus seja louvado! — Walt entrelaçou as mãos.
— Não ouço uma notícia tão boa há uns quinze anos. Você não vai se
arrepender, Molly, eu prometo — ele tornou a afirmar.
O que Molly não disse ao avô era que já estava arrependida. Sentia
um frio na boca do estômago que recusava-se a desaparecer. Apesar dos
motivos que a levaram a tomar a decisão, motivos fortes e convenientes,
ela não conseguia afastar a sensação de que estava prestes a cometer um
erro terrível. Não sabia quase nada a respeito de Sam, e ele também mal
a conhecia.
Bem, mas agora era tarde demais, já estava comprometida. Dera a
sua palavra. Só teria de se certificar que ambos aprendessem um pouco
mais um sobre o outro. E bem depressa.
Uma hora depois, quando Sam voltou para a casa, Molly estava
vestida e pronta para ir com ele à cidade.
— Preciso fazer algumas compras — ele avisou, como se esta fosse a
razão principal da viagem para Sweetgrass. Tudo o mais, ele parecia
insinuar, era sem importância. Ou, pior, um aborrecimento.
Quando entrou na picape dele, Molly mal teve tempo de prender o
cinto de segurança e Sam disparou para fora da fazenda. Dirigia como se
tivesse a maior pressa de resolver todos aqueles problemas de uma vez.
Balançavam como loucos, passando por buracos e pedras, numa
velocidade muito acima do que Molly considerava segura.
— Pare! — ela gritou, um pouco antes de entrarem na rodovia.
Ele pisou no freio.
— Para quê? — perguntou.
O cinto de segurança foi a única coisa que a impediu de bater com a
cabeça no vidro da frente.
Sam mantinha os braços estendidos no volante, esperando pela
resposta dela.
— Por que está tão zangado? — ela falou.
— Não estou zangado.
— Então tem alguma explicação lógica para estar dirigindo como um
lunático?
A pergunta pegou-o de surpresa.
— Só quero acabar com isso o mais rápido possível para que possa
voltar ao trabalho.
Molly teve um impulso quase irresistível de cobrir o rosto com as
mãos e começar a chorar.
— Sei que não estamos apaixonados — ela disse, surpresa com o tom
baixo e contido da própria voz. — Mas gostaria que nós dois
encarássemos este casamento como algo mais do que um simples acordo.
Desde que você insiste em ter um casamento de verdade, isto é, que
passemos a dormir na mesma cama, então eu também tenho o direito de
fazer uma exigência.
— Sua voz ganhou mais confiança, enquanto falava. — Concordo com
a sua condição.
Molly olhou para frente. Sim, ela realmente concordava, havia
chegado a esta decisão. Iria dormir com ele. Talvez não imediatamente,
mas quando se sentissem mais à vontade um com o outro. Faria tudo
para que aquele casamento desse certo.
— Mas — ela prosseguiu —, tenho minha própria condição.
— Tudo bem, o que é?
— Quero uma cerimônia de verdade. Ele enrijeceu.
— Uma cerimônia de casamento?
— Isso mesmo. Uma cerimônia que dure mais do que os cinco
minutos do casamento civil.
— Então o quê, exatamente, você está querendo?
— Um casamento na igreja, celebrado por um pastor.
— Tudo bem, mas não conheço nenhum pastor.
— Eu cuido disso.
Molly sabia que ele não estava encantado com a ideia, mas ainda
assim, mostrou-se disposto a concordar com seus termos, da mesma
forma que ela concordara com os dele.
— Está certo. — Sam olhou para ela. — Podemos ir, agora?
— Não. — Molly sentiu que precisava lhe falar sobre Daniel. Sam
merecia saber de tudo. Porém, era extremamente difícil começar.
— Não?
— Preciso lhe dizer uma coisa. — Juntou as mãos, nervosa.
— Meu primeiro casamento não foi... Muito bom.
— Disso eu já sei.
— Você sabe? Os meninos lhe falaram sobre Daniel? Na verdade,
agora que pensava nisso, fazia todo o sentido.
Provavelmente os meninos haviam contado tudo a ele, o que era
ótimo. Molly queria que Sam entendesse seus temores, que sua
incapacidade de julgar o caráter das pessoas a apavorava a ponto de ter
medo de se casar novamente.
— Falaram, sim — Sam respondeu. Depois, acrescentou:
— O que você acha que eles me contaram?
Então ele não sabia. Molly virou o rosto, fixando os olhos na janela.
— Daniel está... Está preso.
O silêncio de Sam foi tão prolongado que Molly imaginou que ele não
a escutara.
— Por quê? — ele perguntou, finalmente.
— Por fraude. Daniel enganou muitas pessoas, fraudando suas
aposentadorias. Pessoas idosas, principalmente. Pensionistas.
— Que mau caráter! — A expressão dele fechou-se.
— Qual foi a sentença dele?
— Vinte anos de prisão, sem condicional — Molly respondeu.
— O julgamento durou semanas. As pessoas podem ser muito cruéis,
sabia? Faziam perguntas aos meninos, as outras crianças zombavam
deles.
— Sinto muito, Molly.
— Sim, bem, tudo isso são águas passadas. Mas achei que você devia
saber.
Molly ficou admirada ao perceber como sentia-se melhor, depois de
ter-lhe contado. Pelo menos tudo estava esclarecido e podiam conversar
sobre o assunto.
— Você está bem, agora?
— Estou, sim. — E era verdade. Pela primeira vez, desde aquela
manhã, sentia-se bem com a decisão que tomara. Não apenas resignada,
mas genuinamente otimista. Talvez, com um pouco de dedicação e muito
trabalho, conseguissem transformar aquele casamento num sucesso.
Sam passou a dirigir com mais sensatez depois disso, mas
permaneceu em silêncio. E ela também. Por duas vezes, percebeu que ele
desviava os olhos da estrada e a fitava. Quando aproximaram-se da
cidade ele diminuiu a velocidade, ficando bem abaixo do limite. Para
alguém que estava com tanta pressa, ele subitamente parecia ter todo o
tempo do mundo.
Sam bateu com o dedo no volante; Molly sabia que ele tinha algo em
mente.
— Antes de irmos ao cartório requerer a licença... — ele começou,
mas parou hesitante.
— Sim?
— Bem, há quase trinta e seis anos que tenho vivido por conta
própria — ele disse, como se isso fosse novidade.
— Eu sei disso. — Molly não mencionou que, exceto pelos quatro
anos de seu casamento, ela também sempre vivera sozinha.
— Eu tive uma vida... Muito agitada, Molly. Por muito tempo
acompanhei os circuitos de rodeios.
Embora ela já soubesse disso também, era a primeira vez que ouvia
diretamente dele.
— Havia muitas mulheres, naquela época, e...
Então estava na hora das confissões. Francamente, Molly não tinha a
menor vontade de ouvir as histórias de seus casos e de todas as mulheres
que ele amara. Ou com quem dormira. Isso significaria apenas mais uma
carga num casamento que ainda nem começara, mas já estava
sobrecarregado o bastante.
— Não me diga nada — ela interrompeu.
Sam desviou os olhos da estrada o suficiente para encará-la. Franziu
a testa, intrigado.
— O que quer dizer com isso?
— Não quero saber.
— Mas existem coisas a meu respeito que você precisa saber. Coisas
que poderiam fazer com que você mudasse de ideai sobre este
casamento.
Não vivi como um santo, Molly.
— Nem eu.
Ele ignorou o comentário.
— Não tenho muito orgulho do meu passado e, como minha esposa,
você tem o direito de saber que tipo de marido estará recebendo.
— Isso não importa.
— Uma parte importa, sim. — A rigidez dos ombros dele a fez
imaginar o que poderia ser.
— Você é saudável? — Molly perguntou.
— Tem filhos que precisa sustentar? Uma ex-esposa?
— Estas eram as questões importantes, em sua opinião.
— Sim, para a primeira pergunta. Quando fiquei hospitalizado fiz
tantos exames de sangue que não tenho dúvidas quanto a isso. E não,
para as outras. Pelo que sei, nunca tive nenhum filho e tampouco uma
esposa. Mas o meu passado...
— É passado — ela tornou a interromper.
— As confissões podem fazer bem para a alma, mas neste caso...
Creio que não. Vamos começar do zero, está bem? O que aconteceu no
seu passado não tem nada a ver com o futuro, e o mesmo se aplica a
mim.
Ele ficou em silêncio por um instante.
— Tem certeza quanto a isso?
— Absoluta. — Ela sorriu. — Há muita coisa que desejo ouvir sobre
sua vida: sua família, sua infância, seus dias de glória nos rodeios, os
lugares onde você trabalhou. Mas qualquer fato que o faça se sentir
culpado, é melhor que guarde para si mesmo, está bem?
Sam tomou-lhe a mão e apertou-a de leve.
— Pretendo ser um bom marido, Molly. Sei que estas não são as
melhores circunstâncias, mas se tentarmos juntos, conseguiremos ter um
bom casamento.
Isso seria possível? Molly não tinha a resposta, mas começava a
sentir uma esperança verdadeira.
Três dias depois, às cinco horas da tarde, Sam estava ao lado de
Molly na sala do reverendo Ackerly, na Igreja Batista de Sweetgrass. Tom,
Clay e Walt os rodeavam. Sam não podia deixar de sorrir diante da
tentativa de Walt de mostrar-se adequadamente solene, condizente com
sua posição na cerimônia. Ele e a Sra. Ackerly seriam as testemunhas.
Molly usava um vestido longo num lindo tom de rosa, com grandes
botões e um cinto largo. Estava com o camafeu que pertencera à avó e
um par de brincos de pérolas. Seus cabelos avermelhados estavam curtos
e encaracolados. Sam nunca a vira tão linda, e achava difícil não ficar
encarando-a. Apesar de não dizer nada, ficara contente por ela ter
insistido numa cerimônia especial. Era um bom presságio para o
casamento.
Porém, o que não ajudava muito era o fato de Molly não saber nada
a respeito de seu tempo na prisão. Sam bem que tentara lhe contar, mas
voltara atrás ao ver que ela realmente não queria saber sobre os
escândalos de seu passado. A resistência dela o deixara aliviado, pois
tinha medo de que Molly mudasse de ideia quanto ao casamento no
instante em que soubesse a verdade. E ele não a culparia por isso.
Algum dia prometeu a si mesmo, ele lhe contaria tudo sobre esta
parte de seu passado. Mas não agora.
Quando a confiança entre eles estivesse firmemente estabelecida,
então, e somente então, ele se sentiria seguro o bastante para revelar as
sombras mais obscuras de sua vida.
Antes da cerimônia eles haviam parado numa joalheria e comprado
um simples par de alianças de ouro, mas os olhos de Sam haviam se
demorado sobre os anéis de brilhante. Dali a um ou dois anos, quando
tivesse condições, ele compraria o anel que Molly merecia. Quem sabe se,
até lá, ele também já seria o marido que ela merecia.
Sam afastou tais pensamentos. Embora os dois quisessem que aquele
casamento desse certo, enganar-se a ponto de acreditar que se tratava de
uma união por amor só criaria problemas. Ele não era estúpido. Sabia por
que Molly desenvolvera aquele súbito desejo por um marido. Ela estava
apavorada e, sinceramente, ele entendia seus motivos. Principalmente
quando alguém, misterioso e desconhecido, estava querendo a fazenda e
disposto a fazer qualquer coisa para obtê-la.
Sam não queria distrair-se com estes problemas no meio de seu
próprio casamento, mas a preocupação existia. E quando chegasse a hora
de afirmar os seus votos, ele teria uma promessa para acrescentar a eles,
em silêncio. Iria proteger Walt, Molly e os meninos, ou morrer tentando.
Seguindo as instruções do pastor, pronunciou os votos com a voz
firme, forte e clara. As palavras brotavam diretamente de seu coração.
Havia demorado trinta e seis anos para se casar, e pretendia fazer isso
uma única vez.
Sam não sabia se o que sentia por Molly era amor. Porém, sabia que
gostava dela, e dos meninos, de verdade. Sabia que a queria em sua vida
e ansiava por fazer parte da dela.
Molly repetiu seus votos com a voz tão firme e confiante quanto a de
Sam. Instintivamente, ele reconheceu a coragem que ela demonstrava, e
admirou-a por isso. Respeitava-a, por uma série de razões. Pelo amor que
ela dedicava ao avô. Pela coragem que tivera ao mudar-se para Montana,
e para casar-se com ele. O fato de ela amar os filhos e esforçar-se tanto
para ser uma boa mãe. A mãe de Sam fora uma adolescente quando ele
nascera quase uma criança. O marido dela, Michael Dakota, o adotara
como seu filho. Através dos anos, seu padrasto demonstrara ser um
ótimo pai, melhor do que muitos que existiam por aí. No futuro, se Tom,
Clay e Molly concordassem, ele também gostaria de adotar os meninos.
Apenas esperava ser, para eles, um padrasto tão bom quanto o seu havia
sido.
Pensou em Michael com renovada tristeza e mágoa genuína. Pensou
em sua mãe e no restante da família. Iria ligar ou escrever muito em
breve...
Então, a cerimônia terminou e todos assinaram os documentos
oficiais, testemunhados por Walt e a Sra. Ackerly. Quando tudo estava
concluído, Walt apertou a mão de Sam e disse que mandaria Letson
acertar a papelada referente ao acordo.
— Que tal jantarmos num restaurante?
— Walt sugeriu enquanto saíam do gabinete do pastor Ackerly. —
Por minha conta.
Walt parecia satisfeito consigo mesmo, como se tivesse concluído
uma tarefa. Sam desconfiou que já fazia um bom tempo que o velho
estava planejando aquele casamento.
— O que me diz Sra. Dakota? — vovô perguntou, sorrindo para Molly.
Sra. Dakota. Eles haviam discutido a possibilidade de Molly manter o
sobrenome Cogan, pela simples razão de ser o sobrenome dos meninos.
Mas ela rejeitara a ideia. Afinal, estavam em Montana e, embora fosse
comum que as mulheres mantivessem seus sobrenomes em outras partes
do país, tal prática era quase inexistente por ali. Além disso, não devia a
menor lealdade a Daniel e sua família.
Sr. e Sra. Sam Dakota.
Agora, Sam não apenas tinha uma esposa e dois enteados, mas
também era um marido. Para ele, a vida descompromissada estava
encerrada para sempre. E isso o deixava feliz. Só podia sentir gratidão ao
homem que tivera a brilhante ideia de sugerir este casamento, e a
perspicácia de lhe oferecer o incentivo certo.
Walt escolheu o restaurante, afirmando que queria comer na nova
churrascaria. Sam achou graça na maneira como Clay olhou para o
carrinho de sobremesas no instante em que entraram no salão. A
recepcionista saudou-os alegremente.
— Parabéns aos noivos! — disse. — Vou mandar uma garrafa de
champanhe para a mesa de vocês, por conta da casa.
— Obrigada — Molly murmurou, e enviou um olhar intrigado para
Sam.
— Como ela ficou sabendo? — Sam perguntou, depois que se
sentaram.
Walt limpou a garganta, com uma expressão radiante.
— Liguei para a estação de rádio e mandei que anunciassem o
casamento.
— Vovô! — Molly gemeu, e Sam reparou que ela ruborizava.
— Ora, não é todo dia que minha neta se casa. Eu queria que todo o
pessoal ouvisse a notícia.
Na verdade, Sam não incomodava-se nem um pouco que a cidade
inteira soubesse que ele se casara com Molly.
— Eles falam sobre os casamentos, no rádio?
— Tom perguntou balançando a cabeça, incrédulo.
— Nos intervalos das notícias sobre os preços da carne e liquidações
por mudança — vovô respondeu, rindo. — E depois do bingo.
Passaram a falar sobre o mais recente sucesso de Clay no jogo de
bingo. Desta vez, ele conseguira chegar ao telefone rápido o bastante e
ganhara cinco dólares.
— Bem que desconfiei que encontraria vocês aqui — Ginny
Dougherty falou em voz alta, atravessando o salão do restaurante. Usava
calça jeans limpa e uma camisa xadrez vermelha. — Então, como está o
feliz casal?
— Casado — Walt respondeu por eles.
— Imagino que você esteja esperando um convite para juntar-se a
nós. Malditos vizinhos intrometidos — resmungou.
Mas aquilo era apenas uma encenação da parte de Walt, Sam
percebeu, sorrindo. Reparou no brilho dos olhos de Molly. Sempre que
olhava na direção dela, era difícil afastar o olhar.
A garçonete voltou trazendo uma garrafa de champanhe e quatro
taças. Walt examinou o rótulo.
— De onde é? — perguntou como se fosse um especialista em vinhos.
Sam ocultou um sorriso.
— Você nunca vai enxergar nada sem os seus óculos — Ginny falou,
puxando uma cadeira e ficando à vontade. — E nacional, da Califórnia.
— Pegou um cardápio sobre a mesa e começou a ler com toda
atenção.
— Minha visão é boa o bastante para saber que você está se
intrometendo, mulher — Walt queixou-se.
— Vovô!
— Bem, ela está mesmo. Ninguém a convidou para jantar.
— Eu convidei — disse Molly.
— Quando?
— Agora. Por favor, Ginny, nos acompanhe. Peço desculpas por este
meu avô rabugento e mal-humorado.
— Não faça isso — Walt grunhiu.
— Eu trouxe um presente. Meu e de Fred — Ginny falou, mudando
de assunto antes que se iniciasse uma bela discussão, como sempre
acontecia quando ela e Walt estavam juntos.
Sam costumava perguntar-se por que aqueles dois brigavam tanto,
mas com o tempo passou a entender que eles gostavam disso. E tinha de
admitir que Walt parecia renovar-se quando Ginny estava por perto.
— Um presente? — Molly ficou encantada.
Sam censurou-se em silêncio. Devia ter comprado alguma coisa para
Molly. Não que tivesse dinheiro sobrando, mas deveria ter escolhido um
presentinho para ela, nem que fosse apenas para lhe assegurar de que
não era um sujeito frio e egoísta que se casara em troca de um pedaço de
terra.
— Calculei que nem Walt, nem Sam, teriam tomado nenhuma
providência a respeito da lua-de-mel — Ginny falou.
— Não estamos em condições de arcar com a despesa — Molly
explicou, dando a impressão de que a questão fora cuidadosamente
analisada. Na verdade, nenhuma palavra sobre isso havia sido
pronunciada, por nenhum deles.
Mais uma vez Sam sentiu-se em falta. Estava casado havia menos de
uma hora, mas já falhara com Molly. E não apenas uma, mas duas vezes!
— Pois bem, agora vocês terão uma lua-de-mel — disse Ginny, com
um sorrisinho maroto. Tirou uma chave do bolso da calça e balançou-a no
ar, antes de entregá-la para Sam.
— O que é isso? — Walt perguntou, franzindo à testa.
— A chave de um quarto de hotel, o que mais poderia ser? Reservei o
melhor quarto disponível, de forma que Molly e Sam possam comemorar
a noite de casamento em particular.
Walt fuzilou a vizinha com os olhos.
— Eu não estava planejando fazer um filme de vídeo, se é o que você
está insinuando.
— Vovô!
— Está bem, está bem — ele murmurou, deixando seu desagrado
bem evidente.
— Foi muita gentileza sua, Ginny — Molly agradeceu. Ao perceber
que Sam a observava, baixou os olhos.
Sam perguntava-se se alguém mais havia reparado em como o rosto
de Molly ficara quase tão vermelho quanto seus cabelos. Ela estava um
tanto hesitante, e daí? Isso era justo e normal; ele também tinha seus
próprios receios. Um bom tempo se passara desde a última vez que fizera
amor.
Naquele instante a garçonete levou para a mesa uma bandeja de
canapés, também oferecidos por conta da casa. Coisinhas minúsculas, na
opinião de Sam, para ser engolidas de uma só vez. Havia torradinhas com
camarão e salmão defumado, e uma substância branca que,
aparentemente, era queijo de cabra. Molly e Ginny adoraram. Vovô
reclamou do tamanho e dos ingredientes, que considerou estranhos, e os
meninos engoliram uma porção, sem qualquer comentário. Sam comeu
apenas dois, descobrindo que não tinha o menor apetite.
— Posso pedir a lagosta? — Clay perguntou, quando os aperitivos
desapareceram da bandeja.
— Hoje não. — vovô respondeu.
— Poderá pedir quando Sam estiver pagando, e não eu.
Clay fechou o cardápio.
— Não tem mais nada que eu gosto, aqui.
— Ora, tenho certeza de que há alguma coisa — Molly falou,
sugerindo diversos outros pratos que Clay costumava apreciar no
passado.
O menino balançava a cabeça repetidas vezes.
— Posso comer o bolo de chocolate e a torta de cereja, em vez da
comida?
— E claro que sim — Sam respondeu.
— Evidente que não — Molly falou, ao mesmo tempo. Clay franziu a
testa.
— Posso ou não posso?
— E melhor não — disse Sam.
— Só desta vez, então — Molly respondeu. Novamente, a resposta de
ambos foi simultânea.
Sam olhou para ela, e ela olhou para ele. Começaram a rir juntos.
Isso era bom. Na opinião de Sam, aquela família bem que precisava de
umas boas risadas.
Todos fizeram seus pedidos e o champanhe foi consumido enquanto
esperavam. Com grande estardalhaço, Walt pediu uma segunda garrafa
para acompanhar o jantar. Depois, fez um brinde que provocou lágrimas
em Molly, desejando que a neta e o marido tivessem um casamento tão
feliz quanto fora o seu.
Ginny não foi a única a lhes dar os parabéns. Por duas vezes, durante
a refeição, as pessoas que estavam no restaurante pararam na mesa deles
para apertar a mão de Sam e lhes desejar felicidades. Afinal, a família
Wheaton fazia parte da comunidade de Sweetgrass há muitos anos. Em
outras circunstâncias, Sam teria ficado contrariado com tal intromissão,
mas não naquela noite. Ele estava sendo bem recebido, passava a fazer
parte da comunidade, não era mais um andarilho, um homem sem raízes.
Aquele casamento fez com que as pessoas passassem a encará-lo de
forma diferente, ele entendia isso. Significava que ele se comprometera
não apenas com Molly, mas também com uma nova visão do futuro. E
Sweetgrass era o lugar a que ele pertencia, e onde pretendia ficar.
Uma sensação de bem-estar o invadiu. Num espaço de vinte e quatro
horas ele ganhara uma esposa e uma família, e encontrara um lar. Um
homem não podia pedir mais do que isso.
Já passava das nove horas, quando voltaram para a fazenda. Sam
rapidamente trocou o terno e a gravata por uma confortável calça jeans e
uma camisa larga. Logo cedo, no dia seguinte, faria a mudança de suas
coisas para o quarto de Molly, na casa da fazenda. Molly podia estar
pensando que conseguira um adiamento, mas ele tinha novidades: ela era
sua esposa e ele não pretendia dormir sozinho nunca mais, em sua vida.
Para a noite que passariam no hotel, Sam arrumou apenas o
estritamente necessário, como aparelho de barba e escova de dentes.
Depois, pegou a picape e foi buscar Molly. Ela estava pronta, com uma
pequena valise na mão. Walt deu-lhe um abraço, que ela retribuiu com
toda força.
Molly despediu-se longamente dos meninos antes de descer a escada
da varanda e encaminhar-se para a picape, onde Sam a esperava com
toda paciência. Os olhos dela fitaram-no com uma expressão de timidez,
quando ele estendeu o braço para abrir-lhe a porta do veículo.
Minutos depois, estavam novamente na estrada.
Sam considerou a ideia de iniciar uma conversa, mas um único
assunto ocupava sua mente, e ele achou que falar sobre isso não ajudaria
muito.
Quando entraram na cidade, diminuiu a velocidade até bem abaixo
do limite. O xerife Maynard adoraria a oportunidade de atirá-lo na cadeia
na noite de seu casamento, mas Sam não tinha a intenção de lhe dar esta
chance.
O hotel ficava nos arredores da cidade. O sinal de néon era muito
velho e o V de "Vagas" estava queimado. Molly esperou na caminhonete
enquanto ele entrava para assinar o registro.
— Ora, vejam quem está aqui! — Bob Jenkins saudou-o atrás do
balcão.
— Ouvi dizer que vocês estão recebendo os parabéns, esta noite.
— E verdade — Sam respondeu. Embora estivesse com a chave, Ginny
explicara que teria de se registrar antes de ir para o quarto.
— Minha mulher deixou uma garrafa de champanhe no gelo, para
você e sua esposa — disse Bob.
— Isso é ótimo. — Mas Sam achava que já tinham bebido champanhe
demais por uma noite. — Nós dois agradecemos sua atenção, Bob.
— E não se preocupe com os vizinhos, também. Ultimamente os
negócios andam meio parados, e se aparecer mais algum hóspede irei
instalá-lo bem longe do quarto de vocês.
Sam assentiu, satisfeito em saber que teriam privacidade. Assinou o
nome na ficha e correu de volta para Molly. Ela estava toda encolhida no
canto da porta.
Sam ligou o motor.
— Você não está nervosa, está?
— Não. — ela respondeu, depressa. Talvez depressa demais.
— Ainda bem.
— Eu... Estou aliviada por termos tomado a decisão mais sensata,
que é a de esperar um pouco antes de iniciarmos o... Ahn... O aspecto
físico do casamento.
Sam franziu a testa, sem se lembrar de tal decisão.
— Esperar um pouco? Você está brincando, não é?
— Mas nós concordamos... Isto é, presumi que sim. Quando
conversamos, naquele dia em que fomos requerer a licença... Você não
está realmente pensando que vamos fazer amor esta noite, não é? Nós
mal nos conhecemos!
Agora Sam ficou preocupado.
— Não foi isso que entendi.
— Não?
— Eu lhe disse claramente que esperava que este casamento fosse
algo mais do que um acordo de negócios, e você concordou. Não com
muito entusiasmo, talvez, mas concordou que seria minha esposa em
todo o sentido da palavra.
— Sim, eu sei, mas não imediatamente. Pensei que...
Achei que você havia compreendido isso. Eu queria que nós nos
conhecêssemos melhor, primeiro.
Sam apertou o volante com tanta força que as juntas dos dedos
ficaram esbranquiçadas.
— Molly, eu quero fazer amor com você esta noite.
— Sem se importar com o que estou sentindo? Você mesmo disse
que não me ama.
— Mas gosto de você e a respeito muito. E sentimos atração um pelo
outro, nossos beijos já provaram isso. Não é o bastante?
Ela demorou algum tempo para responder:
— Não... Não é.
CAPÍTULO 11
Pearl sempre se perguntava se as mulheres casadas tinham idéia do
quanto o seu trabalho era facilitado pela recusa delas em fazer amor com
os maridos. Tantos homens infelizes a procuravam, levados pelas
constantes "dores de cabeça" das esposas. Como regra geral, um homem
casado procurava primeiro a esposa, e só depois procurava Pearl. Ela
estava convencida de que metade de sua clientela preferia mil vezes ficar
em casa com a própria mulher, se esta se mostrasse um pouco mais
receptiva.
O homem sentado no bar era um exemplo típico. Parecia prestes a
chorar em cima do copo de cerveja. Como profissional que era Pearl
identificou os sinais. A aliança de ouro na mão esquerda não deixava
dúvida de que era casado. E os enredos eram sempre muito parecidos:
marido e mulher discutiam e ele saía de casa, precisando de um tempo
para se acalmar. Estes casais haviam se esquecido de que fazer as pazes
era algo divertido e que devia acontecer na cama. Alguns homens
procuravam Pearl a fim de restaurar seus egos feridos. Outros eram
levados por um impulso, ou ansiando por um pouco de carinho, ainda
que tivessem de pagar por isso. E, ainda, havia os que estavam repletos
de ódio e que procuravam alguém em quem descontar sua raiva. E a
estes, Pearl tentava evitar.
Era difícil dizer a que categoria aquele vaqueiro pertencia. Pearl
encaminhou-se na direção dele e sentou na banqueta ao seu lado.
— Olá — disse, numa voz rouca e provocante.
— Você parece solitário. Ele a ignorou.
Pearl estava acostumada com tais demonstrações de frieza, mas sabia
como contorná-las.
— Há algo que eu possa fazer para ajudá-lo? Nenhuma reação.
— Al, vou querer mais um bloody Mary — ela disse. O barman
assentiu e ela enviou-lhe uma piscadela. Pearl raramente ingeria bebidas
alcoólicas e Al sabia que não devia acrescentar vodka ao seu coquetel.
— Problemas em casa, vaqueiro? — Pearl indagou, suavemente.
Ele olhou em sua direção, um sinal encorajador. Ela sorriu e, sem
parecer óbvia demais, certificou-se de que ele tivesse uma boa visão de
seus atributos físicos. Ele engoliu a bebida de uma só vez e Pearl reparou
que sua mão tremia, quando baixou o copo. Podia apostar que a
discussão que ele tivera com a esposa fora relacionada com sexo. Aquele
sujeito estava tão "quente" que ela sentia o calor irradiando-se dele.
— Quer conversar sobre isso? — perguntou, inclinando-se sobre o
suco de tomate temperado que Al deixara no balcão.
— Não.
Com toda delicadeza, Pearl deslizou as longas unhas pelo braço dele.
— Quer fazer alguma coisa sobre isso?
Agora, captara toda a atenção dele. Sem pressa, passou a ponta da
língua sobre os lábios, que estavam frios por causa da bebida gelada. O
vaqueiro parecia incapaz de desviar os olhos de sua boca.
— Ninguém sabe cuidar de você melhor do que a Pearl — ela
prometeu, e tomou um longo gole da bebida.
Ele fechou os olhos.
A batalha estava quase ganha. Pearl sorriu consigo mesma.
Para sua surpresa, ele deixou o dinheiro no bar e levantou-se para
sair. Mas não deu três passos antes de hesitar por um instante.
Pearl pressentiu que ele estava enfraquecendo e seguiu-o para fora.
Não levaria muito tempo. Sujeitos como aquele vaqueiro estavam sempre
prontos para explodir antes mesmo que ela tivesse a chance de tirar a
calcinha. Ela os considerava como dinheiro fácil.
— Eu moro bem ali, virando a esquina — ela disse, enfiando as mãos
nos bolsos da jaqueta.
— Não estou interessado.
— Ora, não seja tão grosseiro. Sou muito boa, vaqueiro, e posso
ajudá-lo a esquecer de tudo o que está incomodando-o. Vamos lá, deixe
Pearl cuidar de você.
— Você é boa mesmo, Pearl? — ele perguntou, parando ao lado da
picape.
Era uma pergunta que quase todos faziam. Geralmente, o que os
homens queriam era um corpo disponível. Quaisquer delicadezas sexuais
eram inexistentes para eles.
— Boa o bastante para satisfazê-lo, vaqueiro. Ele riu, abruptamente.
Ela abriu os braços para ele.
— Pearl vai cuidar de você. Satisfação garantida. Ele passou a mão
trêmula pelo rosto.
— Você é boa o bastante para satisfazer um noivo na noite de
núpcias?
Ela já ouvira histórias bem interessantes neste seu tempo de estrada,
mas aquela era nova.
— E claro que sim, amor, tudo o que você quiser. Pearl vai fazer você
sarar. Prometo que você vai se sentir melhor do que se tomasse duas
aspirinas. — Aproximando-se, ela deslizou as mãos em torno da cintura
dele e moveu-se sugestivamente, dando-lhe uma amostra da maciez de
seus seios e da sensualidade de seu perfume. Pearl recusava-se a usar
perfumes baratos.
— Desculpe. Como já disse, não estou interessado. — Ele falou
devagar, gentilmente e, pousando as mãos nos ombros dela, afastou-a
com delicadeza.
A tristeza e o desapontamento que percebeu na voz dele provocaram
um aperto no coração de Pearl. Ela não sabia que realmente possuía um
coração, antes de conhecer Russell. E, embora fosse grata por tudo o que
ele fizera, não queria que seus sentimentos aflorassem quando tinha de
lidar com os fregueses. Afinal, ela lhes fornecia um serviço, e a emoção
não estava incluída.
Era uma mulher de negócios que conhecia o próprio valor e, depois
de fornecer uma experiência satisfatória a um homem, encorajava-o a
voltar sempre, chegando até a oferecer um programa de descontos.
Monroe não sabia de nada disso, mas certamente nem se incomodaria.
Tudo o que importava para ele era o dinheiro que recolhia dela e das
outras garotas.
Aquele vaqueiro tinha o potencial para tornar-se o tipo de freguês
que ela mais gostava. E poderia persuadi-lo, disso tinha certeza. Já
conquistara muitos homens como ele, antes. Ainda assim, Pearl hesitou.
Ele estava muito abalado emocionalmente. E, embora ela lhe oferecesse
uma solução temporária, fazer sexo com ela não o ajudaria muito, se a
esposa acabasse descobrindo.
— Você a ama? — Pearl perguntou baixinho, sem nem mesmo saber
de onde surgira a pergunta.
O vaqueiro demorou um pouco a responder.
— Acho que sim — disse.
— Do contrário, a esta hora você já estaria com a saia levantada.
— Então volte para ela. Ele balançou a cabeça.
— Ela não quer que eu a toque. Não está interessada. Pearl riu.
— Escute, não tenho a pretensão de saber muita coisa sobre a
natureza humana, mas se ela casou com você, acredite, é porque está
interessada.
O vaqueiro queria acreditar nela. Pearl percebeu pela firmeza com
que seus olhos a encaravam.
— Não é um casamento normal — ele falou, balançando novamente
a cabeça, desolado.
— E que casamento é normal?
— Pearl passou a mão pelo braço dele, fazendo com que as unhas
longas e pintadas lhe arranhassem a parte interna do cotovelo. — Escute
aqui, vaqueiro, não importa que tipo de casamento você tem, a verdade é
que ela quer você.
— Não é o que ela diz.
— Então eu vou lhe dizer uma coisa. Volte para ela e, se não
conseguirem se acertar, me procure e lhe dou uma noite por conta da
casa.
— Nunca antes ela fizera este tipo de oferta. Porém, a menos que
esposa dele fosse uma completa idiota, certamente daria valor ao bom
homem com quem se casara.
O vaqueiro parecia prestes a esboçar um sorriso.
— Acha mesmo que ajudaria se eu voltasse?
— Acho.
Ele exalou um longo e profundo suspiro.
— Então eu vou.
— Entrou na picape e, quando ligou o motor, olhou de relance para
ela. — Obrigado.
— Sem problemas.
Mas havia um problema. O fato de estar amando Russell a
modificara, e agora Pearl se encontrava numa encruzilhada. Ou
continuava com a única vida que conhecia, ou mudava. Russell a pedira
em casamento vezes incontáveis. Mas ele não entendia no que ela estava
realmente envolvida. Tampouco compreendia que, se fossem vistos
juntos, ele estaria em perigo, e ela também. Russell sempre lhe falava o
quanto ela era esperta, mas isso não era verdade. Se tivesse a metade da
inteligência que ele tanto proclamava, Pearl descobriria uma forma de se
casar com o único homem a quem amara.
O gelo no balde onde estava a champanhe já derretera há muito
tempo. Molly sentou-se na beirada da cama, sentindo-se mais infeliz do
que naquele dia em que o juiz declarou que ela e Daniel estavam
divorciados. Possivelmente, um segundo casamento seria a única coisa
capaz de levá-la de novo para o fundo do poço.
Nos últimos dias ela realmente ficara ansiosa com a perspectiva do
casamento com Sam mas, naquela noite, conforme aproximava-se a hora
da tal lua-de-mel, começara a se preocupar. Estar sozinha com ele num
quarto de hotel não fizera parte dos planos. Não dos seus planos, pelo
menos. Teria preferido que a primeira noite juntos fosse passada no
conforto e familiaridade da fazenda. Mas, então, Ginny e Fred lhes
ofereceram aquela "noite de núpcias" e Molly não teve coragem de
desapontá-los.
O problema era com ela, pensou, e com o seu medo de permitir que
alguém ficasse íntimo demais, até mesmo o homem com quem se casara
horas atrás. A intimidade a aterrorizava e, porque sentia tanto medo,
porque a ideia de permitir que Sam a tocasse e a abraçasse a deixava
quase paralisada, ela o mandara embora.
O pânico instalou-se assim que chegaram ao hotel. Sam apressara-se
a lembrá-la da promessa que fizera a ele, o que provocou uma discussão
imediata. Molly não conseguia recordar-se de tudo o que dissera, mas
fosse o que fosse, estava arrependida. Sam a deixara sozinha e saíra na
picape, com os pneus "cantando" no asfalto. E ela ficara ali, cheia de
receios e dúvidas, imaginando aonde ele teria ido, e o que estaria
fazendo.
Com os braços enlaçados na cintura, ficou andando de um lado para
outro do quarto, sentindo-se infeliz e derrotada. Por um instante,
convenceu-se de que nem mesmo queria saber onde ele estava.
Mas isto era uma mentira deslavada. Afinal, aquela era a primeira
noite de seu casamento, e ela estava sem o seu marido. Sem marido, sem
orgulho e sem dignidade. Todas as dúvidas que alimentara depois que
divorciara-se de Daniel retornaram com força total. Daniel a abandonara
por causa de outra mulher, mas alegara que ela o havia mandado
embora. Molly havia rebatido a acusação com toda veemência, no
entanto já estava praticamente expulsando seu segundo marido no que
parecia ser um tempo recorde. Daniel a abandonara depois de quatro
anos, e em menos de quatro horas Sam já havia partido.
Embora fosse inútil tentar dormir, ela tornou a deitar-se e abraçou
um travesseiro contra o peito. As sombras do letreiro de neon dançavam
na parede, deixando-a ainda mais desolada, lembrando-a do fracasso de
sua vida.
Devia ter adormecido, pois abriu os olhos assim que ouviu Sam
chegar. Ele destrancou a porta, abriu-a e entrou no quarto em silêncio.
Uma onda de alívio e gratidão envolveu-a e ela teve de se controlar para
não pular da cama e atirar-se nos braços dele, implorando seu perdão.
Nada havia saído do jeito que ela planejara. Ao invés de falar sobre seus
medos, de explicar-lhe tudo o que sentia, ela se tornara defensiva e
irracional.
Sam parou no meio do quarto escuro, hesitante.
— Sam — ela disse baixinho, sentando-se na cama.
— Sim?
Molly sentia o peito arder por prender o fôlego.
— Desculpe-me. Molly ouviu-o suspirar.
— Também peço desculpas.
— Não o culpo por ter saído...
— Molly deixou a frase no ar, temendo que sua emoção embaraçasse
a ambos.
Ele atravessou o quarto e sentou na cama.
— Receio que não tenha começado muito bem o meu papel de
marido — disse. — Molly, eu também não posso culpá-la por...
— Não fui eu a enganada, e sim você.
Sam virou-se e encarou-a na escuridão. A única luz provinha do sinal
de neon lá fora, mas era o bastante para que Molly visse que ele parecia
intrigado.
Ela lhe devia a verdade.
— Estou com medo — confessou.
— De quê?
Era extremamente doloroso para ela verbalizar as suas dúvidas,
confessar suas fraquezas, sabendo que a rejeição dele poderia devastá-la.
— De sofrer novamente. De ficar vulnerável, de tantas coisas. Creio
que nem me dei conta de quanto medo eu sentia, até a hora em que
chegamos neste hotel.
— E ainda se sente assim?
— Sim, mas não tanto.
Ele levantou a mão como se fosse tocar-lhe a face, mas hesitou.
— Está disposta a tentar? Fica por sua conta. Se quiser parar, nós
paramos.
— E você, está disposto a me dar uma segunda chance?
— ela perguntou.
— Mais do que disposto — Sam assegurou-lhe, inclinando-se para
beijá-la delicadamente.
Molly fechou os olhos e deslizou as mãos pelos largos ombros dele.
Aquele não era Daniel, lembrou a si mesma, era Sam. Ele havia casado
com ela, a queria como esposa, precisava dela.
Quando beijaram-se novamente, foi por iniciativa dela. Molly
ajoelhou-se na cama e passou os braços em torno do pescoço dele. Era
bom. Muito mais do que bom. Os dois ficaram em silêncio, depois do
beijo.
Sam riu baixinho e levantou-se. Depois, começou a abrir os botões da
camisa com movimentos apressados.
— Ela estava certa.
— Quem?
— Alguém que conheci esta noite, lá no Willie.
— No bar do Willie?
— E. Foi a primeira vez que voltei lá, desde aquela briga. Acho que
isso mostra como eu estava me sentindo. De qualquer forma, conversei
um pouco com esta mulher e ela me convenceu a voltar.
Quem quer que fosse a mulher, Molly tinha com ela uma dívida de
gratidão.
Sam tirou as botas, que caíram no chão com um ruído surdo.
— Preciso de você, Molly. Sei que talvez não seja grande coisa como
marido, mas vou tentar. — Tirou a calça jeans e entrou debaixo das
cobertas.
— Faz... faz muito tempo para mim, Sam.
— Para mim, também. — Ele aproximou-se mais dela.
— Você está com roupas demais para uma noiva na noite de núpcias.
Molly recostou a cabeça no ombro nu de Sam e pousou a mão em
seu peito. Podia sentir o coração dele palpitando sob sua palma.
— Acha mesmo?
— Tenho certeza.
Sam a beijou com uma ansiedade que quase a devorou.
A reação de Molly foi imediata, e tão calorosa quanto a dele, o que
até a surpreendeu. O beijo foi louco e maravilhoso, e suas mãos moviam-
se frenéticas, tocando, excitando e acariciando.
Molly deixou que seus dedos se demorassem sobre o peito dele,
adorando a sensação de maciez da pele, e de ter um homem em seus
braços. Nada mais importava agora, exceto o desejo físico quase violento
que sentiam um pelo outro.
Molly segurou-o pela nuca e colou os lábios nos dele. Os beijos que
se seguiram foram ardentes e urgentes. Quando Sam posicionou-se sobre
ela, arqueou o corpo para recebê-lo. Erguendo a cabeça do travesseiro,
ela o beijou de leve, mal permitindo que seus lábios se tocassem. Era
mais um ofego do que um contato.
— Molly... — Ele murmurou seu nome num gemido doloroso e
tomou-lhe os lábios por inteiro, prendendo-a contra o colchão. Uma leve
camada de suor cobria-lhe a testa.
Respirando ofegante sob ele, com os braços estendidos para os
lados, Molly forçou o ar a penetrar em seus pulmões. Levantou a cabeça
apenas o bastante para tocar-lhe o pescoço com a língua. A pele dele
tinha um sabor másculo, salgado, e exalava um perfume quente e
sensual.
Sam fez amor com ela, preenchendo lhe o corpo com o seu, até que
atingiram um ápice glorioso, que os deixou completamente exauridos.
Não havia nenhum som, exceto a respiração de ambos, rápida e
ofegante. Nenhum deles falou. De sua parte, Molly sentia-se incapaz de
pronunciar sequer uma palavra. A respiração de Sam normalizou-se
primeiro, e ele sorriu, espalhando beijos leves e doces em todo seu rosto.
— Como se sente? — sussurrou, aconchegando-a em seus braços.
— Maravilhosa.
Ele beijou-lhe a testa.
— Eu também.
— Quero ser uma boa esposa, Sam... Sei que fiz tudo errado esta
noite, e me arrependo...
Ele silenciou-a pousando o dedo em seus lábios.
— Não se desculpe. Não é necessário. Apenas me prometa que, de
hoje em diante, vamos falar a respeito de tudo, com toda sinceridade. E a
nossa única chance. Este casamento poderá dar certo se nos dois
estivermos dispostos a batalhar por ele.
Molly assentiu.
— Eu prometo.
Mais feliz do que jamais se sentira em toda sua vida, ela o abraçou,
com força. Se nada mais tivessem a compartilhar naquele casamento,
além do sexo incrível que acabaram de experimentar, já seria o suficiente.
Molly já se apaixonara uma vez, mas o amor não havia durado pelo
tempo que durou seu casamento. Tinha medo de confiar outra vez. Ela
gostava de Sam, respeitava-o, precisava dele. Porém, amá-lo poderia ser
perigoso. Amá-lo significava arriscar mais do que ela podia dar-se ao luxo
de perder. E havia muita coisa em jogo, para que permitisse que seu
coração atrapalhasse.
Molly tinha certeza de que aquela desenfreada sensação de
felicidade não podia durar muito. As duas semanas seguintes ao
casamento foram as melhores de sua vida. Os meninos também estavam
satisfeitos. Cada um à sua maneira, haviam-se ajustado à mudança de
suas vidas na Califórnia para a vida que tinham ali em Montana. Tom
passava horas cavalgando com Sam, aprendendo tudo o que podia sobre
cavalos e gado. Demonstrava um talento natural, que Sam incentivava e
encorajava. A atenção e aprovação de Sam faziam maravilhas para a
autoestima do menino, e as mudanças que Tom exibia eram admiráveis.
Em dois meses, transformara-se de um adolescente rebelde num jovem
responsável e trabalhador.
Clay preferia ficar nos arredores da casa da fazenda com Molly e
vovô. O menino passava horas incontáveis adestrando Bullwinkle, seu
cachorro inseparável. Às vezes Clay ajudava Molly no jardim, ou com
pequenos serviços da casa.
Clay também passava bastante tempo jogando cartas com vovô. Ou,
então, sentava-se ao lado dele na varanda, esculpindo pequenas peças de
madeira, geralmente muito orgulhoso de suas obras primas. Ele e vovô
haviam se tornado bastante unidos.
Vovô também parecia feliz, embora sua saúde tivesse piorado a
ponto de obrigá-lo a passar a maior parte do dia em sua cadeira na
varanda, ou ouvindo o rádio. Parecia que finalmente encontrara a
serenidade, uma paz interior.
Molly despedia-se do marido todas as manhãs e contava as horas até
que ele retornasse. Mas mantinha-se ocupada o dia inteiro; a casa e o
jardim lhe davam trabalho suficiente para preencher seus dias. Todas as
tardes ficava esperando Sam na varanda. Ele e Tom chegavam à cavalo,
exaustos, e depois os três seguiam juntos para o estábulo. Porém,
quaisquer demonstrações de afeto entre marido e mulher eram
reservadas para a intimidade do quarto.
No decorrer daquelas duas semanas o desejo que sentiam um pelo
outro não havia diminuído nem se dissipado. Sempre, depois que faziam
amor, Sam a aconchegava entre os braços e ficavam conversando. Ele lhe
contava sobre a época em que participara dos rodeios e sobre o acidente
que lhe custara a carreira. Molly beijava-lhe as cicatrizes e seus olhos
enchiam-se de lágrimas ao pensar na dor que cada uma delas havia
causado a ele.
Numa destas noites, perguntou a Sam:
— Você está feliz?
Ele ficara muito quieto diante da pergunta, e Molly pensou se não
teria inadvertidamente ultrapassado os limites do que haviam
concordado em falar. Talvez ele estivesse pensando que ela lhe pedia
para confessar seu amor. Mas não era isso. Molly achava que, se ele
realmente a amasse, lhe diria quando chegasse a hora.
— Sim, estou muito feliz — ele respondeu.
Não foram as palavras, mas o tom de voz dele. A maneira como ele
falou. Com sinceridade, olhando diretamente nos olhos dela. Com
gratidão, como se ela, e apenas ela, fosse a responsável por isso. Por fazê-
lo feliz.
— Eu também estou — Molly sussurrou.
— Sem arrependimentos?
Ela passou os dedos por entre os cabelos de seu peito.
— Ultimamente, não. — respondeu, brincando, e foi recompensada
com uma palmadinha no traseiro.
As vezes, Molly falava com ele em francês. E agora disse que gostaria
de ter outro filho, algum dia. Um filho dele.
— Vai traduzir o que acabou de falar?
— Ah, num outro dia, quem sabe.
— Eu entendi uma das palavras.
— Ah, meu Deus. Qual foi?
— "Bebê" — ele respondeu. Depois, sério, acrescentou:
— Molly será que você está...
— Não se preocupe — ela tranquilizou-o.
Com pouco dinheiro e todos os problemas da fazenda ainda sem
solução, ninguém precisava lhe dizer que não seria o melhor momento
para ter um filho. Mais tarde, no entanto, ela iria tocar novamente
naquele assunto.
Já era meia-noite quando Molly adormeceu. Mas não soube por que
acordou duas horas depois. Os raios da lua cheia penetravam pela janela.
Sentando-se na cama, teve a estranha sensação de que havia algo errado.
Depois de um instante, Sam também acordou e sentou-se.
— O que foi? — ele perguntou, com a voz rouca de sono.
Ela encolheu os ombros.
— Não sei.
— Você ouviu alguma coisa?
— Não. E que... — Molly não conseguiu encontrar as palavras.
Sam levantou da cama e pegou a calça.
Molly vestiu o roupão e seguiu-o para o andar de baixo. A primeira
coisa que notou foi que a porta da frente estava aberta.
Nos dias mais quentes de verão vovô costumava deixá-la aberta, para
que a brisa arejasse a sala e o seu quarto. Mas aquela noite estava bem
fresca, com a promessa de chuva. Os ventos sopravam na direção do
norte.
Ao aproximar-se da porta, Molly viu que vovô adormecera na cadeira
de balanço da varanda. Sam acendeu as luzes e foi checar o restante da
casa.
— Vovô — Molly chamou-o suavemente, sentando na cadeira de
vime ao lado dele. — Acorde. Está na hora de ir para a cama.
Ele parecia tão tranquilo... Molly começou a conversar com ele,
esperando que Sam voltasse para ajudá-la a levá-lo até o quarto.
— Sabe, vovô, eu estou amando Sam. Mas o senhor já sabia disso,
não é?
— Recostou-se na cadeira e olhou para a lua, agora obscurecida pelas
nuvens. — O senhor tinha toda razão.
Olhou de relance para o avô e podia jurar que o viu sorrindo no
sono.
— Molly? — Sam chamou-a.
— Estou aqui fora. Vovô dormiu de novo na varanda. Sam juntou-se a
ela e balançou levemente o braço de
Walt, tentando acordá-lo. Depois de um instante, virou-se e apoiou-
se no cercado da varanda.
— Sam?
Ele voltou-se para ela e ajoelhou à sua frente, segurando-lhe as duas
mãos com força.
— Molly. — Beijou-lhe as pontas dos dedos e prendeu as mãos dela
junto aos lábios. — Meu amor... Walt não está dormindo. Acho que ele se
foi.
CAPÍTULO 12
Molly não dormiu pelo resto da noite. E nem mesmo tentou. Em vez
disso, ficou sentada na varanda, segurando o camafeu que vovô havia lhe
dado. O camafeu que sua avó Molly usara em seu próprio casamento.
Parecia tão injusto que ele tivesse de morrer agora. Sua mente enchia-se
com centenas de arrependimentos, lamentando cada dia que passara
longe dele antes de mudar-se para Montana. Se soubesse que ele estava
doente... As palavras ecoavam em seu coração: se soubesse se soubesse...
Porém, as lágrimas não chegavam para lhe trazer alívio.
Para gratidão de Molly, Sam fizera todos os telefonemas necessários
assim que o dia amanheceu. O médico legista foi o primeiro a. chegar.
Conversou brevemente com Sam e fez algumas perguntas a ela, mas
depois disso Molly não se lembrava mais das perguntas ou de suas
respostas.
Mais tarde, o Sr. Farley, da funerária Ross, passou para acertar os
detalhes do enterro. Vovô já havia determinado tudo o que queria numa
carta que enviara à funerária alguns meses antes. O Sr. Farley levou a
carta consigo e mostrou-a à Molly. Vovô estabelecera que não queria
desperdício de dinheiro com o funeral e que desejava um sepultamento
reservado, apenas com a família. Depois, como se tivesse pensado
melhor, acrescentou que daria permissão para Ginny comparecer, se ela
quisesse, mas ninguém mais.
Novamente Molly ficou aliviada em permitir que Sam lidasse com
todas as formalidades. Depois de tudo acertado, o Sr. Farley saiu, dizendo
que entraria em contato com eles em breve.
A tarefa mais difícil do dia foi falar com os meninos. Molly ficou
atônita pelo fato de ambos continuarem dormindo durante toda a
comoção que seguiu-se à sua descoberta. Mas, ao invés de acordá-los,
preferiu deixá-los dormir. De manhã, Clay foi o primeiro a descer e apenas
olhando para ela percebeu que algo estava terrivelmente errado.
— O que aconteceu? — ele perguntou parado no meio da cozinha
com as meias e os tênis na mão.
— Foi o vovô — Molly respondeu.
— Ele se foi, meu querido. Morreu ontem à noite.
O rosto de Clay demonstrou seu choque e incredulidade.
— Ele não pode ter morrido! Ele estava bem, quando fui dormir. Nós
ficamos conversando na varanda, e ele estava bem!
Molly mordeu o lábio para impedi-lo de tremer.
— Lamento muito, querido, mas é verdade.
— Não pode ser! — Clay gritou. Depois, virou-se para Sam.
— Diga-me que não é verdade, Sam! Ele não pode... Ontem ficou me-
contando sobre o Dia D na Normandia e sobre a batalha de Bulge. Ele
sabia tudo sobre a guerra. — Encarou Sam com uma expressão contraída,
implorando para que ele lhe dissesse que a mãe estava errada.
— Sinto muito, filho. — Sam balançou a cabeça.
Com estas palavras, Clay rompeu em lágrimas e escondeu o rosto no
colo da mãe, soluçando com tanta força que seu corpo inteiro tremia.
Molly enlaçou-lhe os ombros magros, afastando as próprias lágrimas
enquanto a emoção a perpassava, tão renovada e dolorosa quanto no
momento em que Sam lhe falara que vovô havia morrido.
— O que há de errado? — Tom perguntou, entrando na cozinha. Os
olhos estavam inchados de sono e os cabelos desalinhados. Ele parou,
olhando de Clay para Sam, e depois para Molly, com uma expressão
preocupada.
Ela lhe contou.
Tão logo as palavras da mãe penetraram em sua mente, Tom
irrompeu para fora da casa, deixando a porta bater com um estrondo
atrás de si. Ficou fora por mais de uma hora e, quando retornou, reuniu-
se a Molly na varanda, sentando silenciosamente na cadeira de balanço
ao lado dela. Molly ansiava por palavras que pudessem aliviar a dor do
filho, mas sem conseguir encontrá-las, permaneceu em silêncio. Isso não
importava, pensou. Sabia que ele precisava apenas estar perto dela.
Após uns quinze minutos, Tom levantou da cadeira, com os olhos
vermelhos e inchados. Com a voz embargada, afirmou:
— Eu tinha orgulho de ser bisneto de um homem como vovô. Molly
não tinha certeza de como o filho se sentiria se o abraçasse agora, mas
fingiu esquecer-se de que ele julgava-se "adulto" demais para ser
abraçado pela mãe. Estendeu-lhe os braços e Tom inclinou-se para
abraçá-la com toda força. Quando ele saiu da varanda, ela o viu enxugar
os olhos com as costas das mãos. Começou a chorar, então,
incontrolavelmente. Chorou até que não lhe restassem mais lágrimas.
Ficou sentada na varanda o dia inteiro. Sem nada perguntar, Sam lhe
trazia café e algo para comer a cada poucas horas. Ela tomou o café, mas
quase não comeu. A atividade continuava à sua volta, pois Sam mantinha
os meninos ocupados a fim de garantir a ela a chance de ficar sozinha. Ao
entardecer Molly começou sentir uma certa paz. Uma espécie de
aceitação do destino.
Agarrou-se a isto e acalmou seu coração, querendo celebrar a vida de
vovô e não concentrar-se em sua morte. Recusava-se a ser consumida
pela dor provocada pelo seu falecimento. Era assim que ele iria querer
que ela reagisse, e saber disso ajudou-a a aplacar a terrível sensação de
perda.
Vovô nunca fora religioso, mas era um homem de fé. Muitas vezes
sentava-se naquela mesma varanda, com uma velha e gasta Bíblia aberta
no colo, lendo o livro dos Salmos.
Numa noite, pouco depois do incidente da cerca cortada, Molly
encontrara o vovô ali, com sua Bíblia. Ele erguera os olhos para ela,
dizendo:
— O Rei Davi foi um homem que enfrentou muitos problemas.
Problemas de verdade, e dizia que não devemos nos apoiar apenas
em nosso próprio julgamento.
Molly não soubera ao certo o que isso significava, mas aquela fora a
única vez que podia lembrar-se de vovô comentando sobre algo da Bíblia.
No jantar daquela noite, o primeiro que tinham sem o vovô, Molly
fez um esforço para servir a comida. Ela mesma não tinha o menor
apetite, mas depois de colher verduras frescas na horta, preparou uma
boa salada e deixou-a no centro da mesa, dizendo aos meninos que se
servissem.
— Você não vai comer, mamãe? — Clay perguntou.
— Mais tarde, quando Sam voltar — ela respondeu, mas sabia que
não conseguiria engolir nada. Tudo, dentro dela, doía. Sua cabeça, seu
coração, e até mesmo seu estômago.
Sam havia ido à cidade, mas ela não conseguia se lembrar do que ele
fora fazer. Na verdade, não conseguia lembrar-se de quase nada do que
acontecera naquele dia. Sabendo que a morte de vovô era inevitável, há
tempos vinha se preparando interiormente. Ou pensava que estivesse.
Agora, no entanto, quando se deparava com a realidade, percebeu que
era impossível alguém preparar-se para a morte de um ente querido. A
dor surgia do mesmo jeito, incontrolável. Não importava o quanto a
morte podia ser certa, ou até mesmo bem-vinda, sempre era um choque.
— Você está bem, mamãe? — Tom perguntou indo encontrá-la na
varanda depois que o sol se pôs. Sentou no degrau da escada, virando-se
para observá-la.
Clay apareceu logo em seguida, quieto e compenetrado, segurando o
cachorrinho no colo. Bóris e Natasha deitaram no tapete da porta como
se também tivessem vindo dar adeus a vovô.
Molly fez que sim.
— Gostaria que tivéssemos tido mais tempo com ele.
— Eu também — disse Tom.
— Queria que vocês dois pudessem tê-lo conhecido melhor. Ele era
um homem admirável. — Era doloroso falar, e Molly pressionou os dedos
nos braços de madeira da cadeira.
— Mas fiquei contente pelo tempo que tivemos juntos. A sabedoria
que seu filho de quatorze anos demonstrava deixou-a emocionada. Tom
concentrava-se no que tinha a agradecer, ao invés de pensar no que havia
perdido. Ele também conquistara, a duras penas, um tipo de aceitação. E
era grato pelas bênçãos que recebera.
— Vovô me ensinou a esculpir em madeira e a jogar cartas — disse
Clay.
Vovô ensinara a ela as mesmas coisas, quando Molly tinha a idade do
filho.
— Ontem à noite, ele falou mais sobre a guerra — disse Tom. —
Contou sobre os homens que morreram antes mesmo de alcançar a praia,
e como seus corpos ficaram flutuando na água.
Molly procurou o camafeu e segurou-o com força entre as mãos.
Vovô o chamava de amuleto da sorte.
E havia levado consigo o camafeu naquela batalha, como se fosse um
pedacinho tangível do amor que compartilhava com a esposa. Para
protegê-lo. Como um lembrete de fé no futuro.
— Ele falou um pouco sobre a morte e de como a gente não deveria
temê-la
— Tom prosseguiu, como se estivesse lembrando-se disso pela
primeira vez.
— Disse que, para algumas pessoas, a morte poderia ser uma amiga.
— Uma amiga? — Molly sabia o que ele queria dizer, mas nunca
ouvira o avô falar sobre isso.
— E, para aqueles que fizeram as pazes com Deus — Clay
acrescentou.
— Foi isso o que ele disse. Eu acho que vovô estava pronto para
partir.
— Ele falou muitas coisas, ontem à noite — Tom continuou. — Mas,
principalmente, lembrou da guerra, do filho dele e da vovó Molly.
As lágrimas surgiram novamente nos olhos de Molly. Ela não queria
chorar, não na frente dos filhos. Não queria deixá-los ainda mais tristes.
— Mamãe...
— Eu sei, querido, me desculpe. Parece que não consigo parar de
chorar. Vou sentir tanto a falta dele.
Mas, pelo menos, não estaria mais sozinha. A princípio a sugestão de
vovô para que ela casasse com Sam lhe parecera uma intromissão, uma
ofensa, mas Molly sabia que o terrível vazio que sentia dentro de si seria
dez vezes pior se não fosse pelo seu marido. Agora, aceitava que vovô
havia partido, mas sempre sentiria sua falta.
Enxugou os olhos com um lenço. Já havia chorado tanto que seus
olhos doíam e o nariz estava vermelho e congestionado.
— Eu gostava muito dele — Clay falou baixinho.
— Ele podia ser velho, mas sabia um bocado de coisas e nunca me
tratou como se eu fosse uma criança. E, mesmo quando eu errava no jogo
de cartas, ele nunca deixou que me sentisse mal por isso.
O enterro foi feito três dias depois. Sam, Molly e os meninos
permaneceram ao lado da sepultura, e Ginny também estava presente,
um pouco mais afastada. O pastor que celebrara o casamento deles fez
uma oração e, em seguida, abraçou Molly brevemente e trocou apertos
de mão com Sam e os meninos. Molly demorou-se um pouco ali, em
companhia de Ginny, que não parava de enxugar os olhos com um lenço
de papel.
— Vou sentir saudade daquele velho rabugento — ela falou,
assoando o nariz ruidosamente.
— Nós todos sentiremos — disse Sam.
Ele mantinha o braço nas costas de Molly, que era grata pelo apoio e
conforto que isso lhe proporcionava. Não sabia o que teria feito se não
fosse por Sam, naqueles últimos dias. Ele lhe dera toda força de que tanto
precisava.
— Fomos vizinhos por trinta anos — Ginny continuou, agora
chorando levemente. — Walt e Molly ficaram ao meu lado, no enterro de
Hank.
— Enxugou os olhos e calou-se por um instante, tentando se
recompor.
— Walt e eu talvez discordássemos de algumas coisas, mas eu sabia
que se precisasse de um amigo, ele sempre estaria ali.
As lágrimas de Ginny vieram com toda força, então, e ela cobriu o
rosto com as mãos.
— Diabos, vou sentir demais a falta dele.
Molly afastou-se de Sam e enlaçou os ombros de Ginny.
— Vou ficar muito sozinha, sem o vovô por perto — disse.
— Especialmente agora, que as aulas dos meninos vão começar. Você
acha que poderia passar lá em casa num dias destes, para tomarmos um
chá? Seria bom ter uma amiga com quem conversar.
Ginny assentiu e abraçou Molly.
— Você sabe que nunca tive filhos. Mas gostaria de ter tido uma filha
como você.
Molly saboreou o elogio. Ginny era bem parecia com vovô, tão
geniosa e sincera quanto ele. E também tão solitária.
— Gostaria de jantar conosco na fazenda? — Molly convidou. Ginny
balançou a cabeça, em negativa.
— Não, obrigada. Preciso voltar para casa, pois Fred está sozinho.
— Beijou Molly no rosto e correu para a caminhonete que deixara
estacionada na entrada do cemitério.
Enquanto seguiam pelo mesmo caminho, Molly deu-se conta de que
Ginny sentia uma afeição especial por vovô. Deveria ter percebido antes,
pensou. Durante todos aqueles anos, os dois haviam morado tão perto
um do outro, cuidando um do outro em meio às brigas, discussões e
ofensas. Mas haviam se amado, em silêncio. Sem nunca dizer uma palavra
um ao outro, sem nunca sequer se tocarem. Haviam sido os melhores
amigos e os maiores inimigos.
O beco escuro atrás da taverna estava deserto, agora que Willie
fechara o bar. Monroe estava em seu carro com as luzes apagadas e
esperava que Lance aparecesse. Não confiava em seu colega Legalista e o
considerava um caso perdido. Nos dois últimos meses Lance havia se
tornado ainda mais imprevisível e impaciente, o que deixava Monroe
muito nervoso. Preferia que Lance se fosse, mas Burns não queria nem
ouvir falar nisso.
A porta do carro se abriu e Lance entrou, sentando no banco da
frente.
— Você está atrasado — Monroe resmungou. Olhou no relógio,
deixando bem claro que contara cada um daqueles cinco minutos.
Lance não apenas estava sem o uniforme, mas se tornava cada vez
mais preguiçoso. Qualquer disciplina desaparecera de sua higiene pessoal
e das suas atitudes. O rosto estava ensombreado com a barba de dois
dias e um odor desagradável exalava de sua farda. As botas não haviam
sido engraxadas e um dos cordões estava arrebentado. Monroe
desconfiava que ele havia escapado para participar de outro rodeio.
— E verdade que o velho está morto e enterrado? — Lance
perguntou.
Casamento em Montana
— O enterro foi esta tarde — Monroe confirmou.
— E aquele seu primo advogado, já conseguiu convencer a neta a
vender as terras?
Monroe bem que desejava que tudo fosse assim tão fácil.
— Não, infelizmente. E agora que ela casou com Dakota, seremos
obrigados a agir com um pouco mais de força.
— Você tem alguma ideia?
Aquela deveria ser a área de atuação específica de Lance. Os
Legalistas o haviam trazido de Idaho, julgando que seria melhor que
alguém de fora cuidasse do trabalho sujo, poupando Monroe de qualquer
sombra de suspeita. Exceto para fazer contato com Monroe, Lance não
deveria aparecer na cidade. Quanto menos fosse visto, melhor seria. Só
que ele se cansara de viver no acampamento montado na mata e
começara a sair com outro Legalista, para jogar bilhar e embebedar-se.
— Pensei que você era para ser o homem das ideias — Monroe
disparou.
— Eu sou. Tudo o que preciso saber é até onde posso chegar.
Monroe cerrou os dentes, tentando controlar a irritação.
— Faça o que tiver de fazer e não me aborreça com os detalhes, está
bem? E fique longe da cidade.
— Ei, não precisa se descontrolar — Lance murmurou, abrindo a
porta do carro.
A luz interna acendeu-se, iluminando uma parte do beco. De repente,
Monroe percebeu um movimento e virou a cabeça rapidamente. Levou
apenas um instante para ver quem era.
Pearl. Ela se encolhera atrás de uma lata de lixo, numa tentativa de
se esconder. Monroe imaginou o que ela estaria fazendo ali, mas nem
precisava dizer que boa coisa não era. Aquela vagabunda estava
precisando de uma lição, e ele se certificaria de que mantivesse o nariz
fora dos seus negócios, de agora em diante. Antes do fim daquela noite,
ela estaria implorando por seu perdão; só de imaginar a cena, já ficava
excitado. Não havia visto Pearl com muita frequência, ultimamente, e era
óbvio que ela se esquecera de algumas das lições que ele lhe ensinara
antes. Aquele era o tipo de trabalho que ele mais gostava: colocar uma
mulher no seu devido lugar. Depois que concluísse o seu "servicinho",
Pearl não estaria mais em condições de se esconder para ouvir suas
conversas.
— Quem fez isso com você? — Russell perguntou, olhando para o
rosto machucado de Pearl.
A raiva o consumia de tal forma que ele mal reconhecia o som da
própria voz. Por Deus, quem quer que a tivesse espancado daquele jeito
iria pagar por isso. Pearl estava sentada à sua frente, com os olhos tão
inchados que Russell se perguntou se ela estaria enxergando. Havia
também um corte feio no canto de seu lábio.
— Russell...
— Diga-me quem foi, Pearl! Eu preciso saber.
— Ele começou a andar de um lado para outro da sala, furioso
demais para ficar parado.
— Não está tão ruim quanto parece — ela disse, num esforço
evidente para acalmá-lo. Mas não funcionou.
— Quem? — ele gritou novamente, cerrando os punhos. Russell
nunca fora um homem violento, mas o ódio que sentia agora o fazia
acreditar que seria capaz de cometer uma brutalidade. Seria capaz de
qualquer coisa.
Pearl baixou a cabeça.
— Por favor, Russell, isso não tem importância.
— Pois para mim, tem!
Ele havia desconfiado que algo estava errado quando Pearl não
aparecera no chalé na manhã de domingo. Havia esperado por uma hora
e depois saíra para procurá-la, presumindo que o carro dela tivesse
quebrado no caminho. O chalé ficava a uns bons oitenta quilômetros da
cidade e naquela estrada isolada ela poderia passar horas esperando,
sem que ninguém aparecesse. Mas ele não a encontrou, nem tampouco
qualquer vestígio do carro dela.
Quando voltou ao chalé viu que havia um recado na secretária
eletrônica. Era de Pearl, dizendo que não poderia encontrá-lo naquele
domingo, e talvez nem no domingo seguinte. A voz dela estava estranha
e, depois de ouvir o recado pela segunda vez, Russell teve certeza de que
algo acontecera.
Sem pensar na sua reputação, foi direto para a casa de Pearl. Ela não
queria deixá-lo entrar e só acabou permitindo depois que Russell armara
uma pequena confusão, chamando-a em voz alta o bastante para que as
pessoas reparassem em sua presença ali. Relutante, ela abriu a porta e
Russell deparou-se com seu corpo ferido e cheio de hematomas.
— Russell, por favor, vá embora — ela dizia, agora. — Vou ficar bem,
e daqui duas semanas você nem se lembrará disso. Eu... nós podemos
continuar como antes, está bem? — Tentou empurrá-lo para a porta, mas
ele nem se moveu.
Por vezes seguidas Russell a pedira em casamento, e ela sempre
recusava. Ele não conseguia entender porque, não podia assimilar o fato
de que ela escolhera aquele tipo de vida ao invés do amor que
compartilhavam.
— Não vou embora antes de esclarecermos isso tudo — ele insistiu.
Podia ver o quanto falar era doloroso para ela. E os olhos inchados e
arroxeados... Mal suportava olhar para eles. O mais certo seria ela estar
no consultório de um médico, naquela hora, ou até mesmo num hospital.
— Por favor...
— Não posso fingir que isto não aconteceu — Russell falou,
retomando o andar nervoso. Passou as mãos pelos cabelos com tanta
força que quase arrancou alguns fios da raiz.
— Por favor... você está me deixando zonza. Sente-se.
— Pearl fez um gesto na direção do sofá.
Ele afundou numa banqueta, mas não podia olhar para ela. Cada vez
que a fitava seu estômago se contraía e ele sentia vontade de vomitar.
Pearl segurou uma toalha contra os lábios, umedecendo o corte
levemente.
— Não há motivo para você ficar tão transtornado — ela disse,
descartando a própria dor. — Estas coisas acontecem de vez em quando.
Não são muito agradáveis, nem divertidas, mas fazem parte da vida. Um
acidente de trabalho, por assim dizer. Sinto muito se isto o incomoda
tanto... Preferia que não tivesse vindo aqui.
Pearl mexeu-se um pouco e seu robe abriu, revelando feios
hematomas nos ombros. Perigosamente próximos da garganta. Era quase
como se o tal cliente tivesse tentado estrangulá-la.
Russell sentiu-se gelar com a ideia.
Ele a amava mais do que pensara. Durante meses, recusara-se a
aceitar a realidade do trabalho dela. Era mais fácil ignorar a maneira
como ela ganhava a vida do que encará-la de frente, especialmente
levando-se em conta o fato de que Pearl negava-se a falar no assunto. Em
vez disso, ele se concentrara nos momentos em que passavam juntos,
todos os domingos. Porém, não podia mais ignorar a verdade.
Exalando um suspiro doloroso, obrigou-se a olhar para os ferimentos
dela.
— Nós vamos nos casar. — Não estava pedindo, desta vez, estava
simplesmente comunicando. Não iria permitir que Pearl tornasse a
arriscar a vida.
A primeira reação dela foi de afastar-se fisicamente. Recostou-se nas
almofadas do sofá e lentamente, com movimentos cautelosos, parecia
ficar cada vez menor, encolhendo-se em si mesma. Primeiro dobrou as
pernas sob o corpo e fechou mais o robe. Depois, enlaçou os braços em
torno da cintura.
— Você me ouviu? — Russell indagou. Ela virou o rosto.
— Então? — Ele a observava, aguardando a resposta, imaginando
qual seria. Nutrindo esperanças.
Quando ela falou, foi num tom quase inaudível.
— Homens como você não se casam com mulheres como eu.
— Eu me caso.
Pearl levantou levemente o queixo e suas palavras adquiriram
convicção.
— Então deixe-me colocar de outra maneira: mulheres como eu não
se casam, e ponto final.
— O que é isso? Algum tipo de regra? Ela recusou-se a responder.
O silêncio entre eles parecia durar uma eternidade, mas quando ela
voltou a falar Russell pressentiu que havia uma firmeza renovada. Pearl
podia ser bem teimosa quando queria isso ele tinha a dizer em seu favor.
— Nós já discutimos este assunto — ela afirmou, finalmente.
— Eu não posso... Lamento muito, Russell, mas isso é impossível.
— Por que? Olhe só para você, Pearl! Seu rosto parece que foi
esmagado. Não pode pedir que eu fique sentado aqui, sem fazer nada! Se
não quer me dizer quem bateu em você, então pelo menos me deixe lhe
oferecer a proteção do meu nome.
Ela enviou-lhe um sorrisinho triste, seguido de uma careta de dor. O
estômago de Russell contraiu-se novamente e ele engoliu em seco,
enquanto testemunhava o desconforto dela. Sentir a dor de outra
pessoa... Isso era amor.
Pearl balançou a cabeça, devagar.
— Não posso.
A frustração dele era quase insuportável.
— Então me explique por quê. Ajude-me a entender, pelo menos. Eu
amo você, e você me ama. O casamento é o que acontece, quando duas
pessoas sentem o que nós sentimos um pelo outro.
— Caso você não tenha percebido, eu não sou como as outras
mulheres.
— Ela fitou-o direto nos olhos, e era o mesmo olhar duro e
ressentido da mulher que ele conhecera meses atrás. — Sou uma
prostituta.
Russell pensou que havia uma única maneira de atingi-la, de fazê-la
ouvir a razão e confiar nele. Dizer a verdade.
— Eu amo você, Pearl, você sabe. Há meses que estou apaixonado.
Minha vida é esperar pelos domingos, quando sei que estaremos juntos.
Só consigo pensar em você, o tempo todo. Tudo bem, você tem razão
quando diz que não é como as outras mulheres, mas eu não me importo
com isso. Não quero ninguém, exceto você.
Pearl desviou os olhos e, pelas lágrimas que neles brilhavam, Russell
soube que suas palavras haviam lhe tocado o coração. Ela enrijeceu os
ombros e sorriu levemente.
— Receio que você tenha confundido sexo com amor, Russell.
— Nós nos encontramos durante semanas, antes de irmos para a
cama — ele lembrou.
Ajoelhou diante dela e pegou-lhe a mão. Pearl tentou retirá-la e só
então Russell reparou numa marca profunda e avermelhada em seu
pulso. Pegou a outra mão e viu outra marca semelhante. O desgraçado a
amarrara pelos pulsos! Era doloroso demais olhar para seus ferimentos.
— Quem fez isso com você? — perguntou novamente, quase
implorando. Sentiu uma vergonhosa vontade de chorar. E ela
provavelmente percebeu isso em sua voz, pois segurou-o pelos ombros e
apertou-os com força.
— Escute-me, Russell, por favor. E, desta vez, preste bem atenção:
isso não tem importância.
— Vou chamar o xerife. Pearl soltou uma risada.
— Ah, faça-me o favor! Acha que ele vai se incomodar com uma
prostituta que apanhou de um freguês "impetuoso" demais? — ela
retrucou, irônica.
Russell ergueu os olhos para o teto e respirou fundo.
— Pois eu me importo. Não consigo ficar parado e ver estas coisas
acontecendo com você. Não posso amá-la como amo e não me preocupar
com o fato de que você está sendo espancada. Já ignorei isso tudo por
tempo demais.
— Apenas esqueça, por favor. Eu estou bem, de verdade.
Os olhos dela imploravam para que ele esquecesse as preocupações,
juntamente com o pedido de casamento. No passado Russell cedera aos
seus pedidos, mas não faria mais isso. Não agora, quando a vida dela
corria perigo, não quando tudo o que ela tinha de fazer era concordar e
permitir que ele a amasse e protegesse.
— Não posso esquecer. — Russell virou-lhe a mão e beijou a parte
interna de seus pulsos. O vergão era feio e avermelhado e ele sentiu o
calor em seus lábios.
Pearl fechou os olhos.
— Por favor... — repetiu.
— Nunca antes pedi a uma mulher que compartilhasse a vida comigo.
Estou pedindo a você, Pearl. Entendo que talvez seja complicado vivermos
aqui em Sweetgrass, mas podemos nos mudar, eu posso montar um
escritório em qualquer outro Estado. Vamos começar de novo, eu e você.
Ela balançou a cabeça, prestes a chorar:
— Não. Isso não é possível.
— Você não vai me convencer de que este é o tipo de vida que
deseja. Eu a conheço muito bem.
Pearl levou a mão ao rosto, aparentemente esquecendo que os olhos
estavam machucados, e encolheu-se sob a dor súbita.
— Isto é algo que os homens nunca conseguiram entender sobre as
mulheres como eu — disse, num sussurro. — Eu gosto do que faço.
Russell sabia que ela estava mentindo.
— Talvez você discorde — ela continuou, — mas presto um serviço
valioso à sociedade, e se de vez em quando as coisas ficam um pouco
difíceis... bem, são ossos do ofício. Aceito as surras, do mesmo jeito que
aceito as recompensas. Você, Russell, foi uma recompensa inesperada,
portanto pode ver que, no final, tudo fica equilibrado.
— Não quero ouvir mais nada disso! — Especialmente sabendo que
ela estava mentindo. Eles eram íntimos demais, próximos demais, para
que Russell não reconhecesse quando ela mentia.
Pearl segurou-lhe os braços, com força e firmeza.
— Escute, escute muito bem, porque o que você ainda não entendeu,
e o que a maioria dos homens não consegue aceitar, é que faço isso por
escolha própria.
Russell puxou o braço e levantou-se, irritado com as mentiras e a
atitude dela.
— Tenho uma especialidade, você sabe — ela prosseguiu,
umedecendo os lábios. — Ou talvez não saiba. Muitas mulheres têm
aversão a isso, mas...
— Já ouvi falarem sobre sua especialidade — Russell interrompeu,
cerrando os dentes.
Ela riu, como se isso a divertisse.
— E mesmo? Isso me deixa surpresa, pois você nunca me pediu que
fizesse.
— É diferente, conosco.
— E? Está completamente convencido disto, ou será que existe uma
leve sombra de dúvida?
— Pearl, esta sua tática não vai funcionar. Não importa quantas
grosserias você diga não vai me convencer que não me ama. Eu sei como
você se sente.
— Só porque lhe entreguei meu corpo de graça? — ela disse, e riu. —
Ora, não é sempre que uma garota como eu tem a chance de passar as
tardes de domingo descansando, num lugarzinho reservado. Até mesmo
uma prostituta precisa de um tempo para respirar de vez em quando, e se
o preço disto for uma "trepadinha", então por que não? Você é uma
companhia agradável e foi muito bonzinho por me ensinar a ler. Não
pode me culpar por ficar um pouco... Envolvida demais, não é? Uma
garota como eu deve...
— Pare! — ele gritou. — Não desmereça o que nós tivemos!
— Então não dê a isso mais importância do que realmente teve — ela
disparou de volta.
Russell sentiu a pele arder mesmo quando um frio percorreu lhe o
sangue. Tinha de sair dali. Fugir. Do contrário, corria o risco de parecer
ainda mais idiota. Sem olhar para ela, encaminhou-se para a porta.
— Algum dia você vai me agradecer por isto — Pearl murmurou.
Ele ouviu a tristeza na voz dela, e foi o bastante para fazê-lo parar. O
bastante para lhe dar esperança. Rígido e tenso, parou com a mão no
trinco da porta, de costas para ela.
— Aprendi minha lição com você, Russell — ela disse, numa voz
repleta de dor. — Nunca mais vou me envolver com nenhum cliente.
Ele escancarou a porta e saiu.
Russell conseguiu manter-se longe de Pearl por duas semanas
inteiras, a cada dia esperando que ela tivesse mudado de ideia, que
ligasse para ele. Mas isso não aconteceu. A todo momento recordava os
detalhes da discussão que tiveram e, embora tivesse certeza de que ela
havia mentido, suas palavras deixaram cicatrizes profundas.
Pela primeira vez duvidou de que realmente existia amor entre eles
e, conforme os dias passavam e ela não o procurava, as dúvidas foram se
transformando numa sensação de amargura. Ao final da segunda semana,
já se convencera de que Pearl apenas se divertira à sua custa. Não seria
possível que ela o amasse e suportasse ficar afastada por tanto tempo.
Logo a dor transformou-se em raiva. A cada manhã, quando olhava
para o próprio reflexo no espelho, Russell acusava-se de ser um idiota. A
raiva alimentava-se de si mesma e foi crescendo, tornando-se cada vez
maior.
Quando não conseguiu mais suportá-la, fez com que seu primo
marcasse um encontro para ele, da mesma forma que fizera da primeira
vez. E estava pronto, batendo na porta da casa de Pearl exatamente na
hora que fora marcada.
Fez um bem imenso ao seu ego ver a surpresa nos olhos dela,
quando abriu a porta.
— Não se preocupe, não vou atrapalhar o encontro com seu freguês
— ele murmurou. — Porque sou eu mesmo.
Os olhos dela estavam bem menos inchados, agora, e os hematomas
haviam desaparecido. O corte em seu lábio havia cicatrizado, ou fora
muito bem disfarçado sob o batom vermelho vivo. Ela usava meias-calças
pretas e uma saia de couro muito sexy, que chegava até a altura das
coxas. Os sapatos de salto fino acrescentavam uns bons cinco centímetros
à sua altura. Os seios estavam quase à mostra no top justo demais, que
parecia ser dois números menor do que o dela.
Pearl parecia não saber o que fazer, como se o choque fosse
demasiado intenso para ela.
— Decidi aceitar sua oferta.
Ela enviou-lhe um olhar intrigado.
— Oferta?
— Estou aqui para experimentar sua especialidade — ele anunciou.
Os olhos dela arregalaram-se, como se tivesse levado um tapa no
rosto. Um silêncio pesado seguiu-se às palavras dele.
— Eu...
Russell tirou a carteira do bolso e puxou uma nota de cem dólares.
— Meu dinheiro vale tanto quanto o dos outros, não é? Ele passara
dias ensaiando o que iria dizer mas, agora, deu-se conta de que não
conseguiria fazer o que pretendia, não conseguiria humilhá-la e degradá-
la pois, se o fizesse, estaria humilhando a si mesmo.
Guardou a nota novamente na carteira.
— Esqueça — murmurou.
— Russell...
Sem querer ouvir o que ela tinha a dizer, passou pela porta e fugiu,
sendo seguido pelo som dos soluços dela.
Limpar o quarto de vovô foi como reviver a noite em que ele falecera.
Molly sabia que tinha de fazer isso, pois era uma parte do processo de
aceitação da morte dele. Ela e Sam haviam decidido mudar para o quarto
de vovô, que ficava no andar de baixo. E, de alguma forma, era uma
perspectiva confortadora.
Cada gaveta que abria lhe revelava mais evidências do amor que ele
sentia por ela e pelos seus filhos. Encontrou suas cartas guardadas dentro
de livros e em bolsos de camisas, parecendo que haviam sido lidas muitas
e muitas vezes.
Fotografias dela e dos meninos, em vários estágios de suas infâncias,
estavam espalhadas por todo o quarto. Ele guardara tudo o que ela havia
lhe enviado, em todos aqueles anos. Cada foto, cada bilhete, cada
desenho feito pelas crianças. Porém, foi ao ler o diário dele que Molly
mais se emocionou.
Desde o dia em que sua esposa Molly se fora, vovô começara a
escrever no diário, como se fossem cartas dirigidas a ela. Abria o coração,
descrevendo sua solidão, suas esperanças e dúvidas.
Escreveu sobre o quanto amava Molly e seus filhos, sobre o medo
que sentia de que seu amor pudesse sufocá-los, se decidissem vir morar
com ele. E descreveu a dor que o atingira quando Molly preferira
permanecer na Califórnia.
Sentada na beirada da cama, ela começou a chorar e não conseguia
mais parar. Chorou pelos anos perdidos, quando limitava-se apenas a
escrever, ao invés de fazer um esforço para visitá-lo. Ele nunca lhe pedira
para vir. Vovô a amara completamente, sem qualquer egoísmo. Molly
prorrompeu em soluços renovados quando deu-se conta de que aquela
fazenda quase falida e uma neta eram tudo o que havia restado a ele,
depois de setenta e cinco anos de vida. Uma neta e os filhos dela.
— Mamãe. — Tom entrou no quarto.
Molly balançou a cabeça, informando-o em silêncio de que precisava
ficar sozinha.
— Você está bem?
Ela cobriu a boca com a mão e assentiu. Tom hesitou por um
instante, depois fez meia-volta e saiu correndo.
— Sam! Venha aqui, depressa!
Sabendo que o marido ficaria igualmente preocupado com aquele
súbito ataque de emoção, Molly fez um esforço concentrado para
interromper os soluços, mas descobriu que isso seria impossível.
— Ela vai ficar doente, se não parar de chorar — disse Tom quando
Sam apareceu vindo da sala.
Sam entrou no quarto, devagar.
— Ela vai ficar bem, filho — disse, sentando ao lado dela. Acolheu-a
entre os braços e Molly recostou o rosto em seu ombro, deixando-o
absorver a sua dor e saudade. — Está tudo bem, querida, é bom
desabafar. Você se conteve por duas semanas, agora chore bastante.
Tom parecia preocupado.
— Não é melhor trazer alguma coisa para ela?
— O quê, por exemplo? — Sam perguntou.
— Não sei um lenço de papel, uma aspirina. Se ela não parar logo,
você vai precisar de uma camisa seca.
— Vocês dois querem fazer o favor de ficar quietos? — Molly falou,
por entre as lágrimas.
— Vovô não iria gostar que você chorasse deste jeito, mamãe.
— Então ele não devia ter deixado este diário aqui, para que eu o
lesse — ela balbuciou, enxugando o rosto com as mãos.
— O que tem para o jantar? — Clay perguntou, entrando no quarto.
Parou abruptamente e olhou para Tom. — Mamãe e Sam estão se
beijando de novo?
— E claro que não — Molly respondeu, endireitando o corpo.
Respirou fundo várias vezes, acalmando-se. — Pronto, já estou melhor.
— O que tem para o jantar? — Clay repetiu.
— Comida — disse Tom, empurrando o irmão para fora do quarto.
Molly ergueu os olhos para o marido, sabendo que eles
demonstravam todo seu amor. Não sentia mais necessidade de ocultá-lo.
De certa forma, Sam fora o último presente que vovô lhe dera e ela sabia,
sem nenhuma sombra de dúvida, que o amava.
— Quando Clay viu nosso beijo? — ele perguntou. Ela ruborizou.
— Acho que foi no outro dia, de manhã.
No primeiro dia de escola Clay havia acordado bem cedo. Quando
entrou na cozinha, deparou-se com Molly sentada no colo de Sam, os dois
profundamente envolvidos um com o outro. Resmungando baixinho, o
menino os ignorara e colocara uma fatia de pão na torradeira.
Sam havia saído para o estábulo no instante seguinte, mas voltara
para furtar um beijo antes de seguir para as pastagens à cavalo, para mais
um dia de trabalho. We mostrava-se abertamente afetuoso naqueles
últimos dias, ao mesmo tempo em que ambos sentiam-se mais íntimos e
à vontade um com o outro.
Agora, Sam seguiu-a para a cozinha.
— Quero lhe perguntar uma coisa, Clay — disse, limpando a garganta.
— Você se incomoda de me ver beijando sua mãe?
O menino encolheu os ombros.
— Não muito.
— E você, Tom?
— Não me incomodo. Você pode beijá-la quanto quiser, pois se casou
com ela.
Seu filho realmente tinha um jeito eloquente de colocar as coisas,
Molly pensou.
— Quando nos perguntou como iríamos nos sentir se você casasse
com mamãe, disse que... Ah, você sabe. — Clay olhou de Molly para Sam,
e depois novamente para Molly.
— Você conversou com eles, antes de nos casarmos?
— Molly perguntou a Sam, depois do jantar. Tom havia tirado a mesa
e Sam a ajudava a lavar a louça.
— Conversei, sim. Achei que deviam ter algo a dizer sobre o fato de
ganharem um padrasto.
— É mesmo? E qual foi a reação deles?
Sam deu uma risadinha e pegou um pano de prato.
— Tom disse que ficava grato por alguém querer casar com você. Ele
estava quase perdendo as esperanças.
Molly não acreditava nele nem por um segundo. Erguendo as mãos
da água com detergente, soprou bolhas de sabão na direção dele, e riu
quando foram pousar bem no meio de seu peito.
Sam estava pronto para dar o troco, quando o telefone tocou. Ele
olhou com tristeza para o aparelho na parede, e pegou o fone.
— Alô — disse, ainda rindo enquanto soprava as bolhas de volta para
Molly.
Ela viu quando o riso desapareceu de repente dos olhos dele, e Sam
bateu o fone com força no gancho.
— Quem era? — ela perguntou.
Sam já estava a meio caminho da porta. Virou-se para ela, com a
expressão tensa.
— Era Ginny. Temos um incêndio numa das pastagens — disse.
— Podemos perder tudo. Chame os meninos e siga-me.
CAPÍTULO 13
Molly imaginava o que teria dado início ao incêndio, até que Sam
encontrou uma lata de gasolina jogada na beira da estrada. Ele estava
convencido de que o fogo fora ateado de propósito pois, pelo que pôde
determinar, começara num trecho de capim seco e espalhara-se em
questão de minutos. Felizmente uma mudança nos ventos poupara a casa
e os estábulos do desastre certo. Usando o trator e pás, e apagando as
chamas com cobertores, Sam; Molly, Ginny, Fred e os meninos, além dos
voluntários do Corpo de Bombeiros, conseguiram deter o fogo antes que
se espalhasse na direção dos pastos onde estava o gado.
Exausta pelo trabalho intenso, cheirando à fumaça e com as roupas e
a pele cobertas de cinzas e fuligem, Molly arrastou-se de volta para casa.
Os meninos a seguiam, arrastando as pás, cansados demais até para
reclamar. Os bombeiros já haviam ido embora, bem como Ginny e o
primo. Apenas a família permanecera nos campos, checando tudo para
certificar-se de que não restara nenhum foco de incêndio. Quando
finalmente chegaram perto da casa, Sam desceu do trator e passou o
braço em torno dos ombros de Molly.
— Você está bem? — perguntou, examinando lhe o rosto. A
preocupação e o amor que ele demonstrava lhe deram
forças para sorrir e oferecer a resposta que Sam precisava.
— Está na hora de chamarmos o xerife, não acha? — ela indagou,
enquanto sentavam à mesa da cozinha.
O incêndio a deixara muito assustada. Havia pensado, ou esperado,
que aqueles ataques tivessem terminado. Ou outros chamados
"incidentes", embora desastrosos, não representaram uma ameaça à vida
deles. Um incêndio, entretanto, era algo mais sério e em sua opinião já
era tempo de comunicarem as autoridades.
— Tudo bem — Sam respondeu. Estreitou os lábios, em dúvida. —
Mas não creio que Maynard vá fazer alguma coisa.
— Por que não?
Molly sabia que, por algum motivo, Sam e o xerife tinham uma rixa
mútua, mas não acreditava que o policial permitiria que seus problemas
pessoais interferissem com o cumprimento da lei.
— E só o que eu acho — Sam limitou-se a responder.
Ao que parecia, o xerife Maynard encontrava-se a serviço fora da
cidade, pois não apareceu na fazenda antes da noite seguinte. Molly
estava na cozinha lavando a louça do jantar, quando ouviu o carro dele
chegar. Enxugou as mãos e apressou-se em abrir-lhe a porta.
— Obrigada por ter vindo, xerife.
— Ouvi dizer que vocês tiveram um problema por aqui, ontem à
noite?
— E verdade. Clay vá chamar Sam para mim, por favor. O menino
assentiu e correu na direção do estábulo.
— Tomei a liberdade de entrar em contato com o Chefe Layma, do
Corpo de Bombeiros. Ele virá pessoalmente fazer algumas perguntas para
você e seu... Marido.
O xerife pronunciou a palavra marido de uma forma que sugeria
desaprovação. Molly fingiu não reparar.
— Gostaria de uma xícara de café, enquanto conversamos? —
ofereceu.
— Sim, seria bom. — Maynard seguiu-a para a cozinha, sentou junto
à mesa e tirou um bloco de anotações do bolso.
Quando Sam chegou, preferiu recostar-se no balcão da cozinha, ao
invés de sentar-se à mesa com o xerife. Os dois ficaram observando-se
com o canto dos olhos, como dois vira-latas procurando uma desculpa
para começar a brigar.
Molly achou que o xerife comportava-se de maneira bastante
civilizada, mas não podia dizer o mesmo de Sam.
— Você acha que o incêndio foi iniciado de propósito?
— O xerife direcionou a pergunta para Molly.
Sam respondeu:
— Eu não acho. Tenho certeza.
— Por quê?
Sam cruzou os braços.
— Não é preciso ser um gênio para chegar a tal conclusão, desde que
o fogo foi ateado na estrada.
— Poderia ter sido um acidente — o xerife Maynard falou. — Há
muita gente irresponsável por aí. Alguém pode ter jogado um cigarro
aceso pela janela do carro. O que o leva a acreditar que foi intencional?
Acho difícil acreditar nisso.
— Você pode acreditar no que quiser — Sam retrucou, com firmeza.
— Mas o fogo não foi provocado por nenhum cigarro. Quem quer que
tenha feito isso, deixou em seu rastro uma lata de gasolina vazia.
O xerife fez uma anotação no bloco.
— Mas não houve nenhum prejuízo concreto, não é?
— Na verdade, houve sim. — A voz de Sam ficou mais dura. — Estou
me preparando para vender o rebanho. Se o vento não tivesse mudado
de direção, nós teríamos perdido tudo. Por isso, quero lhe dizer que...
— Não levante a voz para mim, Dakota, pois não me custa nada atirar
este seu traseiro na cadeia em questão de minutos. — A ameaça foi tão
chocante quanto real.
— O que Sam quer dizer, xerife — Molly apressou-se em interceder
—, é que ontem não foi a primeira vez que algo assim aconteceu. O
incêndio foi o mais recente de uma série de incidentes.
— Você deu queixa de todos os outros "incidentes"? Sam desviou os
olhos, que pareciam lançar faíscas.
— Liguei para o senhor quando nossas cercas foram cortadas —
Molly respondeu.
Maynard assentiu, observando Sam, encarando-o com a mesma
desconfiança cautelosa que dedicaria a uma cobra venenosa. Quando
falou, foi direto para ele.
— Como expliquei à sua esposa, Dakota, o chefe Layman virá lhes
fazer algumas perguntas amanhã cedo. Vou levar a prova comigo, para
checar possíveis impressões digitais.
— Quem fez isso não seria estúpido o bastante para deixar
impressões. Deixou a lata apenas para que soubéssemos que o incêndio
foi provocado deliberadamente.
— Como já disse, o chefe Layman fará uma inspeção amanhã.
Lamento muito sobre o incêndio, mas temos de ser gratos por ninguém
ter saído ferido.
— O xerife bebeu o último gole de café e levantou-se, empurrando a
cadeira da mesa.
Sem agradecer nem despedir-se, Sam pegou o chapéu e saiu pela
porta dos fundos. Esta bateu com um estrondo atrás dele.
Molly resistiu ao impulso de desculpar-se pelo comportamento de
Sam. Também não simpatizava muito com o xerife Maynard, mas ele
representava a lei. Apesar das diferenças de personalidades, ele era um
profissional, devidamente eleito e, talvez, um bom policial.
Molly seguiu-o até o carro.
— Sinto muito que o senhor e meu marido não se entendam muito
bem.
O xerife abriu a porta do veículo e parou.
— Parece que Sam e eu começamos com o pé esquerdo.
— Importa-se de me dizer por quê? — ela pediu. Sam podia ter
muitos defeitos, mas normalmente a insensatez não era um deles. E Molly
presumia que o xerife Maynard também fosse um homem sensato.
— Acho melhor que você converse sobre isso com seu marido. Só
posso lhe dizer que começou no dia em que ele chegou em Sweetgrass
procurando encrencas. E, com uma atitude assim, não demorou muito
para encontrar uma briga.
— O xerife parecia arrependido de ter falado tanto. — Molly, eu
gostaria que você nunca tivesse se casado com um... — Calou-se de
repente. — Desculpe isto não é da minha conta.
Um... O quê?
— Xerife, por favor, eu preciso saber — Molly insistiu. O que quer que
o xerife tivesse a lhe dizer talvez pudesse ajudá-la a compreender a
animosidade existente entre ele e Sam.
Se fosse para Sam fazer parte da comunidade de
Sweetgrass, ele teria de aprender a deixar de lado as diferenças e
esforçar-se para se entender com todos. Quanto mais ela conhecia Sam,
mais o achava parecido com seu avô, com suas opiniões muito próprias e
descompromissadas.
— Vovô gostava muito de Sam, o senhor sabe — acrescentou,
sentindo que devia dizer isto a ele. — E ficou muito contente quando Sam
e eu nos casamos.
O xerife Maynard franziu a testa.
— Isso me faz pensar se Walter estava ciente dos fatos.
— Que fatos?
Maynard observou-a por um longo tempo, antes de voltar a falar:
— Dakota não lhe contou, não é?
— Contou-me o quê?
— Aquele filho da mãe — o xerife disparou por entre os dentes.
— Xerife, seja lá o que for, conte-me tudo!
Ele hesitou pelo tempo suficiente para que ela soubesse que não era
uma boa notícia.
— Seria melhor que seu marido tivesse a decência de lhe falar
pessoalmente sobre isso, antes de casar com você. Mas se ele não falou
até agora, duvido que ainda o faça, e portanto...
Molly cruzou os braços, preparando-se. O xerife Maynard evitou-lhe
os olhos.
— Seu marido tem uma ficha criminal, Sra. Dakota. Cumpriu dois
anos de cadeia num presídio de Washington por agressão em segundo
grau, e saiu do Estado assim que foi libertado sob condicional.
Um gemido ofegante brotou involuntariamente da garganta de Molly.
Procurou, às cegas, algo em que pudesse se apoiar.
— Lamento terrivelmente, Molly. Nem sei se Walter sabia disto.
Ela sentia as pernas bambas, incapazes de suportar o peso de seu
corpo. Precisava encontrar um lugar para sentar, antes que fraquejasse
completamente.
— Obrigada por me dizer. — De alguma forma, ela conseguiu
enunciar as palavras.
— Você vai ficar bem? — O xerife segurou-lhe o cotovelo, numa
tentativa de ampará-la.
— Sim, estou bem.
Dando-lhe as costas, subiu a escada devagar, sentindo-se exausta
quando finalmente alcançou a porta. Entrou na casa aos tropeços e
atirou-se numa cadeira junto à mesa, apoiando-se nas bordas do tampo
com as duas mãos.
Ela tivera dois casamentos. O primeiro quase a destruíra, e o segundo
ameaçava fazer o mesmo. Dois maridos, com anos de diferença e, de
algum jeito, ela conseguira se casar com dois... Criminosos.
A raiva e o ressentimento que sentia pelo xerife Maynard deixavam
Sam transtornado. O suor escorria de sua testa, enquanto espalhava o
feno nas cocheiras, trabalhando duro, ignorando os músculos doloridos.
Quando Molly sugeriu que chamassem o xerife, Sam sabia que estava
cometendo um erro. Com qualquer outro homem ele até faria um esforço
para esclarecer as coisas, mas com Maynard isso seria impossível. Quando
o xerife implicava com alguém, nada o faria mudar de opinião.
Sam percebeu que sua raiva era uma forma de autodefesa. O xerife
não gostava dele, nem confiava nele, portanto Sam se recusava a
estender-lhe a mão e oferecer sua amizade. Pelo contrário, podia apostar
que se Maynard o visse com a mão estendida não pensaria duas vezes
antes de colocar uma algema em torno dela.
O interrogatório de momentos antes não podia ter sido pior, e Sam
não sabia a quem culpar. O xerife parecia estar sugerindo que todo
aquele episódio do incêndio fora acidental, quando qualquer pessoa com
um mínimo de consciência poderia afirmar o contrário. Mesmo quando
perguntara sobre os incidentes anteriores, ele não demonstrara nenhum
interesse verdadeiro. Nem sequer se dera ao trabalho de anotar os
detalhes pertinentes, exceto quando Sam lhe falara sobre a lata de
gasolina que encontrara na estrada.
A água do açude envenenada poderia ter resultado numa tragédia,
bem como o moinho danificado. O pasto próximo da colina Custer não
contava com nenhuma fonte de água ou regato, e o moinho bombeava a
água que o rebanho bebia. E isso não era pouca coisa. Felizmente Sam
conseguira consertá-lo a tempo. Não queria nem pensar no que teria
acontecido, caso não descobrisse logo o problema. E muitos outros
incidentes como aquele tinham ocorrido durante o verão. Tantos, que era
impossível acreditar que se tratavam de meros acidentes, que algum tipo
de jogo sujo não estivesse envolvido. O fato de que já havia um
comprador interessado na fazenda o deixava ainda mais desconfiado.
O velho Walt fora mais esperto que Sam julgara, ao lhe conceder
aqueles quinhentos acres de terra. A parte que agora lhe pertencia
localizava-se bem no meio da propriedade. E ele só ficara sabendo disso,
percebendo o que Walt havia feito, depois do funeral, quando Russell
Letson lhe entregara os documentos finais. Molly poderia até vender a
fazenda, se o pior acontecesse, mas a propriedade dela ficaria dividida em
duas, a não ser que as terras de Sam também fossem incluídas na venda.
Mas, nem que o céu desabasse Sam jamais se desfaria daqueles acres. De
qualquer forma, estava proibido de fazer isso, pelos termos do seu acordo
com Walt.
Deixando o forcado de lado, ele saiu do estábulo e voltou para a
casa, antecipando o sermão que ouviria de Molly. Bem que percebera os
olhares de censura que ela lhe enviara, enquanto falavam com o xerife
Maynard. Molly não ficara nada contente com sua atitude. Bem, ele não
iria se desculpar. O xerife estava igualmente errado.
A meio caminho entre o celeiro e a casa, Sam parou por um instante.
Perscrutou o terreno à sua volta e, mesmo sob a fraca luminosidade,
podia ver que o capim estava negro e chamuscado. Estremeceu de leve,
dando graças por terem conseguido escapar daquele mais recente
desastre.
Demorou-se por ali um pouco mais, dando a Molly tempo suficiente
para se acalmar antes de aparecer em casa. As queimaduras em suas
mãos ainda ardiam, as costas doíam, e ele só queria estar junto da
esposa.
Na primeira vez em que Walt sugeriu aquele casamento, Sam havia
ficado interessado. A promessa de terras e gado era sem dúvida um
incentivo. Molly podia até se parecer com uma das irmãs de Cinderela, e
ele ainda teria ficado tentado. O que não soubera, na época, era o quanto
acabaria gostando da vida de casado.
As vezes, quando acordava no meio da noite com Molly ao seu lado,
era assaltado por uma sensação de humildade. Grande parte de sua vida
havia sido difícil, desprovida de carinho e ternura. Ele passara um tempo
na prisão, embora tentasse afastar a lembrança para os recantos mais
distantes de sua mente. Nos anos que se sucederam a isto, vagara de uma
cidade para outra, de um emprego para outro, até que todas as fazendas
parecessem sempre as mesmas.
Então, conhecera Walter Wheaton, um homem velho e doente,
prestes a perder tudo o que possuía. O fazendeiro lhe oferecera um
emprego, quando ninguém mais o queria. No fim das contas, eles
precisavam um do outro. E, apesar de ter aceitado a oferta de Walt com
toda boa vontade e gratidão, Sam suspeitara que aquele seria o trabalho
mais duro que já fizera para alguém, e estava certo.
Porém, ganhara tanto em troca: um lar, uma esposa, uma família. Seu
coração parecia ter crescido em seu peito. Ele havia desistido do amor,
admitindo que jamais o sentira e nem o entendera. Até que conheceu
Molly... Aquele devia ser um casamento de conveniência, e não uma
união por amor. E, embora ele e Molly não tivessem pronunciado a
palavra, ou conversado sobre como seus sentimentos estavam mudados,
isso não tinha importância. Ele sabia que tudo estava diferente.
Sam sabia que estava amando Molly.
A atração física entre eles era apenas uma parte disto. Uma parte
fantástica, para dizer a verdade. Com eles o ato de amor era incrível, e
nada tinha a ver com técnica. Envolvia apenas sentimentos. Ele amava
Molly, amava-a com uma intensidade que chegava a doer.
Sam jamais fora do tipo que se entrega a demonstrações públicas de
afeto, pois isto era algo que o deixava um tanto embaraçado. Mas, atrás
de portas fechadas, o caso era bem diferente.
E fora necessário apenas um mês. Um mês como um homem casado e
Sam apanhava-se procurando motivos para tocar Molly, para demorar-se
na cozinha depois que os meninos saíam para a escola apenas para lhe
roubar um beijo. Gostava de aproximar-se por trás quando ela estava
lavando a louça e deslizar as mãos sob sua blusa, sentir os seios macios
sob sua palma. Adorava o perfume dela, sua pele, tudo... Ah, sim, ela
protestava um pouco, mas gostava daqueles momentos tanto quanto ele.
Exceto por aquela primeira noite, nunca mais haviam discutido e ele
era grato por isso. Não sabia se suportaria vê-la zangada com ele.
Precisava demais de Molly em sua vida para arriscar-se a fazer
qualquer coisa que prejudicasse o relacionamento que tinham.
Olhou no relógio de pulso, imaginando se Molly já fora para a cama.
Sorriu levemente com a ideia. Mal podia esperar para deitar-se ao lado
dela e, subitamente, sentiu todo o cansaço desaparecer.
Subindo dois degraus de cada vez, correu para dentro da casa. Molly
estava na cozinha, arrumando o lanche que os meninos levariam para a
escola.
— Onde estão os garotos? — ele perguntou.
— Dormindo.
Sam captou uma ligeira frieza na resposta dela, mas deixou passar.
Molly jogou uma fatia de pão sobre a outra com força suficiente para
desmanchar os dois pedaços. Sam hesitou.
— Há algo errado?
— Você é quem sabe.
Ele suspirou e aproximou-se dela devagar. Então ela ainda estava
zangada por causa da cena com o xerife. Tudo bem, talvez ele tivesse
mesmo exagerado. Não teria feito mal algum mostrar-se um pouco mais
amigável. Se fosse para manter a paz, Sam estava disposto a admitir que
havia errado.
— Tem algo a ver com o xerife Maynard? — perguntou, mantendo a
calma. Cometera um erro na noite do casamento, quando permitira que a
raiva dela alimentasse a sua própria. Se não deixasse que o orgulho se
intrometesse, talvez pudessem acertar tudo agora.
— Não.
— Não? — A resposta dela o pegara de surpresa. Molly virou-se de
frente para ele, com os olhos faiscando
de indignação e outra emoção que Sam não soube identificar.
— Você poderia ter-me contado.
— Cada palavra era uma amarga acusação.
— Contado o quê?
— Ora, não finja que não sabe.
— Ela abriu a geladeira e praticamente jogou lá dentro o vidro de
maionese, que bateu num pote de picles e derrubou o frasco de catchup.
Era a primeira vez que Sam a via tão nervosa.
— Molly?
— Que tal dizer a verdade, Sam? Não acha que eu tinha o direito de
saber que você esteve preso? E o que dói... o que mais me magoa é o fato
de que você sabia sobre Daniel, e o quanto... o quanto foi difícil para mim
lhe contar que meu ex-marido estava na cadeia... E nem assim você me
disse uma palavra!
— Um sanduíche voou para dentro do saquinho de papel, e Sam
sentiu pena dos meninos pelo que iriam comer no dia seguinte.
— Eu tentei lhe contar — ele argumentou. — Naquele dia em que...
— Não — Molly interrompeu furiosa. — Não se atreva a inventar uma
desculpa para isso.
— Mas é a verdade — ele afirmou, com veemência suficiente para
que ela se calasse por um instante. — Tente lembrar-se daquele dia em
que fomos pedir a licença de casamento.
Molly franziu a testa, pensando. Ele prosseguiu:
— No caminho para a cidade eu comecei a lhe contar, mas você
interrompeu e fez aquele longo discurso- sobre o passado estar encerrado
e como seria melhor se esquecêssemos de tudo e começássemos do zero.
— Eu estava me referindo a antigas amantes! — ela disparou.
— Você não pode realmente acreditar que eu não deveria saber que
esteve preso. Agressão em segundo grau, Sam. Você tentou matar uma
pessoa e depois, convenientemente, "esqueceu" de contar-me este fato
de sua vida antes de nos casarmos.
— Não esqueci. Eu...
— Deliberadamente, você optou por escondê-lo de mim! O que me
leva a pensar no que mais deixou de me dizer.
— Você sabe de tudo a meu respeito. Bem, não sobre o tempo que
passei na cadeia, mas todo o resto. — Apesar das suas melhores
intenções, a paciência de Sam esgotava-se rapidamente. Molly o havia
julgado e condenado sem nem mesmo lhe perguntar os detalhes. — No
que me diz respeito, foi você que optou por não saber.
Um silêncio pesado caiu entre eles. Sam permanecia num lado da
cozinha e Molly no outro, mas a distância que os separava parecia ser do
tamanho do estado de Montana.
— Acho que você deve ir embora — ela disse, afinal.
— Ir embora?
Ela só podia estar brincando. Aparentemente, esquecera-se de que
estavam prestes a começar a venda do gado. Toda a subsistência deles
estava em jogo e, se ela algum dia precisasse dele, era agora. Depois,
havia também a questão das terras que foram passadas a ele com o
casamento. Terras que ele lutaria para manter.
— Mude-se, então... Volte para a casa do capataz.
— Você está brincando, não é? — Sam rezou para que sim, mas a
expressão dela revelava o contrário. — Tudo bem, admito que você tinha
o direito de saber. Eu devia ter-lhe contado tudo antes de nos casarmos.
E queria contar, mas que diabos, não tenho nenhum orgulho de ter sido
preso e preferia esquecer disso. Se você está esperando que eu me
desculpe, então aí vai: Molly me perdoe. — Não foi fácil, mas ele
conseguiu pronunciar as palavras, esperando que isso a satisfizesse.
— Sinto-me como uma idiota — Molly falou infeliz.
— Você também não contou nada ao vovô, não é? Ele jamais
permitiria que eu me casasse com outro criminoso.
— Virou-se e recostou pesadamente no balcão da cozinha.
Sentindo-se humilhado e furioso com tal injustiça, Sam deu um passo
na direção dela e parou.
Fizer para explicar, para desculpar-se, mas não pretendia implorar de
joelhos. Se ela queria vê-lo pelas costas, então tudo bem, ele iria
embora... Mas apenas pelo tempo suficiente para que ela sentisse sua
falta.
Caminhou para fora da cozinha e bateu a porta, para deixar bem
claro que estava saindo. Meio que esperando que ela corresse atrás dele
e lhe implorasse para ficar, entrou na picape. Demorou-se ali por alguns
minutos, apenas para certificar-se de que Molly não mudaria de ideia.
Ela não mudou.
Sem ter para onde ir, Sam dirigiu até aquele mesmo bar da noite de
seu casamento. Mas não estava a fim de beber. Ser estúpido o bastante
para acreditar que o uísque resolveria seus problemas fora exatamente o
que o levara para a cadeia, e isso não tornaria a acontecer. Sam
considerava-se um bom aluno e aprendera que raiva e bebida alcoólica
não combinavam.
O bar de Willie tinha um odor acumulado de fumaça de cigarros e
cerveja. Sam reconheceu dois peões que jogavam bilhar numa das mesas
do canto. A música estava alta demais, as conversas eram feitas aos
gritos. Quase todo mundo ali estava tentando se divertir.
A única coisa que Sam desejava era um canto escuro onde pudesse se
sentar por um momento. Para pensar, remoer-se e imaginar uma forma
de fazer com que Molly ouvisse a razão. Que diabos, justamente agora
que ele achava que tudo corria bem, aquilo tinha de acontecer! O
desgraçado do Maynard não pôde resistir à tentação de contar tudo a ela.
Sentou numa banqueta no final do balcão do bar, deixando bem
claro que não estava procurando companhia.
Já fazia quase uma hora que bebericava sua cerveja quando a viu. A
prostituta que o convencera a voltar para o hotel na sua noite de núpcias.
Talvez Sam tivesse sido poupado de um bocado de sofrimento, se não lhe
desse ouvidos; pelo menos, era como se sentia agora. Em qualquer outra
noite, talvez ele a cumprimentasse e agradecesse pelo melhor conselho
que alguém já lhe dera na vida.
Pressentindo a atenção dele, ela girou na banqueta e encarou-o.
Demorou um instante para reconhecê-lo, mas assim que o fez, seu rosto
relaxou num sorriso espontâneo. Não era o sorriso de uma prostituta,
mas sim de... Diabos, ele não sabia. De amizade, talvez.
Quando seu freguês em potencial não se manifestou, ela atravessou
o bar até onde ele estava.
— Como tem passado vaqueiro? Ele encolheu os ombros.
— Ainda está casado?
Sam não tinha certeza se o casamento duraria além daquela noite,
mas por enquanto, podia responder com honestidade.
— Pode-se dizer que sim.
— Como vai a esposa?
— Mais zangada do que um bezerro no laço. Ela arqueou a
sobrancelha.
— Não me diga que brigaram de novo...
— E o que parece. — Sam baixou os olhos para a caneca de cerveja
quase vazia. — Desta vez foi minha culpa.
— E não vai dizer isso a ela?
— Já disse, mas ela está furiosa de verdade. Não posso culpá-la.
Achei melhor dar um tempo para que ela se acalmasse.
Ela sorriu.
— Boa ideia.
— E você, como vai? — Sam perguntou, mais para manter a conversa.
Sentia-se perdido e solitário. O fato de estar sozinho nunca o incomodara
antes de casar com Molly, mas agora era como se... Como se estivesse
incompleto, sem ela.
— Seu nome é Pearl, certo?
Ela fez que sim.
— Estou mais ou menos — respondeu.
— Os negócios vão bem?
— Razoáveis. — Pearl afastou do rosto uma mecha dos cabelos loiros
e Sam reparou na sombra escura sob seus olhos. Era tão perceptível que
nem a maquiagem conseguira disfarçar.
— Posso fazer alguma coisa para ajudá-la?
— Talvez não aprendesse tão rápido quanto julgava, Sam pensou.
Afinal, estava se oferecendo para ajudar a mulher que fora o motivo de
sua ida para a cadeia, naquele seu primeiro dia em Sweetgrass. Mas, que
diabos, estava em dívida com ela.
Sam queria acreditar que não devia ter seguido a sugestão dela, na
noite de seu casamento. Naquela hora não se dera conta, devido ao
estado lastimável em que se encontrava, mas pensando nisso agora
concluiu que o gesto de Pearl fora muito generoso. Ele nunca ouvira falar
de uma prostituta que aconselhasse um freguês a voltar para a esposa.
— Eu... — Ela balançou a cabeça.
— Não, obrigada. Mas é muita gentileza sua perguntar.
A porta do bar abriu-se e entraram dois homens de aparência dura,
usando fardas. A atenção de Pearl desviou-se imediatamente para eles.
Fregueses em potencial, Sam imaginou, porém a reação dela lhe dizia o
contrário. Pearl virou-se e Sam reparou que seu rosto estava pálido sob a
maquiagem.
— Mudei de ideia, vaqueiro — ela disse, com a voz trêmula.
— Você pode me ajudar se ainda estiver disposto.
Sam deixou a caneca no balcão.
— O que quer que eu faça? Ela mordeu o lábio.
— Preciso sair daqui. Não quero que eles me vejam. Ele não hesitou.
— Deixe comigo.
Passou o braço em torno dela como se fossem amantes de longo
tempo e, usando o próprio corpo como escudo, levou-a na direção da
porta. O barman ficou olhando, um tanto surpreso, mas não disse nada.
Os dois homens sentaram nas banquetas e se repararam em Sam e a
mulher saindo, não deram sinal.
Sem saber o que tanto amedrontara Pearl, Sam achou mais prudente
deixá-la num lugar seguro.
— Para onde quer que eu a leve? — perguntou. — Para a casa de
uma amiga?
— Não. — O riso dela foi inesperado. — As prostitutas não costumam
ter muitas amigas.
— E quanto às outras... Bem, você sabe, as outras garotas como
você?
— Não nesta cidade, benzinho. Aqui é cada um por si.
Aquele era um mundo que Sam não conhecia, e nem tinha vontade
de explorar.
— Então, para onde quer ir?
Já haviam percorrido um trecho da Rua Principal, antes que ela
respondesse:
— Para casa, eu acho. — Pearl deu-lhe o endereço, que ficava no lado
oposto, então Sam fez a volta.
— Tem certeza de que ficará segura em sua casa?
— Tenho quem me proteja — ela respondeu. — E eles sabem disso.
Sam queria fazer mais por ela, mas havia aprendido, da maneira mais
difícil, que era melhor sair da área antes que as coisas se complicassem. E
já fizera sua boa ação daquela noite.
Parou no endereço que ela lhe dera. Pearl estava prestes a sair da
picape quando surpreendeu-o passando os braços em torno de seu
pescoço e abraçando-o com força.
— Qual o motivo disso? — ele perguntou.
— Um "obrigada". Agora, volte para casa e para sua esposa, e diga a
ela o quanto está arrependido. Se ela for inteligente, saberá perdoá-lo.
Homens decentes não são fáceis de encontrar, e você é um deles.
— Obrigado.
Ela saiu do veículo e Sam esperou até que entrasse na casa e
acendesse as luzes, antes de partir.
Pearl lhe dera um bom conselho na noite de seu casamento, e não
havia nenhum motivo para acreditar que suas palavras de sabedoria não
funcionassem desta vez. Com uma renovada sensação de esperança, Sam
voltou para a fazenda. Pelo menos os cachorros ficaram contentes ao vê-
lo.
A casa estava escura e silenciosa, quando entrou. Molly devia estar
na cama. Sam achou que era um ponto a seu favor, pois ali seria mais fácil
convencê-la. Bem, era o que ele achava. Foi para o quarto nas pontas dos
pés. A luz da lua iluminava a silhueta imóvel de Molly, e pela respiração
lenta e regular Sam soube que ela estava dormindo.
Depois de tirar as roupas, ele enfiou-se sob as cobertas.
— Molly, estou em casa — sussurrou, deslizando os braços em torno
da cintura dela. Lentamente, procurou-lhe os seios, acariciando-os. Talvez
não fosse a melhor tática, mas já se tornara um hábito abraçá-la daquele
jeito. Ela suspirou, aconchegando-se a ele.
— Sentiu saudade, minha querida? — ele murmurou, mordiscando
lhe a orelha.
A reação imediata de Molly forneceu-lhe um mundo de esperança.
Virando de costas, ela estendeu os braços e abraçou-o. Depois, passou a
ponta da língua em seu pescoço, como costumava fazer, provocando-lhe
cócegas e um arrepio que se espalhou por todo seu corpo.
— Ah, meu benzinho... — ele sussurrou.
— Nós precisamos conversar, não acha?
Sem responder, Molly colou-se a ele.
— Pensando melhor, podemos conversar numa outra hora. — Sam
estendeu as pernas entre as delas e estava prestes a beijá-la nos lábios,
quando aconteceu.
A mulher lânguida e convidativa que estava em seus braços ficou
rígida e ergueu-se de repente, empurrando-o para longe.
— Onde você esteve? Meu Deus, estava com outra mulher! Estou
sentindo o perfume dela em todo seu corpo!
CAPÍTULO 14
Russell Letson sentiu o coração congelar em seu peito. Leu
novamente a manchete, certo de que houvera algum engano. Aquilo não
podia ser verdade! A agonia era tão aguda e penetrante quanto uma dor
física, talvez até pior.
O jornal dizia que Pearl estava morta. Ele cobriu os olhos com as
mãos, num esforço fútil de afastar a dor que nublava sua mente.
Precisava pensar assimilar o sentido das palavras e o que seria capaz de
acreditar, de aceitar.
Tornou a ler a reportagem, que ocupava metade da primeira página
da edição de quarta-feira. O jornal Sweetgrass Weekly raramente tinha
um assassinato sobre o qual escrever. Até mesmo um assassinato sem um
corpo era uma grande notícia. Ali dizia que a porta da casa de Pearl
estivera aberta por vários dias e, quando uma vizinha fora investigar,
descobrira que o local havia sido praticamente devastado. Era como se
um furacão tivesse passado lá dentro, dissera. Havia sangue nas paredes e
uma mancha vermelho escura foi encontrada na cama, vazando através
do colchão. Tanto sangue... Meu Deus, Russell pensou, ela teria sofrido?
Um fluxo de bile chegou até sua garganta e, atirando o jornal para o
lado, ele fechou os olhos e respirou fundo várias vezes. Surpreso,
percebeu que os olhos estavam repletos de lágrimas. Bom Deus, por
favor, não permita que ela tenha sofrido.
Ele a amava. Soubera disto muito antes de tê-la visto com os olhos
inchados e com os hematomas nos ombros e pescoço.
Mas Pearl o rejeitara, e a dor da rejeição fizera com que ele se
afastasse, mesmo sabendo que ela estava mentindo. Quase tudo o que
ela lhe dissera naquele domingo fora mentira. Porém, o que ele nunca
conseguiu descobrir foi por que ela havia mentido.
Esperava que Pearl recuperasse o bom senso, mas acabou perdendo
a paciência e estragou tudo. Na noite em que fora vê-la, tratando-a como
uma prostituta, ele havia aniquilado qualquer resquício de carinho que
ela ainda poderia sentir a seu respeito.
Envergonhado e derrotado, Russell não vira Pearl desde então. Mas
seus pensamentos estiveram com ela em todos os minutos de todos os
dias, enquanto tentava decidir o que faria em seguida, e como se
aproximaria dela para lhe pedir perdão. Havia planejado conversar com
ela, convencê-la de que conseguiriam construir uma vida juntos se ela
lhes desse ao menos uma chance.
Porém, havia esperado demais e agora já era tarde.
Pearl estava morta.
Com o tempo, alguém acabaria encontrando seu corpo decomposto,
atirado como lixo em alguma estrada. Talvez o assassino tivesse tido a
decência de enterrá-la em algum lugar. Russell rezou para que este fosse
o caso.
Bom Deus, não a Pearl, por favor, não a Pearl.
Assim que conseguiu refazer-se o bastante para pegar o telefone, ele
discou o número do escritório do xerife Maynard, a fim de fazer umas
poucas e discretas perguntas.
— Alguma pista? — indagou, num tom ríspido e profissional, como se
um caso de assassinato fosse uma questão rotineira.
Maynard não pareceu contente em ouvi-lo.
— Ainda não, mas acabaremos descobrindo quem foi o responsável.
Russell jamais sentira nada parecido com esta consumidora ânsia por
justiça. Tornara-se advogado levado por uma série de razões, nenhuma
delas estreitamente relacionada com a justiça, mas num piscar de olhos
tudo havia mudado. No instante em que lera as manchetes do jornal, a
justiça, e o castigo, ganharam importância fundamental.
— Então o assassino deixou alguma evidência?
— Russell pressionou, a despeito da óbvia relutância do xerife em
discutir o caso. Mas eles conheciam-se bem, e Maynard lhe devia isto.
— Sempre existe evidência.
— Quem era o cafetão dela? — Russell perguntou.
Se alguém sabia a resposta, era o xerife. Russell tentou parecer
apenas casualmente interessado, mas achava que tais perguntas
poderiam levá-lo aos suspeitos em potencial. Se nada mais realizasse em
sua vida, pelo menos queria certificar-se de que o assassino de Pearl
pagasse por seu crime.
— Escute Russell, não posso falar sobre este caso. Ainda não. Você
saberá dos detalhes assim que eu os tiver. Agora pare de me perturbar,
pois tenho muito trabalho a fazer.
— O xerife fez uma pausa.
— Afinal, por que tanta curiosidade? Por acaso você a conhecia bem?
A última coisa que Russell precisava era ser considerado um suspeito.
— Ora, todos os homens desta cidade a conheciam, não é? Até você,
Maynard — ele disse, fazendo pouco de sua preocupação com o crime.
O xerife riu.
— Eu a conhecia intimamente, você quer dizer — brincou.
— Todos os vaqueiros da região dormiram com ela, a não ser que
fossem santos. Aquela garota tinha um corpo e tanto, e sabia como usá-
lo. E isso que toma este maldito caso tão difícil. Minha opinião é que
algum freguês ficou entusiasmado demais e as coisas foram mais longe do
que ele pretendia.
Russell prendeu o fôlego, tentando evitar que a imagem de um
homem espancando Pearl se formasse em sua mente. Mas não adiantou,
e ele atormentou-se imaginando como teriam sido os seus últimos
minutos de vida.
— Mas vou lhe dizer uma coisa — Maynard acrescentou, num
murmúrio.
— Acho que nunca vi tanto sangue em minha vida.
— Há alguma chance de ela estar viva?
— Russell queria, desesperadamente, acreditar que havia uma
possibilidade de Pearl ter sobrevivido ao espaçamento e, como um animal
ferido, ter fugido para se esconder.
— Imagino que haja uma chance — Maynard admitiu, depois de um
momento. — Mas na minha opinião ela está morta. E difícil pensar que
alguém possa ter sobrevivido depois de perder tanto sangue.
Russell sentia-se como se tivesse engolido uma bola de algodão. Sua
garganta doía, e tinha dificuldade em respirar.
— Por que o assassino levaria o corpo dela embora? Maynard deu
uma risadinha de desprezo, indicando que
tal pergunta nem merecia uma resposta.
— Ora, pense um pouco. Evidência física. Qualquer um com um
mínimo de inteligência não deixaria um cadáver na cena do crime. Não
atualmente. Por que dar uma pista aos investigadores?
Russell assentiu surpreso por não ter pensado nisso.
— Está certo.
— Eu lhe dou notícias, quando souber de mais alguma coisa. Naquela
altura, Russell já não se importava mais se sua curiosidade pudesse
provocar suspeitas.
— Quero saber de tudo. Encontre o culpado. Faça o que tiver de
fazer, mas encontre o desgraçado. — Sua mão tremia tanto quanto a voz,
quando desligou o telefone.
Durante dois dias Russell não dormiu mais do que alguns minutos
por noite, e não comeu quase nada. Sempre que fechava os olhos, via a
imagem de como Pearl estivera na última vez que se encontraram. As
lágrimas reluziam nos olhos dela, enquanto chamava por ele. Sem querer
escutar, ele dera-lhe as costas e fora embora. Naqueles últimos
momentos, destruíra qualquer esperança de reconciliação.
Agora, teria de viver com isso pelo resto da vida, e não sabia se
conseguiria.
Embora fingisse trabalhar, se alguém lhe perguntasse o que estivera
fazendo Russell não saberia como responder. Ia ao escritório todos os
dias, mas não escrevera nenhuma carta, não preparara nenhum
documento legal, não falara com nenhum cliente. Permanecia sentado
por horas seguidas, olhando para o vazio. Sua secretária parecia
convencida de que ele pegara uma gripe, e ele achou melhor deixá-la
acreditar no que quisesse. Pelo menos isso o pouparia de inventar
desculpas.
O interfone sobre a escrivaninha arrancou-o dos pensamentos.
— Sim? — falou, ressentindo-se da intromissão.
— O Sr. Sam Dakota quer vê-lo. E disse que é urgente. Russell passou
a mão pelo rosto. Seus instintos lhe diziam para não atender Sam, pois
não estava em condições de fornecer conselhos legais.
— Diga-lhe que estou com a agenda cheia por hoje.
— Era uma mentira deslavada, mas faria com que Roberta soubesse
que não estava disposto a receber o fazendeiro.
— Desculpe, sr. Letson, mas ele insiste em falar com o senhor
pessoalmente. Está insistindo muito e disse que o assunto é da maior
importância.
Russell baixou a cabeça levemente, como se o peso da decisão fosse
maior do que podia suportar.
— Faça-o entrar — disse, afinal. Ouviria os problemas de Sam e
depois o aconselharia a contratar outro advogado.
A porta abriu-se e a secretária deu passagem a Sam.
Russell fez um gesto na direção da poltrona em frente à sua mesa, e
Sam acomodou-se. Parecia nervoso, sentado na beirada da cadeira e
segurando o chapéu com as duas mãos. A primeira coisa que Russell
notou foi a palidez no rosto do vaqueiro, mas depois pensou que ele
próprio não era exatamente a imagem da boa saúde.
— Em que posso ajudá-lo? — perguntou, vendo que Sam permanecia
em silêncio. Para alguém que estava tão ansioso em falar com ele, Sam
estava demorando para ir direto ao assunto.
— Eu não sabia a quem recorrer — Sam começou, com evidente
relutância.
— Não confio no xerife, e o barman e mais quatro ou cinco sujeitos
provavelmente me viram no bar do Willie... — Levantou-se num salto e foi
até a janela. — Letson, eu tenho a firme impressão de que vou acabar
sendo acusado do assassinato daquela pobre mulher.
Pela primeira vez desde que lera as manchetes do jornal, Russell
sentiu o sangue correr em suas veias.
— Assassinato?
Sam virou-se para encará-lo.
— Eu juro por tudo o que me é mais sagrado que não toquei sequer
um dedo nela.
O sangue de Russell não apenas corria, mas parecia prestes a
explodir.
— Você esteve com Pearl na noite em que ela morreu?
— Sua voz se elevava com cada palavra, embora ele falasse devagar e
claramente.
— Passei algum tempo com ela — Sam admitiu.
— Mas não do jeito que você está pensando.
— Então me explique. — A voz de Russell era fria, dura, enquanto
olhava para o outro homem, enxergando-o sob uma nova luz.
— Molly e eu tivemos uma discussão — Sam estava dizendo.
— Ela descobriu que eu cumpri pena na prisão. — Ele baixou a
cabeça.
Os olhos de Russell estreitaram-se, observando Sam com mais
atenção. Maynard lhe falara sobre isso logo depois que Walter contratara
Dakota, mas era de surpreender que Molly não soubesse.
— Molly... Eu devia ter contado tudo a ela, agora sei disso. Admito
que agi errado ao casar-me com ela sem lhe revelar todo meu passado.
— Olhou direto para Russell. — Eu amo a minha esposa.
O arrependimento na expressão dele confirmou a sinceridade de suas
palavras.
— Vamos voltar ao que se refere a Pearl — Russell falou, sem querer
que Sam se alongasse muito em seus problemas conjugais.
— Conheci Pearl alguns meses atrás — Sam explicou, novamente com
uma certa relutância. — Mas não... Ahn... Não numa base profissional,
entende?
Será que Pearl ficava com outros homens da maneira que havia
ficado com ele? Russell pensou. Uma onda de ciúme invadiu-o, deixando-
o com os nervos à flor da pele.
O fato de amá-la como amava tornava insuportável a ideia de que
alguém mais pudesse compartilhar a mesma intimidade que tiveram. Ele a
amava, e ela o amava também. O que fazia com seus fregueses não tinha
nada a ver com os sentimentos entre eles.
— Bem, conheci Pearl na noite em que Molly e eu nos casamos.
— Você esteve com Pearl na sua noite de núpcias? — Aquilo ia além
de qualquer realidade. Dakota não podia esperar que Russell acreditasse
nisto!
— Encontrei-a no bar do Willie — Sam explicou com a expressão
controlada, sem revelar o que lhe passava pela mente. — Molly e eu...
— Fez uma pausa, parecendo desconfortável. — Digamos que Molly e
eu discordávamos de uma determinada questão, e eu saí do hotel um
tanto irritado.
— E foi afogar suas mágoas numa garrafa de cerveja no Willie.
— E, mais ou menos isso — Sam admitiu.
— E foi lá que conheci Pearl.
O olhar de Sam vagava pela sala de maneira tão agitada que poderia
até sugerir uma certa culpa, porém Russell percebeu que ele estava
genuinamente preocupado. Seus instintos de advogado lhe diziam que
Sam não era o homem que matara Pearl; e se acontecesse de estar
enganado, Russell calculou que pouparia muito trabalho e despesas aos
tribunais, pois se encarregaria de fazer justiça com as próprias mãos.
Dakota prosseguiu com sua história, relatando como Pearl o enviara
de volta para a esposa. O coração de Russell contraiu-se ao perceber o ato
de generosidade que ela fizera para um estranho.
— Você nunca a tinha visto, antes daquela noite?
— Nunca.
Russell acreditava nele. Ficou observando-o abertamente; o olhar de
Sam não se desviou, o que ele considerava um bom sinal.
— E o que você fez com ela, na noite em que foi assassinada?
— Levei-a para casa.
— Por quê? — Russell não conseguiu disfarçar a desconfiança de sua
voz. Que homem bancaria o motorista para uma prostituta, a não ser que
tivesse um bom motivo?
Sam cruzou os braços.
— Sei que parece inacreditável, e não posso pensar em nenhuma
razão para que você acredite em mim, mas esta é a pura verdade.
Encontrei-a novamente no bar do Willie, e ela parecia um bocado
abatida. Assim, como ela já havia sido generosa comigo e porque eu
gostava dela, perguntei se havia algo que pudesse fazer para ajudá-la, e
ela me pediu que a levasse para casa.
— E havia algum motivo especial para isso?
— Dois sujeitos mal-encarados tinham acabado de entrar na taverna,
e Pearl não queria que a vissem ali.
— Você deu uma boa olhada neles? Sam balançou a cabeça,
desolado.
— As luzes eram muito fracas, e fiquei mais preocupado em proteger
Pearl do que em reparar nos rostos deles.
— Alguém viu vocês dois saindo juntos?
— Sim, umas quatro ou cinco pessoas.
Russell recostou na cadeira e tentou assimilar o que acabara de
ouvir.
— E fora do bar, havia alguém?
— Uns dois sujeitos no estacionamento, mas acho que é só.
Novamente Russell fez uma pausa, formando uma imagem mental do
cenário do bar de Willie. Havia meses que ele não punha os pés ali. O
Willie's era onde Pearl procurava os fregueses e, sabendo disso, Russell
evitava frequentar o lugar. Mas nunca fora um frequentador habitual.
— O xerife Maynard já o interrogou?
— Não, mas sei que vai — Dakota respondeu, com uma irônica
convicção.
— Digamos que o xerife vai ficar encantado com a oportunidade de
me envolver neste assassinato.
— E você é inocente?
— E claro que sim! Não tenho nada a ver com essa história. Em seu
íntimo, Russell reconhecia que a única culpa do fazendeiro seria,
provavelmente, ter feito um julgamento errado.
— E quanto a Molly? — perguntou.
O olhar que Sam lhe enviou quando respondeu, Russell conhecia
muito bem: ele próprio o via todos os dias em sua imagem no espelho.
Dor. Uma dor profunda e desoladora.
— Ela só fala comigo quando é estritamente necessário
— Sam lhe contou. — Não sei em que ela está pensando... Ou,
pensando melhor, talvez eu saiba.
— Já conversou com ela sobre este assunto? Sam balançou a cabeça,
em negativa.
— Não sei como falar... Nem tenho certeza se fez alguma conexão.
Molly sentiu o perfume de Pearl em mim, mas não tinha como saber que
a mulher com quem estive naquela noite era a mesma que foi
assassinada. Tentei pensar num jeito de explicar a ela tudo o que
aconteceu, mas não consigo. Você foi o único com quem falei.
— Você tomou a decisão acertada ao me procurar primeiro
— disse Russell.
— Se o pior acontecer, você concordaria em ser meu advogado?
— Sam perguntou, olhando para Russell com firmeza e insistência.
— Não sou advogado criminal. Seria melhor que ...
— Você é o único em quem confio.
Russell hesitou. Pearl também confiara, e ele havia destruído tudo.
Sam Dakota estaria melhor se procurasse um outro advogado. No estado
mental e emocional em que se encontrava, não conseguiria ajudá-lo em
nada.
— Você concorda? — Sam pressionou. Russell evitou olhá-lo.
— Juro por Deus que não sei. Mas vamos deixar para pensar nisso
quando e se for necessário.
Sam hesitou um pouco, mas logo assentiu.
— Está bem, mas fique alerta. Não creio que vá demorar muito.
Monroe esperava por Lance no mesmo beco escuro e deserto atrás
do bar do Willie. Sua mente agitava-se com os recentes acontecimentos
envolvendo Pearl Mitchell. O corpo dela não havia sido encontrado e,
embora não tivesse verbalizado suas suspeitas, desconfiava que Lance
fora o responsável. Eliminar uma parte valiosa da propriedade dos
Legalistas era exatamente o tipo de coisa que passara a esperar daquele
arruaceiro.
Lance chegou na hora, pela primeira vez. Abriu a porta do carro e
entrou apressadamente.
— Ficou sabendo do incêndio? — foi logo perguntando.
— Na fazenda do Dakota?
— Fiquei, sim — Monroe confirmou. — Tem mais alguma ideia
brilhante?
— Era difícil não revelar o sarcasmo em sua voz.
— Algumas.
— Então é melhor me dizer quais são.
Os olhos de Lance estreitaram-se, desconfiados.
— Está pensando que não consigo fazer o serviço? Neste caso, sugiro
que tente fazer sozinho. Aqueles dois são o casal mais teimoso e com
mais sorte que já vi.
— E possível que eu me encarregue de tudo, mesmo.
— Aquela não era a primeira vez que Monroe pensava em fazer o
serviço com as próprias mãos, especialmente considerando-se o fato de
que lidava com um homem a quem julgava totalmente incompetente.
O silêncio entre eles vibrava de tensão.
— Meu próximo ataque será no ponto mais fraco deles
— disse Lance.
— E o que é?
— O mesmo de todas as famílias.
— Lance estava sorrindo, agora. — As crianças.
— Você não me parece tão animada como sempre — Ginny
comentou quando Molly sentou ao seu lado na mesa da cozinha, depois
de lhe trazer um copo de limonada.
Ginny havia chegado sem avisar, aceitando o convite de Molly. E viera
na hora certa, pois Molly nunca precisara tanto de uma amiga.
— E, tenho me sentido um pouco deprimida — foi tudo o que
conseguiu admitir.
Orgulhosa como era, achava difícil anunciar que seu casamento de
menos de dois meses já era um fracasso. Mal conseguia olhar para Sam.
Ele mentira para ela, a iludira e, pior de tudo, a traíra. Era como se,
depois de tanto procurar, acabasse se casando com o irmão gêmeo de
Daniel, pensou com amargura.
O estômago de Molly contraiu-se de dor. Sim, ela sabia mesmo
escolher os homens. Do roto ao esfarrapado, esta fora a sua escolha. No
que se referia a maridos, parecia ter um dom para escolher aqueles mais
prováveis de lhe causar sofrimento.
O que mais a magoava era pensar que Sam nem se dera ao trabalho
de negar que estivera com outra mulher. Ela havia se enfurecido, gritado
e brigado como uma louca, mas ele se limitara a dizer que ela podia
acreditar no que quisesse. E isso a deixara ainda mais furiosa. Sam
chegara em casa cheirando a prostíbulo, e ela devia se sentir culpada?
— Acalme-se, querida — Ginny aconselhou.
— O que há de errado?
Para suprema humilhação de Molly, seus olhos encheram-se de
lágrimas.
— Quer conversar a respeito?
— Ginny perguntou, com uma delicadeza que Molly jamais ouvira em
sua voz.
Ela balançou a cabeça.
— Imagino que esteja preocupada com o preço da carne — Ginny
murmurou, pegando um biscoito. — Pois vou lhe dizer uma coisa: não
pode ficar pior do que já está.
Molly não precisava de mais problemas, porém eles pareciam chegar
assim mesmo. O gado estava pronto para ser vendido e o preço da arroba
encontrava-se bem mais baixo do que no ano anterior. Os atravessadores
obtinham lucros exorbitantes e, enquanto isso, destruíam os fazendeiros
independentes.
Como se já não bastassem os problemas de sua vida, a atual queda
dos preços da carne significava que não teriam o dinheiro suficiente para
saldar as despesas acumuladas. Sem um empréstimo, ou qualquer outra
forma de pagar as contas, Molly não sabia o que fariam. Este era apenas
mais um problema que se acrescentava aos demais, só que os demais lhe
pareciam mais importantes no momento.
Ginny inclinou-se e segurou-lhe a mão.
— O que aconteceu, Molly? — tornou a perguntar.
— Não tenha medo de me dizer. Não é preciso ser muito esperta
para ver que alguma coisa a está perturbando de verdade.
E foi aí que a gentileza e bondade de Ginny finalmente reduziram
Molly às lágrimas. Ela cobriu o rosto com as mãos e chorou como se todo
o seu mundo tivesse se desfeito em pedaços.
O que Molly achou mais estranho foi que, enquanto balbuciava a sua
triste história, Ginny parecia entender cada palavra. Contou à vizinha
sobre a briga que tiveram, mas não sobre o motivo, e como Sam chegara
em casa com o cheiro de um caro perfume francês. Ele estivera com
alguém, estava convencida disso. Ele a havia traído!
— Você não pode estar realmente pensando que ele a traiu, Molly!
— Eu... Eu não sei mais o que pensar — ela confessou.
— Besteira. Você casou com ele, não foi?
— Sim, mas... — Ela também se casara com Daniel. Ginny não deixou
que terminasse a frase.
— Aquele homem é tão louco por você que nem consegue enxergar
direito. No instante em que você apareceu aqui, os olhos dele a seguiam
como uma águia prestes a dar o bote num coelho. Ele iria atrás de outra
mulher tanto quanto cortejaria uma cobra.
— Mas... — Molly hesitou. Ginny não sabia de todos os detalhes, mas
também não podia lhe contar. — Ele me enganou sobre seu passado.
— Respirou fundo, trêmula, e prosseguiu.
— E verdade que eu disse que este seria um novo começo para nós
dois, mas sem dúvida esperava que ele me contasse certas... Coisas.
— Certas coisas?
Molly girou o lenço molhado entre as mãos e desviou os olhos.
— Sam... Cumpriu pena na cadeia.
— Ah, isso. Eu sei de tudo, Walt me contou — Ginny falou,
surpreendendo-a.
— Vovô sabia?
— É claro que sim. Você acha que ele permitiria que você casasse com
o sujeito sem antes investigar tudo sobre seu passado? Afinal, você era a
única parente dele.
— Mas presumi que... Pensei...
Ginny esfregou a testa, remoendo aquela última informação.
— Faz sentido, não acha?
— O quê?
— O fato de Sam não ter lhe contado nada. O rapaz estava com
medo. Imaginou que, se você soubesse que ele cumpriu pena na prisão,
não se casaria com ele. Não me parece o tipo de homem que engana a
esposa na primeira oportunidade, concorda?
— É evidente que ele queria casar comigo! Vovô lhe ofereceu as
terras e o gado, e...
— Bobagens. Tudo bem, aquelas terras foram um incentivo e
provavelmente fizeram com que Sam começasse a pensar em casamento.
Mas não foram o único motivo porque ele casou com você. Sam gostou de
você desde o primeiro instante, eu vi isso, e Walt também. Como não
tinha muito tempo sobrando, Walt fez a única coisa que podia: apressou
os acontecimentos entre vocês dois, e nada mais.
Molly queria desesperadamente acreditar que Sam a amava. Aquelas
semanas anteriores ao incêndio haviam sido as mais felizes de sua vida
adulta. E imaginar que tudo não passara de uma grande mentira doía
mais do que qualquer coisa que já havia sentido, incluindo a morte de
vovô.
Ginny bebeu um longo gole da limonada.
— Não seja tola, Molly Dakota, e não cometa o mesmo erro que
cometi. Amei seu avô durante muito tempo, mais do que gostaria de
admitir. Poderíamos ter desfrutado de uns bons anos juntos, mas nós
dois éramos teimosos e intransigentes demais para confessarmos nossos
sentimentos. E era por isso que discutíamos tanto. Sabíamos que, no
instante em que parássemos de brigar estaríamos fazendo amor, e isso
nos deixava aterrorizados. — Ginny enxugou os olhos, fungando
ruidosamente. — Maldita alergia — murmurou, assoando o nariz.
— Ah, Ginny...
— Confie nele, Molly. Seu avô confiava, e ele sabia julgar o caráter de
uma pessoa como ninguém. Eu tenho certeza de que você não vai se
arrepender.
Ginny foi embora pouco depois e, enquanto acenava da varanda,
Molly viu que a picape de Sam estava novamente estacionada no lugar de
sempre. Ele não lhe dissera onde fora naquela tarde, mas ela também
não perguntara. Não estavam exatamente se falando. Sam a ignorava,
exceto para falar sobre os assuntos mais básicos relativos à fazenda e a
casa, e ela fazia o mesmo.
Ainda parada na varanda dos fundos, Molly avistou Tom e Clay
correndo pela estradinha da fazenda, com o cachorro já quase crescido de
Clay trotando atrás deles. O ônibus escolar os deixava na entrada da
fazenda, onde Bullwinkle os esperava fielmente todos os dias. Os meninos
se comportavam como dois esfomeados, sempre que chegavam em casa
depois da escola.
— Você e Sam ainda estão "de mal"?
— Clay perguntou, pegando um copo de limonada e dois biscoitos de
chocolate.
— Não estamos exatamente "de mal" — ela murmurou. Molly fazia o
possível para ocultar dos filhos a tensão existente entre ela e Sam, e
ficava aliviada ao perceber que ele também fazia a sua parte para
disfarçar.
— Bem, então ande logo e faça as pazes, está bem? — disse Tom.
— Sam tem andado tão divertido quanto fígado com cebola,
ultimamente. Quanto tempo ele ainda vai ter de sofrer, antes que você o
perdoe?
— Tom! — Molly não acreditava que seu filho estivesse lhe fazendo
tal pergunta. — O que acontece entre Sam e eu não é da sua conta.
— E isso que acontece quando as pessoas se casam? — Clay quis
saber.
— As coisas ficam bem durante pouco tempo, mas logo elas brigam e
tudo muda?
Por mais difícil que fosse admitir, Molly sabia que seus filhos tinham
razão. Aquela situação desagradável já fora longe demais. As observações
de Ginny haviam-na tocado fundo, e agora seus próprios filhos diziam,
essencialmente, a mesma coisa.
Passando os dedos pelos cabelos, Molly endireitou os ombros,
respirou fundo e encaminhou-se para a porta.
— Aonde você vai? — Clay perguntou.
— Aonde você acha seu bobo? — Tom provocou. — Deixe-os em paz,
está bem? E se a mamãe voltar com palha grudada nos cabelos, não
pergunte nada.
Molly enviou um olhar de censura para o filho mais velho, porém
Tom limitou-se a sorrir e piscar. Um pouco da tensão desapareceu de seus
ombros e ela sorriu também. Naquele momento, um pouco de palha nos
cabelos era uma ideia bem interessante. Ela sentia falta de Sam. Depois
de dez anos sem fazer amor, ficava surpresa ao ver a rapidez com que se
ajustara à vida de casada.
Sam estava trabalhando no estábulo e mal ergueu os olhos quando
ela entrou.
— Quero lhe perguntar uma coisa, e espero que você me responda
com toda sinceridade — anunciou.
A reação dele foi apenas o silêncio.
— Está bem? — ela perguntou, sentindo-se subitamente em dúvida.
.Teria sido mais fácil se Sam tomasse a iniciativa.
— Tudo bem, pode perguntar — ele resmungou.
— Você esteve ou não com uma mulher, naquela noite?
— Depende de como você define "estar com".
— Não sabia que se tratava de uma questão técnica.
— Molly cruzou os braços, na defensiva.
— Se você está perguntando se dormi "com", se fiz sexo "com" outra
mulher, então a resposta é um sonoro não.
— Ah...
— Mas se está curiosa em saber o que eu estava fazendo, posso lhe
contar.
Uma certa dama pediu que eu a levasse para casa, e eu levei. Ela
ficou grata por isso, deu-me um abraço e, juro Molly, isso foi tudo. Um
abraço, e nada mais.
A intensidade do olhar dele penetrou direto no coração de Molly.
Queria tanto acreditar nele...
— Amei somente uma mulher, em toda minha vida — ele continuou,
enquanto lustrava metodicamente o couro gasto da sela de seu avô.
— E esta mulher é você, Molly.
Ela sentiu o peito comprimir-se. Queria que fosse verdade
Casamento em Montana
e, embora Sam já tivesse demonstrado de mil maneiras, nunca
dissera as palavras. Antes que pudesse se conter, ela disse:
— Eu também amo você, Sam. Devagar, ele parou.
— Então, por que você está parada aí, e eu estou parado aqui, tão
longe?
— Não podemos nos encontrar no meio do caminho? Ele sorriu pela
primeira vez.
— Você é uma mulher bem teimosa, Molly Dakota.
— Tive um bom mestre — ela retrucou, pensando em vovô.
Não foram andando ao encontro um do outro, mas sim correndo.
Sam segurou-a pela cintura e mergulhou o rosto na curva de seu pescoço.
Ela atirou os braços em torno dele e abraçou-o. Todas as suas dúvidas
desapareceram no mesmo instante.
— Tenho me sentido tão infeliz — ela sussurrou contra o ombro dele.
— Só você? — Ele riu baixinho, mas interrompeu-se quando seus
lábios colaram nos dela, num beijo longo e ardente.
Eles haviam se beijado vezes incontáveis, porém Molly não podia
lembrar-se de nenhum beijo que significasse mais do que aquele. Havia
paixão, mas era mais do que isso... Estavam entregando-se, recebendo,
compartilhando, confiando. Os dois respiraram fundo, em busca de ar,
quando seus lábios se separaram.
— Será que faz ideia do sofrimento que passei nestas poucas noites,
dormindo ao seu lado? — ele murmurou.
— Você conseguiu dormir?
— Está brincando, não é? — Sam tornou a beijá-la, mas parou
abruptamente.
— Escute Molly, há algo que...
— Hesitou.
— O que foi? — ela perguntou.
— Nós vamos ter problemas.
— O que está querendo dizer?
— Aquela mulher para quem dei carona...
— Sim?
— Era Pearl Mitchell.
O nome perpassou a mente de Molly e ela pressionou a testa contra
o peito dele.
— Ah, meu Deus.
Mal acabou de pronunciar as palavras, ouviu um carro aproximando-
se da casa.
— Você está esperando alguém? — Sam indagou. Ela balançou a
cabeça.
Antes que saíssem do estábulo, as portas duplas foram escancaradas.
O xerife Maynard parou entre elas, parecendo um anjo vingador.
— Sam Dakota, você está sendo intimado a prestar depoimento
sobre a morte de Pearl Mitchell.
CAPÍTULO 15
Sam perdeu a noção de quantas horas havia passado na saleta dos
fundos da delegacia. Quatro? Seis? Seus olhos ardiam pela falta de sono,
mas as perguntas continuavam chegando, algumas na velocidade de um
tiro, outras com um lento desprezo e presunção de culpa. A resposta dele,
a cada uma, era sempre a mesma:
— Recuso-me a responder sem a presença do meu advogado.
Segundo o xerife Maynard, ninguém conseguira encontrar Russell Letson.
Sam não acreditava nele nem por um segundo, mas não disse nada. E
nem iria dizer. Tampouco questionou as algemas que colocaram em seus
punhos, embora não tivesse sido acusado de nenhum crime. De nada
adiantaria exigir seus direitos.
Já havia passado por tudo aquilo antes e aprendera, da pior maneira
possível, que um uniforme de policial não era uma garantia de justiça ou
da verdade. Quando fora preso naquela briga de bar que resultará em sua
condenação, o investigador tivera de refazer determinadas perguntas três
ou quatro vezes para obter as respostas que queria a fim de condenar
Sam. Tolo como era Sam confiara na imparcialidade do policial e, como
resultado, acabara na cadeia. Sim, ele se envolvera na briga. Sim, ele tinha
um canivete. Sim, estivera bebendo. Estas três respostas positivas foram o
suficiente para levá-lo para trás das grades pela primeira vez, e Sam não
tinha a menor intenção de repetir a experiência. Não agora, quando sua
vida finalmente tomara um rumo melhor. Não iria estragar tudo o que
conseguira.
A fazenda era seu futuro, bem como Molly e os meninos. Eles haviam
encontrado o caminho para seu coração. Um homem não abandonava
sua família, nem as suas responsabilidades; esta era uma crença que Sam
compartilhara com Walt. O velho o tratara como um filho, o amara o
bastante para encorajá-lo a casar com Molly, sua neta. E Sam não
pretendia decepcionar o seu velho amigo, nem tornar-se uma vítima das
circunstâncias.
— Eu exijo ver meu marido.
Sam ouviu a voz determinada de Molly, enquanto o jovem assistente
do xerife abria e fechava a porta. Apesar da situação, Sam não conseguiu
conter um sorriso. Fazia-lhe um grande bem ao coração saber que mais
alguém estava batendo de frente com Molly. Quase sentiu pena do
escrivão. Sua esposa era uma mulher forte e teimosa, e ele a amava ainda
mais por isso. Saber que ela estava ali, ao seu lado, forneceu-lhe a força
que precisava para enfrentar uma nova rodada de perguntas, para ouvir
em silêncio enquanto o xerife e seus homens descreviam em detalhes as
"evidências" que apontavam direto para Sam. Felizmente, ele conhecia o
plano de jogo deles. O instinto lhe dizia que se mantivesse firme, que se
declarasse inocente. Mas a experiência lhe ensinara que tal declaração em
breve poderia ser usada como "prova" para incriminá-lo.
Uma hora depois a porta abriu-se pela segunda vez e Russell Letson
entrou na sala. Bastou olhar para as algemas nos pulsos de Sam e foi logo
perguntando:
— Em que motivos você se baseou para deter o meu cliente?
— Seu tom de voz sugeria que Maynard passara dos limites e que
teria sorte se ele próprio não fosse jogado numa cela.
— Soubemos que Dakota foi a última pessoa a ser vista com Pearl
Mitchell.
Russell fez um muxoxo de desprezo.
— Se isso é tudo o que tem, então sugiro que o libere
imediatamente, ou você vai acabar se tornando o réu num longo e
dispendioso processo por detenção ilegal.
Sam começava a acreditar que havia subestimado o advogado. O
pacato Letson transformava-se numa fera, quando se tratava de defender
os clientes. Não tinha certeza do que havia convencido Letson a aceitar
sua defesa, porém desconfiava que Molly tinha algo a ver com isso.
O rosto do xerife Maynard, com o queixo duplo e tudo, estava
vermelho como um tomate maduro. Boquiaberto, ficou olhando para o
advogado como se não acreditasse nos próprios ouvidos. Era evidente
que ambos se conheciam bem, e agora enfrentavam-se numa batalha de
vontades.
— Ei, espere um pouco...
— O xerife passou os olhos pela sala, como se sentisse na obrigação
de fazer uma bela cena diante de seus assistentes.
— Desta vez você foi longe demais
— Russell falou, um pouco mais calmo.
— Longe demais, Maynard. Você sabe disso, eu sei, e todos nesta sala
também sabem. Pode parar por aqui, ou iremos fundo neste assunto até
o tribunal. A decisão é sua.
Os dois homens se encararam de frente, antes que o xerife
resmungasse algo incompreensível e desistisse. Sam levantou-se e
estendeu os braços para que o xerife tirasse as algemas. Maynard retirou-
as com indisfarçável relutância. Quando as mãos estavam livres, Sam
esfregou os punhos inchados, sentindo-se exultante. Quando entrara
naquela sala, ficara aterrorizado com a possibilidade de não sair de lá
como um homem livre.
Quase derrubou os dois policiais, em sua pressa de chegar até Molly.
Ela levantou-se de um salto quando ele entrou na sala de espera da
delegacia. Seus lindos olhos encontraram os dele, e a emoção que
continham quase o fez fraquejar.
Sem dizer uma palavra, simplesmente caminharam ao encontro um
do outro. Sam fechou os olhos quando enlaçou os braços em torno dela,
e sentiu seu amor mais profundamente do que nunca. Exalou um suspiro
audível. Molly era um raio de sol depois da tempestade. A luz, depois da
escuridão. O verão depois de um inverno sombrio. A sua alegria, sua
liberdade. O seu amor.
— Você está bem? — ela perguntou com voz trêmula. Seus dedos
examinavam lhe o rosto, afastavam os cabelos da testa.
— Estou bem. Não há nada com que se preocupar.
— Sam não estava totalmente certo de que isso fosse verdade, mas
tinha esperança. Graças a Russell Letson.
Russell estava no balcão preenchendo alguns papéis, e Sam
aproximou-se dele para agradecer. Conversaram por um instante e
trocaram um aperto de mão. Depois, Sam reparou que quando Russell viu
Molly parada ao seu lado, uma ponta de tristeza surgira em seus olhos,
como se invejasse o amor que havia entre eles. Mas logo afastou a
impressão, achando que estava se tornando sensível demais.
— Fiz apenas o que era certo — Russell dizia, enquanto preparavam-
se para sair. — Sinto muito pela demora em receber seu recado.
— Baixou os olhos, embaraçado, quando Molly deu um passo à
frente e beijou-o no rosto. — Vão para casa, vocês dois, e sejam felizes.
— E o que pretendemos — Sam falou, sorrindo para a esposa. Os
problemas não tinham desaparecido, e ele sabia que tão logo aquela crise
terminasse uma outra apareceria. Mas, naquele momento, nada era mais
importante do que respirar o ar puro e fresco da liberdade.
— Que horas são? — perguntou.
— Três, ou talvez quatro — Molly respondeu, e bocejou. Ambos
tinham estado acordados a noite inteira. Dali a duas
horas a fazenda estaria em plena atividade e Sam seria exigido para
lidar com os afazeres do dia. Mas, nestas duas horas que lhe restavam,
planejava fazer amor com sua esposa.
Assim que chegaram em casa foram direto para o quarto, e nem
incomodaram-se em acender as luzes. No escuro, tiraram as roupas e Sam
deitou-se na cama, abrindo os braços para sua mulher. Ela foi para ele,
irresistível, ansiosa, e suspirou profundamente quando ele a tocou.
— Logo vai amanhecer — ele sussurrou.
— Eu sei.
Molly deixou que ele a puxasse mais contra si, os seios
aconchegando-se em seu peito. Depois, passou a beijá-lo desde a orelha
até o pescoço, demorando-se ali numa leve carícia com a ponta da língua.
Então, Sam ergueu a cabeça para beijá-la com o desejo acumulado
por todas as longas noites em que não haviam se amado, ansiando por
ela. Embora estivesse exausto, precisava dela agora, como nunca antes.
Precisava da absolvição dela pelo seu passado. Precisava que ela aliviasse
a dor de ser acusado de um crime que não cometera. Como uma prova de
que estava vivo e capaz de sentir, de amar e de entregar-se. Posicionou o
corpo sobre o dela e penetrou-a, sendo mais que bem-vindo. Um suspiro
profundo e ofegante, saído do fundo da alma de Molly, lhe revelou que
ela também precisava dele.
O incrível prazer apagou quaisquer outros pensamentos de sua
mente. Sam entregou-se por inteiro. Entregou seu coração, sua alma,
todas as suas esperanças, tudo o que sonhava para o futuro. Depois do
ato de amor, ficaram abraçados, colados um no outro, mantendo acesa a
chama da ternura e da pura alegria de estarem se amando. Nenhum deles
falou, mas a comunicação que existia naquele momento era mais forte,
mais perfeita do que qualquer palavra seria capaz de expressar.
Logo depois, mudando de posição, Molly adormeceu com a cabeça
recostada em seu ombro. Um homem mais sábio a teria seguido naquele
doce esquecimento, mas em vez disso Sam preferiu ficar acordado a fim
de tê-la nos braços pelo máximo que pudesse. Para amá-la,
conscientemente, por um pouco mais de tempo.
Finalmente fechou os olhos, exausto. Não podia lembrar-se de
quando fora a última vez que dormira de verdade, sem o peso dos
inúmeros problemas esmagando-o. Enquanto deixava que a mente
deslizasse para o estado pacífico do nada, lembrou-se que Molly ainda
não estava tomando as pílulas anticoncepcionais e que, pela primeira vez
desde o casamento, não tinham usado nenhuma proteção. Sorriu, apesar
de tudo. Se Molly engravidasse como resultado daquela noite não ficaria
arrependido, por mais difícil que fosse enfrentar uma gravidez não
planejada.
— O sr. Wilson quer vê-lo em seu escritório — a Sra. Kirby, professora
de Inglês de Tom, avisou-o diante da classe.
O diretor? Por que o diretor queria vê-lo? Tom tentou pensar no que
poderia ter feito de errado, mas nada lhe ocorreu. Havia se comportado
muito bem, desde o início das aulas, pois logo identificara qual era a
turma dos criadores de casos, e procurara manter uma distância segura. A
maioria destes garotos tinha orgulho das confusões que armava; ser
"mau" era a proclamação de suas individualidades... ou era o que
pensavam.
Quando Tom apareceu na escola como aluno novo as duas turmas, a
dos arruaceiros e a dos comportados tentaram fazer amizade com ele. E
coubera a ele decidir de que lado queria ficar. Porém, no último semestre
ele havia aprendido a lição sobre as consequências de ser amigo de
encrenqueiros como Eddie Ries.
Naquela época, Tom tentara mostrar-se indiferente, mas ainda se
sentia culpado pelo que fizera. Sentia-se especialmente culpado pela
expressão que vira no rosto da mãe, quando fora buscá-lo na escola. E
aquela fora a melhor lição que recebera. Sua mãe era muito companheira.
Nem sempre concordavam, mas ela estava sempre disposta a
conversar e chegar num acordo, ainda mais agora que casara-se com Sam.
Tom queria que os dois sentissem orgulho dele, e por isso tomava todo
cuidado para manter-se longe de qualquer coisa que cheirasse a
problemas.
E, agora, isso.
— O Sr. Wilson disse porque quer falar comigo?
— Tom perguntou à professora. Ela era mais velha, quase da mesma
idade que sua mãe. Tom gostava dela e, embora nunca fosse gostar de ler
Shakespeare, a professora tinha um jeito de fazer com que fosse
suportável.
Agora, a Sra. Kirby enviou-lhe um olhar de simpatia.
— Receio que não, Tom.
Ele sentiu um frio no estômago. Pelo que sabia, não precisava se
preocupar, pois não fizera nada errado. Ainda assim, ninguém é chamado
na sala do diretor apenas por divertimento.
— Devo esperar a aula terminar? — ele perguntou em seguida.
— Se eu fosse você, iria agora mesmo.
Tom pegou os livros e saiu da sala. Sentia todos os olhares sobre si,
enquanto seguia pelo corredor silencioso até o escritório do Sr. Wilson.
A secretária, Sra. Kozar, ergueu os olhos quando ele entrou. A
primeira coisa que Tom reparou foi que ela não estava sorrindo. A Sra.
Kozar era bem bonita e tinha um sorriso engraçado, que fazia com que
todo mundo quisesse lhe sorrir de volta. Começava nos cantos dos lábios,
com um leve tremor, e espalhava-se devagar pelo resto da boca. Mas,
agora, não havia nem tremor, nem sorriso.
Diabos, o que ele tinha feito?
— O sr. Wilson está esperando você — disse a Sra. Kozar. Tom queria
perguntar se ela sabia qual era o motivo, mas mesmo se soubesse,
provavelmente não lhe diria. Que droga, ele não havia feito nada, mas já
se sentia culpado!
Tom bateu na porta, esperou um instante e entrou na sala do
diretor. Para sua surpresa, encontrou sua mãe e Sam sentados ali, de
frente para a mesa do sr. Wilson.
Sua mãe lançou lhe um olhar que gritava "de castigo" e coisa pior,
num único e rápido relance. Tom teve de se controlar para não começar a
gritar que não havia feito nada de errado.
— Sente-se, Tom — o Sr. Wilson praticamente ordenou. Ele sentou
na cadeira ao lado de Sam. Embora tentasse relaxar, seu corpo mantinha-
se rígido. Segurou os braços da cadeira com os dedos tensos.
— Há algo errado? — perguntou, olhando primeiro para o Sr. Wilson
e, depois, para a mãe e Sam.
— Quando cheguei na escola, hoje cedo—o diretor começou, —
descobri que alguém havia pichado as paredes do lado de fora do ginásio
de esportes. A parede do lado norte.
Todos os olhares focalizaram-se em Tom. Ele levou um instante até
dar-se conta de que o sr. Wilson estava acusando-o de pichar a parede do
ginásio.
— Ei, espere um pouco! — Tom pôs-se de pé, mal percebendo que
havia se movido. — Eu não fiz nada disso!
O Sr. Wilson enviou um rápido olhar para Molly, como se esperasse
que ela fosse se atirar em defesa do filho.
— Pergunte a qualquer um — Tom insistiu, fazendo um gesto para
que alguém ali desse ouvidos à razão. — Peguei o ônibus para a escola
hoje cedo, como sempre faço e...
— E quanto a ontem à tarde, depois das aulas?
— Molly interrompeu.
Tom encarou-a, surpreso, pois ela não parecia em seu estado normal.
Era como se estivesse prestes a chorar. Sam estava de mão dada com ela,
o que era um bom sinal pois significava que tinham feito as pazes. Mas,
depois, reparou que os dedos dela estavam esbranquiçados, pela força
com que apertava a mão de Sam.
— Fiquei aqui para o treino de futebol — Tom respondeu, achando
que isso não seria o bastante para condená-lo. Olhou para a mãe e Sam, e
depois para o diretor. — Brian Tucker me levou para casa, lembra-se? —
Brian era o astro do time e o primeiro aluno da classe. Tom fez questão
de mencioná-lo, julgando que alguém daria valor à sua escolha de
amizades.
Mas, ao que parecia, ninguém ficou impressionado.
— Quando você foi transferido da escola de San Francisco para a de
Sweetgrass, nós requisitamos e recebemos uma cópia de seus registros
escolares — o sr. Wilson falou, no tom autoritário de sempre.
"Ótimo", Tom pensou, pois isso mostraria a todos que ele não era
nenhum arruaceiro. Bem, exceto por aquele único incidente, mas isso era
tudo.
— O senhor acha que só porque alguém pichou a parede do ginásio,
tinha de ser eu? — Ninguém lhe dissera que ele seria acusado toda vez
que alguém decidisse decorar uma parede.
— Não sei quem mais poderia ser.
— A voz do diretor guardava uma certeza aterrorizante.
— Não fiz isso. — Tom perguntou-se quantas vezes teria de repetir
estas palavras, antes que alguém acreditasse nele.
— Sua assinatura está nos grafites — Molly intercedeu, parecendo
realmente deprimida. Era a mesma voz que ele ouvira na sala do outro
diretor, a voz que lhe dizia que ele a decepcionara e que, de alguma
forma, a culpa era toda dela, que devia ser uma péssima mãe.
— Minha assinatura... — Tom repetiu, quase aliviado. — Bem, isso
quer dizer alguma coisa. Posso ter uma porção de defeitos, mas não sou
estúpido. Se decidisse fazer algo tão tolo quanto pichar uma parede, não
iria assinar o meu nome ali.
— Eles deviam achar que ele era mesmo um idiota!
— Não é o seu nome, Tom. São símbolos de gangue. Ele empalideceu;
na verdade, podia sentir o sangue sumir de seu rosto. As pernas ficaram
fracas e ele teve de se sentar.
— Símbolos de gangue idênticos aos que você pintou na parede de
sua escola anterior — disse o Sr. Wilson.
— Pedi à sua mãe que verificasse e ela confirmou que eram os
mesmos.
— Mas não fui eu! — A voz dele beirava a histeria.
— Não minta para mim, Tom! — Molly exclamou.
— Você sabe como me sinto a respeito de mentiras, sempre soube.
Ah, meu filho, como pôde fazer uma coisa dessas?
A raiva de Tom crescia tão rápido que ele precisou de todo seu
autocontrole para não pegar o primeiro objeto na mesa do sr. Wilson e
atirá-lo na janela.
— Será que alguém pode fazer o favor de me ouvir? — gritou.
— Eu juro que não fiz nada!
— Não espera que eu acredite nisso, não é? — o Sr. Wilson
perguntou, olhando-o com desprezo.
— Se me derem licença, eu gostaria de dizer uma coisa — Sam falou
pela primeira vez, exigindo-lhes a atenção.
Parecia ser o único controlado naquela sala. O sr. Wilson estava
visivelmente irritado, Molly parecia prestes a ter um ataque, e Tom
encontrava-se no mesmo estado.
— Fique à vontade, por favor. — O diretor fez um gesto na direção de
Sam.
— Nunca soube que meu enteado mentisse — ele começou.
— Não estou afirmando que o garoto é um segundo George
Washington, mas no contato que tive com ele sempre se mostrou um
rapaz honesto e sincero. Se Tom está dizendo que não é o responsável
pela pichação, sinto-me inclinado a acreditar.
Tom estava tão agradecido por alguém confiar nele o bastante para
defendê-lo, que sentiu lágrimas nos olhos. Virou o rosto, um tanto
envergonhado por isso, e esperou que ninguém reparasse quando
enxugou-as com a manga da camisa.
— Então, como explica os símbolos de gangue? — o sr. Wilson
perguntou, como se esta fosse toda a evidência que precisava para
enforcar Tom na árvore mais próxima.
— Tom não é o único aluno desta escola que conhece símbolos de
gangues.
— Novamente, Sam foi em sua defesa.
— Símbolos de gangues da Califórnia? — o diretor enfatizou.
— Minha opinião é que existem muitos alunos que têm acesso a este
tipo de informação. Responda-me uma coisa, sr. Wilson — disse Sam, —
Tom causou algum problema, desde o início das aulas?
— Não, mas ainda estamos no começo do ano e...
— Em outras palavras, o senhor esperava que eu fosse criar
problemas! — Tom gritou, tão furioso que não conseguia ficar parado na
cadeira.
Um olhar firme de Sam avisou-o para manter a boca fechada. E,
vendo que Sam era o único a defender sua causa, Tom estava mais que
disposto a seguir o conselho silencioso.
— E quanto aos amigos dele? — Sam perguntou. O Sr. Wilson baixou
os olhos.
— Ele parece ter feito amizade com jovens que raramente requerem
medidas disciplinares.
Como Brian Tucker. Tom assentiu enfaticamente, pensando que
aquele seria mais um ponto a seu favor.
— Alguém viu Tom pichando as paredes? O Sr. Wilson limpou a
garganta.
— Não.
— Existe alguma prova, como uma lata de tinta escondida no armário
de Tom? Ou roupas dele sujas de tinta?
O diretor já não o encarava mais.
— Não, nenhuma.
Sam fez uma pausa e olhou para Tom, enviando-lhe um meio sorriso.
— Neste caso, talvez fosse melhor se decidíssemos esquecer todo
este incidente desagradável.
— E quem vai pintar a parede? — o diretor indagou, exigente. — O
senhor deve saber que trata-se de propriedade da escola e que é contra
as nossas normas adulterar qualquer coisa que pertença à escola.
— O senhor poderia convocar voluntários — Sam sugeriu. Tom havia
gostado de Sam desde o início. Porém, mesmo se não gostasse e se
ressentisse com o casamento dele com sua mãe, mesmo se odiasse a
maneira como Sam tornara-se parte da família, tudo teria mudado a
partir daquele dia. Sam era mais do que seu padrasto, era seu amigo.
Sam ficara do seu lado, quando ninguém mais acreditava nele. Ele o
defendera, quando sua própria mãe o considerara culpado. Isso não era
pouca coisa, e Tom jamais esqueceria.
— Tom — o Sr. Wilson falou, encarando-o diretamente.
— Se cometi um erro de julgamento, peço desculpas. O que o sr.
Dakota falou é verdade. Até agora você provou ser um bom aluno e um
rapaz ajuizado. Espero que me desculpe por ter tirado conclusões
apressadas. Os adultos agem assim, às vezes. — O diretor levantou-se e
estendeu-lhe a mão.
Tom trocou um firme aperto de mão com o diretor, olhando-o sem
pestanejar. Sam já lhe ensinara sobre apertos de mão, também, sobre a
importância de encarar o outro homem e apertar-lhe a mão com firmeza.
Nada daquela história de pulso frouxo.
— Sem problemas, Sr. Wilson — ele disse grato por voltar aos bons
termos com o diretor. — Nós todos cometemos erros. E se eu descobrir
quem pichou a parede do ginásio, não vou me preocupar em ser chamado
de "dedo-duro". Venho lhe contar na mesma hora. — Quem quer que
tivesse tentado lhe pregar uma peça, certamente receberia o troco.
— Faça isso, meu rapaz. Agora, pode voltar para a aula da Sra. Kirby.
— Obrigado. — Tom estava a meio caminho para a porta quando
parou e virou-se. — Obrigado, Sam.
Viu que a mãe tinha uma expressão desalentada e infeliz. Gostaria
que ela também tivesse ficado do seu lado, mas Tom entendia. Tudo
aquilo era porque seu pai de verdade agira como um patife, mentindo
para ela tantas vezes. Por isso, tinha de perdoá-la.
— A gente se vê mais tarde, mãe.
Ela assentiu e Tom percebeu que estava quase chorando. Tudo bem,
um pouco de culpa de vez em quando não fazia mal a ninguém.
Provavelmente ela faria seus pratos preferidos durante toda a semana, a
fim de compensá-lo.
No fim das contas, não havia sido tão ruim como imaginara.
Molly estava um trapo, emocionalmente. Havia enfrentado uma das
semanas mais traumáticas de sua vida. Primeiro, Sam fora detido e ela
mal acabara de lidar com aquela crise, recebera um telefonema da escola.
O incidente com Tom ensinara-lhe algumas lições valiosas. Ela preferia
acreditar numa pessoa estranha do que em seu próprio filho. Seu coração
doía cada vez que lembrava-se daquela tarde. Sam fora o único a ir em
defesa de seu filho.
E ela também sabia por que ele agira assim. Sam compreendia muito
bem o que significava ser falsamente acusado. Molly estava convencida da
inocência de Tom, mas não desde o início, e era isso que a atormentaria
para sempre. Ela não confiara em seu filho, não lhe dera seu apoio
quando fora mais necessário.
Como se isso não bastasse, Sam havia vendido parte do rebanho e
fora obrigado, juntamente com os demais fazendeiros autônomos, a
aceitar o preço mais baixo em dez anos. O cheque que receberam não foi
o suficiente para cobrir as despesas, e não lhes restara outra saída senão
pedir um empréstimo.
Molly foi à cidade com Sam a fim de conversar com o sr. Burns,
presidente do banco, a respeito do empréstimo. Havia algum consolo em
saber que a Flecha Quebrada não era a única fazenda da região a
atravessar dificuldades financeiras. Sam e Molly tinham passado quase
toda a noite anterior revendo a situação monetária. Não parecia muito
promissora.
Apesar de Molly ter-se inscrito na escola distrital, não havia nenhuma
vaga para professora de idiomas. Ela nutria sentimentos conflitantes a
este respeito. Era evidente que precisavam do dinheiro, mas na verdade,
ela gostava de ser uma dona de casa, esposa e mãe. Por algum tempo,
pelo menos. Aquela era a primeira vez, desde o nascimento de Clay, que
tinha a chance de estar com os filhos em tempo integral. No início
imaginara que acabaria entediada depois de um mês, mas a casa
precisava de tantos cuidados e manutenção e ela era capaz de
providenciar tudo com um mínimo de despesa.
— Você se importa se eu não acompanhá-lo ao banco? — perguntou
a Sam. Haviam estacionado na frente do banco e ele não parecia muito
animado com o encontro com o sr. Burns.
— Não tem problema — ele disse.
Molly olhou de relance para a loja de penhores no final da rua.
Sem que Sam soubesse, ela estava economizado um pouco do
dinheiro das despesas da casa, a fim de resgatar do penhor o troféu de
rodeio que pertencia a ele. Queria lhe dar como presente de casamento,
mas na época não tivera condições para tanto.
— Tem certeza de que você está bem? — ela perguntou, voltando sua
atenção para o banco. Conforme recordava-se, o sr. Burns parecia ser um
homem decente, solidário com as necessidades da comunidade. E, sem
dúvida, outros fazendeiros também viram-se forçados a pedir a ajuda do
banco.
— Não estou muito ansioso em fazer isso, se é o que quer saber —
Sam respondeu e, com um gemido exagerado, abriu a porta da picape.
Molly tocou-lhe o braço, detendo-o por um instante.
— Precisa de uma injeção de ânimo? — perguntou, sugestiva, e
umedeceu os lábios para que não houvesse dúvidas sobre o que tinha em
mente.
Os olhos de Sam iluminaram-se enquanto fitavam seus lábios, num
sinal seguro de que ficara interessado.
— Mais tarde, está bem?
Ela ficou um tanto desapontada, mas sorriu, assentindo.
— Ora, para o inferno — ele disse em seguida, numa súbita mudança
de humor. Puxou-a para si e, mergulhando os dedos por entre seus
cabelos, colou os lábios nos dela.
O beijo foi ardente o bastante para causar uma fusão nuclear, e
quando se separaram Molly desejou sinceramente que estivessem em
qualquer outro lugar, exceto na Rua Principal.
— O Motel Sweetgrass aluga quartos por hora? — Sam murmurou,
com os lábios roçando os de Molly.
— Sam! — Ela deu uma risadinha è bateu de leve no braço do
marido.
— Agora, vá falar com o gerente do banco. Sorria bastante e tente
convencê-lo de como nós, pobres mortais, ficaremos gratos se ele achar
conveniente nos conceder um empréstimo.
Ele riu.
— Você faria isso mil vezes melhor do que eu.
— Ora, entre naquele banco, vaqueiro, e dê o melhor de si.
— Os dois haviam evitado falar sobre o que aconteceria se o sr. Burns
se recusasse a lhes conceder o crédito.
Sam franziu a testa de repente.
— O que foi? — Molly perguntou.
Ele balançou a cabeça e afastou o olhar.
— Nada. É que outra pessoa já me chamou assim, de "vaqueiro".
— Uma mulher, aposto. — Molly fingiu estar com ciúmes.
— Para dizer a verdade, foi, sim. Pearl Mitchell.
— Ah...
O corpo de Pearl ainda não fora encontrado, mas havia muitas
especulações a respeito. E o caso do seu desaparecimento poderia ter
sido esquecido, se não fossem pelos esforços de Russell Letson. Ginny lhe
contara que o advogado passava um bocado de tempo incitando o xerife
Maynard a prosseguir com as buscas. Isso fez com que Molly se
perguntasse se existira alguma conexão entre Russell e Pearl. Ele teria
sido um dos clientes dela? Seria de se presumir que um homem na
posição de Russell não desejaria que tal relacionamento fosse levado à
público. De acordo com Ginny, dizia-se que Pearl era muito popular entre
seus clientes, porém nenhum deles parecia interessar-se tanto pelo que
acontecera a ela quanto Russell. Não haveria motivos pessoais para esta
obsessão, motivos que ninguém conhecia? Ainda assim, Molly não
conseguia imaginar o advogado com uma mulher como Pearl.
— Espero que solucionem o caso — disse. Uma sensação de quase
irrealidade a envolvia, sempre que pensava no assassinato.
— Também espero — Sam acrescentou.
As razões de Molly eram bem mais egoístas. Uma vez que o
verdadeiro assassino fosse encontrado e julgado, ninguém mais apontaria
o dedo para Sam. Molly acreditava sinceramente na inocência do marido,
mas não tinha certeza de que todos na cidade compartilhavam deste
sentimento.
— Encontro você aqui em meia hora — disse Sam, encaminhando-se
para o banco.
Molly esperou que ele estivesse lá dentro antes de seguir na direção
da loja de penhores. Uma sineta tocou sobre a porta, quando entrou.
Max Anderson, o proprietário, surgiu dos fundos e cumprimentou-a assim
que a viu. Era um homem alto e magro, com rabinho-de-cavalo e um
dente de ouro.
— Veio fazer outro pagamento, não é? — Max perguntou.
— Sim, por favor. — Molly deixou a bolsa no balcão e retirou dela
uma nota de dez dólares. Naquele passo, levaria anos para resgatar a
fivela de prata de Sam, porém recusava-se a permitir que ele a perdesse.
— Muito interessante este camafeu que você está usando — Max
falou.
Molly prendeu-o entre os dedos, surpresa por ele não ter reparado
antes. Usava-o diariamente, como uma lembrança de vovô e do amor que
seus avós tinham compartilhado. O camafeu e a corrente de ouro que o
prendia eram as únicas joias que possuíam algum significado para ela.
— Ganhei de vovô anos atrás, depois que minha avó morreu.
— Incomoda-se se eu der uma olhada?
Molly hesitou por um instante, mas finalmente tirou a corrente do
pescoço e entregou-a a Max.
Ele segurou a joia na palma da mão, depois virou-a e observou
atentamente a parte de trás.
— E uma peça de família, não é?
— Vovô comprou-o durante a Segunda Guerra, em algum lugar na
França, se não me engano.
— Poderia ter sido na Itália. Poucos camafeus são feitos na França.
Molly não sabia disso.
— E muito bonito.
— Obrigada. — Ela estendeu a mão; Max parecia relutante em lhe
devolver o camafeu.
— Cuide bem dele — Max falou.
— Vou cuidar — Molly prometeu, com total confiança.
Aquele camafeu, como a fazenda, fazia parte de sua herança. Algum
dia ela o daria à esposa de Tom, ou talvez à sua própria neta. E, quando o
fizesse, Molly lhe contaria a história de um jovem soldado que lutara na
guerra, e como a mulher que ele amava havia esperado, a meio mundo de
distância, o seu retorno a salvo.
— Não creio que você esteja disposta a vendê-lo — Max arriscou,
enquanto aceitava o pagamento e subtraía o valor do que ainda era
devido.
— Isto que você está fazendo é uma coisa muito boa — disse,
assentindo com aprovação.
— Sam é que foi generoso.
— Ele é um bom sujeito, nisso concordo com você. Molly despediu-se
de Max e caminhou de volta para onde
Sam deixara a picape estacionada. Presumindo que ele ainda
demoraria um pouco, decidiu passar na loja de departamentos para dar
uma olhada. Estava prestes a entrar quando Sam a chamou.
Surpresa por ele ter terminado tão cedo, ela virou-se e viu-o quase
correndo pela Rua Principal.
— Vamos embora daqui — ele disse, pressionando os lábios com
raiva.
— Já? — Ele não ficara no banco por mais do que dez minutos, se
tanto.
— Não precisamos mais discutir o assunto do empréstimo — Sam
murmurou. Tentou evitá-la, como se tivesse falhado com ela.
— O que aconteceu? — Molly tinha de saber.
— Não vamos conseguir nenhum empréstimo, Molly. Teremos de
descobrir outro meio para não perder a fazenda.
CAPÍTULO 16
O despertador tocou e Molly levantou-se da cama com um gemido,
deixando Sam dormir mais um pouco enquanto ia preparar o café.
Sentindo o friozinho da manhã de final de outubro, ela vestiu o robe e
amarrou-o na cintura, antes de encaminhar-se sonolenta para a cozinha.
Parada em frente da cafeteira, esperou o café coar para uma primeira
xícara.
— Bom dia — Sam murmurou, dois minutos mais tarde,
aproximando-se por trás dela.
Ele enlaçou-lhe a cintura e mergulhou o rosto na curva de seu
pescoço. Virando-se, Molly abraçou o marido, saboreando a intimidade
que compartilhavam.
Sam bocejou. Molly percebeu que ele estava exausto e gostaria que
tivesse ficado na cama por mais tempo. Não sabia a que horas ele fora se
deitar, mas devia ser bem depois da meia-noite, quando ela já estava
dormindo. Sam quisera rever os livros contábeis mais uma vez, antes do
encontro que teria com os outros fazendeiros autônomos.
— Tenho a reunião na Associação dos Criadores de Gado hoje cedo
— ele a lembrou.
Molly recostou a testa no ombro dele e sufocou um suspiro. Com
tantas preocupações financeiras acumulando-se à sua volta, contavam
apenas um com o outro para o apoio emocional. O ato de amor entre eles
adquirira uma espécie de abandono, uma necessidade, como se provar o
amor que sentiam pudesse proteger o seu mundo particular.
Molly abraçou-o com mais força. Adorava aqueles breves momentos
a sós com ele, antes que os meninos descessem para o café. A serenidade
da manhã acabaria no instante em que Tom e Clay irrompessem na
cozinha.
A cafeteira borbulhou e, um tanto relutante, Molly desvencilhou-se
dos braços do marido e pegou duas canecas, enchendo-as de café. O
aroma, que normalmente a estimulava, teve um efeito oposto naquela
manhã. Sentiu o estômago revirar e, por um instante, achou que iria
vomitar.
— Você está bem? — Sam perguntou.
— Ficou meio pálida.
— Estou bem — ela mentiu.
Só podia ser o nervosismo e preocupação causados pela situação
financeira, ela pensou. Molly sabia que o estresse se manifestava através
de todos os tipos de desconfortos físicos. Não queria acrescentar mais um
peso à carga já bem pesada que Sam carregava, portanto tentou sorrir e
brincou:
— Se voltar para a cama, vou lhe mostrar exatamente como estou me
sentindo bem.
— Não me provoque.
— Sam bebeu um gole do café e olhou no relógio.
— Preciso me apressar.
— Beijou-a no rosto e, levando a caneca, desapareceu na direção do
quarto.
Ainda sentindo-se indisposta, Molly recostou no balcão. Lembrou-se
da última vez em que o cheiro do café a incomodara tanto... foi quando
estava grávida de Clay. Grávida. Franziu a testa, dando-se conta de que
não conseguia recordar-se da data de sua última menstruação. Achava
que tudo estivesse normal desde a morte de vovô, mas não tinha certeza
absoluta. Nem precisava dizer que as despesas com uma gravidez,
naquele momento, poderiam afundá-los de vez. O seguro de saúde que
tinham era limitado e pagava muito pouco para procedimentos médicos
rotineiros. Como a gravidez, por exemplo.
O médico lhe dissera que o abalo emocional causado pela morte de
vovô poderia alterar seu ciclo menstrual, e por isso ela achara melhor
esperar um ou dois meses antes de começar com as pílulas
anticoncepcionais. Mas ela e Sam tinham sido tão cuidadosos! Não podia
estar grávida.
Ouvindo os passos dos meninos descendo a escada, Molly tirou meia
dúzia de ovos da geladeira. Um dos prazeres de ser mãe em tempo
integral era o de poder preparar uma boa e quente refeição aos seus
filhos, naquelas frias manhãs de outono.
— O que tem para o café? — Clay perguntou, dando um pulo para
dentro da cozinha. O cachorro o seguia de perto, deitando-se embaixo da
mesa.
Clay puxou uma cadeira e ligou o rádio ao mesmo tempo. Cinco
minutos de notícias internacionais e locais foram seguidos pela relação
dos preços da carne, e o lembrete do horário do bingo e de seus
patrocinadores.
— Hoje tem cachorro-quente na cantina da escola — Clay falou,
animado.
— Posso comprar o lanche, em vez de levar?
— E claro. — Molly quebrou os ovos numa vasilha de cerâmica,
acrescentou leite e começou a bater a mistura com um garfo.
— Eu levo o lanche dele, se você já arrumou — disse Tom. A voz dele
alternava-se entre duas oitavas; Molly pensou que seu filho mais velho
estava tornando-se um homem, e a prova disso exibia-se cada vez que ele
falava.
— Vai levar dois lanches? — Molly perguntou.
Tom crescera bastante durante o verão e seu apetite nunca estivera
melhor. Talvez fosse graças ao ar do campo, ela pensou.
— Posso comer o segundo depois das aulas — Tom explicou.
— Antes do treino de futebol.
Usando calça jeans recém-lavada, uma camisa "western" e gravata de
cordão, Sam juntou-se a eles na cozinha.
— Humm... Que cheiro gostoso é esse?
— Rabanadas — Clay informou.
— Vocês dois podem arrumar a mesa — Molly disse aos meninos.
— Vai a algum lugar, pai? — Tom perguntou.
Molly sorria toda vez que ouvia Tom chamar Sam de "pai". Isso
começara logo depois do incidente na escola e, embora Sam não
demonstrasse, ela sabia o quanto este tratamento lhe dava prazer. Dava
prazer a ela, também.
— Tenho uma reunião com os outros criadores de gado — Sam
respondeu.
Naquele momento o rádio anunciou uma notícia extraordinária.
Restos humanos haviam sido encontrados na rodovia 32, a cerca de 30
quilômetros da cidade. Dois caçadores tinham se deparado com o corpo
em decomposição e relataram a descoberta ao xerife.
Molly imobilizou-se por um instante e olhou para Sam.
— Será que é Pearl Mitchell? — perguntou.
— Posso apostar que sim — ele disse, com uma ponta de tristeza.
— Não é a moça que foi assassinada? — Clay perguntou. — Achei que
as pessoas não eram assassinadas num lugar com Sweetgrass. E o tipo de
coisa que acontece em San Francisco, e não em Montana.
Molly havia pensado o mesmo. Em todos aqueles meses que estava
morando ali, nunca se preocupara sequer em trancar a porta. Os
cachorros forneciam proteção suficiente. E, quanto a trancar o carro, bem,
de acordo com o que ouvira no rádio não havia nenhum registro de roubo
de automóveis em três anos.
— Como vão saber se os restos mortais são da moça desaparecida?
— Tom indagou.
— Provavelmente o xerife irá enviá-los ao laboratório em Helena —
Sam explicou. — Com sorte, o corpo fornecerá às autoridades as pistas
que precisam para localizar o assassino.
Molly esperava que isso acontecesse. Ultimamente ninguém mais
comentava sobre o assassinato, pois várias semanas tinham se passado
sem que nenhum suspeito aparecesse, e havia muito poucas pistas. O
assassinato de Pearl continuava sem solução. Às vezes Molly ainda se
preocupava com a ideia de que as pessoas de Sweetgrass poderiam
desconfiar de Sam, mas este não parecia ser o caso. Era como se o
assunto da prostituta morta fosse algo proibido. As pessoas sentiam-se
mal sobre o que acontecera, mas ela não era alguém que conheciam, ou
de quem gostavam. Os únicos que pareciam sentir falta dela, além de
Russell Letson, eram os vaqueiros contratados, os peões que costumavam
ir à cidade em busca de diversão. Mas, pelo que Molly ouvira, ainda
existiam muitas jovens dispostas a ocupar o lugar que Pearl deixara vago.
Os meninos pegaram os livros e saíram cinco minutos antes do
horário em que o ônibus passava na entrada da fazenda. Molly levou os
pratos sujos para a pia e deixou-os de molho na água quente.
— Também já estou saindo — disse Sam, pegando o chapéu. Parou
na soleira da porta. — Prepare o jantar somente para os meninos, hoje.
Alguma coisa fácil.
Ela franziu a testa.
— E quanto a nós?
— Nós vamos jantar fora.
Eles saíam tão raramente que a ideia a deixou confusa.
— Onde? E por quê?
— Vamos jantar e, depois, ao cinema.
As finanças não estavam permitindo todo aquele luxo.
— Mas, Sam...
— Sem discussões. — Ele sorriu e toda resistência dela dissolveu-se.
— Estamos comemorando alguma coisa especial? O sorriso dele
alargou-se.
— Sim, mas ainda não sei o que é. Que tal comemorarmos o fato de
que amo você? Não é um bom motivo?
Ela fez que sim, sentindo uma estranha vontade de chorar. Sam saiu
em seguida e, na quietude da manhã, com o sol erguendo-se sobre as
colinas, Molly sentou-se à mesa com uma xícara de café e uma torrada.
Apenas um gole de café provocou-lhe náuseas novamente. Surpresa,
pousou a mão sobre o abdômen, enquanto os olhos voavam para o
calendário pendurado perto do telefone.
Levantou-se e voltou a página do calendário para o mês de setembro,
lendo as anotações que fizera: lembretes de consultas ao dentista,
reuniões com o grupo de mulheres da igreja, reunião de pais e mestres na
escola de Clay. Havia também aquela noite terrível em que Sam fora
detido pelo xerife. E, depois, eles haviam feito amor sem nenhuma
proteção... a única vez.
Seria possível que estivesse grávida porque não tomaram cuidado
uma só vez?
Seu estômago deu-lhe a resposta que precisava. Ela desfrutara de
ótima saúde quando estivera grávida de Tom e Clay, mas durante os dois
primeiros meses sofrerá frequentes ataques de náuseas. Até se vira
forçada a desistir do café, pois o simples cheiro era o bastante para fazê-
la vomitar. Nas duas vezes.
Molly nem precisava consultar um médico para confirmar o que já
sabia.
Ela estava grávida.
Russell estava sentado na escuridão de seu chalé, segurando um
copo de uísque. O gelo derretera há muito tempo e diluíra a potência da
bebida. Ele desejava ser o tipo de homem que gosta de beber, pois assim,
talvez pudesse afogar no álcool a dor profunda que esmagava-lhe o peito,
ao menos por algum tempo. Precisava de apenas algumas horas de paz,
para que pudesse dormir.
Desde que ficara sabendo da morte de Pearl não conseguira dormir
por uma noite inteira. Acordava várias vezes, quase de hora em hora. Os
pesadelos, o pesar e a tensão o assombravam- no instante em que
fechava os olhos. E quando finalmente a exaustão o empurrava para um
sono inquieto, ele acordava de repente, com os gritos de Pearl ecoando
em seus ouvidos. Mas era mais provável que fossem seus próprios gritos.
O xerife ligara na noite anterior para lhe relatar a mais recente
descoberta. E, embora Russell não tivesse nenhuma conexão oficial com a
investigação do crime, recebera permissão para ir ao local.
Depois disso, não lhe restavam mais dúvidas de que os restos mortais
encontrados fossem de Pearl. A cova rasa fora revirada por animais
selvagens e os ossos humanos espalhavam-se num raio de cerca de
trezentos metros. Depois de passar quase uma hora no local, ele se
dirigira para o chalé. Não estivera ali desde a morte de Pearl, pois o lugar
guardava lembranças demais, sofrimento demais. Ainda não sabia se
estava preparado para enfrentar isso tudo, porém sentia-se exausto e o
chalé ficava mais perto do que a cidade. Ali, pelo menos, não teria de
falar com ninguém.
Se pudesse voltar no tempo, havia tantas coisas que faria de maneira
diferente. Os arrependimentos acumulavam-se a ponto de tornarem-se
insuportáveis.
Russell sentiu os dedos adormecidos pelo frio e levou o copo aos
lábios, bebendo o conteúdo num só gole.
Logo se sentiu embriagado, mas não o bastante. Um de seus amigos,
oferecendo-se para ajudá-lo a superar o momento difícil, dera-lhe um
frasco de comprimidos para dormir. Russell não quis usá-los, mas agora
estava tentado. Permanecera a noite inteira acordado, depois do
telefonema de Maynard a respeito do que os caçadores tinham
encontrado. Naquela manhã, no bosque, ficara olhando enquanto os
policiais resgatavam os restos de Pearl e os atiravam num saco de lixo.
Aquela visão havia destruído de uma vez todas as migalhas de paz que ele
conseguira juntar nas semanas que se seguiram à morte de Pearl. Retirou
o frasco do bolso e pegou dois comprimidos.
Dormir. Ele seria capaz de vender a alma por uma única noite de
sono. Engoliu os comprimidos sem pensar duas vezes, e logo a
combinação da droga com o álcool começou a produzir o efeito desejado.
Russell foi para o quarto, tirou as roupas e jogou-se na cama, de
costas para a parede. Depois, reunindo todas as suas forças, levantou-se
novamente apenas o bastante para puxar a colcha e enfiar-se entre os
lençóis. Quase imediatamente seus pés descalços esbarraram numa
camisola de seda.
De Pearl. Da última vez que estivera ali.
Invadido por uma dor insuportável, pegou a camisola cor de pêssego
e prendeu-a junto ao coração. Fechou os olhos, esperando pelo
abençoado esquecimento do sono.
Quando acordou, o quarto estava frio e escuro, tão escuro que era
impossível enxergar qualquer coisa. A camisola que ficara apertando
contra o peito estava agora enrolada em torno dele. Russell atirou-a para
longe e cobriu os olhos com as mãos.
Enquanto permanecia assim, de olhos fechados, sentiu um perfume
de rosas penetrando no quarto, o perfume francês que Pearl adorava. Sua
necessidade por ela era tão grande que seus sentidos chegaram ao ponto
de criar a ilusão, numa tentativa de aliviar a saudade desesperada pela
mulher que perdera.
O persistente aroma de rosas ficou ainda mais forte. Russell sabia
que no instante em que abrisse os olhos, o perfume desapareceria, e
estava determinado a aproveitá-lo o máximo que pudesse. Era apenas
uma fantasia, qualquer coisa assim, mas ele não se importava. Não se isso
o aproximasse de Pearl por um minuto que fosse.
Uma dor profunda comprimiu lhe o peito e ele imaginou o que diria a
Pearl, se tivesse a chance de falar com ela pela última vez. Mesmo
sabendo que estava morta, podia fingir que encontrava-se ali, com ele.
Queria tê-la deitada ao seu lado, como ficaram tantas vezes no passado.
— Lamento tanto, Pearl — sussurrou a voz trêmula de emoção.
— Nós poderíamos ter conseguido...
O perfume pareceu ficar ainda mais forte.
Russell manteve os olhos cerrados enquanto lutava para apagar da
mente o horror dos últimos minutos que Pearl passara na terra. Eram
aqueles os pensamentos que mais o atormentavam, durante semanas. Ela
devia ter sentido muita dor, um medo terrível. E ele esperava de todo
coração, que não tivesse se entregado passivamente, que tivesse lutado
pela sua vida. Bom Deus, não conseguia mais suportar tais pensamentos.
Uma parte dele morria junto com ela, cada vez que imaginava os seus
instantes finais.
Devia ter adormecido, porque quando recobrou novamente a
consciência já era dia. O sol penetrava no quarto por entre as pesadas
cortinas. A camisola de Pearl continuava junto ao travesseiro, onde ele a
jogara. Sentando na cama, Russell pegou-a e, mais uma vez, levou-a ao
coração. Acariciava o tecido macio, desejando mergulhar no aroma
perfumado. Mas o delicado perfume de rosas, assim como Pearl, havia
desaparecido.
Sam estava definitivamente satisfeito. As preocupações com dinheiro
o atormentaram por quase um mês, desde que os preços da carne haviam
sofrido uma queda recorde. Os fazendeiros não tinham condições de criar
o gado no atual clima econômico. Com aquele preço, na verdade tinham
de pagar para produzir a carne.
Foram estes os tópicos discutidos na reunião dos criadores de gado.
Depois, em grupo, haviam levado suas preocupações diretamente ao sr.
Burns, presidente do banco. Parecia que o banqueiro se tornava um
pouco mais ansioso em ajudá-los, quando deparou-se com todos os
fazendeiros da região fazendo retiradas em massa de seus fundos.
Quando saíra de casa de manhã, Sam impulsivamente combinara um
jantar com Molly. Naquela hora, não havia nada para ser comemorado.
Mas, agora, havia. Tinha conseguido o empréstimo e, embora os termos
não fossem os melhores, era a primeira boa notícia em bastante tempo.
— Não vai me contar? — Molly perguntou, no outro lado da mesa.
Ela mal examinara o cardápio.
— Tudo no seu devido tempo — ele disse, sorrindo. Molly estava
especialmente bonita naquela noite, e Sam imaginava se conseguiria
manter os olhos afastados dela o bastante para comer.
— Sam, eu juro que não vou conseguir relaxar e divertir-me antes de
saber o que aconteceu na reunião.
Não havia como evitar. Sam preferia manter o suspense por mais
tempo, no entanto... O sorriso dele alargou-se, demonstrando o tamanho
de sua satisfação.
— Conseguimos o empréstimo — anunciou, finalmente. Molly fechou
os olhos e levou a mão aos lábios.
— Ah, Sam!
— Os termos do contrato não são tão bons assim — ele sentiu-se na
obrigação de acrescentar.
— Mas pelo menos teremos o dinheiro que precisamos agora, certo?
Ele assentiu e pegou-lhe a mão sobre a mesa.
— Teremos de quitar a primeira metade no dia primeiro de
dezembro.
Ela continuava a fitá-lo.
— Tão cedo?
— Não estou preocupado com isso, pois até lá terei vendido a última
parte do rebanho. Mesmo se os preços da carne permanecerem baixos
como estão, não teremos problemas em pagar no vencimento.
Molly recostou na cadeira e o alívio que Sam viu em seus olhos
deixou-o surpreso. Não fazia ideia de ela estivera tão preocupada. Molly
era uma pessoa impetuosa e determinada, e havia mantido em silêncio
todas as suas dúvidas e temores, ao invés de pressioná-lo ainda mais.
Sam a amava por isso; ao mesmo tempo, entristecia-se por ela ter
suportado tudo sozinha.
Agitada, ela tentou afastar a emoção.
— Desculpe, não sei o que deu em mim.
— Tudo vai dar certo, Molly. — Sam queria lhe garantir que, não
importava o que acontecesse, eles dariam um jeito. Encontrariam uma
saída.
— Eu sei. Só que... — Sentindo as lágrimas surgirem pegou a bolsa
até encontrar o que queria. Um lenço de papel. Enxugou os olhos e
guardou o lenço novamente na bolsa. — Você teve chance de conversar
com Tom? — perguntou, num esforço evidente para mudar de assunto.
Piscou várias vezes, tentando evitar novas lágrimas.
— Ele chegou em casa na hora em que eu estava saindo.
— Pois ele também tem boas notícias — Molly contou.
— Sobre o time de futebol?
Apesar de ser um tanto magro e alto demais, Tom se revelara um
excelente recebedor no time de futebol americano. Brian Tucker fizera
dele seu recebedor favorito e em pouco tempo Tom avançara na
escalação do time, uma raridade para um calouro. E, embora não se
sentisse no direito de ter orgulho do progresso de Tom, Sam não tinha
como evitar. Sentia muito orgulho do rapaz.
— A propósito, descobriram quem foi o responsável pela pichação
das paredes — Molly acrescentou.
— Quem foi?
— Tony Hudson.
O nome não significava nada para Sam.
— Aluno da escola?
— Sim, do último ano. O próprio Sr. Wilson pegou-o em flagrante.
— Mas por que ele faria uma coisa dessas? — Sam calculava que
alguém, talvez Tony, havia armado uma cilada para Tom propositalmente.
Só podia ser isso ou então uma coincidência, o que na opinião de Sam era
o menos provável.
— Tantos jovens estão envolvidos com gangues, hoje em dia — Molly
falou.
— E tantos outros desejam estar. E assustador.
— Até mesmo aqui, em Sweetgrass? — Sam achava a ideia um tanto
impossível.
— O Sr. Wilson parece acreditar que sim. Sam considerou o assunto
por um instante.
— Tony falou alguma coisa em sua própria defesa? Molly riu.
— Acho que o garoto vai precisar de um advogado, pois sua defesa é
quase ridícula. Ele afirma que alguém o contratou para pichar as paredes.
Sam enrijeceu. —Quem?
Molly balançou a cabeça diante da improbabilidade de tal afirmação.
— Alguém deveria procurar Russell, não acha?
Sam sorriu, mas não achou graça. Com tudo o que acontecera na
fazenda naquele verão, achava melhor levar a sério toda e qualquer
possibilidade. Qual seria a maneira mais eficiente de desencorajar e
enfraquecer um fazendeiro do que atacar os filhos dele? Já era bastante
difícil proteger as terras e o gado, mas agora Sam percebia que precisava
pensar também nos meninos. A melhor tática seria conversar com eles
diretamente, de homem para homem.
— Você ficou sério, de repente — Molly falou, com a felicidade
transparecendo em seu sorriso. — Esta noite era para deixarmos as
preocupações de lado e desfrutarmos da companhia um do outro,
lembra-se?
— Eu mesmo não teria me expressado melhor.
— Ah, antes que eu me esqueça: inscrevi você como voluntário no
Festival da Colheita da escola.
Sam gemeu, numa bem-humorada resignação. Durante toda a
semana Tom e Clay haviam brincado com ele sobre esta festa, duvidando
que Sam se dispusesse a participar. Sam não sentia-se muito à vontade
com a ideia e quase esperava que não se concretizasse.
— Tudo bem — suspirou. — O que terei de fazer?
— Ora, não me olhe desse jeito!
Sam começou a rir e, diante do sorriso intrigado de Molly, explicou:
— E que você acabou de falar como uma esposa.
— Mas sou uma esposa, caso não tenha percebido. Sam ainda se
assustava com aquela nova sensação de
pertencer a uma família, de fazer parte da vida dos meninos. Um
homem de família. Um membro da comunidade. Duas horas numa
barraca do Festival da Colheita seria um preço pequeno a pagar por tudo
isso.
— Sam.
Dick Arnold aproximou-se da mesa e Sam levantou-se para
cumprimentá-lo. Depois, apresentou o fazendeiro à Molly.
— Queria agradecer por tudo o que você falou esta manhã — disse
Dick.
— Diabos, se não fosse por você, não sei o que teríamos feito. Não há
dúvida de que você nos ajudou a manter as coisas nos trilhos. Obrigado
por isso, Sam, e estou falando em nome de todos os fazendeiros.
Sam ficou mudo, perplexo. Não estava acostumado a lidar com
elogios. Eles o deixavam embaraçado. Preferia que Dick tivesse falado com
ele em particular, em vez de na frente de Molly.
Finalmente, respondeu:
— Fico contente por termos chegado a uma solução satisfatória.
— Sim, mas foi você quem nos convenceu a fazer pressão como um
grupo unido. Depois da reunião, houve quem sugerisse seu nome para
presidente no ano que vem. Você poderia considerar a ideia de
concorrer? Precisamos de alguém assim, de cabeça aberta e um bom
sentido de liderança. — Dick fez uma pausa e deu um risinho. — Escute,
não pretendia interromper o seu jantar. Só queria cumprimentar sua
esposa e dizer obrigado. — Tocou a aba do chapéu.
— Muito prazer em conhecê-la, senhora — disse à Molly, antes de
virar-se e sair.
Sabendo que Molly estava prestes a enchê-lo de perguntas
desnecessárias, Sam pegou o cardápio. No instante seguinte a garçonete
apareceu e os dois fizeram os pedidos. Sam ficou um pouquinho
desapontado quando Molly recusou uma taça de vinho, pois achou que a
bebida acompanharia bem o jantar.
— Então, conte-me o que terei de fazer no Festival — ele disse,
direcionando a conversa para o ponto onde haviam parado.
— Fritar hambúrgueres entre as seis e sete horas. Ele emitiu um
gemido exagerado.
— Vou estar trabalhando na máquina de algodão doce no mesmo
horário — Molly acrescentou, como se precisasse provar que cumpriria
sua parte. —A Sra. Mayfield é uma especialista em fazer com que as
pessoas trabalhem juntas para um bem comum.
— E quem, se me permite perguntar, é a sra. Mayfield?
— E a regente do coro da igreja. Está coordenando a festa, este ano.
Sam resmungou baixinho, mas na verdade não se importava. Ao
contrário, estava ansioso em participar, em passar algumas horas fritando
hambúrgueres. Nada mau, para um homem que um dia havia temido
tanto o futuro.
A música do realejo funcionava como trilha sonora. Todo o páteo dos
fundos da escola adquirira uma atmosfera festiva. As crianças corriam
para dentro e para fora do ginásio de esportes, onde gastavam seus
tíquetes com jogos tão populares quanto a pesca e as argolas.
Molly estava ocupada enrolando tiras de algodão doce em torno dos
palitos de plástico. O doce rosado e melado enfeitava suas roupas e
grudava-se em seus cabelos.
Sam preparava os hambúrgueres numa barraca ali perto,
conversando com os vizinhos como se tivesse morado naquela cidade
durante toda sua vida.
De vez em quando, Molly erguia os olhos para vê-lo sorrindo e
trocando cumprimentos com algum fazendeiro. Ouvira as outras mulheres
comentando que o discurso de Sam na reunião da Associação dos
Criadores de Gado havia incitado os homens à ação. Isso fazia com que
sentisse orgulho de ser sua esposa.
Uma lua cheia e amarela iluminava o céu noturno. Estava frio, mas
Molly não se incomodava. Risos de alegria eram ouvidos em toda parte,
mesclados com gritos ocasionais vindos da Casa Mal-Assombrada. O Sr.
Wilson, diretor da escola, passou por ela e lhe apresentou a esposa. O Sr.
Givens, da loja de ferragens, comprou algodão doce para os netos. Ele
havia doado dois fardos de feno e cem moedas de um centavo para a
brincadeira de "procurar as moedas", marcada para as sete horas.
Tom e Clay haviam desaparecido no instante em que chegaram, com
a firme intenção de evitar serem vistos com os pais. Sam dera a cada um
uma quantia suficiente para que comessem alguma coisa, porém Molly
tinha certeza de que o dinheiro seria gasto somente em guloseimas, ou
seja, nada que ela considerava comida de verdade.
Quase ao final do turno de Molly, Russell Letson parou na barraca e
comprou um algodão doce, que deu de presente a um garotinho que
insistia para que a mãe comprasse. Molly sempre soubera que existia uma
bondade intrínseca no advogado, uma certa delicadeza. Ele parecia mais
quieto e introvertido do que antes, mas também mais em paz consigo
mesmo.
— E bom tornar a vê-la, Molly.
— Digo o mesmo.
— Você está feliz?
Não era uma pergunta que ela esperava ouvir dele.
— Sim, muito.
— Fico realmente contente em saber. Walt estava certo, sabia? Sam é
mesmo um bom homem.
— Também acho.
Russell assentiu e, acenando de leve, seguiu na direção de outra
barraca.
— Mamãe! — Ofegante Tom apareceu correndo, minutos depois.
— Não consigo encontrar Clay! Em lugar nenhum!
— Tenho certeza de que ele está por aí. — Molly perscrutou os
arredores, em vão.
Casamento em Montana
— Já olhei em toda parte! Mamãe, aconteceu alguma coisa com ele!
— Tom...
— Já faz mais de uma hora que ninguém o vê. Procurei em todos os
lugares, todo mundo procurou.
— Ora, Tom, ele deve estar sentado em algum canto, talvez
brincando com um cachorro ou qualquer outra coisa.
— Você não acreditou em mim da outra vez!
— Tom gritou, agarrando-lhe o braço. — Por favor, acredite em mim
agora.
Molly sentiu um frio percorrer lhe a espinha.
— Já faz uma hora, mãe. Estou procurando há uma hora! Tom estava
quase em pânico. Molly nunca o vira assim.
Encarou-o por um instante, antes de dizer:
— Vou chamar Sam.
CAPÍTULO 17
Sam detectou o medo nos olhos de Molly antes mesmo de ficar
sabendo que Clay havia desaparecido.
— Ora, ele deve estar em algum lugar por aí — disse, confiando que o
garoto tivesse apenas saído com os amigos.
— Foi o que pensei, também — disse Tom, agarrando-o pela manga
da camisa. — Mas já procurei por toda parte e falei com todos os amigos
dele. Ninguém o viu. Ninguém. Eu estava guardando o dinheiro dele e
devíamos nos encontrar para que ele o pegasse. Mas Clay não apareceu, e
já faz mais de uma hora.
— Não acha que ele pode estar entretido com alguma coisa e perdeu
a noção da hora? — Sam indagou.
— Poderia ser, exceto por um detalhe: Clay veio duas vezes me pedir
o dinheiro, e eu lhe disse que teria de esperar até as sete e meia, como
tínhamos combinado. Quero dizer, ele estava me atormentando por causa
do dinheiro, mas não apareceu para pegá-lo na hora marcada.
Sam não podia fingir que não estava preocupado.
— E foi então que você começou a procurá-lo?
— Foi. E ninguém o viu.
— Tenho certeza de que há üma explicação perfeitamente lógica para
isso
— Molly repetiu, como se assim pudesse transformar o pensamento
em realidade. Porém, nem precisava ser lembrada de que havia um
assassino à solta em Sweetgrass.
— Você tem razão, deve haver um bom motivo.
— Sam passou o braço pelos ombros da esposa. — Acho que
devemos nos separar e continuar procurando — sugeriu. Olhou no relógio
e acrescentou:
— Iremos em três direções diferentes e nos encontramos aqui em
quinze minutos. Está bem?
Molly e Tom concordaram com um gesto de cabeça. Dois amigos de
Clay queriam ajudar e Sam pediu que olhassem no ginásio de esportes.
Temendo que o garoto tivesse sido atraído para o estacionamento, Sam
encaminhou-se naquela direção. Pegou uma lanterna em sua picape e foi
andando lentamente através das fileiras de veículos estacionados.
Chamou pelo nome de Clay repetidas vezes e depois de dar uma
volta completa no estacionamento, sem nenhum sucesso, retornou ao
ponto de encontro. Molly e Tom já estavam à sua espera e, pela
preocupação estampada em seus rostos, soube que também não haviam
encontrado nenhum sinal de Clay. Um nó de medo formou-se em seu
estômago. Embora não quisesse alarmar sua família, ele sentia-se mais
apreensivo a cada minuto que passava.
Esta era a pior coisa que já acontecera, e era difícil acreditar que não
tivesse nenhuma relação com os outros incidentes. Sam não conseguia
suportar a ideia de que Clay pudesse estar correndo perigo. E, se alguma
vez ele se visse obrigado a provar seus sentimentos pelos filhos de Molly,
a tensão que lhe pressionava o peito não deixava a menor dúvida.
— Mamãe!
Ao som da voz de Clay, Molly girou o corpo. O menino corria em sua
direção, as pernas movendo-se freneticamente. Assim que alcançou-a,
prorrompeu em lágrimas, abraçando-a como se nunca mais quisesse
soltá-la.
— Onde você estava? — Tom perguntou pálido de raiva e
nervosismo.
— Alguém me pegou — Clay respondeu ofegante, ainda colado à
mãe. O rosto estava todo sujo e marcado por lágrimas.
— Quem? — Sam indagou, ajoelhando-se para ficar nô mesmo nível
que o menino. Segurou-o pelo braço, esperando a resposta.
— Eu... Não sei. Não vi quem foi exceto que ele usava botas do
exército e um dos cordões estava arrebentado. Ele enfiou um saco de
pano na minha cabeça e me levou embora. Eu não conseguia enxergar
nada! Então, ele me jogou no porta-malas de um carro e me trancou lá
dentro!
— Meu Deus! — Molly ofegou.
— Eu gritei, fiquei dando chutes, mas ninguém apareceu. Ninguém
me escutou. — Clay fez um valente esforço para não recomeçar a chorar.
— No início, pensei que fosse Tom.
— Eu nunca faria uma coisa dessas! — o irmão defendeu-se,
ultrajado.
— Sei que não — Clay falou. — Depois, pensei que ele quisesse meu
dinheiro, mas eu já não tinha mais nada e, além disso, o homem nem
perguntou.
— Você ouviu a voz dele?
— Não, mas ele era grande, forte e...
— Você disse que não o viu — Sam lembrou.
— Não vi mesmo, mas quando ele me pegou era como se eu não
pesasse quase nada, e depois, quando o chutei, ele nem gemeu de dor.
— Como conseguiu escapar? — Molly perguntou trêmula.
— Eu... .eu não sei. Alguém abriu o porta-malas, me puxou para fora
e desamarrou minhas mãos. Depois, falou uma porção de palavrões. Na
hora em que tirei o saco de pano da cabeça, ele já havia desaparecido.
Mas fiquei com medo que mudasse de ideia e voltasse, então saí
correndo.
— Acho melhor relatarmos isso tudo ao xerife — Sam falou, sentindo
uma onda de raiva e revolta invadi-lo. Primeiro, aquele incidente com
Tom, e agora isso. Pousou a mão sobre o ombro de Clay, num gesto
protetor.
— Não! — Clay gritou. — Eu não gosto do xerife Maynard. Deus sabia
que Sam também não simpatizava muito com
o xerife, mas não deixaria o incidente passar em branco. Alguém
tentara raptar o seu filho e, deixando de lado seus sentimentos pessoais,
Sam não iria permitir que nada acontecesse aos meninos. Por nada neste
mundo.
— Vamos falar com o xerife — Molly afirmou, num tom de quem não
admitiria argumentos em contrário.
Encontraram Maynard sentado numa das mesas de piquenique do
parque, comendo um hambúrguer. Ele não parecia muito disposto a ser
incomodado, porém isso não deteve Sam.
Relatou rapidamente a tentativa de sequestro. O xerife ouviu com
atenção e tomou nota dos detalhes.
— Eu gostaria de conversar com Clay — disse, então.
— Tudo bem — Sam concordou.
O xerife limpou as mãos num guardanapo de papel e levantou-se.
Parou por um instante, voltando-se para Sam.
— Nós começamos com o pé esquerdo, Sam, e parece que tirei
conclusões apressadas a seu respeito. Não são muitos homens que
conseguem dar a volta por cima, mas parece que este foi o seu caso. Eu
me enganei sobre você. E, se estiver disposto, gostaria de deixar o
passado para trás.
Sam assentiu, atônito com a disposição do xerife de esquecer as rixas
passadas.
Maynard estendeu a mão e Sam apertou-a.
Um tumulto irrompeu na direção do campo de futebol, onde o feno
havia sido espalhado para o jogo de "caça à moeda". O xerife
encaminhou-se para lá, e Sam o seguiu de perto. Um grupo de
adolescentes formava um círculo em torno de dois jovens atracados numa
briga. Envolvidos demais na luta e na gritaria, ninguém percebeu a
aproximação do xerife. E não demorou muito para que Sam reconhecesse
o menor dos dois garotos que lutavam.
Seu primeiro impulso foi o de adiantar-se e separar a briga, mas sabia
que Tom não gostaria de sua interferência, e tampouco queria deixá-lo
envergonhado. Esperava que o xerife tomasse a iniciativa mas, para sua
surpresa, o policial ficou observando a cena por alguns minutos, sem
nada fazer.
— As vezes é melhor deixar que eles resolvam seus próprios assuntos
— ele disse, mastigando um palito de dentes. — Se for necessário eu
interrompo.
Sam não estava certo se concordava com tal ponto de vista,
principalmente vendo que o outro rapaz era bem maior e mais pesado do
que Tom. Porém, a agilidade de Tom compensava sua inferioridade física.
Ele recebeu um sólido soco no rosto e Sam encolheu-se, sabendo que
aquilo resultaria num belo olho roxo. Então, Tom acertou um soco no
estômago de seu oponente, que perdeu o equilíbrio e quase caiu para
trás, segurando a barriga. Depois disso, o xerife entrou na confusão.
— Muito bem, muito bem — disse, cuspindo o palito. — Já chega.
Vamos parar por aqui. — A pequena multidão dispersou-se e o xerife
segurou os dois garotos pelo colarinho. — Vocês dois já acertaram as
contas, entenderam bem?
O nariz de Tom estava sangrando, e o olho já começara a inchar.
— Agora, apertem as mãos e tomem seus rumos. Nenhum dos dois
estava disposto a estender a mão.
— Vamos colocar as coisas desta maneira — o xerife falou,
calmamente.
— Ou vocês apertam as mãos, ou vou levá-los para a delegacia,
indiciá-los por perturbação da ordem e premiá-los com uma bela multa.
Vocês escolhem.
Tom e seu oponente trocaram um relutante aperto de mão.
— Ótimo. Agora sumam daqui, e se eu os apanhar brigando
novamente terão de se ver comigo. Entenderam bem?
Tom baixou a cabeça e assentiu. E, conforme a platéia se dispersava,
Sam correu até ele.
— Quer me contar o motivo disso? — perguntou, entregando um
lenço a Tom.
O rapaz balançou a cabeça, em negativa.
— Tudo bem, você é quem sabe. Nós já conversamos a respeito
destas brigas, e se você escolheu enfrentar alguém maior e mais forte que
você deve ter sido por um bom motivo. Se não quer falar sobre o assunto,
respeito sua decisão.
Tom apertou o lenço contra o nariz e olhou para Sam.
— Aquele é Tony Hudson.
O nome soava vagamente conhecido. Sam precisou de um instante
para lembrar-se de que Tony Hudson era o rapaz que pichara as paredes
da escola.
— Acho que ele também tem algo a ver com o que aconteceu hoje
com Clay
— Tom murmurou. — Eu não podia deixar que ele escapasse sem
receber o que merecia.
Sam fez uma leve pressão no ombro de Tom. Compreendia bem
aquele anseio masculino de proteger o que era seu, incluindo a própria
reputação, que Tony Hudson tentara destruir. Embora Sam não aprovasse
a luta física, não iria fazer um sermão para Tom. Franziu a testa, ao
adivinhar a reação de Molly quando visse o rosto inchado do filho.
De fato, bastou que ela desse uma olhada em Tom para que cobrisse
a boca evitando um gritinho de susto e o cumulasse de perguntas:
— Você está bem, Tom? Como está seu olho? Quem provocou a
briga?
— Parou um instante para respirar.
— O que está acontecendo com você? — gritou, e depois virou-se e
encarou Sam com desgosto, como se ele fosse pessoalmente responsável
pela briga.
— Molly...
— Fique fora disso, Sam. Como pôde ficar parado e permitir que isso
acontecesse? — ela disparou. — Eu vi você, parado ali, encorajando-o. —
Girando de costas para ele, segurou o queixo de Tom e fez com que ele
levantasse a cabeça, sem muita delicadeza. — Deixe-me ver este olho.
— Ofegou, ao verificar o quanto estava inchado, e olhou novamente
para Sam.
— Estou decepcionada com você, Thomas. Muito decepcionada.
— Ah, mãe. Sam entendeu porque fiz isso. Por que você não
entende?
Molly enviou ao marido um olhar capaz de transformá-lo em pedra.
Empurrou os dois filhos na direção do carro e deixou que Sam decidisse
se queria segui-los ou voltar para casa sozinho.
Sam tinha a impressão de que não terminaria aquela noite da
maneira como planejara, isto é, fazendo amor com a esposa. Pelo rumo
que as coisas estavam tomando, teria muita sorte se ela lhe desse ao
menos um beijo de boa-noite.
Depois que o médico confirmou o que Molly já sabia, ela deu-se
conta de que o passo seguinte seria contar a Sam. Havia planejado fazer
isso na noite do Festival da Colheita, mas tudo acabara dando errado.
Primeiro, o desaparecimento de Clay, seguido da briga de Tom. Molly
ficara furiosa com Sam, afirmando que a influência dele sobre seu filho o
induzira a resolver um desacordo com os punhos. O olho dele inchara
tanto que quando chegaram em casa Tom nem conseguia mais enxergar.
Molly odiava a violência. Toda vez que via o olho machucado do filho
tinha de resistir à vontade de chorar. Ela havia chorado naquela noite, e
as lágrimas chegaram surpreendendo-a. Mas isso também acontecera nas
outras duas vezes em que estivera grávida. No instante em que
engravidava, as emoções pareciam brotar sem qualquer pretexto, e ela
chorava nas horas mais impróprias. Comerciais de tevê em que apareciam
crianças e cachorrinhos, por exemplo, a faziam chorar. Filmes comoventes.
Chorou até quando ganhou no bingo do rádio. Era de se espantar que
Sam não tivesse percebido, mas a experiência lhe dizia que os homens
eram um tanto obtusos quando se tratava deste tipo de coisa.
Assim, depois de tudo o que aconteceu na noite do festival, Molly
sentiu que não era o momento de anunciar que estava grávida. E nem nos
dias que se seguiram. Dizem que os problemas sempre chegam em trio, e
foi exatamente o que aconteceu com eles.
Primeiro, a picape de Sam quebrou e ele ficou sabendo que precisava
trocar o transmissor. Apesar de ele próprio ser capaz de fazer o conserto,
as peças custariam mais de cem dólares. Tratava-se de uma quantia que
não tinham condições de dispor, mas Sam precisava da caminhonete.
Depois, foi um enorme vazamento que apareceu no telhado,
estragando parte do forro do quarto de Clay. Sam teve de subir no teto
escorregadio no meio de um horrível temporal para estender uma lona
plastificada no local do vazamento. Mas isso fora apenas uma medida de
emergência, pois todo o telhado precisava ser trocado, e não poderiam
adiar o serviço por muito mais tempo. Os consertos que haviam feito no
início daquele ano foram somente temporários.
— Terei de fazer uma consulta de preços para a reforma do telhado
— Sam havia dito ao descer do teto, molhado até os ossos.
Nem seria necessário dizer que um telhado novo custaria uma
fortuna. Tremendo de frio, ele tomou um banho quente e depois foi para
a cozinha, onde passou a analisar novamente as finanças enquanto bebia
uma caneca de café. E, é claro, aquele não era o melhor momento para
Molly lhe contar que estava grávida.
Finalmente, depois de toda aquela chuva parecia impossível que o
poço de onde retiravam a água secasse, mas foi o que aconteceu na
semana seguinte. Sam parecia ter levado um soco no estômago quando
soube quanto custaria perfurar um novo poço. E, mais uma vez, era algo
que não poderia ser adiado.
Enfim, Molly não tinha coragem de acrescentar mais uma
preocupação a tantas que ele acumulava, dizendo que estava grávida.
Calculou os custos e concluiu que, com as despesas médicas e
hospitalares, ter um bebê custaria a eles várias centenas de dólares. Isso
sem incluir os móveis para um quarto de bebê, as roupas e muitos outros
pequenos detalhes. Desta forma, guardou a notícia consigo mesma,
lutando para ocultar os enjôos matinais e a falta de apetite. Sua
emotividade era outra coisa. Sam presumiu que suas mudanças de humor
deviam-se às preocupações com dinheiro, e ela deixou que continuasse
acreditando nisso.
Ginny foi a primeira a adivinhar.
— Sam ainda não sabe — Molly disse à vizinha enquanto tomavam
um chocolate quente, na primeira semana de novembro.
— Você consultou o dr. Shaver? Molly fez que sim.
— Ele passou-me uma quantidade de vitaminas suficiente para
engasgar um cavalo. E não custam barato, também.
— Molly fazia o possível para esticar ao máximo o dinheiro das
compras da casa.
— Mas não deixe de tomá-las, ouviu bem?
— Ginny insistiu.
— E claro. — Molly não hesitava em fazer o que fosse necessário para
uma gravidez saudável. — Só não queria acrescentar mais este peso à
nossa atual situação financeira
— explicou.
— Você está encarando a situação do jeito errado — Ginny
resmungou, dando uma palmadinha na mão de Molly.
—Esta é exatamente a notícia que ele está precisando. Aquele seu
marido está carregando o peso do mundo sobre os ombros. Mas aposto
que, quando você lhe der a notícia, ele ficará tão feliz que ouvirei os
gritos dele lá da minha fazenda. Sam vai ficar muito orgulhoso, Molly.
Espere só para ver.
Molly mordiscou o lábio, querendo acreditar em Ginny.
— Acha, mesmo?
A senhora não expressou a menor dúvida.
— Tenho certeza.
Aceitando o conselho da amiga, Molly planejou uma noite perfeita.
Deixou que Tom e Clay fossem passar a noite de sexta-feira na casa de
amigos, comprou uma bela peça de carne e uma garrafa pequena de
champanhe. Somente uma taça não faria mal ao bebê, decidiu, e faria um
bem imenso à mãe.
A champanhe estava no gelo e o rosbife no forno, quando Sam
entrou pela porta dos fundos, parecendo exausto. Nem reparou que ela
arrumara a mesa da sala de jantar, usando a louça que normalmente
reservava para os feriados e ocasiões especiais. Tampouco pareceu notar
que os meninos não estavam em casa, e que havia apenas dois pratos na
mesa.
— O que tem para o jantar? — perguntou, aspirando o aroma que
espalhava-se pela cozinha enquanto encaminhava-se para o banheiro.
— Rosbife — ela disse ansiosa em surpreendê-lo com uma refeição
especial.
— O cheiro está ótimo.
Molly esperou que ele entrasse no banho antes de reunir-se a ele sob
o chuveiro. Sam enviou-lhe um olhar espantado, quase como se nunca a
tivesse visto nua. Mas o espanto logo se transformou num sorriso de
boas-vindas, e deu-lhe espaço sob a água quente.
— Pensei em esfregar lhe as costas — ela disse, pegando a esponja e
o sabonete.
Ele hesitou. — E o jantar?
Molly suspirou. Sam não era nada romântico, mesmo.
— Está no forno.
— Mas os meninos...
— Eles vão passar a noite na casa dos amigos. Estamos sozinhos, meu
bem. Só nós dois.
Um sorriso iluminou o rosto dele.
— Por que não me disse logo?
Enquanto a água jorrava sobre eles, Sam fez com que ela se apoiasse
na parede do box e colou os lábios nos dela. Molly abraçou-o pelo
pescoço e as mãos dele deslizaram por todo seu corpo, até alcançarem os
seios.
Aquilo era o paraíso, ela pensou. Aqueles momentos de carícias e
intimidade com seu marido. Trocaram beijos leves e doces, que tornaram-
se cada vez mais eróticos, mais intensos. Ela mal reparou que a água
começava a esfriar um pouco. Deixou a esponja e o sabonete caírem ao
chão, sabendo que não conseguiria negar nada a ele.
Molly havia planejado uma longa e lenta sedução, porém Sam não
estava interessado nisso. Logo Molly viu-se presa contra os azulejos da
parede, com as pernas apoiadas em torno da cintura dele, pronta para
recebê-lo.
No entanto, erguida como estava, a água do chuveiro batia direto em
seu rosto e ela quase se afogava.
— Sam... — balbuciou, tentando afastar o rosto, lutando para
respirar.
Assim que ele percebeu o dilema, rapidamente mudou de posição, de
forma que ficou de costas para a parede.
— Não creio que seja uma boa ideia... — ela disse, um tanto
arrependida. Com os corpos molhados, sentia-se escorregar cada vez que
ele a abraçava.
— E uma idéia maravilhosa — Sam insistiu, trocando o peso do corpo
dela e segurando-lhe os quadris com mais firmeza.
Mas isso também não deu certo, e logo Molly começou a escorregar
novamente, batendo o tornozelo na porta do box.
— Que droga! — murmurou, irritada. Aquilo não era nada sensual.
Sam resmungou alguma coisa sobre ela estar mais pesada, porém
Molly decidiu ignorar o comentário, ou, mais apropriadamente, esquecê-
lo. Sam recusava-se a desistir e, depois de algum tempo, conseguiram
encontrar uma posição melhor. Sam apoiou os ombros na parede,
enquanto a segurava. A água batia nas costas de Molly, e ela apoiava os
joelhos nos lados do box.
Quando tudo parecia estar dando certo, a água esfriou subitamente,
indo de morna a gelada.
Molly gritou, mas como seu corpo protegia o dele, era óbvio que Sam
não percebera a mudança de temperatura da água.
— Sim, meu bem. Sim... — Os olhos dele permaneciam fechados,
enquanto Molly encolhia-se e se mexia, num esforço para escapar da água
fria.
No entanto, seus movimentos fizeram maravilhas para Sam, que
respirava ofegante, ainda com os olhos cerrados. Finalmente, Molly
conseguiu afastar-se o bastante para permitir que o jato de água gelada o
atingisse direto no rosto.
Sam emitiu uma exclamação de susto, perdeu o equilíbrio e soltou-a
no mesmo instante. Molly caiu sentada no chão, enquanto Sam procurava
a torneira e fechava a água.
A dignidade dela estava muito mais ferida do que seu traseiro mas,
ainda assim, não era nada agradável.
— Você está bem, querida? — Pelo menos ele teve a consideração de
mostrar-se embaraçado.
— Acho que sim. — Como o sabonete derretera, o piso estava
escorregadio e Molly não conseguia se levantar.
Depois de ajudá-la a erguer-se, Sam abriu a porta, saiu do box e
entregou-lhe uma toalha. Assim que ela enrolou-a no corpo, ele pegou a
toalha de rosto e começou a enxugar lhe os cabelos.
A toalha obstruía a visão de Molly, mas isso não parecia preocupar
Sam, que a guiava para fora do banheiro.
— Sam — ela disse —, para onde você está me levando? Ele parou,
como se a pergunta o confundisse.
— Ora, querida, vamos terminar o que começamos.
— Mas...
— Não está querendo parar, não é?
— E que estou com um pouco de frio — ela disse, tremendo.
— Pois vou esquentá-la, prometo. Então, você quer?
— A esperançosa ansiedade que ouviu na voz dele desarmou-a.
Casamento em Montana
— Sempre quero, com você — ela murmurou com doçura.
— Você sabe disso.
Ele recompensou sua disposição pegando-a no colo e carregando-a
até o quarto. Gemeu baixinho, quando aproximava-se da cama.
— Você engordou um pouco, não é?
— Sam — Molly tentava se desvencilhar, mas ele não permitiu.
— Eu estava brincando — sussurrou, cobrindo de beijos quaisquer
protestos que ela pudesse expressar. Pressionou-a contra a cama,
beijando-lhe a curva da orelha. — Ah, meu bem, esta foi a melhor ideia
que você já teve.
Retirando a toalha que cobria o corpo dela, sorriu brevemente sob a
meia luz, depois passou a beijá-la por inteiro. Demorou-se sobre seus
seios, com a língua provocando carícias antes que a boca procurasse
novamente a dela. Beijou-a muitas e muitas vezes, e logo Molly
entregava-se completamente ao ardor do ato de amor.
Depois, Sam prendeu-a entre os braços por alguns minutos, depois
beijou-a levemente na testa.
— Encontro você na cozinha — disse, levantando-se. Molly vestiu-se
e, depois de pentear os cabelos molhados,
foi ao encontro dele.
— Esta é uma noite especial — disse, querendo estabelecer o clima
para anunciar a novidade.
— Nem precisa dizer — ele murmurou, lambendo o dedo que passara
sobre a cobertura do bolo de cenoura feito por ela.
— Não precisava ter tanto trabalho.
— Não foi trabalho nenhum.
Ele ficou imóvel, e Molly reparou que seus olhos procuravam o
calendário na parede.
— Será que me esqueci de alguma data? — perguntou.
— Não, é claro que não.
— E seu aniversário?
— Não!
— Nosso aniversário de casamento é somente em junho, certo?
— Sam, quer fazer o favor de parar com isso?
— Molly tirou o rosbife do forno e deixou-o sobre o fogão.
— Pode abrir o champanhe, se quiser.
— Champanhe?
— Está na mesa. E as taças de cristal estão na sala de jantar.
Ele pegou a garrafa e parecia estar procurando o preço.
— Tudo isso é muito bom, querida, mas não estamos em condições
de comprar champanhe.
— Não foi muito mais caro do que uma garrafa de vinho. Ele
assentiu.
— Sim, é verdade. E, afinal, não fazemos isso todos os dias. Sam
fatiou a carne enquanto Molly levava os pratos para
a mesa e acendia as velas. Depois, ele colocou a travessa com o
rosbife no centro da mesa.
— Isso está maravilhoso — disse, abraçando-a pela cintura e
beijando-a na nuca.
— Obrigada. Eu queria que esta noite fosse memorável.
— Já está sendo memorável. — Sam puxou a cadeira e pegou a
travessa de carne antes mesmo que ela tivesse a chance de sentar.
Molly enviou-lhe um olhar que normalmente reservava aos meninos
e, com um sorrisinho de desculpas, ele deixou a travessa onde estava.
Quando Molly sentou-se e abriu o guardanapo no colo, sorriram um para
o outro. Sam serviu o champanhe e depois a carne, as batatas e a salada.
Durante toda a refeição, Molly ficou esperando pelo momento certo.
Já havia planejado o que queria dizer, esperando, de todo coração, que
Ginny estivesse certa. Tinha até imaginado qual seria a reação dele,
também.
Em sua fantasia romântica, Sam ficaria em silêncio, fitando-a com os
olhos repletos de amor. Então, pegaria a mão dela e diria algo
encantador, sobre como seu amor o modificara para sempre. Sem dúvida
era assim que ela queria que acontecesse, porém a noite não tivera um
início muito romântico, com aquela cena ridícula no chuveiro. Era verdade
que tudo havia melhorado mais tarde e o jantar transcorria muito bem.
Mas aquela seria uma notícia importante e o momento teria de ser
perfeito.
Sam expressou várias vezes sua apreciação pelo jantar. E fez todos os
esforços para demonstrar o quanto gostava da comida que ela preparara,
aceitando uma segunda fatia de bolo na sobremesa.
Ele ajudou-a a tirar a mesa e, enquanto ela fazia o café, ligou o rádio
e sentou na sala, esperando. A programação da rádio local que começava
às nove horas consistia de música suave, clássica e popular. Música
relaxante.
— Preciso lhe contar uma coisa — Molly falou, num temor crescente
de que a noite terminasse antes que tivesse coragem de completar a
missão.
Aquilo não seria fácil, considerando-se o quanto estava nervosa.
Tentou se lembrar de que uma vida nova era sempre motivo de
comemoração, e que ela e Sam se amavam. Ele ficaria feliz, sabia que
ficaria.
Levou a bandeja com café para a sala e deixou-a na me-sinha de
centro.
— Na verdade, é bem provável que você nem fique surpreso —
acrescentou. Estava de costas para ele, servindo o café.
— Sam?
— Humm?
— Eu queria lhe contar que... Silêncio.
Molly virou-se e viu que ele estava sentado na poltrona reclinável,
com os olhos fechados e acompanhando baixinho a música do rádio.
— Sam — ela tornou a dizer.
Vendo que aquele poderia ser o momento pelo qual esperara a noite
inteira, Molly deixou o café de lado e foi aconchegar-se no colo dele. Sam
abraçou-a automaticamente e apagou a luz do abajur, deixando a sala
mergulhada numa agradável penumbra. Não foi difícil para Molly
imaginar seus avós compartilhando um momento especial semelhante,
naquela mesma sala, exatamente como ela estava agora com Sam.
Pressionando a cabeça no ombro dele, Molly beijou-o no queixo. Era
bom, muito bom.
— Eu o amo tanto — sussurrou.
— Eu também amo você.
— Lembra-se de como ficávamos ansiosos em fazer amor... Um
sorriso surgiu nos lábios dele.
— O que quer dizer com "ficávamos"? Você é capaz de me excitar a
qualquer minuto do dia. O que aconteceu no chuveiro é uma boa prova
disso.
Ela acariciou lhe o peito, adorando a sensação de força e calor. Sam
recostou a cabeça na poltrona e fechou os olhos.
— Estas duas semanas foram exaustivas — disse baixinho.
— Mas estamos indo bem, não é? — Molly continuava beijando-lhe o
pescoço, beijos leves e delicados.
— Não foi você quem subiu no telhado naquele temporal.
— E verdade. — Ela abriu a camisa dele e deslizou a mão por baixo.
— Sabe às vezes as coisas que parecem desastrosas na verdade são
bênçãos disfarçadas.
— Na próxima vez vou deixar que você se arraste por baixo da picape
para descobrir o defeito no transmissor.
— Não estava me referindo aos consertos da picape.
— E claro que não.
— Há mais uma coisa... Ele ficou rígido.
— Não são más notícias — ela acrescentou.
— Ainda bem — ele suspirou. — Já tive mais do que sou capaz de
aguentar.
Com a cabeça ainda recostada no ombro dele, Molly mordeu o lábio,
incerta. Queria acreditar que ele ficaria feliz, mas temia que Sam
encarasse a gravidez como apenas mais uma despesa. No entanto,
esperou demais para dar a notícia, pois no instante seguinte Sam estava
roncando em seu ouvido.
Assim que acordou, na manhã seguinte, Sam percebeu que havia algo
errado com Molly. Provavelmente tinha a ver com o jantar da noite
anterior, mas Deus era testemunha do dia horrível que tivera e o quanto
estava cansado. Sem querer desapontá-la, ele seguira adiante com todo
aquele cenário romântico que ela havia preparado e, para ser justo, ficara
até surpreso e encantado quando Molly apareceu no chuveiro. Sendo
aquela a primeira vez que tentava fazer amor de pé, tivera que
improvisar.
Sem muito sucesso, francamente. Mas, no final, tudo correra bem
assim que a levara para a cama. Sam considerava-se um tanto tradicional
nestas questões de sexo, porém estava disposto a tentar novas
experiências com sua esposa, se ela também estivesse.
O jantar fora maravilhoso, e era evidente que Molly tivera muito
trabalho em prepará-lo. Agora, no entanto, Sam tinha certeza de que
cometera alguma gafe terrível. Molly estava enroscada quase na beirada
da cama, o mais longe dele que pudera ficar.
— Bom dia, meu amor — ele sussurrou, girando na cama para
aproximar-se dela.
Sabia que não deveria ter adormecido na cadeira logo depois do
jantar, mas estava realmente exausto na noite anterior. Nem mesmo se
lembrava de ter ido para a cama.
Em silêncio, Molly afastou as cobertas e levantou-se.
— Há algo errado, querida? — ele perguntou.
— Ah, Sam, às vezes você dificulta tanto as coisas. Ele suspirou,
pensando em quantas vezes teria de se desculpar por pegar no sono bem
no meio da noite romântica que ela preparara. Sentia-se mal sobre isso,
mas ela bem que poderia ser um pouco mais compreensiva.
— Só me diga o que há de errado, está bem?
— Não há nada errado — ela murmurou. Sam podia jurar que ela
estava chorando.
— Molly, pelo amor de Deus, me diga o que é!
— Você não sabe, não é? — Ela balançou a cabeça, com a expressão
desolada. — Você não sabe, mesmo. — Com lágrimas nos olhos, pegou
um lenço na cômoda.
— Eu...
— Pense um pouco, Sam, só um pouco. Planejei uma linda noite para
nós e... Ora, nem sei por que tenho de lhe contar qualquer coisa! Você
deveria ser capaz de perceber sozinho. Você mesmo reparou que engordei
um pouco!
— Querida, foram apenas uns quilinhos. Não se preocupe com isso.
Você está ótima. Você é ótima. De qualquer forma, assim terei um
pouquinho mais de você para amar. — Estendeu os braços, planejando
puxá-la para si.
Molly afastou a mão dele e encarou-o.
Casamento em Montana
— Sam, existe um motivo por eu ter engordado.
— E claro, com tantas sobremesas que você tem feito ultimamente...
Mas não quero que se preocupe com isso.
Molly emitiu um gemido de desânimo e saiu do quarto.
Sam não entendia qual era o problema dela, mas sabia que tinha de
sair para o trabalho. Imaginava que Molly acabaria lhe dizendo, quando
estivesse preparada. Agora, tinha de ir até a colina Lonesome reunir o
gado.
Molly já havia preparado o café e as torradas, quando Sam entrou na
cozinha.
— Tenho de sair.
— Eu sei. — Ela enxugou as lágrimas do rosto e beijou-o. — Pense no
que eu lhe disse, está bem? — murmurou.
Ela parecia tão pequena e frágil que Sam abraçou-a por mais tempo
de que o necessário, antes de encaminhar-se ao estábulo para colocar a
sela em Thunder.
Quando cavalgava para a colina Lonesome, uma ideia lhe surgiu de
repente.
Molly estava grávida.
Grávida!
Sentiu que o coração estava prestes a explodir de excitação. De
felicidade. Seu primeiro impulso foi dar meia-volta e retornar para casa,
beijá-la como louco, dizer-lhe o quanto estava feliz. E era o que teria
feito, se não ouvisse vozes naquele instante, e o barulho de um
caminhão. Aquelas eram as suas terras, e ninguém que houvesse entrado
ali sem permissão estaria com boas intenções.
Sem considerar o fato de que estava sozinho e desarmado, Sam
cavalgou pela colina acima e chegou no topo a tempo de ver quatro
homens uniformizados reunindo o seu gado para perto do caminhão.
E eles também o avistaram.
O que aconteceu em seguida parecia irreal, como algo retirado de
uma cena de um filme mudo. Sam ouviu um grito e ficou olhando,
paralisado, enquanto um dos homens erguia o rifle e o apontava. E
demorou um breve instante para perceber que o homem apontava para
ele.
O som do tiro atingiu-o no momento exato em que ele sentiu uma
dor aguda, penetrante. A mera força do disparo fez com que seus braços
se atirassem loucamente para o alto. Com o peso desequilibrado, Sam
escorregou da sela conseguindo apenas livrar os pés dos estribos. O ruído
das patas de seu cavalo batendo na terra ecoava como tiros de canhão,
enquanto ele caía. Seu último pensamento consciente, antes de bater
contra o chão duro, foi uma prece silenciosa. Fez somente um pedido:
viver por tempo suficiente para dizer a Molly o quanto estava feliz com o
bebê.
CAPÍTULO 18
Nada estava saindo do jeito que Monroe planejara. Os Legalistas
precisavam das terras dos Wheaton, mas o maldito velho se mostrara
teimoso demais. Não quisera dar ouvidos à razão. Tudo bem, ele já
esperava por isso, pois Walt Wheaton fora um tolo rabugento durante a
maior parte de sua vida. Monroe havia considerado um presente dos céus
quando a neta de Walt chegara à cidade, mas estava enganado. A
situação ia rapidamente de mal a pior.
Sam Dakota havia comprometido todo o projeto. Sem ele, Molly teria
sido forçada a vender a propriedade, ficando até satisfeita por livrar-se
das terras. Mas Dakota era tão teimoso quanto o velho Wheaton, e
evidentemente pretendia lutar pelas terras com a mesma determinação
inabalável.
Monroe inclinou-se para a frente e descansou os cotovelos sobre a
escrivaninha. A situação havia sofrido uma mudança brusca depois do
assassinato de Pearl Mitchell. Ele já se confrontara com Lance, que
afirmava não ser responsável por isso e até lhe forneceu um álibi. Monroe
foi checar, naturalmente, e ficou surpreso ao descobrir que, pelo menos
uma vez, Lance falara a verdade. Sim, Lance viera à cidade naquela noite,
mas ficara jogando bilhar no bar do Willie com Travis. O barman
confirmou toda a história.
Teria sido bastante conveniente se conseguissem lançar a culpa do
homicídio em Dakota, mas aquilo também não funcionara. Monroe podia
lidar com Molly e convencê-la de que seria mais vantajoso vender a
fazenda, se conseguisse tirar o marido dela do cenário. O que mais o
chocava era o fato de que seu primo, alguém de seu próprio sangue,
tivesse sido o responsável pela liberação de Dakota. Ficava cada vez mais
irritado, sempre que pensava nisso. Malditos advogados, não mereciam
nenhuma confiança. Nem quando faziam parte da família.
Como gostaria de saber qual era o relacionamento de Russell com
Pearl... A maneira como seu primo ficara rondando o escritório do xerife,
atrás de informações, o fez acreditar que deveria haver alguma coisa
entre os dois. O que seria um bom motivo de riso. Seu primo, apaixonado
por uma prostituta!
Monroe também se sentia mal com o assassinato de Pearl, mas fora
ela quem escolhera aquela vida. Pearl estava ciente dos riscos. Se
encontrasse quem a matara, Monroe pretendia fazer com que o filho da
mãe pagasse bem caro, nem que fosse pelo simples motivo de ter perdido
a renda que ela lhe fornecia. A falta do dinheiro de Pearl, que ele recebia
mais ou menos uma vez por semana, seria tristemente sentida, mas
Monroe acabaria convencendo uma das outras garotas a preencher o
lugar que ela deixara vago.
As garotas ficaram um bocado nervosas depois da morte de Pearl, e
os lucros caíram em trinta por cento. A princípio, ele fora contra aquela
associação com as prostitutas, temendo que alguém pudesse rastrear a
sua conexão com elas e descobrir sua identidade. Agora, no entanto, esta
era a última de suas preocupações. Ultimamente, os problemas se
sucediam com uma rapidez assustadora.
Apertar o cerco em torno de Dakota até que fora divertido, mas o
desgraçado recusara-se a ceder. Mexer com os enteados dele tampouco
havia adiantado. Pagar para aquele Hudson pichar a parede da escola
havia sido ideia de Lance. Monroe fez um muxoxo de desprezo. Lance era
um idiota, não podia confiar nele. E tinha certeza de que fora o amigo de
Lance quem havia soltado o filho mais novo de Molly. Travis era um bom
homem e um soldado capaz, mas não suportava ver crianças maltratadas.
Elas eram seu ponto fraco. Maldito idiota.
E Burns, o presidente do banco, também se virará contra ele. Sem o
dinheiro que precisava, Dakota teria ficado à sua mercê, mas o banqueiro
adiantara-se e concedera o empréstimo para socorrê-lo. Monroe entendia
que Burns precisava colocar os negócios em primeiro lugar, mas isso
serviu apenas para complicar ainda mais uma situação já complicada.
No entanto, tão logo Monroe leu os termos do contrato de
empréstimo, percebeu o que teria de ser feito. Precisavam impedir que
Dakota tivesse a chance de vender seu gado.
A porta abriu-se e Lance entrou no escritório.
A raiva de Monroe reluziu em seus olhos como a chama de um
fósforo numa tocha.
— Já lhe disse para nunca vir aqui.
— Estava de pé, pronto para chutar o traseiro de Lance direto para a
rua. Aquele era mesmo um imbecil!
— Deu tudo errado — Lance murmurou. Não era o que Monroe
desejava ouvir.
— Encontre-me no beco atrás do Willie, à meia-noite.
— Travis atirou nele.
— Atirou em quem? — Monroe perguntou. Obrigado como era a lidar
com incompetência e insubordinação, espantava-se em ver que a
organização conseguira durar por tanto tempo.
— Em Dakota — Lance respondeu.
— Não havia nada que pudéssemos fazer.
Monroe exibiu um sorriso lento e satisfeito. Então, Dakota "já era".
Não faria falta nenhuma. E quem melhor para confortar a viúva pesarosa
do que o próprio Monroe?
Resmungando consigo mesma sobre o quanto os homens podiam ser
estúpidos, Molly preparou-se para enfrentar o dia de trabalho. Parecia
que as tarefas da casa nunca tinham fim. Ela fizera uma lista de pequenos
serviços para os meninos, também.
Ficou cantarolando na varanda dos fundos enquanto separava as
roupas limpas, e foi então que ouviu o barulho inconfundível do galope
de um cavalo no terreiro. Não era possível que Sam já estivesse de volta,
mas talvez ele tivesse finalmente compreendido o que ela tanto tentara
lhe dizer. Molly sentia-se inquieta naquela manhã, e pressionou a mão
contra o estômago, amando seu filho que ainda não nascera com a
mesma intensidade que amava os meninos.
Espiou lá fora a tempo de ver Thunder empinando diante da porta
do estábulo, fungando e balançando a cabeça.
E a sela estava vazia.
Molly olhou bem para o animal. Onde estava Sam? Pegando o suéter
que deixara pendurado na porta, saiu da varanda correndo.
— Sam? — chamou. Parou, de repente. Sabia que algo estava errado.
Terrivelmente errado.
Com a respiração rápida e ofegante, disparou de volta para a casa e
pegou as chaves da picape. Seus dedos tremiam tanto que demorou para
inserir a chave na ignição, e praguejava baixinho.
Parou por um instante e respirou fundo a fim de acalmar-se, e depois
ligou o motor. Pisou no acelerador com toda força, seguindo na direção
em que vira Sam cavalgar logo cedo.
No pasto acidentado e irregular ela chacoalhava e pulava dentro da
cabine, enquanto corria o máximo que era possível. Durante todo o
tempo rezava nervosamente, com o medo retorcendo-se em suas
entranhas. Não tinha ideia do que poderia encontrar. Se Thunder tivesse
atirado Sam ao solo, havia a possibilidade de ter-lhe atingido as costas
novamente. Ele havia sido obrigado a desistir dos rodeios por causa dos
ferimentos que sofrerá na espinha, e quaisquer danos futuros poderiam
deixá-lo paralítico para sempre.
O terror a invadia como uma onda gelada, e estava tão imersa em
suas preocupações que quase passou direto por Sam. Quando o viu
perambulando pela pastagem, com as mãos na cabeça, pisou nos freios
com toda força.
Pulando para fora da cabine, correu até onde ele estava. Assim que a
avistou, Sam caiu de joelhos. O sangue escorria por entre seus dedos, pelo
rosto e nos olhos.
Molly sufocou um grito de horror.
— Não está tão ruim quanto parece — ele tranquilizou-a, num tom
quase inaudível.
— Sam, ah, Sam...
— Estamos com problemas, meu bem.
Casamento em Montana
Os olhos dele estremeceram e Molly sabia que ele estava prestes a
desmaiar.
— Os ladrões levaram nosso rebanho. — E, com estas palavras ele
desabou, batendo o rosto no chão.
Sam acordou e gemeu sob a dor latejante em sua cabeça. Minúsculos
raios laser penetravam em seu cérebro, cegando-o com tanta luz. Ergueu
a mão para proteger os olhos e tentou descobrir onde estava.
Não reconheceu nada.
— Sam?
Molly estava com ele; já era um bom sinal.
— Onde estou? — Cada palavra exigia um esforço imenso.
— Em casa. O dr. Shaver acabou de sair. Ginny está aqui, também.
Não sei o que eu teria feito se não fossem por ela e Fred. Eles me
ajudaram a carregá-lo para casa. Pode nos contar o que aconteceu?
— Os ladrões... Levaram o rebanho.
— Sim, eu sei.
Sam percebeu o tremor na voz dela, porém duvidava que Molly
compreendesse completamente a magnitude do que isso significava.
— O empréstimo, Molly. Temos de fazer o pagamento de cinco mil
dólares daqui a três semanas.
Ela ofegou e apertou-lhe a mão com mais força.
— Não pense nisso agora. Nós daremos um jeito.
— Mas... — Sam tentou erguer-se da cama, sem saber bem por que,
mas sentindo que precisava fazer alguma coisa. Tudo à sua volta parecia
irreal, como se fizesse parte de um pesadelo. O pior pesadelo de sua vida.
E, se de fato fosse, queria acordar logo.
Bom Deus, o que iriam fazer?
— Está tudo bem — Molly insistiu, suavemente. Pousando as mãos
nos ombros dele, fez com que recostasse outra vez nos travesseiros. Ele
sentiu seus lábios no rosto e, por um instante, acolheu de bom grado o
seu amor e conforto. Mas aquele conforto não iria durar muito, não
quando haviam sido lesados de toda a esperança que tinham no futuro.
— O xerife Maynard. — Sam esforçava-se para falar e agarrou-se ao
braço de Molly, querendo que ela entendesse a importância de seu
pedido. Precisava falar com o policial, e quanto mais depressa, melhor.
— Já liguei para ele — Molly respondeu, com calma.
— Ele quer lhe falar, assim que você se recuperar um pouco.
— Agora.
— Em breve, eu prometo. Mas agora descanse Sam, por favor.
— A voz dela estava trêmula novamente, e Sam decidiu fazer o que
lhe pedia ao invés de deixá-la ainda mais nervosa.
A dor que sentia na cabeça era violenta. Incapaz de suportar por mais
tempo, ele fechou os olhos.
— Diga a Maynard... que posso identificar um deles... se tornar a vê-
lo.
O que estava empunhando o rifle. Sam havia olhado bem para ele.
Infelizmente não o reconheceu, portanto sabia não era ninguém das
redondezas. Por outro lado, o fato de que o homem era um desconhecido
lhe trazia um certo alívio. Seria difícil aceitar que algum de seus vizinhos
pudesse estar envolvido em algo tão criminoso.
Quem? Por quê? As perguntas martelavam em seu cérebro, tão
dolorosas quanto a agonia física.
Embora permanecesse com os olhos fechados, Sam estava ao menos
parcialmente desperto. Trechos esparsos de conversas flutuavam em
torno dele.
— O dr. Shaver disse que mais alguns centímetros à esquerda e a bala
teria atingido o cérebro — Molly falou. — Do jeito que foi, o disparo
passou de raspão na cabeça.
— Eles queriam matá-lo? — A voz era de Tom e, pela entonação, Sam
percebeu que o rapaz estava furioso. — Quem faria uma coisa dessas?
Quem? Se eu descobrir quem foi...
— Tom, nós não sabemos — Molly interrompeu.
— Ninguém sabe.
— E o que vamos fazer se não conseguirmos pagar a primeira parte
do empréstimo? — Tom perguntou.
Sam pensava o mesmo, e o peso desta carga era maior do que
qualquer coisa por que já passara, incluindo seu tempo de prisão. Um
medo esmagador.
Molly hesitou.
— Não sei o que vai acontecer, mas não quero pensar nisso agora.
— O banco não pode nos dar mais um prazo?
— Já liguei para o Sr. Burns e expliquei nossa situação — ela
respondeu.
— E, apesar de ter-se mostrado bastante solidário, ele disse que não
poderia fazer concessões.
— Nós não vamos perder a fazenda, não é?
Molly demorou a responder e, quando o fez, a voz tremia levemente:
— Eu... Não sei.
— Vamos voltar para San Francisco?
Sam queria protestar, assegurar a Tom e Clay que faria tudo em seu
poder para que isso não acontecesse. Eles pertenciam a Montana, agora,
tanto quanto ele próprio.
— E quanto a Sam? Se voltarmos para San Francisco, ele irá conosco?
Ele, morando numa cidade grande. Muito pouco provável. Sam teve
vontade de rir com tal ideia. Não duraria nem um dia.
— E-claro que sim — Molly falou. — Sam é meu marido. Apesar da
dor de cabeça infernal, Sam quase sorriu. Molly o amava e, por Deus, não
iria, não queria, não podia abandoná-la agora. Walt os reunira, e o velho
sabia exatamente o que estava fazendo. Ele e Molly talvez não tivessem
começado aquele casamento da maneira tradicional, mas fariam com que
desse certo.
Em seus trinta e seis anos de vida Sam fora bem além de sua quota
de pecados. Em todo esse tempo, jamais pedira muito. Na verdade, não
dava a mínima para nada ou ninguém, incluindo a si mesmo. Então,
conhecera Walt Wheaton e apaixonara-se por Molly.
Agora, importava-se. Importava-se com sua família, Molly, os
meninos, seu filho que iria nascer. Importava-se com a própria vida, muito
mais que imaginara ser possível. E de algum jeito, de qualquer jeito,
conseguiria aquele dinheiro.
Sentado em seu escritório, Russell lia pela segunda vez o relatório
que recebera pelo fax. Precisara fazer alguma pressão e cobrar alguns
favores a fim de obter tal informação. Mas agora que a tinha em mãos,
preto no branco, estava ainda mais confuso. Agora, Russell sabia mais a
respeito de grupos militares e terroristas do que jamais imaginara saber.
Fizera contato com o FBI, e era capaz penetrar na Internet como um
profissional. Assim, descobrira que a trilha fornecida pelos documentos
levava diretamente para os Legalistas em Sweetgrass. E para um membro
de sua própria família.
Russell passara horas incontáveis mergulhado nesta pesquisa, e tudo
começara com o assassinato de Pearl. Toda vez que o nome dela passava
por sua mente, era invadido por um profundo sentimento de perda. As
semanas não haviam aliviado sua dor e Russell suspeitava que nada,
nunca, seria capaz disso.
Havia pouco consolo para seu sofrimento, exceto por aquela noite
que passara no chalé. Muitas vezes ele fechava os olhos e perdia-se nas
lembranças, sentindo novamente a delicadeza da camisola de seda, o
perfume de rosas. Lembrando-se dela. E isso o deixava mais determinado
do que nunca a encontrar o responsável pela morte dela, e a fazer justiça.
Aquela promessa o levara até os papéis agora jaziam à sua frente. As
letras impressas embaralharam-se e Russell esfregou os olhos, cansado de
corpo e alma. Fora um longo dia, e se aquele contrato realmente afirmava
o que ele estava pensando, a morte de Pearl não viera pelas mãos de um
freguês "amoroso" demais. Ela havia sido um instrumento usado pelos
Legalistas, e Russell acreditava fora assassinada porque sabia demais.
Talvez ela tivesse ameaçado contar tudo o que sabia... Pela primeira vez,
ele entendeu porque Pearl rejeitara todas as suas propostas de
casamento. Teria morrido por tentar livrar-se nos Legalistas a fim de
casar-se com ele? Russell não suportava sequer considerar tal hipótese.
Agora, entendia quem fora o responsável pela morte dela. Seu primo. E,
por mais irônico que fosse ele havia conhecido Pearl justamente através
deste primo.
Tal conclusão trouxe consigo um renovado senso de culpa.
Indiretamente, ele fora o responsável por colocá-la em perigo. Ele a
ensinara a ler. A adorável e generosa Pearl reagira ao aprendizado como
uma criança, experimentando o sabor da vida pela primeira vez,
absorvendo tudo o que aprendia, cada som, cada palavra nova. Ele
compartilhara da alegria dela.
Quem poderia imaginar que esta habilidade recém-ad-quirida
poderia matá-la? Russell tinha noventa e nove por cento de certeza de
que fora isso que acontecera. Molly devia ter lido algo que não podia, e
fora apanhada. Ou, talvez, deixara a informação escapar sem querer.
Fosse como fosse, havia lhe custado a vida.
Russell jamais seria o mesmo sem ela. Não sabia se queria continuar
vivendo da maneira que vivia antes de amá-la. E, depois que tudo aquilo
terminasse, não acreditava que conseguisse permanecer em Sweetgrass.
Passando a mão pelos olhos, leu o documento pela última vez,
guardou-o numa pasta que, em seguida, trancou no armário.
Apagou as luzes antes de sair do escritório e encaminhou-se para o
estacionamento. O frio atingiu-o como um choque, quando saiu para fora.
Havia previsão de neve para aquela noite.
Entrou no carro, esquentou o motor e dirigiu para sua casa. Num
impulso, resolveu passar na frente da casa de Pearl. Os novos moradores
haviam se mudado um mês atrás, aparentemente não se importando que
um assassinato acontecera ali.
Parou num minimercado e comprou um sanduíche, que comeu em
casa, sentado diante da tevê.
— Estou chegando perto — sussurrou para Pearl antes de dormir,
naquela noite. — Não vai demorar muito. Logo vou saber por quê. Você
não terá morrido em vão, meu amor. Quem a matou, terá de pagar. Seja
lá o que você tenha descoberto... ele terá de responder por isso.
Esta foi a sua promessa, e ele tinha toda a intenção de cumpri-la.
Quando o alarme do despertador disparou em seu ouvido, Molly
estendeu o braço e, às cegas, apertou o botão até que o ruído irritante
cessasse. Sem querer abandonar o quente conforto da cama, aconchegou-
se contra Sam e absorveu o calor do corpo dele por mais um instante,
antes de se levantar. Sam andava num mau humor terrível desde o
"acidente", e um pouco de sono a mais só lhe faria bem.
Uma semana havia se passado, desde que ele falara com o xerife
Maynard. Porém, como Sam fora incapaz de identificar qualquer um dos
homens, e como o xerife não descobrira nenhuma prova concreta, havia
pouca esperança de que o rebanho pudesse ser recuperado. A partir de
então, Sam se tornara distraído e irritadiço. Molly sabia que ele estava
física e emocionalmente esgotado. Apesar de o dr. Shaver ter
recomendado que ele permanecesse na cama por pelo menos dois dias,
Sam simplesmente recusara-se a obedecer. Molly fizera de tudo, mas
aquele homem era a própria imagem da teimosia.
Não tinham mais falado sobre o pagamento do empréstimo. Afinal, o
que haveria para dizer? Sam não conseguiria tirar o dinheiro do nada, e
ela tampouco tinha o dom da magia. E, assim, nem tocavam no assunto.
Em algumas noites o clima de tensão na casa era tão opressivo que
Molly sentia vontade de gritar. Os meninos também estavam inquietos e
impacientes.
— Nevou durante a noite! — Clay exclamou enquanto corria escada
abaixo para tomar o café. Deu a notícia como se ninguém mais tivesse
reparado na neve.
Molly sorriu diante daquele entusiasmo, satisfeita por ouvir algo
além de queixas e choramingos.
— E lindo, não é? — ela disse, olhando pela janela da cozinha. O sol
erguia-se no horizonte, lançando um brilho rosado sobre toda aquela
brancura perfeita.
— E besteira — Tom resmungou. Entrara na cozinha logo depois do
irmão e serviu-se das panquecas quentes que Molly deixara na mesa.
Espalhou a calda doce por cima delas, o suficiente para que boiassem no
prato.
— Ei! — Clay protestou, puxando o frasco de plástico da mão de
Tom.
— Eu também quero!
Uma batalha iniciou-se logo em seguida e os dois meninos se
atracaram. Molly rapidamente intercedeu, mas a troca de insultos
continuou até que os dois pegassem as mochilas e saíssem para esperar o
ônibus escolar.
Ainda com raiva, Clay parou na soleira da porta e olhou para Molly
como se a briga com o irmão fosse culpa dela.
— Eu odeio Montana.
Molly suspirou e balançou a cabeça.
— Clay, você sabe que isso não é verdade.
— Não me importo se perdermos esta porcaria de fazenda. A única
coisa que gosto, aqui, é de Bullwinkle. Quero voltar para a Califórnia.
— Isso dito, ele virou-se e saiu correndo, batendo a porta atrás de si.
Sentindo-se derrotada, Molly desabou numa cadeira e cobriu o rosto
com as mãos. As brigas constantes dos meninos esgotavam suas energias.
E não ajudava em nada o fato de Sam ter estado apático e pessimista
durante toda aquela semana.
— O que aconteceu aqui? — Sam perguntou. Ela não o ouvira entrar
na cozinha.
Sempre que Molly via o curativo na cabeça dele era invadida por unia
onda de dor e pena. Mas o ferimento na cabeça era somente uma
pequena parte do que ele havia sofrido. Por motivos que ainda não
estavam claros para Molly, Sam culpava-se pela perda do rebanho. Ele
não havia dito nada, porém depois de viver ao lado dele e amá-lo por
todos aqueles meses, ela era capaz de captar este sentimento.
— Os meninos brigaram — ela respondeu.
— Ninguém está de muito bom humor, ultimamente.
— Talvez o desejo de Clay se concretize — Sam falou, sem emoção.
— O que está querendo dizer?
— Talvez não seja tarde demais para você e os meninos voltarem
para a Califórnia.
O coração dela quase parou. Sam só podia estar brincando, mas com
apenas um olhar percebeu que ele falava sério.
— E isso que você quer? — perguntou, pronunciando as palavras com
um grande esforço.
Sam encolheu os ombros, como se o fato de ela voltar ou não para a
Califórnia pouco lhe importasse.
— Pois isso que acabou de dizer é uma coisa horrível, Sam Dakota! E
óbvio que você não entende o verdadeiro significado do casamento. Eu
me comprometi com você, quando fiz meus votos. Não existe um meio
termo, aqui. O amor não se trata apenas de sentimentos, nem de sexo. E
um compromisso, é permanecermos um ao lado do outro, enfrentando os
problemas juntos. E nos agarrarmos ao que realmente importa. —
Quando terminou, seus olhos estavam repletos de lágrimas.
— No meu ponto de vista, você levou a pior neste casamento — ele
disse.
— Eu poderia dizer o mesmo de você. Entrei neste relacionamento
com dois filhos e uma enorme carga emocional. Mas agora estamos
casados, e ninguém aqui está fazendo um concurso para saber quem
levou a pior, ou a melhor!
Sam deu-lhe as costas e saiu da cozinha.
Molly ouviu o som do rádio e soube que ele se refugiara na sala,
somente para evitar de falar com ela. Pois muito bem, não iria obrigá-lo a
conversar com a própria esposa!
Incapaz de permanecer dentro de casa, Molly vestiu-se e, lutando
contra as lágrimas e a náusea, dirigiu até a fazenda de Ginny. A senhora
apareceu na varanda assim que ouviu o carro dela chegar.
— Mais problemas? — Ginny perguntou de longe, com uma evidente
preocupação estampada no rosto.
Molly balançou a cabeça.
— Vim tomar um café e ouvir uma palavra de encorajamento.
— Coragem eu posso dar, mas meu café tem gosto de xixi de vaca. —
Ginny riu. — Isso era o que Walt costumava me dizer, mas nem sei
quantas vezes ele veio tomar meu café, e não se mostrava nada orgulhoso
quando engolia uma ou duas fatias de torta de maçã como
acompanhamento.
Molly sorriu com a referência ao avô. Sentia falta dele, mais do que
nunca. Vovô sempre estivera presente para ela, sempre disposto a
encarar os problemas de frente. Agora ela entendia o tanto de força e
coragem que isso exigia dele. E ele possuía um jeito especial para
encontrar as soluções...
— Ainda é cedo para torta de maçã — disse.
— Mas aceito com prazer uma xícara de café.
— Ótimo. — Ginny guiou-a para dentro de casa.
A cozinha simples e acolhedora era onde Ginny e Fred passavam a
maior parte do tempo. O rádio ficava no balcão e uma pilha de
correspondências, livros e revistas ocupava metade da mesa, juntamente
com um baralho e um velho tabuleiro de damas.
— Walt e eu costumávamos jogar damas, de vez em quando — Ginny
explicou. — Não com muita frequência, mas o bastante para que eu
pense nele sempre que olho para este tabuleiro. Parece que não consigo
me convencer a livrar-me dele. As vezes Fred e eu jogamos um pouco, mas
não é a mesma coisa...
Ginny deu uma fungadela e enxugou o nariz com o lenço.
— E como está Sam nesta bela manhã?
Molly desviou o rosto, sem querer olhar para Ginny.
— Ele... Sugeriu que eu voltasse para a Califórnia com os meninos.
— E você não acreditou, não é? Molly não sabia mais em que
acreditar.
— Aquele seu marido está precisando que alguém lhe diga umas
boas verdades — Ginny falou, franzindo a testa com preocupação. — Se
está sentindo pena de si mesmo, espere só até eu acabar com ele. Deveria
levar um tiro, por dizer uma coisa destas.
— Alguém já tentou dar um tiro nele — Molly lembrou.
— Pois pelo jeito que Sam está se comportando, é de se pensar que
ficou desapontado porque o sujeito errou o alvo.
Molly segurou a caneca com as duas mãos e baixou os olhos.
— Ele se culpa pelo que aconteceu.
— Ora, isso é ridículo. Podia ter sido o meu rebanho, ou de qualquer
outro fazendeiro da região.
Molly afastou os cabelos do rosto.
— Não sei o que vamos fazer, e Sam recusa-se a conversar sobre o
assunto. Agora, parece que ele desistiu de tudo e quer se livrar deste
casamento.
— Não o leve a sério — Ginny aconselhou.
— Não por enquanto. Talvez fosse um bom momento para contar a
ele sobre o bebê. Isso lhe daria algo mais em que pensar.
— Não. — Molly estava inflexível quanto a isso.
— Se ele não me ama o bastante para enfrentarmos juntos os
problemas, então um bebê não vai mudar em nada. — Pensando em
quantos problemas seus avós haviam superado, Molly segurou o camafeu
que pendia da corrente de ouro. De alguma forma, isso a ajudava a senti-
los mais próximos.
— Este camafeu é lindo — Ginny falou. — Já pensou em vendê-lo?
— Não. — Molly ficou horrorizada diante de tal sugestão.
— Deve valer bastante. Quando foi a última vez que você o avaliou?
Avaliar? Molly nunca pensara em fazer isso. Sempre presumira que o
valor comercial da jóia se limitasse a uns duzentos dólares. O valor
sentimental, no entanto, era incalculável.
— Se não me engano, certa vez Walt comentou que esta era uma jóia
rara, uma antiguidade, mesmo — Ginny murmurou. — Sei como você se
sente a respeito, mas não lhe faria mau algum ouvir a opinião de um
joalheiro.
Molly segurou o camafeu com mais força, lembrando-se do interesse
que o dono da loja de penhores havia demonstrado. Mas imaginou que
tal interesse devia-se ao fato de que a joia era pouco comum, e não pelo
seu valor monetário.
No decorrer dos dias anteriores, Molly pensara muito sobre que bens
poderiam ser vendidos a fim de obterem o dinheiro que precisavam. Um
dos problemas era o pouco tempo que lhes restava. Depois, quanto aos
equipamentos agrícolas ou um dos veículos, ninguém em Sweetgrass
tinha dinheiro sobrando para gastar com isso. Seu carro não valia cinco
mil dólares, e a picape de Sam era ainda mais velha. Além disso, ele
precisava do veículo para trabalhar na fazenda. A velha caminhonete de
Walt não valia nada, e tudo o mais que possuíam estava hipotecado.
— Você tem toda razão — ela disse, ganhando um novo ânimo.
— Não me faria mal algum pedir a avaliação de um joalheiro.
— Quer que eu a acompanhe? No caminho, podemos parar na sua
casa e eu dou uma boa surra verbal em Sam. Se ele está querendo tanto
sentir pena de si mesmo, pelo menos assim terá um bom motivo.
Molly riu, provavelmente pela primeira vez naquela semana.
— Ah, Ginny... Estou tão contente por sermos amigas. — Num
impulso, abraçou a senhora. — Mas pode deixar, eu sei lidar com Sam.
Sentindo-se muito mais tranquila e animada, Molly voltou para casa,
esperando que o humor de Sam tivesse melhorado um pouco.
— Sam! — chamou, assim que entrou. Silêncio.
— Sam? — Procurou na sala e, depois, foi até o quarto, imaginando
que ele estivesse cochilando.
Sam estava tão ciente das ordens médicas quanto ela, ficar de cama
por dois dias e depois descansar pelo restante da semana. Molly sabia
que ele estava sentindo-se melhor, porém não o bastante para sair de
casa.
Olhando lá fora, reparou que a picape dele não estava no lugar
habitual.
— Sam Dakota, aonde você foi? — Sua reação instintiva foi de raiva
por ele ter desobedecido as recomendações do médico.
Voltou para a cozinha, esperando que ele tivesse deixado algum
bilhete, mas não havia nada.
Então, viu que a porta do armário do vestíbulo estava entreaberta, e
compreendeu tudo. Era ali que guardavam as malas. Retornou ao quarto
e somente quando entrou deu-se conta de que cada uma das gavetas da
cômoda havia sido deixada aberta.
Molly sentiu que as pernas não sustentariam o peso de seu corpo.
Agarrou-se ao batente da porta com toda força que ainda lhe restava.
Sam a abandonara. Incapaz de enfrentar seus problemas, fizera as
malas e fugira. Sem nem mesmo dizer adeus.
CAPÍTULO 19
Paul Harden, o joalheiro, girou o camafeu na palma da mão, com
delicadeza.
— Ginny estava certa — disse. — Esta jóia é uma antigüidade rara.
Mas não posso lhe fornecer uma avaliação exata sem antes consultar um
ou dois antiquários.
— Não tem nem mesmo uma idéia? — Molly insistiu. — Talvez uns...
mil dólares? — perguntou mal se atrevendo a acreditar em tal
possibilidade.
Incapaz de lidar com o abandono de Sam, Molly fora para a cidade.
Com todos os problemas desabando em seus ombros, decidiu resolver um
de cada vez e, em primeiro lugar, o mais urgente: o pagamento do
empréstimo. Talvez conseguisse convencer o sr. Burns a aceitar um
pagamento parcial até que se recuperassem financeiramente e
conseguissem se reerguer um pouco depois da perda do gado.
— Muito mais do que isso — o Sr. Harden respondeu.
— Eu diria que vale, aproximadamente, uns cinco ou seis mil.
— Cinco ou seis mil! — A voz de Molly ecoou em seus próprios
ouvidos, e ela sentiu-se ligeiramente zonza. — O senhor não está
brincando comigo, não é?
— Não num assunto destes — ele afirmou.
O sr. Harden era um homem jovial, de cerca de sessenta anos, com
olhos escuros que reluziam quando ele ria. Havia vendido as alianças de
casamento para Sam no dia anterior à cerimônia e, como um favor
especial para Walt, as aprontara de um dia para o outro.
— Ah, meu Deus...
— Está interessada em vender? — ele perguntou.
— Eu... Não sei. Isto é, não, não quero vender, mas imagino que não
tenho outra escolha.
O Sr. Harden franziu a testa.
— Posso apostar que Burns anda espremendo todos os fazendeiros
da região. Se você quiser, posso dar alguns telefonemas e fazer uma
pesquisa, ver se lhe consigo o melhor preço.
— Sim, eu gostaria muito.
Molly nem podia acreditar na sua boa sorte. Mais uma vez, mesmo
depois da morte, vovô lhe dava a solução para seus problemas. Porém,
seria muito difícil desfazer-se do camafeu. Ela o usara por tantos anos e a
joia possuía um significado especial.
— Ligue para mim daqui a dois dias — disse o sr. Harden.
— Até lá terei alguma resposta para você.
Molly assentiu, mordendo o lábio para impedir-se de chorar. Preferia
vender o braço direito do que o camafeu de sua avó, mas se não lhe
restasse outra saída, era o que teria de fazer.
— Não se preocupe. — O joalheiro deu-lhe uma palmadinha na mão.
— Muitas vezes existem males que vêm para o bem.
— Obrigada — ela murmurou, e virou-se antes que ele percebesse as
lágrimas em seus olhos.
Aquilo não era fácil para Molly, mas ou ela tomava as rédeas dos
acontecimentos ou se transformava numa vítima das emoções. Desde que
Sam decidira abandoná-la, não tinha outra escolha senão fazer o que
pudesse para assegurar o seu futuro e o de seus filhos. Se isso implicasse
em vender uma herança de família, então ela venderia.
Molly chegou em casa trinta minutos antes do horário em que os
meninos voltavam da escola. Temia o momento em que teria de lhes dizer
que Sam fora embora. No entanto, era algo que não podia ocultar. Tom,
especialmente, sofreria muito com a notícia.
Por experiências anteriores, Molly sabia que seus filhos seguiriam seu
exemplo emocional. Se ela se mostrasse forte e corajosa, eles também
seriam. Para o bem deles, e também pelo seu, ela rezava para ser capaz
de superar mais aquele desgosto. Embora o fim de seu primeiro
casamento a tivesse deixado arrasada, nem se comparava com a sensação
de incredulidade e irrealidade que experimentava agora.
O telefone tocou e Molly ficou imóvel por um instante, sem saber se
deveria ou não atender. Uma parte de si desejava que fosse Sam; ao
mesmo tempo, não sabia se conseguiria falar com ele.
Atendeu no terceiro toque.
— Aqui é Patrick Sparks do Rodeio Butte. Estou retornando um
telefonema do Sr. Dakota.
Molly não entendeu porque Sam teria ligado para Butte.
— Sinto muito, mas ele não está em casa.
— A senhora poderia lhe dar um recado? Diga que peço desculpas
por não ter estado aqui para falar com ele pessoalmente. E claro que já
ouvi falar muito bem de Sam. —- O homem fez uma pausa e emitiu um
breve risinho.
— E o melhor montador de touros que já tive o privilégio de ver.
Ouvi dizer que foi forçado a aposentar-se alguns anos atrás, mas se
ele quiser montar novamente teremos o maior orgulho em tê-lo aqui em
Butte. Na verdade, consideramos uma honra.
— Sam ligou para o senhor? — Molly perguntou quase incapaz de
formular a pergunta.
— Sim, hoje cedo. Infelizmente eu não estava no escritório, naquela
hora. Teria sido um prazer conversar com uma lenda viva dos rodeios
como Sam Dakota.
— E há outros... Outros rodeios acontecendo agora?
— Molly perguntou, pensando rápido.
— Bem, a temporada está quase se encerrando, mas haverá um dos
grandes em Missoula, neste fim de semana.
— Obrigada — ela disse. — Muito obrigada mesmo. Correndo para o
quarto, Molly abriu de todo a primeira
gaveta da cômoda de Sam. Como pensara, as roupas dele estavam
ali, exceto por algumas camisetas e cuecas. Molly odiou-se por ter tirado
conclusões tão apressadas, por ter pensado no pior. Por não confiar em
Sam. Afinal, ele não fora embora, não a abandonara! Simplesmente
arrumara a mala e partira para competir num rodeio, esperando
conquistar o prêmio em dinheiro. Seu marido estava arriscando a vida por
ela e os meninos, a fim de pagar as dívidas da fazenda.
— Ah, Sam — ela murmurou aliviada e furiosa ao mesmo tempo.
— Você é um idiota.
O que ele não sabia era que isso não seria mais necessário, pois ela
poderia vender o camafeu. E iria vender.
A porta dos fundos se abriu e os meninos entraram, com as faces
rosadas de frio e ofegantes pela longa caminhada desde a entrada da
fazenda.
— Vocês dois, arrumem uma mochila com roupas para passar a noite
fora — ela os instruiu, batendo palmas a fim de apressá-los.
— Nós vamos para algum lugar? — Tom indagou, arregalando os
olhos de surpresa.
— Para um rodeio — Molly respondeu, e porque o alívio a
sobrepujava tomou o rosto do filho entre as mãos e beijou-o nas faces. —
Primeiro, preciso ligar para Ginny e pedir para Fred vir cuidar dos cavalos
e dos cachorros...
— Rodeio? — Tom esfregava com força o lugar onde a mãe o beijara.
— Mamãe, você perdeu o juízo?
Rindo e chorando ao mesmo tempo, ela balançou a cabeça.
— Não, querido. Eu encontrei. Encontrei uma coisa maravilhosa.
— O quê?
— O amor — ela sussurrou, e repetiu: — O amor.
Sam ficou espantado pelo fato de que alguém ainda lembrava-se dele
e, certamente, não se sentia merecedor da atenção que recebera quando
fora pagar sua inscrição. Tudo o que lhe importava era o prêmio de cinco
mil dólares, a quantia exata que precisava para pagar a primeira parte do
empréstimo.
Ele foi o último inscrito, e o último vaqueiro a ser chamado.
Exatamente oito segundos: era o tempo que precisava montar. Oito
segundos para ganhar cinco mil dólares. Baixou os olhos para o touro que
resfolegava, e sentiu o sangue correr mais rápido nas veias. Já se passara
um longo tempo, e o fluxo de adrenalina espalhava-se por todo seu
corpo. Estava pronto. Sentia falta de sua antiga vida, mas não o bastante
para trocar com a que tinha agora. Sweetgrass era o seu lar, agora. Não, o
seu lar era onde Molly estava Molly e a sua família. Ela lhe ensinara isso
com seu amor doce e generoso.
O touro resfolegou novamente, ansioso em ver-se livre da baia exígua
e apertada. Em poucos minutos Sam colocaria todo seu peso sobre o
lombo do animal, e a porteira seria aberta.
Ele sentia-se em ótimas condições físicas: estava forte, ágil e bem
preparado. O trabalho na fazenda fizera isso por ele. Já se recuperara dos
ferimentos; do contrário, montar aquele touro seria uma missão suicida, e
ele não tinha a menor intenção de morrer. Tampouco pretendia passar o
resto da vida numa cadeira de rodas. Era um homem com muitas razões
para viver. Chegara o tempo de agradecer suas bênçãos, ao invés de ficar
chorando pelo que perdera.
Assim que recebeu o sinal, Sam subiu no topo da baia e acomodou-se
no lombo maciço do touro. O animal atirou a cabeça para trás enquanto
jogava-se de um lado para o outro, numa inútil tentiva de livrar-se do
peso. Aquele touro teria oito segundos para derrubá-lo, assim que a
porteira se abrisse. E, pelo que Sam tinha visto até agora, ia fazer de tudo
para conseguir seu intento.
Sam enrolou a corda em torno da mão. O sangue latejava em seus
ouvidos, e ele concentrou-se na imagem do rosto de Molly. A voz do
locutor ressoou pelos alto-falantes, e Sam ouviu seu nome e os aplausos
que se seguiram. Os outros vaqueiros não eram os únicos que lembravam-
se dele; aparentemente, a platéia também não o havia esquecido.
Quando o locutor terminou sua fala, Sam deu o sinal e a baia foi
aberta. O touro disparou para fora, e o braço direito de Sam ergueu-se
instintivamente a fim de manter seu equilíbrio.
Manchas coloridas passavam voando pelos olhos de Sam, enquanto
era atirado para cima e para os lados, rodopiando e pulando. Ainda
assim, apesar das imagens embaçadas, ele teve a impressão de ver Molly
e os meninos parados junto ao palanque.
Eles estavam ali? Mas como seria possível? Só podia estar maluco,
concluiu. Ele ligara para a casa de Ginny, tentando falar com Molly, mas
ela já havia saído. Fred prometera lhe dar o recado, mas Sam não
mencionara qual era o rodeio em que iria participar, exatamente por
aquele motivo: não queria que Molly viesse.
Sentia que cada osso de seu corpo se descolara de seu eixo, quando
o sinal finalmente soou. Os espectadores ficaram de pé e o aplauso foi
ensurdecedor. Ele conseguira. Havia permanecido no lombo do touro por
oito segundos, os oito segundos mais longos de toda sua vida.
Conquistara o seu prêmio.
Pouco depois Sam estava atrás dos estandes, fora da vista da plateia.
Sentia-se fraco a ponto de desmaiar, porém a exultação o mantinha de
pé. A garganta estava seca e, aceitando um copo de água, tomou-o num
só gole. E, assim que largou o copo, avistou-a.
Molly estava a pouco menos de cinco passos de distância. Não fora
sua imaginação, ela realmente estava ali. Assistira a sua cavalgada, gritara
e torcera por ele.
— Olá, benzinho — ele murmurou, abrindo os braços para ela. Os
braços e o coração.
Molly parecia incerta sobre o que fazer primeiro: beijá-lo ou passar-
lhe o maior sermão de sua vida. Sam olhou para Tom, mas o rapaz
limitou-se a encolher os ombros, como se dissesse que Sam teria de virar-
se sozinho.
O sermão venceu.
— Sam Dakota, como pôde sair daquele jeito, sem deixar nem mesmo
um bilhete? — ela começou.
— Pedi a Fred que lhe desse o recado — Sam respondeu.
Sem querer esperar que ela fosse até ele, cobriu a distância que os
separava e prendeu-a entre os braços. A sensação do corpo dela junto ao
seu preencheu lhe o coração. Por um breve momento receara que sua
antiga vida o deixasse tentado a voltar, porém isso não aconteceu. Ao
contrário, o fez perceber algo fundamental: o acidente que encerrara sua
carreira nos rodeios na verdade fora uma bênção, porque o levara até
Molly e os meninos. Nem a fama, nem a glória seriam capazes de
substituir a felicidade que ele sentia desde o seu casamento.
— Não falei com Fred, somente com Ginny. — Molly balançou a
cabeça.
— Ah, Sam, como pôde arriscar-se desta forma? — sussurrou, quase
em lágrimas.
— Foi muito fácil, meu amor. Fiz isso por nós.
— Você podia ter morrido! — ela gritou, lutando contra as lágrimas.
— Mas não morri.
— Ou ferir-se gravemente...
— Sou duro na queda. — Sam beijou-lhe a ponta do nariz e Molly
mergulhou o rosto em seu peito. Então, ele roçou o rosto contra os
cabelos dela, aspirando o suave perfume.
— Papai! Papai! — Clay agarrou-se à manga da camisa de Sam, e ele
passou o braço pelos ombros do garoto. Clay agarrou-o com mais força. —
Aquele homem ali — disse, com urgência. — Ele tem uma bota com o
cordão arrebentado!
— Pois deveria estar usando botas de vaqueiro, como todos nós —
Sam brincou.
Por um instante, achou divertido o tipo de coisas em que as crianças
reparavam. Só se deu conta da conexão quando Clay acrescentou:
— Ele está usando as botas do exército, iguais às do sujeito que me
pegou naquele dia!
— Onde? — Sam perguntou, separando-se de Molly.
— Ali — Clay apontou para um homem que vestia uma farda, parado
perto do curral e conversando com outro homem.
Sam reconheceu-o imediatamente como um dos sujeitos mal-
encarados que entraram no bar do Willie na noite em que Pearl morrera.
Os mesmos qué ela tanto quisera evitar.
Sem a menor hesitação, Sam começou a andar na direção deles, com
a raiva guiando-lhe os passos.
— Por que não tiramos esta dúvida agora mesmo? — falou por entre
os dentes. Tinha toda a intenção de descobrir por que um homem adulto
iria querer aterrorizar um garoto e sua família.
— Vou chamar os policiais — Molly falou, e antes que Sam pudesse
assegurar-lhe de que não precisaria de nada além dos próprios punhos
para obter a resposta que queria, ela já se fora.
— Precisamos conversar — ele disse, interrompendo os dois sujeitos.
O primeiro mal olhou para ele, mas o segundo fez uma expressão de
espanto, encarando-o como se estivesse vendo um fantasma. No entanto,
recobrou-se rapidamente e perguntou:
— Sobre o que precisamos conversar?
— Sobre o meu filho.
— Eu não sabia que deixavam presidiários como você...
— Assim que Sam aproximou-se o bastante, o homem atacou-o,
atingindo-o diretamente no queixo com um poderoso soco de direita.
Sam não percebeu o movimento, e o soco atingiu-o em cheio,
fazendo com que perdesse o equilíbrio e caísse de costas no chão. Seu
queixo doía, mas não tanto quanto seu orgulho ferido. Erguendo apenas
metade do corpo, atirou-se contra o homem e atingiu-o um pouco acima
dos joelhos. 0 golpe fez com que ele também caísse, mas não foi capaz de
nocauteá-lo. Uma nuvem de poeira ergueu-se no ar enquanto os dois
atracavam-se na terra.
— Sam! Sam... — A voz de Molly flutuava em torno dele. Queria lhe
dizer que se afastasse, mas não se atrevia a desviar a atenção.
— Mostre a ele, Lance! — o outro homem gritava. Lance era um
pouco mais pesado do que Sam, que além de tudo estava exausto e
exaurido pela recente cavalgada no touro. Ele desconfiou, pela técnica de
Lance, que devia ter recebido treinamento militar.
— Sam! Sam! — Molly gritou, alertando-o no instante em que ele
bloqueou um soco.
Sam virou-se para gritar que saísse do caminho e viu que ela pegara
uma pá.
Infelizmente a pontaria dela deixava muito a desejar e, quando
bateu, ao invés de acertar Lance pegou no ombro de Sam.
Uma dor aguda imobilizou o seu braço e ele tornou a cair no chão.
Devia ter perdido a consciência por um instante, pois quando deu por si
viu os policiais parados ao lado de Molly. De algum jeito, ela conseguira
encurralar Lance com a pá. O amigo dele desaparecera.
— O que está acontecendo aqui? — um dos policiais perguntou,
colocando-se entre os dois homens.
Molly e Sam começaram a falar ao mesmo tempo. Molly calou-se e
fez um gesto para que Sam continuasse, e ele explicou o que acontecera
com Clay.
— Alguém roubou nosso gado na semana passada, e atirou em meu
marido — Molly intercedeu. — Aproveite para perguntar se ele sabe
alguma coisa sobre isso. — Apontou para Lance, com uma expressão de
puro desprezo.
— Ei, não tenho nada a ver com isso! — Lance limpou o sangue no
canto da boca e olhou direto para Sam. — Se querem saber de alguma
coisa, perguntem a este "herói" aí a respeito de uma certa mulher que
desapareceu. Ele sabe muito mais do que está dizendo.
Sam ficou tenso diante da menção ao assassinato de Pearl.
— Era de você que ela estava se escondendo — acusou, lembrando-
se nitidamente do medo na expressão de Pearl quando viu Lance.
— Meu marido não tem nada a ver com a morte daquela pobre
garota — Molly afirmou. — Agora, prendam este homem. — Apontou
novamente para Lance.
— Ele sequestrou o meu filho!
— Há algum problema por aqui? — O xerife Maynard surgiu por entre
a multidão de curiosos e mostrou sua identificação aos policiais.
— Xerife Maynard. — Molly parecia aliviada e, para dizer a verdade,
Sam também estava contente em vê-lo. Certamente, agora, poderia
contar com o xerife de Sweetgrass para limpar o seu nome.
— Tenho um mandato de prisão para este homem — Maynard
anunciou.
— Ele é acusado do assassinato de Pearl Mitchell.
— Enquanto todos observavam boquiabertos, o xerife prendeu as
algemas nos punhos de Lance e levou-o consigo.
— Você é um idiota! — o xerife Gene Maynard, codinome Monroe,
gritou para Lance.
Lance estava sentado no banco de trás do carro-patrulha.
— Espere um pouco, Monroe — choramingou. — Isso é só uma
brincadeira, não é?
Monroe era capaz de sentir o ressentimento de Lance e,
sinceramente, fora muito bom colocar as algemas no desgraçado. Era
exatamente o que ele merecia por todas as besteiras que já cometera. A
incompetência com que Monroe tinha de lidar era como uma dor de
dente. A dor nunca diminuía e nem tampouco desaparecia. "Você tem um
dente estragado", disse a si mesmo. "Agora livre-se dele. Lance era uma
desgraça para os Legalistas. Um idiota impulsivo e insubordinado."
— Foi você quem a matou, não é? — perguntou por entre os dentes,
enquanto seguia na direção de Sweetgrass. Apesar do tal álibi confirmado
pelo barman, Monroe acreditava que Lance era o responsável pela morte
de Pearl. Era a única possibilidade que fazia sentido.
— Quantas vezes tenho de dizer que não fui. eu? — Lance gemeu no
assento traseiro.
Monroe sentiu um fluxo de raiva tão intenso que teve dificuldade em
manter o carro firme na estrada.
— Para onde está me levando? — Lance perguntou. Monroe não
tinha muita certeza, até aquele exato momento.
— Vou jogar este seu traseiro idiota na cadeia, onde é o seu lugar.'
— Ah, não, não vai — Lance começou a gritar. — Não pode fazer isso!
Não pode!
Monroe sentiu uma profunda satisfação ao informá-lo do contrário:
— Pois espere só para ver.
Lance calou-se, amuado. Quando aproximavam-se da cidade, Monroe
perguntou:
— Como o garoto ficou sabendo que era você? — Olhou-o pelo
espelho retrovisor.
Lance encolheu os ombros.
— Não faço a menor ideia.
— Você não tinha nada o que fazer naquele rodeio.
— Não pude evitar. Gosto de rodeios. E como iria adivinhar que Sam
Dakota estaria participando? O nome dele não estava no programa.
— Ainda bem que você não sabia.
— O que quer dizer?
Monroe suspirou. A pergunta era mais um exemplo da incompetência
do sujeito.
— Bem, se você soubesse, talvez pudesse ter evitado que ele
ganhasse o prêmio em dinheiro, certo?
— Ah, é... Certo.
— E, assim, pelo menos teria uma desculpa para ter estragado tudo
novamente.
As mãos de Monroe apertaram o volante com mais força. Burns e os
outros não ficariam muito satisfeitos quando soubessem que Sam e Molly
tinham conseguido a quantia para quitar a primeira parte do empréstimo.
Malditos teimosos, aquele Dakota e a mulher. Teriam poupado a si
mesmos muitos problemas e sofrimentos, se desistissem logo da fazenda.
Agora, Monroe não tinha outra escolha. Os Legalistas precisavam das
terras e pretendiam obtê-las, porém agora a questão estava nas mãos
dele. Não podia confiar em Lance, o sujeito era um inútil. Além disso, se o
libertasse poderia suscitar perguntas demais. Monroe sorriu consigo
mesmo. Não podia negar que apreciava aquela tarefa. Sam Dakota estava
precisando de uma lição, aprender uma ou duas coisinhas. E ele era
exatamente o homem indicado para fazer isso.
Sam estava cansado, mas feliz. Toda a família estava à sua volta e, ao
menos por um momento, tudo estava certo com o mundo. Estavam em
casa, que nunca lhe parecera mais acolhedora. Especialmente agora que
teriam condições de fazer o pagamento do empréstimo. Sam reprimiu um
súbito impulso de rir. Era uma sensação parecida com cócegas, que
começava desde as solas dos pés e espalhava-se por cada parte de seu
corpo. A carga massacrante das preocupações financeiras fora tirada de
seus ombros, e esta era somente uma parte das boas notícias.
Lance Elkins fora preso e, a julgar pela raiva que o xerife Maynard
demonstrara, Sam calculava que o homem acabaria fazendo mais algumas
confissões. Talvez finalmente chegassem à fonte dos tais estranhos
"acidentes". Se havia alguém capaz de persuadir Lance a falar, era o xerife.
Sam quase sentiu pena de Lance.
— Sam?
E, depois, havia Molly. Sua esposa, seu amor. Sua esposa grávida.
Ainda não haviam falado sobre isto e ele demorara um bocado de tempo
para perceber, mas agora tinha certeza. Certeza absoluta.
— Estou aqui.
Sam encontrava-se na sala, sentado numa poltrona com as pernas
estendidas na banqueta, mais cansado do que nunca se sentira em toda
sua vida. Sua cabeça doía, o corpo inteiro latejava, e não havia um único
músculo que não protestasse contra aquele seu breve retorno ao rodeio.
E a briga com Lance Elkins também não ajudara muito.
— Ah... — Molly entrou na sala e parou abruptamente. Ele abriu os
olhos.
— O que foi?
— Você... parece cansado.
— Isso depende — ele disse, sorrindo. — Certamente não estou
cansado demais para fazer amor com minha mulherzinha.
— Sam! — ela ralhou com ele, num sussurro, e olhou por cima do
ombro para certificar-se de que os meninos não estavam ouvindo.
— Eles estão no quarto — Sam tranquilizou-a.
— Precisamos conversar — ela disse, e então, como se o assunto a
perturbasse, desviou os olhos. — Entendo que talvez este não fosse o
melhor momento para que eu engravidasse, mas...
— Por que não? — ele interrompeu.
Sam pensara muito sobre isso na semana que se passara e, por mais
que tentasse, não conseguia arrepender-se pelo fato de terem sido
descuidados. Seu coração parecia capaz de explodir de alegria, e tudo
porque Molly estava grávida de um filho seu. Explodir de alegria. Já ouvira
esta expressão antes, mas somente agora entendia seu verdadeiro
significado.
— Nosso seguro de saúde cobre apenas uma pequena parte dos
custos.
— Então pagaremos diretamente ao médico — Sam afirmou, com
total confiança.
— Você nunca me disse como se sente a respeito de termos um
bebê...
— Molly mordeu o lábio, nervosa.
Seria impossível para ele evitar um sorriso, naquele momento.
— Acho que jamais me senti tão feliz, em toda minha vida. Estendeu
os braços para ela e Molly deu um passo em sua direção quando, de
repente, ouviram um estampido ensurdecedor contra a parede. Sam sabia
reconhecer o barulho de um tiro de rifle, quando o ouvia. Agarrou o braço
de Molly e, pulando para fora da poltrona, empurrou-a para frente,
jogando-a no chão.
Bateram no piso ao mesmo tempo, mas Sam amorteceu a queda de
Molly com o próprio corpo, emitindo um gemido diante da dor que
perpassou-lhe o corpo.
— O que foi isso? — ela perguntou, os olhos arregalados de pavor.
— Alguém está atirando em nós.
— Não... Não pode ser!
Os cachorros começaram a latir freneticamente, e Clay apareceu na
sala correndo. Sam gritou:
— Abaixe-se, Clay!
O menino atirou-se no tapete no instante exato em que uma bala
cruzou o espaço onde sua cabeça estivera um segundo antes.
— Já chega. — Sam arrastou-se pelo chão na direção da cozinha.
— Não se movam — disse. Mal acabou de falar, uma saraivada de
balas perfurou a parede logo acima dele.
O grito de susto de Molly intensificou ainda mais seu próprio medo e
sua raiva. Ela cobriu o rosto com as mãos e afundou-o no tapete.
Clay gritou quando uma das janelas explodiu, espalhando cacos de
vidro por toda sala.
— Sam! Sam! — Tom chamava, no andar de cima. — O que devo
fazer? Diga-me o que fazer!
— Fique onde está — ele instruiu.
— Não se mexa. Molly levantou a cabeça o bastante para alcançar
Clay e puxá-lo para onde ela estava, a fim de protegê-lo.
Sam não sabia o que diabos estava acontecendo, mas também não
pretendia ficar parado ali e deixar que sua família servisse de prática para
tiro ao alvo.
Tudo o que ele mais amava encontrava-se naquela casa e, quem quer
que estivesse atirando poderia começar a fazer as suas orações, porque
ele não iria esperar por nenhuma explicação.
Foi arrastando-se até o quarto de casal, onde abriu a gaveta da
cômoda e retirou um revólver. Sair da casa sem ser percebido não seria
muito fácil, mas o melhor cômodo de onde poderia fazer isso era o
banheiro. Subiu no batente da janela e pulou para a escuridão lá fora,
batendo com força no chão.
Uma vez que estava fora da casa, abaixou-se e seguiu na direção de
onde viera a primeira saraivada de balas. Sua vantagem era que conhecia
bem o terreno. Os cavalos remexiam-se inquietos nas baias, numa tensão
poderosa e pungente.
Com todo cuidado, foi aproximando-se do estábulo, até alcançar um
dos cantos da parede.
— Já foi longe demais, Dakota. Largue a arma.
Sam parou abrupto. Um arrepio gelado percorreu lhe a espinha no
instante em que reconheceu aquela voz.
— Largue a arma agora, ou será um homem morto. Os dedos de Sam
relaxaram enquanto ele abaixou-se e, cuidadosamente, deixou a pistola
no chão.
— Maynard? — Devagar, virou-se para encarar o homem.
— Vejo que está surpreso.
Sam não se deu ao trabalho de negar.
— Por quê?
O xerife Maynard continuou falando, como se não o ouvisse.
— E mesmo uma pena, considerando-se o quanto você conseguiu se
regenerar, e tudo o mais. Justamente agora, quando parecia que você
havia superado tudo, um assaltante desconhecido atacou sua família.
Num esforço para protegê-los, você levou um tiro e morreu. Então,
algumas semanas depois do seu velório, a cidade inteira ficará sabendo
das vigarices que fez contra o velho Wheaton, e de como ludibriou Molly
para que casasse com você. Ela não poderá mais manter a cabeça erguida
diante da comunidade, e acabará vendendo a fazenda por um preço
muito mais baixo do que já havia sido oferecido.
— O que há de tão importante nas nossas terras? — Sam perguntou,
cerrando os punhos.
— Eu e meus companheiros precisamos delas.
— Companheiros?
Um sorriso lento abriu-se no rosto do xerife.
— Sim, os Legalistas.
Sam já ouvira falar do grupo e sabia que eram ativos naquela região,
porém não sabia muito a respeito. Nada daquilo fazia o menor sentido.
— Este país está perdendo todos os seus valores — Gene Maynard
explicou.
— E nisso que acreditamos. A única forma de assegurarmos a nossa
liberdade é derrubando o governo atual. Acontece que estas terras são
perfeitas para nossos propósitos de treinamento. Sabíamos que Wheaton
não iria durar muito, portanto estabelecemos todos os planos e não
temos intenção de modificá-los agora.
— Estreitou os lábios. — Você começou a atrapalhar estes planos
desde o instante em que chegou à cidade.
Sam deu-se conta de que seu aparecimento no cenário era uma coisa,
mas seu casamento com Molly era outra. Não era de espantar que o
policial o odiasse tanto.
— E uma pena acabar com você, Dakota. Você até que cresceu no
meu conceito. Mas há tempos percebi que não compartilha das nossas
opiniões, o que também é uma pena, pois poderia ser muito útil em
nossas frentes de batalha. Você tem coragem.
— Por que você matou Pearl? Maynard ignorou a pergunta.
— Não muito tempo depois de sua morte, a cidade ficará sabendo
que você foi o responsável pela morte dela.
— Mas não foi ele quem a matou, não é, Gene? — a voz de Russell
Letson ressoou atrás do xerife.
Maynard ficou imóvel.
— Jogue sua arma.
— Russell, saia daqui — Maynard falou, olhando por cima do ombro.
— Suma daqui, antes que eu me esqueça de que somos parentes.
— Eu sei quem matou Pearl.
— Ótimo. Pode me contar tudo mais tarde. Agora, para seu próprio
bem, vá embora e esqueça que me viu aqui com Dakota.
— Esta é a grande diferença entre você e eu, primo — Russell
murmurou sarcástico. — Eu tenho uma memória muito boa. Não vou me
esquecer de nada o que vi e ouvi esta noite.
— Isso não lhe diz respeito.
— Aí é que você se engana. Ela sofreu Gene? Implorou para que você
a deixasse viver? Implorou por piedade?
— Pelo amor de Deus, homem, não fui eu! Agora, largue a arma.
— Você a espancou. — As palavras de Russell eram repletas de ódio e
acusação.
— Tudo bem, tudo bem, bati nela — Maynard confessou.
— Mas não a matei, eu juro. — Enquanto falava, virou-se na direção
de Russell.
Instintivamente, Sam soube o que Maynard pretendia fazer e, com
um grito selvagem deu um salto sobre ele, querendo derrubá-lo antes que
tivesse a chance de usar a arma. Porém, um tiro explodiu no ar antes que
Sam estivesse a dois centímetros do solo.
Gene Maynard desabou no chão. Virando de costas, apontou para o
primo, mas Sam aproveitou o impulso de seu salto para chutar a arma da
mão dele.
Lentamente, Russell caminhou na direção do xerife, que gemia. Seus
olhos reluziam de ódio quando apontou a arma para o peito do homem.
Chorando por piedade, o xerife encolheu-se e tentou se arrastar pelo
chão.
— Não faça isso, Russell — Sam falou. — Não vale a pena passar o
resto de sua vida na prisão, por causa dele. Deixe que ele apodreça na
cadeia, e não você. Os outros presidiários certamente irão considerá-lo
um prêmio, portanto deixe o castigo por conta deles.
Russell piscou e Sam percebeu que suas palavras haviam conseguido
ultrapassar a barreira de ódio e raiva.
— Quero que ele sofra.
— Ele vai sofrer — Sam garantiu.
— Não! — Maynard gritou. — Eu não matei Pearl, juro!
— O sangue escorria de seu ferimento, quando olhou para Russell
com os olhos esgazeados.
— Por que você quer a fazenda Flecha Quebrada?
— Era para nosso grupo militar, os Legalistas. Nós pretendíamos
estabelecer nossos campos de treinamento aqui. Nestas terras e na
propriedade vizinha, também. Os dois velhos que moram lá estão prestes
a morrer...
— Burns está envolvido nisso, não é? — Russell perguntou e, pela
reação de Maynard, ficou evidente que ele estava surpreso pelo fato de o
advogado saber disso.
— Sim — gemeu.
— Ele está perdendo muito sangue — Sam avisou.
— Pois que perca. Quero que apodreça no inferno.
— Ela era uma prostituta, Russell! Uma vagabunda! Por que se
importa tanto com isso? — Maynard perguntou, apertando o ombro
ferido.
— Eu me importava — Russell respondeu, devagar.
— Eu me importava muito.
— Sam! Sam! — As luzes acenderam-se e Molly correu na direção do
estábulo. Ele a tomou nos braços, abraçando-a com força. .
— Tom — disse Sam ao rapaz, que chegou logo depois da mãe —,
chame uma ambulância. Depois entrarei em contato com as autoridades
em Missoula.
Molly continuava abraçada a ele, como se temesse deixá-lo ir.
— Está tudo bem, meu amor, não se preocupe — ele sussurrou.
— Eu estou bem.
— E o xerife Maynard?
— Receio que sim.
— Mas, por quê?
— E uma longa história. — Sam beijou-a e, depois, tirou a arma das
mãos de Russell. — Como você sabia que era Maynard?
O sorriso de Russell foi infinitamente tristonho.
— Pode-se dizer que foi Pearl quem me contou. — Sua expressão
nublou-se de dor, enquanto olhava de Molly para Sam. — Espero que
vocês sejam muito felizes.
— Já somos — Molly afirmou com suavidade, olhando para o marido.
— E isso não vai mudar.
EPÍLOGO
Molly deu à luz uma saudável menina na mesma tarde em que Gene
Maynard, vulgo Monroe, Lance Elkins e David Burns eram sentenciados.
Foram considerados culpados de vários crimes federais e passariam o
resto de suas vidas na cadeia.
Sam acompanhara Molly à sala de parto e a ajudara nos estágios
finais do parto. Quando o bebê nasceu, o médico entregou-o a Sam pela
primeira vez. E quando Sam carregou sua filha e olhou pasmado para o
lindo rostinho, seus olhos encheram-se de lágrimas.
A emoção daquele dia superava em muito o que sentira quando
ganhara o cinturão de prata, seu grande triunfo nos rodeios. Mas este
triunfo, o nascimento de sua filha, fazia com que seus feitos nos rodeios
parecessem fúteis e vazios. Porém, o cinturão de prata ganhara um novo
significado para ele, pois Molly o devolvera. Quando olhava para o
prêmio, agora, tudo o que pensava era no amor dela.
— Ela é perfeita — sussurrou, com a voz rouca de emoção.
— Igualzinha à mãe.
Exausta pelas longas horas do parto, Molly sorriu, satisfeita.
— Bem-vinda ao mundo, Cassie Marie Dakota. — Sam beijou a testa
do bebê, com toda delicadeza. — Você tem dois irmãos mais velhos que
irão mimá-la terrivelmente.
— E um papai, também.
— Ah, Molly — Sam falou, olhando para a esposa. — Como um triste
caipira como eu pôde ter tanta sorte? Tenho você, Tom, Clay, e agora
Cassie. Meu coração está tão cheio de felicidade que parece prestes a
saltar do peito. — Acariciou o rostinho do bebê. — Ei, Cassie. A vovó
Dakota vai adorar você. E todas as suas tias e tios...
Sam havia ligado para sua família no dia de Natal. Eles foram visitá-
los na semana seguinte, a tempo de celebrar o Ano-Novo. Aquele era um
novo começo. E voltariam em breve, todos eles, assim que Molly e o bebê
pudessem receber visitas.
Molly fechou os olhos, cansada.
— Eu a amo tanto — Sam acrescentou.
— Também amo você, meu querido... Mas agora preciso dormir um
pouco...
Enquanto ela era levada para a sala de recuperação, Sam carregou
Cassie para o berçário e entregou-a à enfermeira.
Quando Molly acordou, já estava no quarto do hospital e Sam dormia
na cadeira ao seu lado. Clay e Tom entraram nas pontas dos pés.
— Como está se sentindo, mamãe?
— Maravilhosa — ela lhes garantiu.
— Acabamos de ver Cassie. Para uma menina, não é tão feia assim.
— Clay falou, exalando um leve suspiro para que Molly soubesse que
estava somente um pouco desapontado por não ter ganho um
irmãozinho, conforme ela lhe prometera.
Tom havia afirmado o tempo todo que queria uma irmã, e agora
exibia um sorriso orgulhoso, como se a mãe tivesse encomendado uma
menina para contentá-lo.
— Na minha opinião, Cassie vai precisar de um irmão mais velho para
tomar conta dela.
— Ei, ela vai precisar de dois irmãos mais velhos — Clay protestou.
— Você não é o único irmão, sabia?
— E na hora de trocar as fraldas? Será que os irmãos mais velhos vão
querer ajudar? — Molly perguntou.
— E claro — disse Sam, lançando um olhar enviesado para Clay.
— Ele vai ficar mais do que contente em trocar as fraldas sujas.
Molly riu, e Sam abriu os olhos. Espreguiçando-se amplamente, olhou
em volta do quarto.
— Sem dúvida estou grato a vocês, meninos, por terem me ensinado
um pouco como ser pai — disse, sorrindo.
— Ei, o prazer foi nosso — Tom brincou.
— Cassie pode nos agradecer mais tarde.
— Vocês estão dispostos a fazer isso tudo de novo?
— Clay perguntou. — Só que, na próxima vez, me arrumem um
irmãozinho, está bem?
— Como quiser meu filho.
— Sam pegou a mão de Molly e beijou-a levemente na palma. Seus
olhos reluziam de amor. — Gostaria que seu avô estivesse aqui.
— Ele está aqui, Sam — ela assegurou-lhe. — Tenho tanta certeza
disto quanto tenho do seu amor por mim. Meu avô e minha avó estão
conosco.
— Fechou os olhos e quase pôde ouvir a avó cochichar para seu bem
amado marido: "Walter, você fez uma ótima escolha para Molly. Você
soube escolher muito bem."
Russell estava em seu escritório, quando a porta se abriu e dois
homens usando ternos escuros entraram.
— Sinto muito — ele disse, — mas já encerramos por hoje.
— Venha conosco — um deles falou, sem qualquer explicação. Russell
levantou-se.
— Desculpe o que foi que disse?
— Você deve nos acompanhar.
O segundo homem empunhou uma identificação policial, mas Russell
não conseguiu ler o que dizia. Tudo o que sabia era que aqueles dois
homens trabalhavam para o governo federal.
— Para onde vamos? — indagou, enquanto os seguia pela porta
afora. Nenhum deles respondeu. — Devo chamar alguém?
— Isso não seria aconselhável.
Não que houvesse alguém para chamar. A mãe de Russell falecera
meses atrás e, ultimamente, seu único amigo mais próximo era Sam
Dakota. Molly saíra do hospital no dia anterior, e ele fora visitá-los para
conhecer Cassie. A pequena o conquistara no mesmo instante, e Russell
achara difícil ir embora.
Um dos homens foi dirigindo o carro e o outro sentou-se no banco
traseiro juntamente com Russell. Já estavam na estrada por mais de vinte
minutos, e eles continuavam recusando-se a responder suas perguntas,
quando Russell deu se conta de que seguiam na direção de seu chalé. Isso
deixou-o ainda mais intrigado.
Pouco depois, entraram pela estreita passagem de cascalho e
pararam no local onde ele costumava estacionar. Já havia um carro
parado ali.
— Nós o esperamos aqui mesmo — um dos dois sujeitos falou.
— Devo entrar?
— Exato. — Isso foi dito como se fosse óbvio.
Sem saber o que esperar, Russell entrou na casa. Uma mulher estava
parada no canto oposto da sala, próxima à janela que dava para o vale. A
primeira coisa que Russell notou foi que ela lhe parecia conhecida.
— Olá, Russell.
Foi somente quando ouviu a voz que ele a reconheceu. Era uma voz
inconfundível.
— Pearl?
— E um choque, não é?
O cabelo dela estava diferente, e o corpo parecia um pouco mais
cheio. Suas faces encovadas pareciam mais arredondadas, mais saudáveis.
Ela sempre fora linda, mas agora havia uma beleza mais delicada em
torno dela, uma espécie de serenidade.
Sentindo os joelhos fracos demais para sustentá-lo, Russell afundou
na primeira cadeira que encontrou.
— Desculpe ter feito isso com você — ela disse.
— Não sabia se tornaria a vê-lo, mas assim que o julgamento
terminou disseram-me que eu estava livre para procurá-lo. — A voz dela
estremeceu um pouco, e se calou.
— Julgamento? — A mente de Russell girava com perguntas.
— Fui eu quem entrou em contato com o FBI — ela explicou.
— Eles encenaram tudo, para que pensassem que eu estivesse
morta... Não podia lhe contar nada, Russell, não queria que você fosse
envolvido.
— Mas... e todo aquele sangue?
— Não era meu.
— E o corpo? Encontraram um cadáver.
— Aquilo foi... Uma farsa. Alguma pobre mulher que...
Eu me senti muito mal com tudo isso. Ela ainda não foi identificada...
— A voz dela sumiu.
Uma onda de raiva fez com Russell se levantasse num salto.
— Você permitiu que eu acreditasse que estivesse morta!
— Não tive nenhuma outra escolha.
Ele deu-lhe as costas, afastando-se dela enquanto tentava assimilar
tudo aquilo.
— Monroe... Isto é, Gene, não sabia que eu aprendera a ler — ela
murmurou.
— Ele... Ele costumava deixar em meu quarto papéis contendo
informações, sem qualquer receio de que eu pudesse ler e entender o que
significavam. Mas, então, você ensinou-me a ler e fui capaz de relatar os
planos dos Legalistas às autoridades. Lembro-me de quase tudo o que li,
felizmente tenho boa memória. Por favor, Russell, por favor... Não fique
com raiva de mim.
Mas o que diabos havia com ele?, Russell perguntou-se. Pearl havia
voltado! Era muito mais do que ele se atrevera a esperar, mais do que se
atrevera a sonhar.
— Eu amo você — ela sussurrou, com lágrimas brilhando nos olhos.
— Agora, você sabe por que fiz tudo isso. — Depois de um silêncio
tenso, inclinou a cabeça para o lado e acrescentou: — Você pode ir, agora,
se quiser. Os agentes podem levá-lo de volta para casa.
— Não vou a lugar algum sem você — Russell falou, encaminhando-se
para ela. Enlaçou-a pela cintura e puxou-a contra si, chorando baixinho.
— Nunca mais, meu amor.
— Devo avisá-lo de que terá de desistir da sua vida atual — ela disse.
— Você receberá uma nova identidade, fazendo parte do Programa
de Proteção às Testemunhas.
— De acordo.
— E terá de me amar pelo resto de sua vida.
— Concordo plenamente — ele sussurrou trêmulo.
— Pelo resto da minha vida.
— E da minha, também — Pearl acrescentou sorrindo, com os olhos
reluzindo de lágrimas.

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